PesquisarCOM em instituições totais: ingenuidade, desafio ou utopia?

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Prisons, Total Institutions, Reserch Methodology
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REISHOFFER, J. C. ; BICALHO, P. P. G. . PesquisarCOM em Instituições Totais: Ingenuidade, Desafio ou Utopia?. In: Marcelo Santana Ferreira; Marcia Moraes. (Org.). Políticas de Pesquisa em Psicologia Social. 1ed. Rio de Janeiro: Nova Aliança, 2016, p. 223-236.  

PesquisarCOM em instituições totais: ingenuidade, desafio ou utopia? Jefferson Cruz Reishoffer1 Pedro Paulo Gastalho de Bicalho2 Universidade Federal do Rio de Janeiro ________________________________________ 1. Subjetividade e Instituições As pesquisas tradicionais em Psicologia buscaram atingir o conhecimento sobre a subjetividade pelo seu entendimento como uma suposta natureza previamente dada e permanente. Assim, a Psicologia desenvolveu-se na clássica ideia de um método a priori que seria a garantia de encontro com a verdade dos sujeitos guiado pela objetividade de um pesquisador neutro e a-histórico. Estes postulados, oriundos da tradição cartesiana, formaram o pensamento científico moderno e cristalizaram um regime de verdade hegemônico.                                                                                                               1  Psicólogo  do  Sistema  Penitenciário  Federal  (Departamento  Penitenciário  Nacional,   Ministério  da  Justiça).  Discente  do  curso  de  Mestrado  do  Programa  de  Pós-­‐Graduação   em  Psicologia  da  Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro.   2  Professor  Associado  do  Instituto  de  Psicologia  e  do  Programa  de  Pós-­‐Graduação  em   Psicologia  da  Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro.  Bolsista  de  produtividade  em   pesquisa  (CNPq)  e  Jovem  Cientista  do  Nosso  Estado  (Faperj).  

REISHOFFER, J. C. ; BICALHO, P. P. G. . PesquisarCOM em Instituições Totais: Ingenuidade, Desafio ou Utopia?. In: Marcelo Santana Ferreira; Marcia Moraes. (Org.). Políticas de Pesquisa em Psicologia Social. 1ed. Rio de Janeiro: Nova Aliança, 2016, p. 223-236.  

A suposta objetividade do pesquisador permitiu a emergência de um discurso de

neutralidade que propiciava ao mesmo tempo a separação entre um sujeito do conhecimento e um objeto. Assim, caberia ao pesquisador da área psi o papel de desvelamento do sujeito (que estaria na posição de objeto científico) traduzido na ideia de um mundo privado, íntimo ou interior, que ganhou o estatuto de essência, naturalizando assim o próprio conhecimento psicológico como supostamente universal, permanente e constante em todos os lugares e momentos da história (Bicalho, Kastrup e Reishoffer, 2012). Em contraposição a este estatuto universal conferido ao subjetivo, o conceito de subjetividade tal como formulado por Guattari e Rolnik (1986) não centraliza o registro subjetivo em uma forma individuada e nem busca atribuir-lhe um caráter imutável e universal. Para os autores, a subjetividade é permanentemente produzida no registro social e é composta de múltiplos elementos de caráter heterogêneo que, de forma transversal e não-hierárquica, se arranjarão para criar territórios existenciais em um determinado momento histórico. Entretanto, apesar deste caráter processual, histórico e mutável da subjetividade, em larga medida, somos atravessados por esta concepção tradicional que, por diferentes vias, estabelece que a nossa vida esteja organizada de maneira fixa, valendo-se de regras e valores instituídos que, ao ganharem uma configuração dominante e socialmente útil, são legitimados como algo que deve assim permanecer (Mansano, 2009).   O conceito de instituição da Análise Institucional define esses processos que buscam cristalizar determinadas configurações subjetivas (e também objetivas) de modo a se legitimarem como únicas possíveis e desejáveis, anulando o caráter processual de toda produção social. Segundo Baremblitt (1992): “instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas, regularidades de comportamentos“ (p.27). Assim, as instituições são instâncias de saber-poder que permitem definir as relações sociais, organizar variados espaços, desenhar limites, além de distribuir status de privilégios e exclusões.

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Em nossa sociedade criamos e sustentamos diversos tipos de instituições, em

diferentes níveis, como o Estado, a Igreja, a escola, relações de trabalho, certas configurações familiares, as prisões, o sistema jurídico, a universidade. Quando há uma predominância de alguma forma instituída, as instituições e seus estabelecimentos (estrutura física) sequestram os processos de subjetivação singulares, impondo-lhes, de modo contínuo, seu próprio modelo de subjetivação através da centralidade de seu podersaber. Este será o aspecto mais predominante nas instituições totais. Erving Goffman (1987) formulou as categorias de “instituições totais” para denominar uma série de locais de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos, em situação semelhante, são afastados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levando uma vida fechada e formalmente administrada por outros. Apesar de admitir que todas as instituições têm tendências ao fechamento, o autor afirma que as instituições totais possuem um caráter ainda mais rígido e fechado por estabelecer uma barreira ao contato com mundo externo e por proibições de saída que muitas vezes estão no esquema físico. Para Goffman, o mais importante estabelecer é que “o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas” (p.18) é o fato básico das instituições totais. Segundo Goffman (idem), “as instituições totais são estufas para mudar pessoas e cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu” (p.22). Com suas características de fechamento, as instituições totais dominarão amplamente a vida do institucionalizado e por meio de uma série de regras, normas e relações darão início a um contínuo processo de “mortificação do eu” do internado em busca de um modo subjetivo padronizado. As fronteiras que o indivíduo estabelece entre a singularidade e o mundo externo é violada e o próprio passa a ser permanentemente exposto e ter sua conduta constantemente avaliada pela equipe dirigente e por seus pares. Ao serem rompidas as fronteiras entre o eu e o ambiente, a própria concepção que se tinha de si mesmo será alterada, sendo reduzido ao diagnóstico e/ou ao estereótipo que se produziu sobre ele. Para Goffman, tem-se início ao processo de mortificação do eu presente em todas as instituições totais, onde é negada qualquer possibilidade de singularidade: “Nenhum objeto lhe permite a sensação de uma fronteira, a vida íntima com seus outros significativos tenderá a ser também invadida pela

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racionalidade da equipe dirigente e nenhum espaço de intimidade será preservado. Vínculos afetivos serão profanados, cartas serão abertas, necessidades fisiológicas deverão ser satisfeitas na presença de outras pessoas. A vida psicológica dos internados não será definida como espaço ou experiência de singularidade, mas aquilo que é negado e desqualificado, de forma permanente e contundente. Assim se dará o processo de mortificação do eu.” (Ferreira, 2012, p.78)

Assim, será no interior destas instituições totais, que Foucault afirmará que a subjetividade, em sua positividade e relacionada como objeto de conhecimento das ciências humanas, será um produto do discurso científico moderno a partir de uma série de práticas de saber-poder que colocam os sujeitos, que se encontram expostos a uma permanente condição de visibilidade, por conta do confinamento, como passíveis de uma observação ininterrupta e alvo de estudos em suas condutas. (Bicalho, Kastrup e Reishoffer, 2012) Será a combinação das relações de poder instaladas no interior das instituições de confinamento e a própria produção de um discurso legitimado como verdadeiro sobre o indivíduo que criará as condições de possibilidade das ciências humanas e da produção do um certo modo de ser indivíduo. Neste momento, estavam criadas as condições de possibilidade para as ciências humanas formarem, construírem e consolidarem seus saberes sobre as individualidades. A prisão, por exemplo, enquanto instituição de excelência da sociedade disciplinar adquiriu obviedade principalmente por sua função técnica de correção de indivíduos – sua obviedade técnico-disciplinar. Para o sistema penal cumprir essa função corretiva, seria imprescindível conhecer não apenas o crime e a lei, mas, necessariamente, o sujeito criminoso: suas paixões, suas motivações, seu ambiente e possíveis enfermidades, modulando sua punição de acordo com estes novos elementos. A prisão enquanto instituição-penalidade inaugurou uma forma de sanção que não se referia a uma infração descrita em lei, mas a um comportamento, a uma personalidade de um sujeito criminoso. Mais do que um aparelho de poder, a prisão funciona como um aparelho de formação de saber. Como afirma Foucault: “exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza” (Foucault, 2007, pp.141-142).

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Assim, inaugura-se uma série de saberes, técnicas e discursos científicos que serão

incorporados e estarão entrelaçados às práticas de normalização, necessários a esta permanente e constante avaliação do sujeito confinado por todo o corpo social. A Psicologia se desenvolve enquanto especialidade técnica corretiva de condutas que busca, além de corrigir os institucionalizados, estabelecer suas razões, motivações e determinações que engendraram a violação da norma. O exame, como forma ritual e “científica” de fixar diferenças individuais, amarrou a cada indivíduo à sua própria singularidade, indicando a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status permanente uma individualidade e está estatutariamente ligado aos traços, às medidas, aos desvios, às avaliações que o caracterizam e fazem dele, de todo modo, um “caso”. A própria prática do exame cria um objeto de estudo para o saber e um objeto de intervenção para o poder (Foucault, 1997). Desta forma, será preciso inventar uma nova forma de produzir interferências nas práticas institucionalizadas que cristalizam certos modos-de-ser-sujeito, bem como anulam qualquer possibilidade de singularização. Enquanto proposta ético-políticometodológica para investigação de processos de produção de subjetividade, o pesquisarCOM parece apontar para alternativas que traçam linhas de ruptura com estes terrenos instituídos, criando possibilidades para o novo emergir. Veremos também que a diferenciação entre pesquisa e intervenção, teoria e prática, perdem o sentido ao construer um processo de pesquisa que aposta em um traçar do plano comum em composição com o território pequisado.

2. O PesquisarCOM em Instituições Totais Seguimos inspirados na cartografia, método de pesquisa baseado nas ideias de Deleuze e Guatarri que vem sido utilizado nas investigações acerca dos processos de produção de subjetividade no contemporâneo. Os processos subjetivos possuem como principais características o constante movimento, a transformação e a processualidade, tornando a cartografia um método interessante para abordá-la, pois, diferente dos métodos de pesquisas clássicas, não visa representar um objeto e nem apreender uma

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suposta realidade em si, mas sim acompanhar um processo de produção (Escóssia, L., Kastrup, V. e Passos, E, 2010). Neste entendimento, o terreno metodológico das pesquisas no campo da Psicologia não está separado ou afastado dos próprios processos de problematização, pois, tanto os objetos como as práticas e, principalmente, a própria identidade do investigador são formados no mesmo processo. No mesmo sentido, Michel Foucault também buscou problematizar os objetos, discursos e práticas sem o estabelecimento de um método pré-determinado. O método, no entendimento de Foucault, é fabricado no decorrer da investigação, produzindo assim campos de saber e objetos a pesquisar, dependendo sempre dos domínios a serem estudados. “(...) não tenho um método que se aplicaria, do mesmo modo, a domínios diferentes. Ao contrário, diria que é um mesmo campo de objetos que procuro isolar, utilizando instrumentos encontrados ou forjados por mim, no exato momento em que faço minha pesquisa, mas sem privilegiar de modo algum o problema do método... Não tenho teoria geral e tampouco tenho um instrumento certo. Eu tateio, fabrico, como posso, instrumentos que são destinados a fazer aparecer objetos.” (Foucault, 2003, p. 229)  

Foucault cria o caminho da investigação ao mesmo tempo em que cria os objetos a serem conhecidos, bem como “julga necessária outra concepção de sujeito, constituído por práticas historicamente localizáveis” (Ferreira Neto, 2004, p. 69). Assim, se a elaboração do projeto cartesiano busca a localização de verdades através de um caminho traçado pelo sujeito neutro e universal, Foucault (1998) se coloca no extremo oposto não garantindo a integridade do pesquisador ou até mesmo sua própria modificação durante o percurso: “de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?” (p.13)   Assim a aposta metodológica de um pesquisarCOM objetivará instigar os processos de produção de subjetividade enquanto um método de pesquisa-intervenção que se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras fixas a serem aplicadas durante a pesquisa. Assim, não se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim, uma meta pré-determinada antes da investigação, sendo este, “sempre um método ad hoc”

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(Passos, Kastrup e Escóssia, 2010, p.32). Nesta aposta, “sujeito e objeto, pesquisador e campo de pesquisa, teoria e prática se conectam para a composição de um campo problemático” (Passos, Kastrup e Escóssia, 2010, p.137) Em princípio, teoria e prática, pesquisar e atuar (intervir), pesquisador e pesquisados compõem elementos de um território de dicotomias clássicas da pesquisa científica. Em uma conversa de Gilles Deleuze com Michel Foucault (2007), intitulada “Os intelectuais e o Poder”, será debatida a separação totalizadora que se estabelece nas relações entre teoria e prática. Por vezes, a prática é entendida como aplicação de uma teoria ou como inspiração para a mesma, enquanto a teoria como expressão, tradução de uma prática qualquer. Para os autores, as relações entre teoria e prática não são totalizadoras, mas são regionais e locais. A própria teoria já é uma prática sempre endereçada a um domínio específico e com funções delimitadas. Assim, irão propor que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. (...) é preciso que sirva, que funcione” (p.71). Deste modo, importante será utilizar esta caixa de ferramentas como proposta metodológica e teórica visando acompanhar um campo em construção, em seu processo de produção (intervenção) simultaneamente ao processo de pesquisar. Assim, a pesquisaCOM apresenta a potencialidade de não opor teoria e prática, pesquisa e intervenção, produção de conhecimento e produção de realidade, sendo um importante recurso para estudarmos subjetividades institucionalizadas de forma que estes não sejam supostamente pré-determinados ou não apreendidas através dos estigmas e estereótipos do institucionalizado. O objetivo é colocar em funcionamento uma concepção de conhecimento que implica em comprometer-se com a própria produção do mundo institucional, em seus movimentos instituintes, em seus movimentos de produção da subjetividade de internados e profissionais, das relações interpessoais, da relação entre Psicologia e sua clientela, etc. Diferentemente de apenas teorizar sobre uma realidade que estaria sendo investigada, o trabalho do pesquisador “é sempre pelo compartilhamento de um território existencial que sujeito e objeto da pesquisa se relacionam e se codeterminam” (Passos, Kastrup e Escóssia, 2010, p.131). E para habitar tal território existencial, necessitamos retirar o psicólogo-pesquisador da posição de protagonista que descreve categorias psicológicas ou psicologizantes de um determinado local para

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provocá-lo a estar engajado como mais um elemento que irá compor e conjugar forças em um plano comum. Nesta atitude, é preciso estar disponível à experiência do novo, do não conhecimento, do não saber o que está por vir, se eximindo de iniciar com um problema fechado, já sabendo de antemão o que se procura.   Torna-se também primordial entender que na produção de uma pesquisa, os próprios institucionalizados devem trabalhar junto ao pesquisador, tornando-se tão protagonistas quanto os que assinam a pesquisa, pensando formas de cuidado capazes de incluí-los como parte atuante do processo. Neste princípio, é estar atento a uma importante pista metodológica enunciada pela cartografia: o ethos da pesquisa, uma atitude de “pôr-se ao lado”, de modo lateral e em composição com o campo. É o momento em que a pesquisa-intervenção propõe a implicação do pesquisador, para posicioná-lo ao lado da experiência e do suposto pesquisado, evitando o perigo das pesquisas tradicionais de “saber sobre”, apostando no “saber com”:   “A lateralidade ou a prática da roda faz circular a experiência incluindo a todos e a tudo em um mesmo plano – plano sem hierarquias, embora com diferenças; sem homogeneidade, embora traçando um comum, uma comunicação. Tal aposta metodológica da cartografia nos coloca lado a lado com a tradição das pesquisas qualitativas e daquelas que investem nas práticas de inclusão e participação efetiva daqueles que, tradicionalmente, estariam apenas na posição de objeto/participante.” (Passos, Kastrup e Escóssia, 2010, p.142)  

O “saber sobre” das pesquisas tradicionais irão afirmar um paradigma epistemológico que busca controlar variáveis, antecipar o futuro, determinando a regularidade dos fenômenos subjetivos/objetivos, num entendimento asséptico da ciência enquanto produtora de verdades, visando a neutralidade do conhecimento, a distância entre o sujeito do conhecimento e o objeto, valendo de modo explicativos para apostar numa repetição futura de tais fenômenos determinada por regras gerais. De forma diferente, o “saber com”, estuda os eventos à medida que os acompanha em seus processos de produção, reconhecendo e valorizando sua singularidade. O trabalho do pesquisador é agir com os diferentes acontecimentos, atentos às suas singularidades. “Ao invés de ir a campo atento ao que se propôs procurar, guiado por toda uma estrutura de

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perguntas e questões prévias (...)” (Passos, Kastrup e Escóssia, 2010, p.144). Estando atento às experiências na medida em que elas se realizam, em suas singularidades, sem pré-condições ou fórmulas dadas, o pesquisador habita/conhece/intervém no território a partir de sua disposição de compor um plano comum, sem estar submisso ou dominado por seu campo de pesquisa.   Em consonância com tal aposta metodológica, adota-se como concepção teórica de subjetividade a proposta já apresentada de Deleuze e Guattari que tem “como característica distintiva sua indissociabilidade da ideia de produção. (...) como produção de formas de viver, de sentir, de conhecer, etc. (Kastrup, 2000, p.20). Para tais autores, tanto a subjetividade como a objetividade são produzidas em um campo coletivo de forças/fluxos dispersos, múltiplos e heterogêneos que se agenciam produzindo sujeitos e objetos em um contínuo processo de produção, bem como nossa postura de pesquisar/atuar em tal campo problemático. Desta forma, entende-se as subjetividades como processo, em incessante produção por todo corpo social a partir de elementos heterogêneos, e não como estrutura identitária ou interioridade. Nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos não são produtos de uma interioridade psíquica e nem preexistem no mundo em si, eles são fundamentalmente produzidos a partir de práticas historicamente localizáveis. (Bicalho e Reishoffer, 2009) Assim, uma primeira questão que pode ser colocada é: será que em uma instituição total, onde constatamos que as relações estão determinadas por um desequilíbrio de poder, que separam o grupo dirigente e internados, é possível adotar a postura de pesquisa-intervenção que busca “saber com” e não “saber sobre”? Seria uma ingenuidade propor relações laterais e não hierarquizadas? A aposta do presente trabalho é justamente colocar em análise estas polarizações de poder e questioná-las em sua submissão a teorias e discursos conservadores que propõem lógicas dicotomizantes que mortificam subjetividades nestas instituições.      

3. Conclusão

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As instituições totais enquanto espaços de produção de subjetividades

cristalizadas são um fértil solo de pesquisa aos que buscam investigar como se produz subjetividades em larga escala no contemporâneo. Contudo, para que seu posicionamento não seja restrito a uma concepção de ciência que busca separar sujeito e objeto, pesquisa e intervenção, pesquisado e pesquisador, necessário será adotar novos paradigmas que o façam questionar a produção de mundos e sujeitos no decorrer do próprio processo de produção. Assim sendo, para uma prática de pesquisa em subjetividade em instituições que visem transformar a realidade e produzir novas possibilidades de ser estar no mundo para além do confinamento, torna-se necessário apostar nestas bases conceituais em que se fundamentam o pesquisarCOM, em busca de potentes elementos e dispositivos que façam movimentar os processos de singularização e resistência que estão presentes em todas as relações de dominação. Assim, para o pesquisador é preciso pôr em constant análise a suposta natureza de suas práticas e paradigmas que fundamentam a produção de subjetividades dominadas, sem mais nenhum poder desejante ou de possibilidades de singularização. O pesquisador pode criar as possibilidades para que as forças instituintes e de singularização emerjam, objetivando produzir novos agenciamentos, novas composições e arranjos subjetivos. Deve-se habitar o campo problemático sem o entendimento de que há fórmulas prontas ou procedimentos a serem necessariamente aplicados, em uma postura de espreita e aberto a novas possibilidades e acontecimentos. Como postura estratégica, é importante habitar tal campo problemático com mais perguntas do que com respostas prontas, principalmente aquelas respostas que já continham certo modo tradicional de pesquisar subjetividades dentro das instituições, a partir de concepções que entendiam o institucionalizado como um objeto dado, passivo diante da intervenção do especialista/cientista.

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Referências Bibliográficas

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