Pesquisando o pensamento político: o conceito e a prática

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GRUPO DE PESQUISA MARXISMO E PENSAMENTO POLÍTICO Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas

Pesquisando o pensamento político: o conceito e a prática Daniela Mussi GPMPP Working Papers n. 3 2016

GRUPO DE PESQUISA MARXISMO E PENSAMENTO POLÍTICO Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas Rua Cora Coralina, 100 Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo Campinas (SP) – Brasil CEP 13083-896

Coordenadores: Prof. Dr. Alvaro Bianchi (DCP/Unicamp) Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (FCL/Unesp-Marília)

GPMPP Working Papers n. 3, 2016

Citar como: MUSSI, Daniela. Pesquisando o pensamento político: o conceito e a prática. GPMPP Working Papers, Campinas, n. 3, 2016.

“A caneta é uma espada cortante” Em 1987, o historiador inglês John Pocock propôs algumas notas para um balanço das principais conquistas metodológicas e científicas da pesquisa sobre o pensamento e discurso político a partir do grande impacto que as ideias de seu colega

Quentin Skinner

haviam provocado entre historiadores, filósofos e teóricos políticos. No final dos 1960, Skinner sacudira o hermético ambiente da pesquisa histórica acadêmica com duas ideias simples e provocadoras. A primeira dizia respeito ao objetivo do historiador estar voltado para o resgate “das intenções que um autor teria abrigado ao elaborar seu texto” (Pocock, 2013, p.27). A segunda qualificava os contornos da pesquisa intencional como para atividade de busca pelos meios de saber o que um autor “estava fazendo” quando escrevia ou publicava um texto (Ibid., p.28). A própria noção de história do pensamento político – que Pocock optaria por enquadrar na ideia de discurso – revelava as intenções altamente profanas de Skinner. A transformação do objeto carretava também uma mudança no sujeito. O estudo das “intenções” de um autor transformava a natureza da pesquisa histórica, já que a toda atividade intelectual passava ser pensada, agora, como “uma ação ou uma continuidade de ação, constituída por coisas sendo feitas e coisas acontecendo, por ações e performances, bem como por condições

sob

as

quais

essas

ações

e

performances

foram

representadas e realizadas” (Ibid, p.64). A afirmação da dimensão intencional do pensamento era uma forma de: a) resgatar o caráter político atividade intelectual; e b) reunificar diferentes atividades intelectuais e políticas, segregadas historicamente em diferentes esferas institucionais das sociedades e diferenciadas pela dicotomia entre pensador profissional versus pensador leigo. É possível dizer que o Skinner estava fazendo, aqui, era desdobrar em termos da prática do historiador uma ideia bastante cara a intelectuais como Benedetto Croce e Antonio Gramsci: a de que

GPMPP Working Papers 4 todos os homens são intelectuais, apesar de separados pela atividade especializada da intelligentsia que a sociedade moderna mantinha e reforçava de maneira específica. Para Croce, a divisão intelectual do trabalho era inevitável e, em alguma medida, se identificava com uma tendência natural. Em Gramsci, por outro lado, encontramos na rejeição desta segregação intelectual – aliada à crítica do senso comum e do rebaixamento folclórico da vida intelectual popular – um aspecto chave seu pensamento sobre a transformação social. Ao propor a centralidade do universo intencional do texto investigado, Skinner democratizou os pressupostos das pesquisa histórica, reunindo a linguagem dos filósofos e especialistas e a língua “dos leigos”, repondo a integralidade de um campo conflitivo no qual governantes e governados se relacionam não apenas economicamente e na política em sentido restrito. Os conflitos de poder e dominação cristalizados

na

atividade

discursiva

podiam

agora

emergir,

acompanhados de seus atores/autores, em uma atividade de pesquisa não mais restrita ao grandes intelectuais e às grandes obras. Uma consequência evidente desta abertura foi a diversificação dos materiais de pesquisa aos poucos descobertos e descritos pelos historiadores do pensamento político: panfletos, cartazes, cartas, brochuras anônimas, notas à margem de manuscritos, notas de leitura, etc. Da mesma maneira, o “contexto linguístico” em que um autor escreve – fundamental para compreender suas intenções – passou a significar ideia de “comunidade de falantes” ou da “linguagem como contexto”, ou seja, um ambiente no qual as ideias materializadas em um texto não surgem “do vazio” mas são produto de uma dinâmica linguística e significativa compartilhada, disputada e discutida coletivamente ou, em muitos casos, resultado das reações às formas de linguagem impostas como tradição ou instituição. Quando, em 2002, Skinner publicou o primeiro volume de Visions of Politics, onde se propôs a discutir questões de método de pesquisa, reafirmou o caráter político de que sua reflexão, cujo objetivo continuava a ser afirmar a ideia de que “a caneta é uma

GPMPP Working Papers 5 espada cortante” (Skinner, 2002, p.7).1 Imaginar a atividade intelectual como o manuseio de uma arma era sua forma de politiza-la e, ao mesmo tempo, localizar seus limites no interior de um universo de práticas e normas constrangedoras – em particular o “modo de discurso institucionalizado”. Nestes marcos, Skinner podia afirmar ainda caráter aberto e criativo de toda atividade intelectual, justamente o que torna possível “uma história que se forma nas interações” entre a instituição e a ação (Pocock, 2013, p.64).

Pesquisando o pensamento político Para Skinner, assim como Pocock, reconhecer que todo pensamento político é formado por muitas vozes significava afirmar sua heterogeneidade e desigualdade. Afinal, se existem muitas vozes em uma comunidade falante a politização desta coincidia com o reconhecimento de o discurso não é feito de uma linguagem universal homogênea, ou seja, não estrutura definitivamente as iniciativas do pensamento em uma determinada época, tanto por fraturas institucionais como pela natureza dinâmica do próprio discurso. Justamente por isso, era necessário reconhecer a existência do que Pocock chamou de “sublinguagens”: idiomas, retóricas, maneiras de falar sobre política, jogos de linguagem distinguíveis, etc., cada qual em sua especificidade formal, relacionadas e subordinadas às linguagens dominantes mas nunca inteiramente homogeneizadas em

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“The pen is mighty sword”, uma adaptação habilidosa de James Tully nos anos 1980 da expressão “The Pen is mightier than the Sword” [A caneta é mais poderosa que a espada], para falar da análise da política de Skinner dos primórdios da Europa moderna (Tully, 1983). O argumento de Tully é que Skinner conceitualiza “a teoria política e o argumento político na linguagem da guerra”, dado o caráter “legitimador” desta, o “fato mais óbvio”, na edificação da sociedade europeia moderna, apesar subestimado por muitos teóricos (Ibid., 506). A caneta, portanto, é poderosa, ainda que não se possa subestimar o lugar da força e da violência na formação do Estado e da política como a conhecemos hoje. Uma adaptação, diga-se de passagem, bastante coerente com a ideia que Marx tinha da relação entre atividade intelectual e vida política.

GPMPP Working Papers 6 seu interior (Ibid., p. 65). A unidade na diferença estaria no fato de todas as formas subordinadas de linguagem possuírem natureza “paradigmática”, ou seja, tomarem a dominância de uma linguagem específica como uma ponto de partida sua atividade “operativa” , tendo sempre como meta alcançar o poder de estruturação do pensamento e subjugar as formas adversárias (Ibid., p.66). A preocupação de historiadores como Skinner e Pocock era encontrar os meios de localizar e interpretar estas diferentes manifestações do pensamento político e seu desenvolvimento ao longo do tempo em contexto específicos. A descobertas “metodológicas” que foram sistematizando ao longo do tempo dizem respeito a um campo em construção bastante original e podem servir de estímulo para pesquisadores em diversas áreas. Eis algumas, adaptadas de artigo metodológico de Pocock (2013, p.65-68). É preciso investir tempo aprendendo as “linguagens”, idiomas, retóricas ou paradigmas em que determinado discurso se realiza e, ao mesmo tempo, estudar os atos de enunciação que foram emitidos nestas “linguagens” ou em uma combinação de linguagens. Ou seja, não se deve menosprezar o estudo prévio da “estrutura” que conforma um discurso político. O historiador deve mover-se entre esta estrutura e as iniciativas de discurso específica, aprender as linguagens para poder identificar os atos de enunciação efetuados em seu interior. Um exemplo: para estudar um discurso político inspirado em ideias católicas, é preciso conhecer e se familiarizar com a estrutura de pensamento católica e suas nuances. Outro exemplo: para estudar o discurso de uma organização política de inspiração maoísta, é preciso conhecer e se familiarizar com as ideias de Mao Zedong, seus seguidores mais importante e também, neste caso, com as experiências de difusão destas em iniciativas políticas práticas ao longo do tempo. O uso de documentos/textos neste tipo de investigação é central. Este tipo de investigação é feito do estudo de enunciações e respostas (onde os leitores são também autores, ou seja, é uma

GPMPP Working Papers 7 investigação de coletivos intelectuais e suas discussões). As “mentalidades” – ou seja, as generalizações sobre o significado de um pensamento só aparecem na medida em que se articulam no discurso. Além disso, e muito importante, o nível no qual este estudioso trabalha é aquele “no qual as estruturas não são percebidas” imediatamente, já que o estudo está voltado para atividade dos atores. Ou seja, as classes sociais estão lá mas saber isso não é suficiente para investigar um pensamento político. É preciso captá-lo em movimento. O estudioso de um pensamento político é, em grande medida, um arqueólogo, comprometido com a descoberta dos vários contextos linguísticos nos quais o pensamento foi realizado em determinados momentos. Em outras palavras, este estudioso sabe que está indo pelo caminho certo quando se acostuma a encontrar “muitas camadas” de linguagens no interior do mesmo texto. Justamente por isso, é capaz de se surpreender e fascinar com a descoberta de linguagens aparentemente incongruentes nos discursos que estuda. Por exemplo, é capaz de descobrir a influência das ideias/linguagem de V. I. Lenin nos textos de um intelectual como Carl Schmitt, sem com isso concluir que comunismo = nazismo. Este estudioso se torna consciente e alerta para com as linguagens que descobre e sente necessidade permanente de ampliar seu escopo de leituras de textos de todos os tipos. Isto permite que consiga detectar a presença de diferentes formas de linguagens. A partir daí, ele passa a saber o que pode e o que não pode ser enunciado nas linguagens que estuda e reconhece, antes de mais nada, que o pensamento político é um fenômeno histórico. O estudo das diferentes formas de linguagem faz com que se perceba que o pensamento político não é resultado apenas do trabalho de “mentes brilhantes”, mas sim de muitas gerações, formadas não apenas por “estudiosos profissionais”, mas também por uma série de atividades “técnicas” (como aquelas ligadas à atividade jurídica, clerical, partidária, escolar, por exemplo) fundamentais para a difusão e imposição de ideias. E compreender o papel específico dos estudiosos profissionais na divisão do trabalho para afirmação da

GPMPP Working Papers 8 autoridade um pensamento: estes atuam fundamentalmente na modificação das formas e conteúdos dos pensamentos pré-existentes. Existe, ainda, o estudo específico do pensamento dos grupos sociais “leigos”, particularmente da forma como se apropriam da linguagem

intelectual-profissional

para

propósitos

não

profissionais. Dado o caráter hierárquico da divisão intelectual do trabalho, este envolve, necessariamente, o estudo da retórica “de hostilidade da imposição de uma linguagem sobre si”, ou seja, do reconhecimento quase sempre subalterno da desigualdade que envolve a separação entre “profissionais” e “leigos”. Por outro lado, esta retórica acompanha por vezes um uso “antinômico” criativo “pelos governados da linguagem dos governantes, de maneira a esvazia-la de seus significados e reverter seus efeitos”, em uma dinâmica de expropriação e apropriação. Em todo caso, o pesquisador do discurso político reconhece a importância de tomar “como ponto de partida as linguagens dos grupos dominantes, que articulam seus interesses e são tendenciosos a favor deles”. Apesar disso, não se pode ignorar que “quanto mais institucionalizada for uma linguagem, quanto mais pública ela se tornar, mais ela estará disponível para os propósitos de diversos locutores articulando diversas preocupações”. Ainda que a linguagem se desenvolva inicialmente na cultura dominante, é impossível aprisiona-la indeterminadamente no interior das atividade intelectuais tradicionais ou profissionais. Este investigador percebe, além disso, que por seu caráter dinâmico, o pensamento político pode ser difundido para outros contextos. Em outras palavras, outros governantes e governados, cuja semelhança ou paralelismo nas relações políticas não é uma condição para difusão de uma linguagem. Isto pode explicar, por exemplo, por que certas ideias elaboradas na periferia da sociedade capitalista podem ganhar importância em países do centro. Ou, para um exemplo concreto, como as ideias de Karl Marx sobre capitalismo na Inglaterra tornaram-se tão importantes para a intelectualidade russa, que buscou de maneira feroz sua tradução e adaptação para o contexto russo na

GPMPP Working Papers 9 virada do século XIX para o XX. A difusão de uma linguagem, portanto, pode ser uma história muito diferente de sua criação.

Por fim...o começo. As observações e sugestões sobre a pesquisa de pensamento político, em sua maioria extraídas de uma experiência prática, podem com alguma adaptação servir para reforçar e enriquecer a reflexão política e cultural mais ampla. Dizer isso não desnatura sua função técnica original, apenas corrobora seu caráter. Neste sentido, por exemplo, as anotações de John Pocock sobre o estudo da linguagem compõem uma espécie de guia para orientar qualquer interessado(a) em ideias e discussões. Pocock se referia a um conjunto de observações que todo pesquisador deve realizar para saber se está ou não diante de uma forma de linguagem forte – ou potencialmente forte – o suficiente para apresentar-se como verdadeira linguagem. Em termos “leigos”, questões que podem ajudar a interpretar um conjunto de ideias em sua capacidade de disputar e organizar a hegemonia. Eis. A)

Este pensamento contém em si indícios de que diferentes

intelectuais (profissionais, leigos...) puderam atuar dentro dele e compartilhar sua linguagem, respondendo uns aos outros por meio dele e empregando-o como modo de discurso? B)

Este pensamento demonstra que cada qual discutiu o

uso que os demais fizeram dele, que foram capazes de inventar linguagens de segunda ordem para criticar seu uso e que o identificaram, verbal e explicitamente, como a linguagem que estavam utilizando? C)

Este pensamento é capaz de prever as implicações,

insinuações, efeitos paradigmáticos e problemáticas que seu uso, ou de outros pensamentos, teriam acarretado em situações específicas, mostrar que suas previsões se realizaram ou, ainda mais interessante, foram desmentidas?

GPMPP Working Papers 10 D)

Este pensamento rejeita o anacronismo, ou seja, a

aplicação de linguagens não disponíveis quando se detém sobre um objeto de estudo? E)

Finalmente, este pensamento permite ao seu portador

vivenciar surpresa, seguida de satisfação, diante da descoberta de uma linguagem familiar em lugares em que não esperaria encontra-la?

São questões que nasceram da atividade prática de pesquisa mas, fiéis ao seu objeto e objetivo, enfileiram-se na casa de armas da política.

Referências Bibliográficas POCOCK, J. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2013. SKINNER, Q. Visions of Politics. Regarding Method. New York: Cambridge University Press, 2002. v. 1 TULLY, J. The pen is a mighty sword. Quentin Skinner’s Analysis of Politics. British Journal of Political Science, v. 13, n. 4, p.489-508, out. 1983.

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