Pesquisa Etnográfica Com o Cotidiano da Gestão Escolar Democrática: em busca de apontamentos para desvendar as nuances das escolas públicas

June 30, 2017 | Autor: Jeferson Margon | Categoria: Etnography, Gestão Democrática Escolar, Gestão Educacional
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Pesquisa Etnográfica Com o Cotidiano da Gestão Escolar Democrática: em busca de apontamentos para desvendar as nuances das escolas públicas Autoria: Lucas Poubel Timm do Carmo, Jeferson Margon

RESUMO O objetivo deste artigo é entender como o pesquisador, vivenciando o cotidiano da escola pública, pode compreender os significados da gestão escolar. Assim, foram apontadas relações entre as premissas da gestão escolar com as principais características da etnografia, a saber: (1) inserção do pesquisador no campo, (2) primeiras impressões, estranhamento e familiarização e (3) construção do texto etnográfico e rigor metodológico. Pretende-se contribuir para que futuros pesquisadores tenham em mente os desafios que podem ser encontrados ao se inserirem nesse campo. Salienta-se que essa discussão não esgota todos os apontamentos possíveis, buscando-se, na verdade, contribuir para que futuros estudos envolvam e aprimorem essas duas temáticas. Palavras-chave: Escola Pública; Gestão Escolar; Etnografia 1

Introdução A educação básica corresponde ao primeiro nível de ensino escolar no Brasil, englobando a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. Espera-se que, durante esse nível, os alunos consigam adquirir os meios fundamentais para progredirem como profissional, como estudante e como cidadão (BRASIL, 2014). Uma característica básica das escolas públicas de ensino básico é o fato de elas precisarem seguir o princípio da gestão democrática, de tal maneira que a gestão não fique restrita apenas ao diretor escolar, mas seja realizada por toda uma comunidade escolar – diretor, professores, demais servidores, pais, alunos e líder comunitário (BASTOS, 2005; LÜCK, 2011). Para auxiliar na execução desse princípio básico preconizado pela Lei n. 9.394 de 20 de Dezembro de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – a LDB, as escolas públicas são geridas por intermédio de alguns canais de participação, dentro os quais a eleição para o cargo de diretor escolar, os Conselhos de Escola em cada unidade de ensino, a associação de pais, os grêmios estudantis e a gestão autônoma. Tais pressupostos tornam a gestão das escolas públicas, fenômeno complexo, plural, dinâmico e de distintos sentidos, como um importante pilar para a ação educativa (ROCKWELL; EZPELETA, 2007; LÜCK, 2011). Nesse sentido, entendemos que o estudo da gestão democrática nas escolas públicas, por esta ser uma construção social, requer uma ampliação na capacidade de conhecê-la (ROCKWELL; EZPELETA, 1989). Para isso, segundo as autoras, vivenciar o cotidiano escolar a partir de novas opções metodológicas torna-se fundamental. Dessa maneira, propomos neste estudo o uso do método etnográfico para o estudo da gestão nas escolas públicas brasileiras. Acreditamos, conforme Ferraço (2007) e Junquilho, Almeida e Silva (2012), que o estudo desse fenômeno requer do pesquisador um mergulho profundo no cotidiano escolar, indo além da comum separação que as pesquisas fazem entre sujeito e objeto. Sendo assim, buscaremos discutir como a etnografia pode ser um método que possibilite ao pesquisador, por meio da vivência diária no ambiente escolar e ao dar voz aos vários sujeitos da comunidade escolar, entender os significados que são construídos socialmente no local estudado (CAVEDON, 2003). Além disso, pretendemos contribuir para que o método etnográfico não seja confundido com técnicas de coleta de dados, algo que continua sendo comum nos Estudos Organizacionais, conforme ressaltado por Dalla Chiesa e Fantinel (2014). A partir disso, o objetivo deste artigo é buscar entender de que maneira o pesquisador, vivenciando diretamente o cotidiano escolar, pode compreender os significados de uma gestão 1  

 

escolar democrática. Com os apontamentos encontrados, pretendemos contribuir para futuros estudos que busquem compreender o fenômeno da gestão na escola pública a partir do método etnográfico, de forma que outros pesquisadores tenham em mente a relação tênue que acaba se estabelecendo entre as principais dimensões necessárias para o uso da etnografia e o contexto complexo da escola pública. Dito de outro modo, propomos identificar alguns dos desafios que pesquisadores podem encontrar ao se inserirem no campo da gestão escolar. É fundamental deixar claro, no entanto, que, ao discutir as características básicas da realização de uma etnografia, este artigo não esgota todos os apontamentos possíveis. Sendo assim, além da introdução, este artigo está estruturado por outros quatro tópicos. No próximo, abordaremos algumas das principais características que permeiam a gestão na escola pública, dando atenção especial àquilo que está relacionado ao seu caráter complexo e plural. Em seguida, discutiremos sobre algumas das ideias centrais do método etnográfico. A seguir, faremos alguns apontamentos que articulem as temáticas da gestão escolar e da etnografia, de tal forma que possamos destacar o que os pesquisadores podem esperar ao mergulharem no cotidiano escolar. Por fim, levantaremos algumas considerações finais, de forma que possamos propor sugestões para futuras pesquisas. 2

As características básicas do contexto da escola pública a partir do princípio da gestão democrática A educação é parte da vida social que permeia diversas discussões dentro dos estudos organizacionais (JUNQUILHO; ALMEIDA; SILVA, 2012). Caracterizada pela pluralidade de pensamentos dos membros que a compõe, em função dos princípios de democracia que a contornam, a gestão escolar, como parte da gestão educacional, é regida pela Lei n. 9.394/96 – Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) como mecanismo que visa garantir tais aspectos democráticos a fim de atingir sua qualidade e efetividade a partir da participação cotidiana não apenas do diretor escolar, mas também dos demais membros da escola – professores, demais servidores, pais, alunos e líder comunitário (LÜCK, 2011; BASTOS, 2005). Compreender a escola a partir desse perfil de organização plural em um contexto complexo e dinâmico implica assumir que seus objetivos tendem a ser igualmente múltiplos, acarretando aspectos difusos no que tange às relações de poder em seus diversos processos, sendo estes últimos baseados no conhecimento (DENIS; LANGLEY; ROULEAU, 2007). Pode-se entender, portanto, que lidar com tal pluralidade de pensamentos dos sujeitos envolvidos na gestão escolar, que se estende à comunidade ao redor como um todo, apresentase como um desafio (WERLE, 2003), e aqui repousa o intuito deste artigo. Em outras palavras, investigar, por intermédio da imersão em seu cotidiano, esse contexto de inúmeras e diversificadas práticas (BASTOS, 2005; FERRAÇO, 2007; JUNQUILHO; ALMEIDA; SILVA, 2012) a fim de que os estudos sobre a gestão escolar avancem. Como importante observação está o fato de que quando a discussão sobre a pluralidade e complexidade da gestão escolar é posta em pauta não é estritamente no sentido de que o diretor deve lidar com esses aspectos, mais do que isso, significa que o diretor compartilha a gestão com tal multiplicidade de sujeitos, como os princípios da democracia e participação na gestão aponta (LÜCK, 2011). Entendidas as motivações que movem esta proposição de pesquisa, torna-se necessário apresentar alguns dos principais instrumentos de participação envolvidos em seu cotidiano. Essa apresentação tem o intuito de discutir de que forma esses instrumentos podem influenciar no acontecimento da escola e, mais especificamente, da gestão escolar. Alguns desses canais de participação, como aponta a LDB, são a eleição para o cargo de diretor escolar, os Conselhos de Escola presentes em cada unidade de ensino, a Associação de Pais, os Grêmios Estudantis e a Gestão Autônoma. Com esses instrumentos, busca-se uma gestão que seja democrática e que intencione justamente alterar as estruturas de poder, de modo que 2  

 

os diversos sujeitos ligados a ela, além do diretor escolar, compartilhem as tomadas de decisão de maneira igualitária (VARGAS; JUNQUILHO, 2013). É importante salientar que, tão fundamental quanto a participação dos segmentos escolares nas tomadas de decisões, é a observância das normas que esses processos de tomada de decisão devem seguir a partir das leis e a garantia de acesso à informação a todos da comunidade escolar (SOUZA, 2009). Nesse ponto, a pluralidade de pensamentos e expectativas dos diferentes membros da comunidade escolar são fatores que aparecem fortemente, contribuindo ainda mais para que a gestão escolar seja considerada como complexa (WERLE, 2003). Assim, entendendo que o diretor escolar adquire apenas um caráter de representatividade formal da gestão escolar, evidencia-se a necessidade de analisar mais a fundo os processos de gestão escolar, tendo em vista que nela são desencadeados múltiplos “jogos de resistências e estratégias modificadoras que se entrelaçam ou ainda, são re/construídas nas/pelas práticas cotidianas” (VARGAS; JUNQUILHO, 2013, p. 192). Portanto, para Alves e Garcia (2000), entender a escola como lugar de complexidade implica observá-la para além das redes educativas compostas por ela e nela, pois significa compreendê-la como igualmente formada por redes de convivência repletas de aspectos subjetivos de seus componentes. É nessa lógica que Junquilho, Almeida e Silva (2012) assumem a necessidade de compreender as escolas como pluralísticas por essas compartilharem dos pressupostos apontados por Denis, Langley e Rouleau (2007) como intrínsecos às organizações dessa natureza. Além disso, outro aspecto que torna a gestão escolar mais desafiadora é o fato de os diretores escolares exercerem seus cargos em função de eleição realizada pela comunidade escolar. Essa natureza eleita de seu cargo gera a necessidade de constantes práticas cotidianas de negociação por parte desse indivíduo, especialmente por ele ocupar um cargo de caráter momentâneo. Como o diretor possui um período bem determinado de mandato para sua atuação, Vargas e Junquilho caracterizam a posição do exercício de sua autoridade como sempre na “corda bamba” (VARGAS; JUNQUILHO, 2013). Assim, compreende-se que “diante da complexa teia de gestão, as escolas públicas experimentam paradoxos, pois, embora consideradas participativas, muitas vezes apresentam dificuldades para vivenciar a gestão democrática” (JUNQUILHO; ALMEIDA; SILVA, 2012, p. 347). São as especificidades das práticas cotidianas de cada escola que determinam de que maneira as tensões geradas por estes paradoxos apresentam-se na gestão das escolas, ou seja, se efetivamente essas tensões são superadas, resultando em escolas inclusivas socialmente, ou se permanecem perfis centralizadores nas mesmas (LÜCK, 2011; BASTOS, 2005). A partir do que foi discutido até aqui, entende-se que o estudo da gestão escolar deve partir da não separação entre o sujeito e objeto, pois o segundo não é externo ao primeiro. Como fenômeno social, o estudo da gestão escolar requer que o pesquisador mergulhe em seu cotidiano ao ponto de também vivenciá-lo pois, como tal, o conhecimento acerca desse fenômeno é produzido conjuntamente através dessa inserção do pesquisador com os sujeitos da pesquisa, já que não há realidade externa a priori a ser observada nem verdade absoluta e única (JUNQUILO; ALMEIDA; SILVA, 2012). O desafio, segundo Junquilho, Almeida e Silva (2012, p. 350) é o de “buscar outros modos de descrever a pesquisa e seus resultados, superando a descrição impessoal e formalista”, indo ao encontro do uso de narrativas nas quais o cotidiano é contado assumindo o posicionamento do pesquisador como narrador praticante (ALVES, 2002). Essa proposta de Junquilho, Almeida e Silva (2012, p. 350) evidencia a carência de estudos nos quais o pesquisador passe a “ir às organizações, habitar esses ‘espaços’ e dar voz aos indivíduos que praticam o cotidiano, aí incluindo o próprio pesquisador”. Ao proporem essa virada ontológica e epistemológica na maneira de pensar, ver e se inserir no campo, e consequentemente, intencionar novos posicionamentos metodológicos para a pesquisa, os 3  

 

autores apontam que não se trata exclusivamente de um mergulho no cotidiano com a finalidade de descrição do que nele é visto como repetitivo, mas que desvende, “por meio de narrativas, conteúdos ‘ocultos’, singulares, diferenciados das práticas ou ‘artes do fazer’, ou seja, daquilo que se repete mas que não é a mesma coisa necessariamente, dia a dia, em termos de sentidos figurados”. Entendidos esses aspectos próprios da gestão escolar, a discussão a seguir pretende apontar potencialidades do método etnográfico como caminho para o mergulho em campo visto como necessário para avanços na pesquisa da dinâmica social escolar. 3

O método etnográfico e suas características O método etnográfico teve sua origem ligada à Antropologia Social, sendo o foco dos estudos as sociedades “primitivas”. A corrente que marcou essa época foi a evolucionista, que acreditava que a mente humana fosse igual em qualquer lugar e, por isso, a sociedade evoluiria passando sempre pelas mesmas etapas. Com isso, a evolução cultural era vista de maneira unilinear e progressiva. Isso contribuiu para que boa parte desses trabalhos fossem marcados pela ideia do etnocentrismo (CAVEDON, 2003; DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). O etnocentrismo, a pouca confiabilidade nos dados e o fato de acreditarem em estágios de evolução fizeram com que os evolucionistas sofressem duras críticas (CAVEDON, 2003). Com isso, o trabalho de Malinowski (1978) passa a ser visto como trivial na nova concepção de método etnográfico, apesar de este autor objetivar retratar a cultura e o campo em sua totalidade, visão que é criticada pelos estudos mais contemporâneos (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Independente disso, ao sugerir que o antropólogo deveria mergulhar no mundo nativo, a fim de identificar o comportamento e a atitude mental do nativo, o autor propõe que o centro do estudo não deveria mais ser a sociedade do pesquisador, mas sim a maneira de viver do nativo. No entanto, a forma de se utilizar o método etnográfico sofreu várias alterações ao longo dos anos, especialmente pelo fato das tribos primitivas terem sido dizimadas. O espaço de tempo menor no qual as pesquisas são realizadas é um exemplo de como houve nítidas alterações na. Isso fez com que os antropólogos começassem a estudar a sua própria sociedade, que é a sociedade complexa forma de utilização do método etnográfico (CAVEDON, 2003; CALIMAN; COSTA, 2008). Ao mesmo tempo, outras áreas de estudo passaram a também usar o método etnográfico, e com a Administração não foi diferente (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). No entendimento de Yanow (2012), isso não quer dizer que os etnógrafos organizacionais devam se sentir inferiores aos etnógrafos antropológicos, como se estivessem se apoderando de algo que não é deles. Na verdade, o uso da etnografia no campo organizacional tem grande contribuição ao propor questionar e evidenciar os comportamentos, hábitos e atitudes dos indivíduos no cotidiano organizacional (CALIMAN; COSTA, 2008). Mas, o que significa o método etnográfico? Quais são as características básicas para a realização de uma etnografia? Na visão de Cavedon (2003, p. 143), a etnografia “[...] consiste em levantar todos os dados possíveis de uma determinada comunidade com a finalidade de conhecer o estilo de vida ou a cultura específica da mesma”. Seguindo esse mesmo pensamento, Geertz (1989) sugere que nesse tipo de pesquisa, os próprios praticantes fazem a etnografia, o que requer do pesquisador uma descrição densa a partir da sua percepção da significação e do seu esforço intelectual. Nesse caso, a observação participante é uma das técnicas mais utilizadas na etnografia. Até por ser muito comum, a observação participante muitas vezes, de maneira equivocada, é confundida com o método etnográfico (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Nesse sentido, conforme afirma Magnani (2002), é preciso estar atento para não reduzir o método 4  

 

etnográfico às várias técnicas possíveis para se fazer uma etnografia, dentre as quais a própria observação participante ou o diário de campo. As técnicas compõem apenas uma das etapas da etnografia. Posteriormente, exige-se do pesquisador uma construção de relatos que vão além do que foi observado e que dão sentido ao que foi vivido (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). O fato é que, segundo Cavedon (2003), a observação participante requer do etnógrafo a imersão no cotidiano da cultura a ser estudada, de tal forma que ele consiga compreender os aspectos socioculturais do objeto de pesquisa. Em virtude disso, os dados são encontrados em grande profundidade, fazendo com que a organização dos dados seja fundamental para uma boa etnografia. Com as várias informações deparadas pelo pesquisador, a má organização pode levar a um caos futuro. Nesse sentido, é importante que o etnógrafo registre minuciosamente as suas primeiras impressões no campo, pois alguns fenômenos, que no início são considerados estranhos, ao longo do tempo, com a vivência cotidiana do pesquisador no objeto de estudo, tornam-se normais e pouco merecedores de atenção (CAVEDON, 2003). De acordo com a autora, isso se dá principalmente porque o etnógrafo sofre um processo natural de aculturação. Além disso, o etnógrafo deve registrar como foi a inserção dele no campo porque, dependendo da forma como ou por quem ele foi introduzido, situações problemáticas podem aparecer. Tais situações mostram-se exemplificadas nos relatos de Dias (2007) sobre suas angustias ao ter seus princípios de crença chocados com a realidade estudada em seu trabalho, por mais que esta autora considerasse a etnografia como uma análise reflexiva em detrimento de esquemas objetivos e deterministas. É nítido como houve um doloroso processo de estranhamento e familiarização, elementos que, segundo Dalla Chiesa e Fantinel (2014) são comuns nas pesquisas etnográficas. Compreender isso abre possibilidades para entender como a pesquisa etnográfica é uma relação de via de mão dupla, colocando o pesquisador numa posição que não pode ser considerada neutra (MAGNANI, 2009; DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Segundo Cavedon (2003), pode ser que haja uma dificuldade do pesquisador em adquirir a confiança do grupo ou pode ser que ele vá para o trabalho de campo com uma percepção já contaminada da cultura que se pretende estudar. Por isso, Yanow (2012) afirma que a pesquisa implica em processos de escolha, que vão desde o design até a escrita. Isso ocorre pelo fato de a etnografia ser composta pelas qualidades individuais dos pesquisadores, pelo contexto grupal e pela bagagem teórica do etnógrafo (CAVEDON, 2003; DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Ou seja, é claro que não se deve misturar e confundir as falas dos pesquisados (êmico) com as falas do pesquisador (ético), mas a noção de processos de escolha sugere que o pesquisador pode ter voz. Segundo Cavedon (2003), a questão é que não misturar essas categorias possibilita evitar, também, o etnocentrismo. Dessa maneira, questões como sentimentos do pesquisado, expressões dos grupos e impressões particulares do pesquisador são alguns dos elementos que constam na construção do texto etnográfico e que podem ser utilizadas para descrição das categorias dos pesquisados (do êmico) (CAVEDON, 2003). Destarte, fenômenos que não são captados por meio de questionários ou técnicas quantitativas devem ser registrados por meio do diário de campo, na qual se tem uma narrativa do pesquisador sobre os acontecimentos diário do objeto estudado. Aqui, é possível perceber claramente a presença da ideia de descrição densa afirmada por Geertz (1989) e como a produção do texto etnográfico é fundamental para que o pesquisador não seja nem completamente etnocêntrico, nem completamente nativo (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Dito de outro modo, a etnografia não é nem uma pesquisa baseada em entrevistas, nem uma pesquisa de observação de um ambiente enquanto se espera para realizar uma entrevista (YANOW, 2012). Para tanto, o pesquisador precisa inserir-se profundamente no campo a fim de que, após a longa coleta de dados, ele tenha condições de descrever o “outro” observado 5  

 

(CAVEDON, 2003) por meio da capacidade de refletir sobre sua própria experiência diante daquilo que o familiariza ou distancia do objeto. Segundo Dalla Chiesa e Fantinel (2014, p. 10), Estar com o outro é estar no fluxo dos acontecimentos, nas tramas do cotidiano, nas variações de práticas, nas regularidades e irregularidades do dia-a-dia, atentando para aquilo que significa, que simboliza e que representa a ação do homem, mesmo aqueles acontecimentos extremamente ínfimos e efêmeros que aparentemente ‘não têm valor’.

Sendo assim, a antropologia aprendeu que a escrita da pesquisa é uma forma de realização do mundo e de construção do mundo descrito. Tal percepção é oposta à ideia de uma escrita que apenas reflete o mundo por meio de palavras, atos ou interações, como se fosse um espelho. Nesse sentido, a etnografia empenha-se na questão da língua, dos atos e das interações, mas também nas "coisas" que compõem aquilo que os indivíduos fazem, onde fazem e sobre o que falam (YANOW, 2012). Dessa maneira, o método etnográfico dá enfoque às situações em que esses aspectos estão envolvidos com os objetos, de forma que seja dada atenção aos espaços organizacionais. Destarte, segundo Dalla Chiesa e Fantinel (2014), escrever o texto etnográfico traz para o plano do discurso os fatos ouvidos e vistos pelo pesquisador ao longo do trabalho de campo Por isso, não se deve pensar na etnografia como um simples trabalho de campo, mas como uma forma de se escrever sobre o trabalho de campo e entender as teias de significados culturais (GEERTZ, 1989). Segundo o autor, o etnógrafo transforma um acontecimento passado em um relato atual que pode ser consultado a qualquer momento. Quando se foca na etnografia como uma forma de se conhecer e compreender algo, e não como uma simples maneira de se ver ou observar, é preciso pontuar algumas questões (YANOW, 2012). Em primeiro lugar, sobre a investigação etnográfica cotidiana, quer dizer que a pesquisa deve estar sustentada no dia-a-dia do trabalho, indo além da simples adaptação das práticas às exigências de horário dos gestores ou de outras pessoas. Além disso, a etnografia, enquanto uma metodologia, dá voz legítima a todos os sujeitos da pesquisa de maneira igual (YANOW, 2012). Pode-se articular essa ideia aos entendimentos de Cavedon (2003) e Clifford (2008) sobre a questão polifônica da etnografia. Há uma diferença considerável entre o contexto em que ocorriam as etnografias clássicas e o contexto no qual as etnografias são elaboradas atualmente. Antes os povos estudados eram, em geral, coloniais, fazendo com que o pesquisador tivesse que se isolar e distanciar o processo de coleta de dados e a elaboração do texto. Fenômenos vivenciados pelo antropólogo acabavam sendo perdidos. Entretanto, atualmente, a etnografia é polifônica, o que significa dizer que todos os informantes possuem voz no texto (CAVEDON, 2003). Dessa forma, há um diálogo entre pesquisador, pesquisados e teoria. É importante destacar que a voz do autor, como já afirmado anteriormente, não seja substituída pela voz dos pesquisados (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Com isso, a escrita na primeira pessoa do singular, na percepção das autoras, aparece como uma característica bastante evidente nos textos etnográficos, justamente para que o pesquisador tenha voz diante das vozes dos pesquisados. Percebe-se, a partir do que foi exposto até aqui, que a etnografia rompe com o ideal científico positivista de distanciamento total do pesquisador em relação àquilo que ele estuda (YANOW, 2012). De acordo com a autora, a etnografia viola com a objetividade, tanto ontológica (questão física) como epistemologicamente (questão cognitiva, emocional). Ou seja, o fenômeno social não é estático, mas sim construído, de tal forma que a realidade não é posta a priori. Nesse sentido, não sendo passível de ser observada de maneira neutra, a realidade social, a fim de ser compreendida parcialmente, deve ser vivida, de fato 6  

 

(MAGNANI, 2009). Com isso, a etnografia, ao entrar na realidade e não a observar de fora, foge do postulado positivista de distanciamento entre pesquisador e pesquisados. Diz-se uma compreensão parcial porque a etnografia, conforme atualmente se entende, não é capaz de retratar o campo em sua totalidade, em virtude das limitações para conhecer o “outro” (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Cavedon (2003), inclusive, ressalta a importância do etnógrafo em buscar construir uma relação de empatia com os informantes, pois a qualidade dos dados tem forte dependência com essa capacidade do pesquisador em ouvir e compreender o outro. Seguindo essa lógica, a autora destaca que é possível que os pesquisados, ao se conscientizarem do mundo que os separa do pesquisador, tentem usá-lo como uma forma de reivindicar coisas de seus interesses. Nesse sentido, percebe-se que o pesquisador pode assumir, indiretamente, um compromisso político com essa comunidade. Entretanto, é preciso estar atento para a execução de um constante processo de aproximação e afastamento do objeto (CAVEDON, 2003). Yanow (2012) também questiona se a etnografia organizacional pode ou deveria ser intervencionista, distinguindo-a de uma consultoria. Segundo a autora, pode ser que um etnógrafo, ao realizar uma pesquisa em uma organização, seja perguntado ou pressionado por alguém a falar a respeito do que ele aprendeu ou tem aprendido com as observações. Tal situação desloca o etnógrafo de uma posição mais observadora para um papel de maior intervenção (YANOW, 2012). Ao abordar isso, a autora não procura discutir questões científicas, mas sim as questões políticas dos papéis dos etnógrafos e as relações de pesquisa existentes. Cavedon (2003) trata de questões semelhantes ao abordar a dificuldade de se utilizar a etnografia nas organizações e de os gestores compreenderem o que ela significa. É comum, na visão da autora, perguntas pragmáticas sobre a etnografia, voltadas para a aplicabilidade e para a instrumentalização da cultura. Cavedon (2003) também discute sobre as questões éticas que permeiam a atividade do antropólogo, limitando suas ações no sentido de desvendar significados. Nesse caso, o etnógrafo não busca instrumentalizar os novos significados na tentativa de os “impor” na mente das pessoas. Considerando esse contexto, Cavedon (2003) compartilha da mesma ideia que Yanow (2012) ao afirmar que as teorias comportamentais fazem grande sucesso justamente por dizerem desvendar o clima organizacional e o comportamento das pessoas em pouco tempo. O tempo, aliás, é outra dificuldade ressaltada, já que no mundo organizacional ele é um recurso fundamental para a obtenção de resultados. Em direção oposta, a etnografia requer um tempo considerável para ser realizada. Além disso, as interpretações dos antropólogos, em geral, são vistas como estranhas e confusas pelos administradores, que estão acostumados com o quantificável (CAVEDON, 2003). Essas ideias demonstram, principalmente, um conflito entre a administração e a antropologia. Enquanto o primeiro prezaria pelo saber prático e a instrumentalização de conceitos de outras áreas, o segundo daria enfoque maior às questões teóricas. A administração é vista como normativa e racional, enquanto a antropologia como reflexiva e interpretativa da realidade. O fato é que existem visões estereotipadas dos dois lados e que, diferente da antropologia e da etnografia, que foram interligadas por muito tempo, os estudos organizacionais e outros campos interdisciplinares não possuem essa interligação (CAVEDON, 2003; YANOW, 2012). Yanow (2012) entende que essa situação pode se alterar a partir da mudança de consciência e avaliação crítica sobre a tentativa de separar a etnografia das suas amarras disciplinares. Isso significaria deixar de entender a etnografia nos estudos organizacionais como uma redução de olhares, falas e leituras de ferramentas, como se a etnografia fosse apenas mais um método que o pesquisador pega na sua “caixa de ferramentas” para a realização de um estudo (YANOW, 2012). Significaria, no entendimento da autora, entender 7  

 

a etnografia como um processo constituído por práticas complexas de pesquisa, exigindo do etnógrafo habilidades, orientações, sensibilidades e formação. 4

Apontamentos sobre as diferentes dimensões necessárias para uma etnografia no contexto da escola pública Até aqui, discutimos as principais noções a respeito da gestão na escola pública de ensino básico e sobre a etnografia. Neste tópico iremos propor algumas importantes relações que podem ser estabelecidas entre essas duas temáticas. Para isso, conforme apresentado a seguir, optamos por destacar algumas das principais dimensões básicas para a utilização do método etnográfico e, a partir delas, desenvolveremos as articulações com as concepções envolvendo a gestão na escola pública. 4.1 A inserção do pesquisador no campo Ao estudar a gestão das escolas públicas, algumas particularidades tornam-se evidentes. Uma delas é o fato de que muitos dos indivíduos pesquisados são docentes ou buscam aproximação com a comunidade acadêmica (JUNQUILHO; VARGAS; SILVA, 2012). Segundo os autores, isso faz com que tanto pesquisador como pesquisados troquem conhecimentos mútuos no cotidiano, especialmente no que diz respeito à gestão “na/da/com” a escola pública. Com isso, Junquilho, Vargas e Silva (2012) destacam que a pesquisa é construída, geralmente, em meio a uma relação de cumplicidade, em que o pesquisador se assume não em uma posição privilegiada, mas como o próprio objeto do estudo. Ou seja, conforme afirma Ferraço (2007), a ideia de pesquisa “com” a escola é justamente para evitar a noção de que exista um afastamento entre pesquisador e pesquisado, como se fosse uma pesquisa “sobre” a escola. A partir dessas ideias, é possível estabelecer uma conversa com o que Yanow (2012) trata a respeito do rompimento que a etnografia faz com a noção científico positivista de muitas pesquisas. Ao entender que não há uma separação entre pesquisador e pesquisado, tanto ontológica como epistemologicamente, a etnografia torna-se fundamental para que o fenômeno da gestão na escola pública seja estudado a partir da vivência do pesquisador no cotidiano escolar, e não de maneira neutra (FERRAÇO, 2007; MAGNANI, 2009; JUNQUILHO; VARGAS; SILVA, 2012; YANOW, 2012). Outra aproximação possível de ser feita entre as duas temáticas diz respeito à relação de empatia, confiança e cumplicidade (CAVEDON, 2003; JUNQUILHO; VARGAS; SILVA, 2012) que deve ser estabelecida no contexto da escola pública para a realização da pesquisa. Em um ambiente permeado por pluralidades de pensamentos e objetivos, é fundamental que o pesquisador, na visão de Cavedon (2003), saiba construir uma relação em que ele possa ouvir e compreender o outro, tendo em vista que a qualidade dos dados depende disso. Por ser uma construção social (ROCKWELL; EZPELETA, 1989; LÜCK, 2011), as escolas devem ser entendidas como inseridas no contexto da própria sociedade, de tal maneira que a relação existente entre Estado e sociedade civil permita afirmar que o cotidiano escolar é marcado por distintos sentidos e conjunturas (ROCKWELL; EZPELETA, 2007). Como conseqüência, Werle (2003) escreve a respeito das dificuldades de lidar com a pluralidade de pensamentos de cada indivíduo inserido na comunidade escolar. Nesse sentido, segundo Rockwell e Ezpeleta (1989), é necessário reconhecer que as escolas são englobadas por inúmeras heterogeneidades e contrastes, o que dificulta a inserção do pesquisador nesse tipo de contexto. Por isso, torna-se fundamental que o etnógrafo consiga construir uma relação de confiança com os pesquisados. Com isso, a fim de melhor compreender a escola pública e de ser aceito no campo, Rockwell e Ezpeleta (1989) sugerem ampliar a capacidade de conhecer e viver o cotidiano escolar a partir de novas opções metodológicas. Dessa maneira, a etnografia torna-se um 8  

 

método que atende adequadamente a essas necessidades, tendo em vista que possibilita ao pesquisador, a partir da vivência diária no ambiente escolar, entender os significados que são construídos socialmente no local estudado (CAVEDON, 2003). Como citado anteriormente, as dificuldades para interação e aceitação dos outros sujeitos em um ambiente plural são normais. Essas dificuldades serão melhor tratadas no tópico a seguir, em que mostraremos como a maneira de inserção do pesquisador pode influenciar no processo de interação com os indivíduos e no processo de estranhamento e familiarização. 4.2 As primeiras impressões, o estranhamento e a familiarização O entendimento de Rockwell e Ezpeleta (1989) sobre como os pesquisadores podem encontrar dificuldades para realizar estudos nas escolas públicas, por estas serem heterogêneas e compostas por contrastes, abre uma importante discussão com relação às primeiras impressões do pesquisador ao utilizar a etnografia como método de pesquisa. O fato de não existirem “muros” entre as escolas e o seu “contexto externo” faz com que a escola pública e seu cotidiano sejam repletos de diferentes valores e subjetividades dos integrantes da comunidade escolar (ALVES, 2005). Dessa maneira, ao iniciar um trabalho de campo em um local de tantos sentidos diferentes (ROCKWELL; EZPELETA, 2007), o etnógrafo tende a ter dificuldades para construir uma relação de confiança com os demais sujeitos. Além disso, essa diversidade de valores e crenças no cotidiano escolar podem gerar uma situação difícil para o pesquisador, tendo em vista que ele necessita descentrar seu olhar e realizar mudanças na maneira de ver a realidade social (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). Ou seja, de acordo com as autoras, o pesquisador leva consigo toda uma bagagem individual que pode gerar um doloroso processo de estranhamento e familiarização. A esse respeito, Cavedon (2003, p. 152) entende que O trabalho etnográfico alterna situações de angústia com momentos de euforia. Se a princípio a cultura configura-se como enigmática, há um período em que ela se revela diante do pesquisador, fazendo com que o mesmo se sinta mergulhado em uma avalanche de informações, tornando-se necessária uma organização sistemática dos dados de modo a evitar um caos futuro, na hora da construção do texto.

Esse processo de estranhamento e familiarização é fundamental que aconteça, pois ele possibilita que o pesquisador “acesse” um nível de significação que não é capaz de ser compreendido antes da inserção no campo (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). O mergulho do pesquisador no campo pode tornar-se tão profundo que, segundo Cavedon (2003), existe a possibilidade de ele servir de instrumento político de reivindicação dos pesquisados em questões de seus interesses. É possível, por exemplo, que os pais tentem utilizar o pesquisador, ao se sentirem próximos dele, como uma forma de reivindicar junto ao diretor transporte escolar para seus filhos. Tal discussão contribui para reforçar o entendimento de Lück (2011), que afirma ser difícil vivenciar a gestão democrática na escola pública, dado aos diferentes interesses e jogos de forças que nela existem. Por isso, a partir das considerações de Cadevon (2003) e Dalla Chiesa e Fantinel (2014), é fundamental que o pesquisador, ao utilizar o método etnográfico no contexto escolar, tenha em mente o aspecto doloroso que o início da pesquisa tende a ter e que é preciso atentar para um constante processo de aproximação e afastamento do objeto que será necessário realizar. Ademais, segundo as autoras, o fato do pesquisador estar inserido em um constante movimento de ir e vir em relação ao campo, de tal forma que ele não seja nem completamente etnocêntrico, nem completamente nativo, caracteriza a produção do texto etnográfico, que será melhor discutido no tópico a seguir. 4.3 A construção do texto etnográfico e o rigor metodológico 9  

 

Com o intuito de iniciar a discussão sobre rigor metodológico e a construção do texto etnográfico ao tratar do cotidiano nas escolas, cabe apontar antes alguns pressupostos específicos do entendimento de cotidiano escolar que relacionam-se tanto na confecção do texto quando no rigor metodológico específicos da pesquisa etnográfica. As pesquisas envolvendo o cotidiano devem ser cuidadosas para que a discussão não seja baseada sobre o cotidiano, mas sim com o cotidiano. Para Ferraço (2003, p. 77, grifo do autor), “pesquisar ‘sobre’ o cotidiano traz a marca da separação entre sujeito e objeto. Traz a possibilidade de identificarmos o cotidiano como objeto em si, fora daquele que o estuda, que o pensa ao se pensar”, ou seja, tentativas de sistematização em estudos envolvendo cotidiano levariam ao que o autor considera como engessamento das pesquisas. A pesquisa com o cotidiano, por outro lado, propõe um rompimento com a noção de separação entre pesquisador e pesquisado, admitindo o contato do pesquisador na medida em que realiza sua pesquisa. Dessa forma, Ferraço (2003) faz apontamentos sobre o que seriam alguns aspectos que devem ser observados na pesquisa “do/no/com” o cotidiano que abrem caminho para a discussão sobre a construção do texto etnográfico e rigor metodológico especificamente na gestão escolar. Primeiramente, o autor aponta para a necessidade de pensar o cotidiano como rede de fazersaberes que são tecidas pelos sujeitos em detrimento de encarar a condição vivida de forma a priori, categorizando-a e conceituando-a como anteriormente ao contato com o campo (FERRAÇO, 2003). Em segundo lugar, desconsiderar a noção de redes de fazeressaberes como propriedade do cotidiano, de maneira a entende-lo como o próprio movimento de criação e compartilhamento dessas redes. Isso implica a necessidade de envolvimento com as pessoas que praticam esse cotidiano de maneira a envolver questões relativas à suas redes (FERRAÇO, 2003). Aqui, nota-se como a etnografia mostra-se favorável na medida em que assume que a qualidade dos resultados de pesquisas de fenômenos sociais implica que o pesquisador seja capaz de relacionar-se com o outro de modo a ouvi-lo e compreendê-lo adequadamente (CAVEDON, 2003). Como terceiro aspecto, o autor aponta para a necessidade de posicionamentos dos pesquisadores que fujam da busca por procedimentos-padrão ou normativos em suas pesquisas e atenham-se à análise dos movimentos que tecem e compartilham as redes de fazeresesaberes, pois deles é que advém o sentido dos fenômenos cotidianos nas escolas (FERAÇO, 2003). Em quarto lugar, torna-se necessário compreender que o envolvimento com o cotidiano implica envolvimento com traços das histórias vividas pelos pesquisadores. Como apontado por Ferraço (2003, p. 80, grifos do autor), “em nossas pesquisas com o cotidiano das escolas estamos sempre em buscas de nós mesmos, de nossas histórias de vida, de nossos ‘lugares’, tanto como alunos que fomos quanto como professores que somos”. Um aspecto próprio da escrita em estudos etnográficos que alinha-se a tal compreensão é o fato de que, mesmo tratando de um mesmo fenômeno social, diferentes pesquisadores confeccionariam distintos trabalhos finais sobre este fenômeno. Peirano (1995) considera que isso ocorre, pois o pesquisador, ao ir a campo e realizar seu trabalho etnográfico, não deixa de lado suas qualidades individuais, como personalidade e temperamento. Estas qualidades, como intrínsecas ao pesquisador, somam-se à bagagem teórica que ele igualmente possui de maneira a não despir-se dela ao ir a campo, e influenciam no estudo do dado fenômeno social (PEIRANO, 1995). Há de ser destacado, no entanto, que esse aspecto não significa olhar o trabalho etnográfico com descrédito (PEIRANO, 1995), mas oferecer a esse estilo de pesquisa um grau de riqueza analítica próprio e desprovido dos princípios universais e objetivistas já apontador anteriormente por Junquilho, Almeida e Silva (2012). Por fim, o quinto aspecto apontado por Ferraço (2003) diz respeito à atenção ao vivido, aos fragmentos do dia-a-dia como indícios do que é considerado pelo autor com efêmero e 10  

 

que reflete as ações dos sujeitos muito além de como elas se mostram a primeira vista. Percebe-se que este pressuposto tangencia a constante preocupação em estranhar o que aparece como familiar na pesquisa etnográfica, pois, com o passar do tempo, o pesquisador inserido em um processo de pesquisa dessa natureza sofre o que Cavedon (2003) chama de processo natural de aculturação, termo entendido pela autora como a tendência do pesquisador em incorporar certo grau de hábitos próprios daquele meio no qual encontra-se inserido. Essa questão demanda um posicionamento de preocupação constante do pesquisador em questionar e, de fato, estranhar o que é observado a fim de evitar que esse processo de aculturação resulte na dificuldade ou incapacidade de constatar determinados fatos no campo (CAVEDON, 2003). Percebe-se que estes apontamentos específicos sobre o cotidiano escolar encontram-se alinhados a discussão de Junquilho, Almeida e Silva (2012) sobre o esforço necessário, embora desafiador, em discutir os conceitos de rigor científico, compreendendo que, mesmo que o pesquisador aproxime-se do campo e estabeleça uma relação com ele, isso não banaliza sua validade científica. Essa noção de banalização por envolvimento com o cotidiano provém, segundo Junquilho, Almeida e Silva (2012) da ideia de oposição de cotidiano e senso comum à ciência, delegando a esta ultima um lugar privilegiado onde o pesquisador posiciona-se sobre os demais sujeitos. Assim, “ao romper com esse ‘lugar’ privilegiado não se busca destruí-lo e conceber a ciência como algo que não existe, mas posicionar a ciência no ‘espaço’ onde ela é efetivamente construída, o das pessoas, pesquisadoras ou não” (JUNQUILHO; ALMEIDA; SILVA, 2012, p. 344, grifo do autor). Percebe-se, portanto, o esforço por desvincular os estudos envolvendo o cotidiano de explicações objetivistas e funcionalistas a fim de gerar esforços analíticos de cunho mais interpretativista sobre a vida que desenrola-se nos fenômenos sociais (JUNQUILHO; ALMEIDA; SILVA, 2012), o que caracteriza-se como tentativa de encarar o senso comum como caminho analítico para rever problemas antigos sobre articulações culturais a partir desse posicionamento interpretativista (GEERTZ, 1989). Entendidos estes aspectos que delimitam a noção de cotidiano neste trabalho e sua relação com a pesquisa etnográfica, torna-se importante discutir sobre a construção do texto em si, que em trabalhos etnográficos começa bem antes da elaboração do texto final. Ou seja, começa na confecção dos diários de campo (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014). O texto etnográfico resultará para o leitor, na medida do possível, a sensação de estar presente no campo em função da maneira como é confeccionado, o que significaria proporcionar ao leitor a sensação de ter a experiência relacional com os nativos (GIUMBELLI, 2002). Essa característica, quando somada a outras tratadas a seguir, dá um perfil específico ao texto etnográfico e seu rigor metodológico. O fato dos textos etnográficos parecerem estar mais próximos dos chamados textos literários do que dos chamados textos científicos (GEERTZ, 1989) implica na necessidade de que o pesquisador domine adequadamente os princípios desta escrita específica a fim de não banalizar seu trabalho ou dotá-lo de características próprias de trabalhos de outras naturezas, ao mesmo tempo em que preza pelo rigor científico em seu desenvolvimento. Ao tratar da necessidade de atenção a tal rigor, Cavedon (2003) aponta para a importância do registro minucioso de todas as impressões que o pesquisador tem em campo, com especial ênfase àquelas de suas primeiras imersões no campo. A observância preocupada com os detalhes bem como o constante esforço por estranhar o que passa a se tornar normal/familiar no decorrer da presença do pesquisador em campo (CAVEDON, 2003) são questões decisivas para que a construção do texto aproxime-se tanto quanto possível da descrição densa apontada por Geertz (1989), sendo esta responsável pelas considerações finais obtidas pelo pesquisador no momento de confecção de seu texto final. Ao realizar essa discussão sobre a necessidade de registrar minuciosamente as observações realizadas em campo, Cavedon (2003) aborda sobre a possibilidade de não perder 11  

 

flexibilidade, liberdade de improvisação e design próprio da etnografia nos estudos organizacionais em nome da preocupação com o rigor metodológico. Embora Yanow (2012) considere que o uso da etnografia nos estudos organizacionais implique adaptações, essas não significam para a autora subversões de princípios etnográficos, mas escolhas em função do campo, pois, como apontado por Cavedon (2003), as particularidades da pesquisa etnográfica não implicam em ausência de rigor metodológico. É importante salientar que Cavedon (2003) considera a etnografia não como um trabalho de campo, mas como o relato do pesquisador sobre o trabalho de campo realizado anteriormente por ele. Assim, com relação a este trabalho de campo, cabe destacar um aspecto que é crucial para entender algumas particularidades da escrita etnográfica: a polifonia. Segundo Dalla Chiesa e Fantinel (2014), falar em polifonia implica reconhecer a pluralidade de vozes às quais o texto etnográfico abre espaço. Para Clifford (2008), assumir o caráter polifônico em pesquisa etnográfica implica romper com etnografias centradas em uma única voz, a do etnógrafo, em geral, e propor uma produção colaborativa do conhecimento etnográfico, sendo as múltiplas vozes dos informantes nativos parte ativa na construção da realidade, aspecto que Cavedon (2003) considera como quebra da centralidade na observação pessoal do etnógrafo. Um aspecto importante, no entanto, reside no fato de que, embora a polifonia considere as diversas vozes dos informantes nativos como ativas na pesquisa, cabe destacar que “a voz do pesquisador não poder ser obscurecida ou substituída pelas transições das falas dos entrevistados” (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2012, p. 12), de maneira que as falas não se misturem de maneira confusa (CAVEDON, 2003) e fique claro no texto quem são os protagonistas de cada diferente situação. 5

Considerações Finais A intenção deste trabalho foi de realizar alguns apontamentos iniciais sobre a adoção da etnografia para o estudo da gestão escolar democrática e seu cotidiano, tendo em vista que esta, a etnografia, é compreendida como “um método que auxilia no levantamento de questionamentos e proposições teórico-empíricas de fundo compreensivo e interpretativo da realidade vivida”, (DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014, p. 14). Estes apontamentos são reforçados pelo entendimento de que a compreensão dos significados da gestão na escola pública requer a vivência no/do/com o cotidiano escolar por parte do pesquisador (FERRAÇO, 2007; JUNQUILHO; ALMEIDA; SILVA, 2012). Assim, a discussão que realizamos acerca dos aspectos da pesquisa etnográfica tem potencial para ser utilizada como pano de fundo para pesquisas com o cotidiano da gestão escolar. Esse potencial se dá pelo fato das duas temáticas (etnografia e gestão escolar democrática) compartilharem de pressupostos semelhantes, como a necessidade de pesquisa in locus no estudo de fenômenos sociais, a não adoção de categorizações e modelagens a priori ao lidar com seus fenômenos, bem como a compreensão de que o envolvimento de maneira neutra não representa uma possibilidade na medida em que entende-se que, tanto nos estudos com o cotidiano da gestão escolar (FERRAÇO, 2003, 2007) quanto nas premissas da etnografia (GEERTZ, 1989; CAVEDON, 2003; CLIFFORD, 2008; YANOW, 2012; DALLA CHIESA; FANTINEL, 2014) a realidade social é fruto da relação entre os diversos sujeitos, incluindo o próprio pesquisador no momento em que ele se insere em campo, assumindo que não há uma realidade exterior a ele a ser observada. Por fim, destacamos mais uma vez que os apontamentos realizados neste estudo não esgotam as várias discussões e relações que podem ser feitas quando se busca articular o método etnográfico com a gestão nas escolas públicas. Por exemplo, a questão da ética na pesquisa etnográfica poderia ter sido melhor explorada, especialmente por estarmos tratando de um contexto em que há o envolvimento de muitos segmentos e, consequentemente, a 12  

 

presença de vários interesses. Além disso, as diferentes técnicas de coleta de dados que podem ser optadas pelos pesquisadores também tiveram pouco aprofundamento. Com isso, futuros estudos podem melhor explorar essas questões. De qualquer modo, nossa intenção foi a de demonstrar que o contexto escolar, em virtude das suas caraterísticas já mencionadas, requer do pesquisador um mergulho no seu cotidiano. Nesse sentido, a pesquisa etnográfica torna-se um caminho interessante, o que implica em uma série de desafios, conforme também demonstramos ao longo do artigo.

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