“Pesquisa, escrita, desejo: certificação de qualidade”

May 28, 2017 | Autor: Carlos Palombini | Categoria: Pesquisa, Avaliação de Desempenho, Processos De Criação, Composição Musical, Escrita
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Pesquisa, escrita, desejo: certificação de qualidade Carlos Palombini CNPq

Pesquisa, escrita e criação Este texto se escreve com tinta diferente dos demais nesta coletânea: o autor não se entende por compositor. Embora o termo pesquisador o possa definir circunstancialmente, ele prefere tomar-se por um escritor que se dedique a alguns temas em desenvolvimento, catalisados por objetos musicais. O campo dessa escrita é pois uma musicologia. Ela habilita-se a clamar para si o nome pesquisa por vazar em publicações denominadas científicas. Que a pesquisa se defina no papel de escrita ou — no limite — de literatura, não constitui novidade. Ao apresentar um número especial da revista Communications em 1972, Roland Barthes observa: Talvez seja o momento de abalar certa ficção: a ficção segundo a qual a pesquisa se expõe, mas não se escreve. O pesquisador seria essencialmente um prospector de materiais, e é nesse plano que se colocariam seus problemas; chegado o momento de comunicar “resultados”, tudo estaria resolvido; “dar forma” seria apenas uma vaga operação final, rapidamente executada graças a algumas técnicas de “expressão” aprendidas na escola secundária, e cuja única restrição seria a de submeter-se ao código do gênero (“clareza”, supressão das imagens, respeito às leis do raciocínio).1

Pesquisa não é mais que a especialização daquela curiosidade infantil cujas expressões clássicas são as perguntas “por quê?” e “por que porquê?” Também é próprio da infância figurar hipóteses e engenhar-se na descoberta de causas e efeitos através de experimentos por vezes arriscados. Se, no caso em foco, tal curiosidade manifesta-se marcadamente por volta dos cinco anos de idade, junto com a descoberta da escrita, a atividade formal de pesquisa só é empreendida um quarto de século mais tarde, em concomitância com o estranhamento da linguagem. De início houve uma pergunta de compositor: de que modo as possibilidades de controle de parâmetros do som, popularizadas através da onda de instrumentos eletrônicos na primeira metade dos anos 1980, se traduziriam em organizações musicais? Pergunta análoga àquela que Pierre Schaeffer formulava entre 1948, quando descobriu a música concreta,2 e 1966, quando publicou Traité des objets musicaux.3 Minha leitura do texto de Schaeffer adquiriu caráter formal durante uma especialização na City University de Londres, de 1988 a 1989, seguida de doutorado na Universidade de Durham, no Reino Unido, de 1989 a 1992. Se até então Schaeffer era uma nota de rodapé na história das vanguardas musicais do pós-guerra, minha dissertação de doutorado transformaria essas vanguardas em nota de rodapé na história de seu pensamento musical. Na segunda metade dos anos 1980 um dos critérios para a concessão de bolsas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) era que os projetos contribuíssem para a resolução de problemas nacionais. De que modo o pensamento de um intelectual francês que desempenhara papel significativo na formação Roland Barthes, “Jeunes chercheurs”, Communications 19 (1): 1–5, 1972, 2. Pierre Schaeffer, “Introduction à la musique concrète”, Polyphonie 6: 30–52, 1950. 3 Pierre Schaeffer, Traité des objets musicaux: essai interdisciplines, Paris, Seuil, 1966. 1

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de Reginaldo Carvalho, Jorge Antunes e Rodolfo Caesar poderia contribuir para solucionar um problema brasileiro? De modo nenhum, aparentemente. Quem queira realizar seu doutorado em música no Brasil hoje necessita submeter-se a uma batelada de testes e, se aprovado, a outras tantas disciplinas, frequentemente desvinculadas de sua trajetória de pesquisa. Foi diferente comigo: aceito para um doutorado por tese após uma simples entrevista, pude dispor de meu tempo como bem entendi durante três anos. Assumi assim o papel paradoxal de tradutor brasileiro do pensamento de um autor francês para uma audiência de língua inglesa. Naquela época, um sistema plurianual de avaliação qualitativa da pesquisa, o Research Assessment Exercise (RAE), começava a ser implantado em caráter pioneiro no Reino Unido. Essas avaliações haviam ocorrido sob o nome Research Selectivity Exercise em 1986 e em 1989. Nessas ocasiões, em função de contingenciamentos orçamentários, os departamentos acadêmicos das universidades britânicas, até então financiados de acordo com o número de estudantes, foram avaliados primariamente nos termos de seus índices de produtividade, correspondentes ao valor atribuído à produção de pesquisa, e essa avaliação passou a servir de base para a distribuição de uma parcela crescentemente significativa das verbas públicas, alocadas em maior volume aos departamentos com os melhores desempenhos, ou em volume nulo a departamentos cujo desempenho fosse considerado insuficiente. O primeiro RAE propriamente dito ocorreu em 1992, e, com um doutorado concluído em três anos e dois artigos aceitos para publicação em periódicos de prestígio, eu era uma demonstração da excelência em pesquisa da Escola de Música da Universidade de Durham. De volta ao Brasil, em 1994 instalei-me num programa de pós-graduação de uma grande universidade privada que era um prodígio em produtividade, embora hoje oscile entre um quatro e um cinco nas avaliações plurianuais da Capes. Em boa parte dos departamentos de música, ter produção intelectual internacionalmente reconhecida e citada era, para uma velha guarda de ideias, se não de idade, uma ameaça ao coronelismo vigente, e nítida desvantagem em concursos públicos. Nesse meio tempo, o prospecto de intérprete anglófono de Schaeffer perdeu a validade. Sem projeto de pesquisa e sem emprego senão uma série de estágios pósdoutorais e um contrato temporário de trabalho, jamais fui tão produtivo. Assim, entre 1997 e 2002, publiquei resenhas e artigos heterodoxos de pesquisa na Grã-Bretanha, no Canadá, na Austrália, na Finlândia, na Itália e nos Estados Unidos. A ideia de estudar a produção eletroacústica carioca em suas relações com a música concreta valeu-me uma bolsa e auxílio Profix-CNPq em 2002, mas morreu no berço: no final do projeto, ao entrevistar Reginaldo Carvalho em sua residência em Teresina, a câmara de Vania Dantas Leite capturou-me dormindo. Sem que eu me desse conta, um novo projeto de pesquisa começara a tomar forma através de uma sucessão de episódios. O primeiro deles passou-se em 1992, quando eu terminava a redação de meu doutorado. Um amigo escocês, filho de proprietários de um nightclub em Glasgow, convidou-me para conhecer a reputada noite de Newcastle upon Tyne. Deparei-me ali com uma juventude de classe operária a exsudar tal comprometimento com o próprio gozo que eu circulava assustado em seu meio: elevavam ambos os braços com as palmas das mão voltadas para a cabine do DJ e interagiam com a música por meio de apitos que lhes pendiam do pescoço. 2



O segundo episódio ocorreu em 1996, quando eu trabalhava no Centro de Documentação de Música Contemporânea da Unicamp. A Internet começava sua trajetória no Brasil e o extinto Altavista era o Google do momento. Digitei “Pierre Schaeffer” e obtive um artigo do compositor australiano Alistair Riddell: O mundo do techno é um exemplo vivo daquilo que, talvez, Pierre Schaeffer estivesse por descobrir nos anos 1950. A propósito, ele foi (pois morreu este ano) um intelectual francês da música e um compositor que tentou investigar as complexidades dos sons do mundo real e sujeitá-los a processos composicionais. Exposta em Traité des objets musicaux, sua tese tenta, entre outras coisas, formular um solfège que possa ajudar compositores a trabalharem com qualquer som, não necessariamente produzidos por instrumentos musicais. Foi um feito notável, embora marcado por problemas teóricos e práticos. Embora os esforços de Schaeffer tenham resultado em muitíssimas palavras, alguma música e epígonos imperecíveis, as únicas pessoas que se aproximam de praticar aquilo que ele estava descobrindo são os DJs de hoje, creio eu.4

Esta ideia era minha, embora eu a não houvesse formulado. A lista de referências mostrava que Riddell lera minha tese. O que me surpreendia era que lhe houvesse lido as entrelinhas. O terceiro episódio transcorreu em 1999, quando eu trabalhava no departamento de música da Universidade Federal de Pernambuco. Uma jovem dinamarquesa me escreve e recomenda o livro de Simon Reynolds, Energy Flash.5 Descubro então que o Segundo Verão do Amor acontecera em Londres, nas minhas barbas, sem que eu houvesse sabido disso. O quarto episódio aconteceu no início de 2001. Eu residia em Porto Alegre e me preparava para as provas de ingresso na carreira diplomática. Lia livros de ortografia, estilo e gramática, bem como os clássicos do brasilianismo. Dois trechos de Casa-grande e senzala me marcaram. Eis o primeiro: Sem contatos com o mundo que modificassem nelas, como nos rapazes, o senso pervertido de relações humanas; sem outra perspectiva que a da senzala vista da varanda da casa-grande, conservavam muitas vezes as senhoras o mesmo domínio malvado sobre as mucamas que na infância sobre as negrinhas suas companheiras de brinquedo. “Nascem, criam-se e continuam a viver rodeadas de escravos, sem experimentarem a mais ligeira contrariedade, concebendo exaltada opinião de sua superioridade sobre as outras criaturas humanas, e nunca imaginando que possam estar em erro”, escreveu Koster das senhoras brasileiras. Além disso, aborrecendo-se facilmente. Falando alto. Gritando de vez em quando. Fletcher e Kidder, que estiveram no Brasil no meado do século XIX, atribuem a fala estridente e desagradável das brasileiras ao hábito de falarem sempre aos gritos, dando ordens às escravas. O mesmo teriam observado no sul dos Estados Unidos, que sofreu influências sociais e econômicas tão semelhantes às que atuaram sobre o Brasil durante o regime de trabalho escravo. Ainda hoje, por contágio das gerações escravocratas, as moças das Carolinas, do Mississipi, de Alabama falam gritando do mesmo modo que no Brasil as nortistas, filhas e netas de senhor de engenho.6

Denominei esse episódio “por que gritam as brasileiras?” Eis o segundo: Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado entre os povos negros da África, como entre os primitivos em geral — já o salientamos em capítulo anterior — é maior moderação do apetite sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos negros africanos, que para excitar-se necessita de estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico. Orgias. Enquanto no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem grandes provocações. Sem esforço. A ideia vulgar de que a raça negra é chegada, mais do que as outras, a excessos sexuais, atribui-a Ernest Crawley ao fato do temperamento expansivo dos negros e do caráter orgiástico de suas festas criarem a ilusão

Alistair Riddell, “Ecstasy Solfège”, Sounds Australian, vol. 14, n. 47, 6–8, 1996. Simon Reynolds, Energy Flash: A Journey Through Rave Music and Dance Culture, Londres, Picador, 1998. 6 Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, em Silviano Santiago (org.), Intérpretes do Brasil, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, vol. 2, 105–645, 2002, 440–441. 4

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de desbragado erotismo. Fato que “indica justamente o contrário”, demonstrando a necessidade, entre eles, de “excitação artificial”.7

Intitulei esse episódio “os excessos sexuais do negro são um fantasma branco”. Mas nem só de língua portuguesa e brasilianismo eu vivia: lia o jornal Zero Hora e achava hilária a alta moralidade que expressava seu ultraje ali diante de uma música que eu sequer conhecia. Também praticava esportes: levantava pesos diariamente. Durante meus treinos, recebia a visita de dois jovens que se exercitavam em dupla enquanto repetiam refrãos enigmáticos que assaz os divertiam: “tchu-tchu-ca, vem a-qui com seu tigrão, vou te jo-gar na ca-ma e te dar mui-ta pres-são”. Eu me perguntava: que lugar é esse que eles frequentam onde aprendem isso? Na manhã de um sábado preparava-me para cruzar a rua no tranquilo bairro em que meus pais residem quando o sinal fecha, um carro para e as caixas de som explodem em “Bum!” gravíssimo. Segue-se: “vem tchu-tchu-ca lin-da, sen-ta a-qui com seu pre-ti-nho, vou te pe-gar no co-lo e fa-zer mui-to ca-ri-nho”! A fala da patroa, o fantasma do negro tarado, a indignação da Zero Hora e aquele teclado ácido que eu ouvira na Newcastle dos anos 1990 adquiriam súbito sentido. Eu descobrira por iluminação instantânea o funk carioca e meu tema de pesquisa. “Deus escreve certo por linhas tortas”, diz o provérbio popular. “O Progresso faz caminhos retos, mas os caminhos tortos, sem Progresso, são caminhos de Gênio”, diz William Blake. Minha pergunta de 1985 poderia ter tido resposta direta se eu houvesse escutado o electro de Nova York ou a house de Chicago nascentes. O desvio pela música concreta me permitiria estudar o primeiro gênero brasileiro de música eletrônica dançante numa perspectiva única e atender assim à solicitação da Capes, finalmente.

Certificação de qualidade Este relato de uma trajetória individual tem dois objetivos. Primeiro, mostrar que os processos envolvidos na pesquisa em música podem não ser tão diferentes daqueles envolvidos na criação musical; ou pelo menos, que o estudo da música e a criação musical admitem narrativas parecidas. A diferença é que a criação musical, caso deseje recorrer a fontes de financiamento à pesquisa naquilo que se convencionou chamar “artes (ou indústrias) criativas”, necessita acompanhar-se de um texto que a caracterize enquanto pesquisa. E nem todos os processos de criação musical se prestam a tais narrativas. Ademais, a figura do compositor-pesquisador carrega consigo uma associação incômoda com as vanguardas institucionalizadas do alto-modernismo e tende a conferir à música os atributos do anacronismo e do academismo. O segundo objetivo é mostrar uma pesquisa e seu resultado, e confrontá-los com modelos de certificação de qualidade de pesquisa que não levam em conta nem a pesquisa nem seus resultados, e muito menos as publicações decorrentes, mas os veículos dessas publicações e seus fatores de impacto. Diretor de avaliação da Capes de 2004 a 2008, em agosto de 2007 Renato Janine Ribeiro estava otimista: Uma das maiores ilusões sobre a Capes é a do assim-chamado “produtivismo”, isto é, a ideia de que a agência só quer saber se e quanto você produz. Não é verdade. O mais importante é a qualidade do que se produz. Evidentemente, só podemos saber da produção científica quando ela é publicada. É quando ela se torna fecunda, quando se expõe a críticas, que podem ser

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devastadoras, mas quase sempre têm um efeito construtivo, e quando pode influenciar leitores e levá-los a citá-la em suas próprias pesquisas. Publicar é então o meio de difundir a produção, de socializá-la.8

Ribeiro demonstra a sofisticação de seu sistema avaliativo com contas muito simples: Como se mede a qualidade da pesquisa publicada? Em várias áreas, há o fator de impacto. Em princípio, este se mede tomando-se uma revista científica, verificando quantas citações revistas científicas qualificadas fizeram de um número dela e dividindo-se esse total de citações pela quantidade de artigos publicados naquele exemplar. Assim, se a revista A publicou vinte artigos, que foram citados cem vezes, seu fator de impacto é cinco. Mas, se nas outras publicações saiu apenas uma referência a algum daqueles artigos, e nada mais, o fator é de cinco centésimos (ou seja, um dividido por vinte). Esta é uma medida bastante sofisticada. Ela significa que não se mede apenas a qualidade da revista, mas o seu “impacto”, ou seja, sua fecundidade. Um trabalho pode ser muito bom, eventualmente, mas não repercutir em nenhuma pesquisa nova. Não será citado, então, e terá sido de certa forma estéril. Mas essa não é uma deficiência do fator de impacto. É que este mede como uma publicação contribui para constituir uma comunidade científica, não apenas a qualidade de artigos isolados. Se há citações, é sinal de que se está construindo um ambiente de diálogo, uma massa crítica, que permitirá que a área avance.9

A Declaração de São Francisco sobre Avaliação de Pesquisa o contradiria frontalmente em dezembro de 2012: O fator de impacto de periódicos é frequentemente usado como parâmetro primário de comparação da produção científica de indivíduos e instituições. O fator de impacto tal qual Thomson Reuters o calcula foi originalmente criado para ser uma ferramenta de auxílio a bibliotecários na identificação de periódicos a serem adquiridos, e não uma medida da qualidade científica da pesquisa em um artigo. Com isso em mente, é crucial entender que, no papel de ferramenta de avaliação de pesquisa, o fator de impacto tem uma série de deficiências bem documentadas. Essas limitações incluem: A) as distribuições de citações nos periódicos são altamente tendenciosas; B) as propriedades do fator de impacto são específicas de seus campos: trata-se de uma composição de tipos múltiplos e altamente diversos de artigos, que inclui pesquisa primária e resenhas; C) fatores de impacto podem ser manipulados (ou “maquiados”) por política editorial; e D) os dados utilizados para calcular os fatores de impacto de periódicos não são transparentes nem estão abertamente disponíveis para o público.10

A Declaração de São Francisco sublinha: A necessidade de eliminar o uso de métricas baseadas em periódicos, tais quais fatores de impacto, em considerações de financiamento, nomeação e promoção;11 A necessidade de avaliar a pesquisa por seus próprios méritos, ao invés de com base no periódico onde se publica; e A necessidade de aproveitar as oportunidades oferecidas pela publicação em rede (para, por exemplo, relaxar os limites desnecessários de número de palavras, figuras e referências em artigos, e explorar novos indicadores de significância e impacto).12

Ribeiro havia declarado ainda, em entrevista ao Jornal Unesp, em novembro de 2007: “Nenhum outro país tem uma avaliação que se compare à nossa, aliás, a maior parte nem avaliação tem.”13 Vimos que, sob o nome Research Selectivity Exercise, alterado para Research Assessment Exercise em 1992, o Reino Unido realizou avaliações Renato Janine Ribeiro, “Os critérios da avaliação”, 10 ago. 2007, http://goo.gl/24lpS3. Id. 10 American Society for Cell Biology (ASCB) et al., “DORA: The San Francisco Declaration on Research Assessment: Putting Science Into The Assessment of Research”, 6 dez. 2012, http://goo.gl/lT8zXs. 11 Para uma análise mais detalhada das limitações do fator de impacto bem como para uma lista de referências bibliográficas sobre o assunto, ver Valerie Bence e Charles Oppenheim, “The Influence of Peer Review on the Research Assessment Exercise”, Journal of Information Science 30 (4): 347–368, 2004, 359. DOI: 10.1177/0165551504045854. 12 ASCB et al., “Dora...”. 13 Julio Zanella, “Entrevista Renato Janine Ribeiro: avaliação será mais rigorosa e quadrienal”, Jornal Unesp, ano 21, n. 228, nov. 2007, http://goo.gl/X88Ivu. 8

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plurianuais em 1986 e 1989. De acordo com Valerie Bence e Charles Oppenheim, o RSE de 1986 “foi provavelmente a primeira tentativa em qualquer país de realizar uma avaliação compreensiva da qualidade da pesquisa universitária”.14 O RAE foi substituídos pelo Research Excellence Framework em 2014 e conta hoje com extensa literatura crítica. No artigo “O impacto da seletividade de pesquisa no trabalho e na identidade acadêmica nas universidades do Reino Unido”, publicado no periódico Studies in Higher Education em 2002, Sandra Harley relatou os resultados de uma enquete conduzida entre profissionais acadêmicos das ciências sociais e de disciplinas ligadas ao comércio logo após a divulgação da avaliação de 2001. Ela notou que: uma parcela significativa dos profissionais da academia é hostil ao RAE, acreditando que seus resultados sejam a produção em massa de pesquisa por uma nota que é mais importante do que aquilo que se produz, e a reorganização do trabalho acadêmico de formas que violam valores tradicionais da própria academia. Houve contudo um alto grau de conivência com demandas percebidas do RAE. As respostas mostram que, devido ao grande valor de identidade do RAE, os acadêmicos do Reino Unido estão co-implicados na implementação de um mecanismo percebido como fundamentalmente equivocado, e por esse motivo jogar o jogo do RAE provavelmente sirva para continuar a legitimar, no século XXI, a distribuição desigual de verbas para a pesquisa em universidades do Reino Unido, apesar dos altos níveis de insatisfação encontrados.15

No artigo “A influência da avaliação por pares no Research Assessment Exercise”, publicado no Journal of Information Science em 2004, Bence e Oppenheim analisam o uso da revisão por pares no sistema de comunicação da pesquisa e no RAE. O denominador comum são os periódicos acadêmicos revisados por pares, uma vez que essa revisão é usada tanto pelos consultores para auxiliar decisões de publicação quanto por membros do comitê do RAE para avaliar o desempenho de pesquisa dos departamentos. Eles constatam que: uma vez que a pesquisa acadêmica está agora sujeita à revisão por pares em todos os estágios de avaliação, tal revisão passa a tornar-se um método aceito de recompensar (por financiamento) a pesquisa. O crescimento de publicações eletrônicas (de acesso pago ou livre) fornece possibilidades de mudanças em parte do processo de revisão por pares e do RAE, mas o modelo fundamental de revisão por pares para reduzir o número de publicações de baixa qualidade permanecerá. Concluímos que, devido às várias críticas à revisão por pares, é imprudente basear decisões de financiamento em revisões de segundo grau de artigos que já foram revisados.16

Ambos desenvolvem suas ideias no artigo “A evolução do Exercício de Avaliação de Pesquisa do Reino Unido: publicações, desempenho e percepções”, publicado no Journal of Educational Administration and History em 2005. Segundo eles: A avaliação do desempenho em pesquisa durante os anos 1980 e 1990 no Reino Unido deve ser vista em paralelo com mudanças na estrutura de financiamento das universidades, com a importância crescente atribuída à avaliação de qualidade e com o desenvolvimento de indicadores de desempenho para isso. O movimento rumo à certificação e à avaliação de qualidade assumiria um papel de crescente importância na determinação do governo (de então) em impor algumas das disciplinas do mercado à educação superior, inclusive a competição, um aumento no poder de demanda do consumidor e o conceito das universidades como empreendimentos corporativos bem sucedidos. No contexto mais amplo dessas políticas o governo também esperava que os recursos fossem administrados com eficiência e responsabilidade máximas, se necessário através

Valerie Bence e Charles Oppenheim, “The Evolution of the UK’s Research Assessment Exercise: Publications, Performance and Perceptions”, Journal of Educational Administration and History 37 (2): 137–155, 2005. DOI: 10.1080/00220620500211189. Acessado em http://dspace.lboro.ac.uk/2134/1804. 15 Sandra Harley, “The Impact of Research Selectivity on Academic Work and Identity in UK Universities”, Studies in Higher Education 27 (2): 187–205, 2002, 187. DOI: 10.1080/03075070220119986. 16 Bence e Oppenheim, “The Influence...”, 347. 14

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da criação de estruturas para tomada de decisões efetivas, para mensuração transparente de desempenho e, em última análise, para alocação de recursos de acordo com tal desempenho.17

Eles prosseguem: Nesse clima de seletividade e avaliação, os acadêmicos têm-se tornado mais e mais preocupados em examinar a natureza de seu próprio trabalho de um ponto de vista crítico. Willmot (1995)18 é um que vê a influência do RAE sobre o financiamento como central na comodificação do trabalho acadêmico. O impacto potencial do RAE sobre a forma como os acadêmicos trabalham e pensam sobre si mesmos é bem descrita por Parker e Jary (1995),19 que temem possa a própria identificação do novo acadêmico vir a formalizar-se nos termos do tanto necessário para obter uma pontuação alta, e não da independência e da criatividade de pensamento. Miller (1995)20 também argumenta que eles ficam constrangidos, monitorados e documentados por meio de vários indicadores de performance, e os objetivos individuais de conhecimento e investigação são deslocados por considerações econômicas.21

Bence e Oppenheim encerram seu trabalho com um florilégio de citações críticas. “Henkel (1999)22 conclui que ele ‘criou uma perturbação profunda na profissão acadêmica’ ao eliminar o que haviam sido processos largamente implícitos de julgamento e tomada de decisão por pares e colocá-los no âmbito de um quadro nacional de avaliação compreensivo e padronizado, falsamente concentrado num evento altamente público, ligado por fórmulas à alocação de verbas a cada quatro ou cinco anos.” “Fulton (1997)23 afirmou que ele havia ‘sido um veículo de humilhações profissionais e pessoais’ na medida em que expunha às vistas de todos estar uma ampla proporção dos funcionários das maiores universidades aquém desses padrões estabelecidos nacionalmente, ou ser incapaz de atingi-los.” “Na Medicina, Williams (1998)24 o chama de ‘enganador, a-científico e injusto’, e na Administração, Piercy (2000)25 explora ‘por que é fundamentalmente burrice para uma escola de comércio tentar melhorar sua nota no RAE’.” Por fim: “Mesmo com as críticas ao processo, aos problemas e às incongruências em torno dessa forma de avaliação, ‘nenhum dispositivo melhor que a tal subjetividade objetivada foi promovido a candidato para a função requerida nesse terreno de seletividade de pesquisa’ (Velody, 1999).26”27

Bence e Oppenheim, “The Evolution...”. Hugh Willmott, “Managing the Academics: Commodification and Control in the Development of University Education in the UK”, Human Relations 48: 993–1025, 1995. 19 Martin Parker e David Jary, “The McUniversity: Organisations, Management and Academic Subjectivity”, Organization 195 (2): 319–338, 1995. 20 Henry D. R. Miller, The Management of Change in Universities: Universities, State and Economy in Australia, Canada and the United Kingdom, Buckingham, Open University Press, 1995. 21 Bence e Oppenheim, “The Evolution...”. 22 Mary Henkel, “The Modernisation of Research Evaluation: The Case of the UK”, Higher Education 38: 105–122, 1999. 23 Oliver Fulton, “Research Assessment: Present and Future Imperfect?”, Research Assessment: Future Perfect? UWE and SRHE Conference Report, Bristol, University of the West of England, 1997. 24 Gareth Williams, “Misleading, Unscientific and Unjust: The United Kingdom’s Research Assessment Exercise”, British Medical Journal, vol. 316, n. 7137, 1079–1082, 1998. 25 Nigel Piercy, “Why It Is Fundamentally Stupid for a Business School to Try to Improve Its RAE Score”, European Journal of Marketing 34 (1/2): 27–35, 2000. 26 Irving Velody, “Knowledge for What? The Intellectual Consequences of the RAE”, History of the Human Sciences 12 (4): 111–113, 1999, 112. DOI: 10.1177/09526959922120405. 27 Bence e Oppenheim, “The Evolution...”. 17

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Em 2013 Frederic Lee, Xuan Pham e Gyun Gu publicaram, no Cambridge Economics Journal, o artigo “O Research Assessment Exercise do Reino Unido e o Estreitamento da Economia do Reino Unido”. Eles concluem que: No período anterior aos anos 1960, os interesses do Estado e das universidades eram compatíveis, baseados na homogeneidade da elite. Isso rompeu-se nos anos 1960 e 1970 à medida que estudantes e pesquisadores expressaram interesses diferentes dos do Estado. Dos anos 1980 em diante realizaram-se esforços para ressuscitar esse interesse comum através de meios políticos, administrativos e burocráticos. Na Economia isso quis dizer que os economistas necessitavam produzir uma Economia mais compatível com os interesses do Estado, o que significou, em parte, a eliminação do tipo errado de economistas e de Economia. Intencionalmente ou não, o RSE/RAE tornou-se o catalisador por meio do qual as universidades foram alinhadas com os interesses do Estado; quanto à Economia, o RSE/RAE foi a chave para limpá-la de visões “erradas”, homogeneizar e focar a pesquisa econômica, e reestabelecer departamentos verdadeiramente de elite, cujas visões dominam a Economia do Reino Unido e de outros lugares.28

No artigo “A mão visível da avaliação de desempenho em pesquisa”, publicado no Journal of Higher Education em 2016, Julian Hamann mostrou, a partir de um estudo de caso dos departamentos de História e de seus desempenhos nas avaliações de 2001, 2008 e 2014, que, “longe de permitir um controle das universidades pela mão invisível das forças do mercado, as avaliações de desempenho em pesquisa não apenas mensuram diferenças de qualidade de pesquisa, mas produzem elas mesmas sintomas visíveis nos termos de uma estratificação e padronização de disciplinas.”29

Desejo Este sobrevoo não sistemático e quase randômico sobre a literatura acerca do sistema britânico de avaliação, um dos primeiros e dos mais avançados, mostra os problemas inerentes a sistemas análogos, entre os quais o brasileiro, também sujeito à Lei de Campbell: “Quanto mais qualquer indicador social quantitativo é usado para a tomada de decisões sociais, mais sujeito estará a pressões de corrupção, e mais apto a distorcer e corromper os processos sociais que deveria monitorar.”30 Representado pelo Qualis Capes e por uma sistemática de avaliação da pós-graduação, o modelo brasileiro tem problemas específicos, que também contam com literatura crítica,31 especialmente na área das ciências biomédicas, talvez porque, como observam Bence e Oppenheim, “esse é o campo no qual informação segura e confiável com qualidade controlada pode ser Frederic Lee, Xuan Pham e Gyun Gu, “The UK Research Assessment Exercise and the Narrowing of UK Economics”, Cambridge Journal of Economics 37 (4): 693–717. DOI: 10.1093/cje/bet031. Acessado em http://mpra.ub.uni-muenchen.de/41842. 29 Julian Hamann, “The Visible Hand of Research Performance Assessment”, Higher Education, 25 jan. 2016, 1–19. DOI: 10.1007/s10734-015-9974-7. 30 Donald T. Campbell, “Assessing the Impact of Planned Social Change”, Evaluation and Program Planning 2 (1), 67–90, 1979, 85. 31 Ver, por exemplo, Maurício Rocha-e-Silva, “O novo Qualis, ou a tragédia anunciada” (editorial), Clinics 64 (1): 1–4, 2009. DOI: 10.1590/S1807-59322009000100001. Sergio da Silva, “Going Parochial in the Assessment of the Brazilian Economics Research Output”, Economics Bulletin 29 (4): 2847–2867, 2009. Brazilian Editors, “Classification of Journals in the Qualis System of CAPES: Urgent Need of Changing the Criteria!”, Clinics 65 (2): 121–123, 2010. DOI: 10.1590/S1807-59322010000200001. Christiane Alves Ferreira, Carlos Alfredo Salles Loureiro, Humberto Saconato e Alvaro Atallah, “Validity of Qualis Database as a Predictor of Evidence Hierarchy and Risk of Bias in Randomized Controlled Trials: A Case Study in Dentistry”, Clinics 66 (2): 337–342, 2011. DOI: 10.1590/S1807-59322011000200025. Renata C. Ferreira, Fernando Antoneli e Marcelo R. S. Briones, “The Hidden Factors in Impact Factors: A Perspective from Brazilian Science”, Frontiers in Genetics 4: 130, 2013. DOI: 10.3389/fgene.2013.00130. 28

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literalmente uma questão de vida ou morte”.32 Ao invés de revisar a literatura sobre o sistema brasileiro concluo com outra citação do texto “Jovens pesquisadores”, do Barthes de 1972:

O trabalho (de pesquisa) deve ser tomado no desejo. Se essa tomada não se realiza, o trabalho é moroso, funcional, alienado, movido pela necessidade exclusiva de passar num exame, de obter um diploma, de garantir uma promoção na carreira. Para que o desejo se insinue em meu trabalho, é necessário que este me seja requisitado não por uma coletividade que entenda assegurarse de meu labor (de minha pena) e contabilizar a rentabilidade das prestações outorgadas, mas por uma assembleia viva de leitores nos quais se faça ouvir o desejo do Outro (e não o controle da Lei).33

Minha iniciação formal à pesquisa deu-se num país onde isso fora tradição, em circunstâncias nas quais ainda era possível. Hamann afirma: “Com a ligação entre grupos de status e o desempenho real de pesquisa assim rompida, parece improvável que uma mão invisível possa elevar a qualidade da pesquisa como as avaliações desejam.”34 A não ser, talvez, a mão do desejo sadomasoquista.

Bence e Oppenheim, “The Influence...”, 350. Barthes, op. cit., 1. 34 Hamann, op. cit., 17. 32

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