Ph.D. Thesis - O Conceito de Império em Marsílio de Pádua

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O CONCEITO DE IMPÉRIO EM MARSÍLIO DE PÁDUA (c.1275-80 – c.1342-43)

Moisés Romanazzi Tôrres

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História.

Prof. Francisco José Silva Gomes Doutor

Rio de Janeiro

2003

ii O CONCEITO DE IMPÉRIO EM MARSÍLIO DE PÁDUA (c.1275-80 – c.1342-43)

Moisés Romanazzi Tôrres

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História. Aprovada por: ______________________________________ Presidente, Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes. ______________________________________ Prof ª. Drª. Vânia Leite Fróes. _______________________________________ Prof ª. Drª. Tânia Maria Tavares Bessone Cruz Ferreira.

______________________________________ Prof ª. Drª. Maria de Fátima Gouvêa. _____________________________________ Prof ª. Drª. Maria Beatriz de Mello e Souza.

Rio de Janeiro 2003

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Tôrres, Moisés Romanazzi O Conceito de Império em Marsílio de Pádua (c.1275-80 – c.1342-43) / Moisés Romanazzi Tôrres. – Rio de Janeiro, 2003. viii, 386f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFICS, Programa de Pós-graduação em Histór ia Social – PPGHIS, 2003. Orientador: Francisco José Silva Gomes 1. Império. 2. Marsílio de Pádua. 3. Idade Média. 4. História – Teses. I. Gomes, Francisco José Silva (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós -graduação em História Social. III. O Conceito de Império em Marsílio de Pádua (c.1275-80 – c.134243).

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Aos meus avós Adão Romanazzi e Isabel de Oliveira Romanazzi.

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AGRADECIMENTOS

Durante os anos de desenvolvimento desta Tese muitas pessoas deram- me especial colaboração e apoio. Foram seus oportunos questionamentos e constantes incentivos que permitiram que meus esforços fossem coroados com êxito. Agradeço inicialmente ao Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes por sua orientação precisa, dedicação vigorosa e argüição segura, que me iniciaram na pesquisa nos momentos imaturos do começo do Doutorado, me impuseram constantes reflexões que foram gradualmente formando minhas convicções e, por fim, equacionaram minhas conclusões. Ao Prof. Dr. Luís Alberto de Boni que, gentilmente, me cedeu o exemplar da edição latina do Defensor Pacis, de Richard Scholz, analisado nesta Tese. Também ao Prof. Dr. José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza que me cedeu seu artigo intitulado Os Franciscanos Dissidentes de Munique, Marsílio de Pádua e o Opúsculo Quonian Scriptura Testante. Igualmente ao Prof. Dr. Sérgio Strefling que me emprestou parte de sua Tese intitulada Crítica da Plenitudo Potestatis em Marsílio de Pádua, Princípios Doutrinais e Estratégias Argumentativas. Obras citadas no corpo da minha Tese. A Profa Dra.Vânia Leite Fróes e a Profa Dra. Maria Beatriz de Mello e Souza por terem me encaminhado, juntamente com o Prof. Francisco, a uma revisão de posturas quando da Defesa da Qualificação, revisão esta que acabou balisando a construção de todo o texto final da Tese. Aos meus colegas mestrandos e doutorandos do PPGHIS-UFRJ, além logicamente da amigável convivência, pelos constantes debates e trocas de idéias. Igualmente a CAPES por ter fornecido, nos três primeiros anos do Doutorado, a indispensável base material, sem a qual seria impossível me dedicar ao trabalho da forma que fiz. Finalmente a minha família pela paciência, apoio e estímulo.

vi

RESUMO

TÔRRES, Moisés Romanazzi. O Conceito de Império em Marsílio de Pádua (c.1275-80 – c.1342-43). Orientador: Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação em História Social; CAPES, 2003. Tese (Doutorado em História Social).

“O Conceito de Império em Marsílio de Pádua (c.1275-80 – c.1342-43)” é uma pesquisa sobre os elementos fundamentais da reflexão marsiliana, especialmente com respeito ao Império, perante a realidade socio-política da primeira metade do século XIV na Europa Ocidental. As fontes utilizadas enquanto corpus são as obras de Marsílio: o Defensor Pacis (fonte principal) que desenvolve seus princípios políticos e eclesiológicos; o Tractatus de Translatione Imperii que demonstra sua visão providencial de Império; o Defensor Minor que nos apresenta sua idéia de expansão do poder do imperador sacro germânico, enquanto redator de uma lex universal, sobre toda a Humanitas; e o Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus, um exemplo de quão ampla deveria ser a jurisdição do sacro imperador, neste caso sobre a ordenação do casamento. A finalidade do trabalho é ajudar a enriquecer a compreensão sobre a obra deste complexo autor, procurando ressaltar sua especial contribuição para o conjunto do pensamento escolástico e medieval e, especialmente, no que diz respeito a sua concepção de Império.

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ABSTRACT

TÔRRES, Moisés Romanazzi. O Conceito de Império em Marsílio de Pádua (c.1275-80 – c.1342-43). Orientador: Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação em História Social; CAPES, 2003. Tese (Doutorado em História Social).

“The Empire Conceit at Marsiglio of Padua (c.1275-80 – c.1342-43)” is a search about the foundations of the Marsiglio´s thought, specially about the Empire, face the sociopolitical reality at first half of XIV th Century in the Occidental Europe. The corpus of this search was all the Marsiglio´s works: Defensor Pacis (principal source) that develops the ecclesiologys and politicals rudiments of Marsiglio´s thought; the Tractatus de Translatione Imperii that develops her providencial vision of Empire; the Defensor Minor that develops the idea of expansion of sacro german emperor power, as editor of a universal lex, over the Humanitas; and the Tratactus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus, an example of the sacro german emperor jurisdiction ampleness, in this case over marriage ordination. The purpose of my search is to aid the comprehension of this complex filosopher, principally her special contribution to the scolastic and medieval thought, and particularly about the Empire conception.

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SUMÁRIO

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INTRODUÇÃO

2 2.1 2.2 2.3

CAPÍTULOS O Império na Cristandade Latina Antiga e Medieval Marsílio de Pádua e o seu Século A Teoria Política de Marsílio de Pádua: Os Novos Conceitos de Pax, de Civitas e de Lex Os Argumentos Eclesiológicos de Marsílio de Pádua O Conceito de Império em Marsílio de Pádua O Pensamento Marsiliano no Contexto Sócio-Político Tardo-Medieval

2.4 2.5 2.6

p. 1

11 81 128 194 253 333

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CONCLUSÃO

360

4 4.1 4.2

REFERÊNCIAS Fontes Primárias Impressas Fontes Secundárias

372 378

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INTRODUÇÃO

A nossa pesquisa pode ser caracterizada como um trabalho de Nova História Política, como a História do Poder. Evidentemente que não é mais aquela história militar e diplomática que privilegiava os grandes homens e que pretendia, uma vez que se baseava num olhar objetivista sobre a realidade, reconstituir o passado tal como ele era. Mas uma Nova História Política que toma o Estado e o poder, em suas múltiplas interrelações, como pilares fundamentais de sua construção teórica e que, não pretendend o mais “reconstituir” o passado, procura sim entender as suas manifestações políticas, não isoladamente, mas em relação com os diversos outros campos da realidade. Sem dúvida que vivemos, a partir do último quartel do século vinte, um período de profundas transformações políticas. Ao lado do processo de derrocada do mundo comunista, do gradual avanço do neoliberalismo, verificamos modificações decisivas na marcha da própria estrutura do Estado. Observamos, a cada dia mais, o declínio do espaço nacional, seguido de uma crescente internacionalização, o que aponta no sentido dos grandes conglomerados e empresas internacionais, dos megamercados, dos comitês supranacionais e dos empreendimentos e políticas multinacionais. Tal processo, embora ocorra em âmbito mundial, tem sua expressão mais desenvolvida no processo de unificação européia. Diante de tudo isto é natural que se verifique o surgimento de uma pluralidade de trabalhos relacionados a pensadores políticos. É inclusive normal que os teóricos políticos do fim da Idade Média sejam também estudados, já que os historiadores, muito ansiosos na

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busca das origens, sempre tiveram o costume de vê- los como precursores da Modernidade, e, em particular, do Estado Moderno e do Estado-nação. Marsílio de Pádua, muito especialmente, devido às suas redefinições de conceitos fundamentais do pensamento político (os de pax, de civitas e de lex) que podem ser observadas em suas formulações teóricas, igualmente por seu princípio conciliarista e por sua perspectiva de subordinação total da autoridade espiritual ao poder político, foi enquadrado nesta perspectiva. Efetivamente, com relação a Marsílio de Pádua, as correlações com a Modernidade, por grande parte dos autores, são bastante comuns e muito radicais. Gérard Mairet por exemplo, ainda que muito relativize suas afirmações, realmente possui uma concepção segundo a qual Marsílio é o precursor do pensamento político moderno e, efetivamente, nos diz:

“É com efeito na obra de Marsílio de Pádua que se verifica a grande virada: com o Defensor da paz (1324), o teórico de Pádua lança as bases da representação moderna em política. Sua obra deve figurar como a obra capital onde a ‘modernidade’ em política começa a se desenhar no horizonte do Ocidente, ou seja da Cristandade” (1981, p.281).

Jeannine Quillet vai ainda mais longe ao afirmar textualmente:

“(...) se pode considerar o Paduano como o precursor da doutrina do Estado Moderno.” (...)

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“Com Marsílio de Pádua, a soberania (souveraineté) completa do Estado está definitivamente constituída” (1972, p.108).

Para não nos atermos somente à França, verificamos que, por exemplo, Vicenzo Omaggio escreve todo um capítulo de sua obra intitulada. “Marsílio da Padova: Diritto e Política nel ‘Defensor Pacis’” para demonstrar que, sob o ponto de vista jurídico, havia em Marsílio uma “pré-história da propriedade moderna”. 1

Para se poder concordar com estes autores seríamos obrigados a acreditar que em princípios do século XIV, os paradigmas escolásticos já tinham sido abolidos ou que eles os tenham sido pelo próprio Marsílio, o que é sabidamente falso. Assim, consideramos tais perspectivas como anacrônicas e teleológicas. Definitivamente não trabalhamos neste sentido. Ao contrário, vamos, num claro processo de releitura, inserir o Paduano dentro da racionalidade e das perspectivas do pensamento escolástico. Mas, simultaneamente, desenvolveremos as redefinições que formam a base do seu pensamento e, particularmente, do seu conceito de Império. Redefinições que muito influenciaram, inicialmente os meios jurisdicionalistas e conciliaristas do Período Tardo-Medieval e, posteriormente, os teóricos da “Reforma Protestante” e os grandes filósofos do Estado Moderno. Com efeito, não negamos a influência de Marsílio de Pádua nos autores modernos, apenas não o vemos como um precursor, mas como um teórico escolástico cujo pensamento foi utilizado, relido e redefinido, posteriormente por autores como Lutero e Calvino de um lado; e de outro, 1

OMAGGIO, Vicenzo. Marsílio da Padova: Diritto e Política nel “Defensor Pacis”. Napolli: Editoriale Scientifica, 1995, Cap. 3: Marsilio e l’Armutstreit. Per una Preistoria della Proprietà Moderna.

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Bodin, Hobbes, Locke e Rousseau. O nosso objeto de estudo é portanto análise do pensamento político e eclesiológico de Marsílio de Pádua, especialmente o seu conceito de Império. O recorte cronológico concentra-se na primeira metade do século XIV, época da produção marsiliana, mas igualmente levando em consideração que a mesma é tributária de um longo processo de evolução e que, portanto, devemos integrá- la na história do pensamento político e filosófico escolástico anterior. Quanto ao recorte espacial, optamos por trabalhar especialmente com a Itália, sem dúvida o quadro político que mais singularmente marcou sua obra, mas incluindo relações com as outras regiões da Europa Ocidental, da Cristandade como um todo. Estruturamos a Tese em seis capítulos. Tal estruturação foi realizada a partir de três objetivos centrais, a saber: a) Com o intuito de comprovar que o pensamento marsiliano representa um ponto fundamental de ruptura com a tradição teológica do pensamento escolástico parisiense. b) Que esta ruptura ocorreu através da redefinição dos conceitos de civitas, de pax e de lex (o que constitui a teoria política marsiliana), e igualmente pelo seu princípio conciliarista e sua perspectiva de total supremacia do político sobre o espiritual (dois aspectos fundamentais em seus argumentos eclesiológicos). c) Finalmente, procurando demonstrar em que medida o conceito imperial marsiliano se aproxima e no que se diferencia do desenvolvido pelos Hohenstaufen nos séculos XII e XIII. O primeiro capítulo, de caráter introdutório, trata do conceito de Império na Cristandade (Christianitas) durante a Antigüidade e a Idade Média; o segundo analisa os “lugares de produção” da obra marsiliana sendo intitulado: “Marsílio de Pádua e o seu della Proprietà Moderna.

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Século”; o terceiro e o quarto, respectivamente, estudam a teoria política e os argumentos eclesiológicos do Paduano; o quinto, capítulo central da Tese é, por isto mesmo, intitulado: “O Conceito de Império em Marsílio de Pádua”; e, finalmente, observando a repercussão do pensamento marsiliano nos séculos XIV e XV, o capítulo denominado “O pensamento Marsiliano no Contexto Socio-Político Tardo-Medieval” fecha o nosso trabalho. Com relação às fontes, constituímos um Corpus com todas as obras marsilianas, ou seja, o Defensor Pacis, nossa fonte principal, e as “Obras Menores” (fontes complementares), a saber: Defensor Minor, Tractatus de Translatione Imperii e Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus. Utilizamos ainda, enquanto fontes suplementares, obras de Aristóteles (em especial, a Politica e a Ética a Nicômaco), a Bíblia de Jerusalém, obras de Padres e Doutores, especialmente Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, além de obras de pensadores medievais, hierocráticos e antihierocráticos, como Egídio Romano, Álvaro Pais, Dante Alighieri e Guilherme de Ockham, entre outros. Utilizamos igualmente enquanto fontes suplementares, passagens de documentos provenientes tanto dos meios papais quanto dos imperiais. As obras marsilianas tiveram uma posteridade simultaneamente de grandes repercussões e profundas contestações, sendo hoje em dia largamente estudadas, especialmente por historiadores, filósofos e juristas. Traçaremos agora os sinuosos caminhos das mesmas, destacando especialmente as edições latinas e as traduções por nós utilizadas nesta Tese. A primeira impressão do Defensor Pacis, hoje perdida, de 1522, assinalou um decisivo salto qualitativo, inserindo as doutrinas e a própria figura do Paduano em circuitos diversos para além daqueles do jurisdicionalismo e do conciliarismo. O fracasso dos

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Concílios que sucederam ao Grande Cisma em tratar das questões relativas à reforma encontra-se nas origens da chamada Reforma Protestante do século XVI. Com efeito, não tendo a Igreja conseguido realizar a premente reforma no seu próprio âmbito, a mesma acabou advindo na forma de dissidências político-religiosas. Na época da “Reforma Protestante”, o pensamento de Marsílio voltou a ter grande influência, sobretudo seus argumentos eclesiológicos, notadamente nos meios calvinistas. Não podemos deixar também de ressaltar a provável influência que o pensamento marsiliano teve sobre os filósofos do Estado, do século XVI ao XVIII, como Bodin, Hobbes, Locke e Rousseau. No entanto, o estudo de todas estas influências fogem ao recorte cronológico de nossa pesquisa que se limita à Idade Média. A partir do século XVIII, a obra marsiliana parece, entretanto, ter ficado um tanto esquecida, ao menos na própria Itália. Felice Battaglia (1987, p.1 a 3), num discurso carregado de amargura patriótica, relata- nos que, nos primeiros anos do século XIX, num importante periódico milanês, o Giornale Italiano, foi publicado um artigo de seu diretor, Vicenzo Cuoco, que era uma síntese dos estudos políticos na Itália da Idade Média até o fim do século XVIII, na qual era reivindicada uma espécie de primado italiano no campo das ciências políticas e sociais. Mas Vicenzo, em sua vasta história da cultura política italiana, esqueceu ou conscientemente ignorou, um pensador, Marsílio de Pádua. Battaglia (ibid., p.3) salienta que esta deficiência não foi única: autores, bem posteriores a esta época, e munidos de maior espírito crítico e erudição histórica que Vicenzo, mostraram-se de todo desconhecedores do relevante papel do autor do Defensor Pacis. Assim foi, só como

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exemplo, o caso de Cavalli no seu trabalho La Scienza Politica in Italia, 2 onde não fazia sequer aceno ao Paduano. Tal lacuna pode ser possivelmente explicada pela perseguição, notadamente nos meios eclesiásticos, que a obra sofreu, tendo sido regularmente colocada no Index. Atualmente porém, além de inúmeras traduções nas mais diversas línguas, existem duas edições latinas disponíveis do Defensor Pacis: a de Melchior Goldast, Monarchia Sancti Romani Imperii vol. II, publicada em Frankfurt, em 1614; e bem mais recente, a de Richard Scholz, nas Fontes Iuris Germa nici Antiqui ex Monumenta Germaniae Historica, publicada em Hannover, em 1932. Ambas realizadas a partir do manuscrito que hoje em dia se encontra na Bodleian Library de Oxford sob o n.º 188, do final do século XV. A edição de Scholz foi a utilizada nesta Tese. O texto latino foi analisado e cotejado com a reconhecida tradução em língua portuguesa, editada pela Vozes, de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza. 3 Tal tradução foi realizada a partir das duas edições latinas disponíveis. Cotejamos também com a tradução francesa de Jeannine Quillet4 e com a tradução espanhola de Luís Martinez Gomes. 5 Traduções realizadas igualmente a partir das edições de Richard Scholz e Melchior Goldast. A posteridade das “Obras Menores” não é muito diferente da do Defensor Pacis. A influência do Defensor Minor, do Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus e do Tractatus de Translatione Imperii ocorreu nos mesmos círculos que o Defensor Pacis. Entretanto, foi sensivelmente menor que a da “Obra Maior”, pelo próprio 2

Memorie dell’Instituto Veneto, 1862, vol. XI e sg. apud. BATTAGLIA, Felice. Marsilio da Padova e la Filosofia Politica del Medio Evo..Bologna: Cooperativa Libraria Universitaria Editrice Bologna, 1987., p. 2. 3 MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Trad. José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997.

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caráter limitado dos opúsculos que pouco acrescentaram de significativo aos princípios marsilianos, políticos e eclesiológicos. Sua contestação todavia ocorreu também fundamentalmente nos meios eclesiásticos, sendo que foram eles também inseridos no Index. O Defensor Minor só foi editado pela primeira vez em 1922 por C. Kenneth Brampton, a partir do único manuscrito existente, do final do século XV, o de n.º 188 da Bodleian Library de Oxford, onde se encontra também, conforme comentamos, o Defensor Pacis. O Tractatus de Iurisdicione Imperatoris in Causis Matrimonialibus foi pela primeira vez impresso por Marquardt Freher, em Heidelberg, em 1598; e, posteriormente, por Melchior Goldast que o inseriu na sua Monarchia. Bastante mais tarde po rém se conheceu o manuscrito de Bremen b 35 que o contém. Muitos escritores o consideravam uma falsificação, afirmação que hoje em dia se encontra superada. O Tractatus de Translatione Imperii foi também inserido na Monarchia Sacri Romani Imperii de Goldast, a partir igualmente do texto do manuscrito que contém conjuntamente o Defensor Pacis e o Defensor Minor, ou seja, o de n.º 188 da Bodleian Library de Oxford. Na análise do Defensor Minor e do De Translatione Imperii utilizei a edição crítica bilíngüe, latim e francês, de Collete Jeudy e Jeannine Quillet. 6 Tal publicação, com relação ao Defensor Minor, baseia-se no seu único manuscrito, ou seja, o de n.º 188 da Bodleian Library de Oxford e, com relação ao De Translatione Imperii, baseia-se num amplo conjunto de manuscritos (dezessete) e edições latinas. A grande vantagem desta publicação, 4 5

MARSILE DE PADOUE. Le Défenseur de la Paix. Trad. Jeaninne Quillet, Paris: Vrin, 1968. MARSILIO DE PADUA. El Defensor de la Paz. Trad. Luíz Martínez Gomes, Madrid: Tecnos, 1989.

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como se pode notar, é que ela já apresenta ambas as obras marsilianas. Ademais, foi a que José Antônio de C. R. de Souza utilizou em sua tradução para o português do Defensor Minor 7 que, evidentemente, também cotejei. O De Translatione Imperii possui também uma tradução de José Antônio de C. R. de Souza, também realizada a partir da edição bilingüe de Jeudy e Quillet, publicada na Revista Veritas, como apêndice do seu artigo intitulado “Scientia Historica e Philosophia Politica no Tratado sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua ”,8 texto que utilizei igualmente. Na análise do De Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus fiz uso da própria edição latina de Melchior Goldast que, como assinalei, inseriu o opúsculo no volume II de sua grande coletânea. A leitura do texto latino foi feita cotejando a edição em vernáculo, de José Antônio de C. R. de Souza, in Estudos Sobre Filosofia Medieval da Leopoldianum/ Loyola. 9 Escolhi esta publicação simplesmente por ser a única que pude localizar e, também, pelo renome do tradutor e pelo fato do mesmo se tratar de um especialista, uma vez que traduziu as quatro obras marsilianas. Acreditamos que trabalhar com a Idade Média e, muito especialmente, com o pensamento de seus teóricos políticos, desde que haja empatia com o objeto de estudo (o que é o nosso caso), é sempre bastante recompensador. A importância do pensamento de 6

MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii.Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979. 7

MARSÍLIO DE PÁDUA. Defensor Menor. Introdução, tradução e notas por José Antônio de Camargo Rodriguez de Souza. Petrópolis, Vozes, 1991, pp. 11 a 110. 8

MARSÍLIO DE PÁDUA. Sobre a Translação do Império. Apêndice do artigo: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. “Sciencia Historica e Philosophia Politica sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua”. In: Revista Veritas, v.43, n.3, setembro de 1998. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1998. 9 MARSÍLIO DE PÁDUA. Tratado Sobre a Jurisdição do Imperador em Questões Matrimoniais . Trad. de José Antônio Camargo Rodrigues de Souza. In: Estudos Sobre Filosofia Medieval. Santos - São Paulo:

Leopoldianum/ Loyola, 1984, pp. 175 a 187.

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Marsílio de Pádua, reconhecida pelo consenso dos medievalistas (historiadores ou não), gerou entretanto distorções de interpretação conforme comentei. É portanto necessário repensar sua importante obra e determinar, num sentido mais geral, sua verdadeira contribuição para o conjunto do pensamento escolástico e medieval e, de uma maneira particular, os verdadeiros elementos que compõem o seu conceito de Império.

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O IMPÉRIO NA CRISTANDADE LATINA ANTIGA E MEDIEVAL

É nossa intenção neste capítulo traçar uma síntese do conceito e dos processos sóciopolíticos que envolvem o Império, ao longo da Antigüidade e da Idade Média. Analisamos inicialmente a idéia de Império na Antigüidade romano-helenística e o desenvolvimento das concepções e idéias fundamentais acerca das formas de governo, no interior da Igreja e do Império, o que ocorreu no Baixo Império (séculos IV e V). Em seguida, mostramos a persistência da idéia imperial na Alta Idade Média através do princípio vigarial desenvolvido pelos reis germânicos. Depois, abordamos o estabelecimento do Império Carolíngio (restauratio et translatio Imperii), bem como as suas mudanças e fragmentação. Desenvolvemos alguns aspectos sobre as circunstâncias históricas ligadas à “Restauração” Otónida (secunda restauratio Imperii), à constituição do Sacro Império RomanoGermânico, assim como ao seu confronto com o Papado. Analisamos mais detidamente o período correspondente aos Hohenstaufen (séculos XII e XIII) e o desenvolvimento do conceito medieval de Império. Por fim, estudamos a época equivalente ao “Fim da Idade Média” ou “Período Tardo-Medieval”, fundamentalmente a primeira metade do século XIV, período da produção marsiliana, mostrando resumidamente os últimos episódios do confronto entre o “Sacerdócio e o Império”, e a subsequente “regionalização” do Sacro Império. Antes mesmo de entrarmos no assunto, gostaria de discutir uma noção que se faz necessária para estudar o Império na Antigüidade e Idade Média, trata-se da noção de cristandade, evitando a comum confusão que se faz com a de cristianismo. Noção esta que

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é de fato estruturante de qualquer aborgagem sobre a história do Império. Para tanto, sigo a concepção de Francisco José Silva Gomes:

“Enquanto o cristianismo se refere à religião, a um sistema religioso, a cristandade quer antes significar um sistema único de poder e de legitimação da Igreja e do Estado. Todavia, essa relação bipolar só se mostra significant e se levarmos em conta a sociedade como um terceiro elemento mais abrangente (...) a relação bipolar serve de mediação à relação tridimensional e está nela contida. As relações estruturais da Igreja e do Estado medeiam a relação de cada uma dessas instituições com a sociedade. Podemos então falar de cristandade como de um sistema de relações da Igreja e do Estado na sociedade” (1979, p. 33 e 34).

Devemos igualmente diferenciar a cristandade enquanto uma noção e a Cristandade enquanto realização de uma época histórica (Christianitas). Com efeito, as modalidades de cristandade que nasceram com a Pax Ecclesiae, no século IV, por ocasião da “conciliação constantiniana” e perduraram até as revoluções burguesas e liberais, até o advento do capitalismo, podem ser, segundo Francisco Gomes, denominadas de “constantinianas”, isto porque, como observa o autor, repetem certos traços comuns àquela cristandade que se constituiu sob o Império cristão. Nelas, o específico estava na relação particular da Igreja e do Estado num regime de união e de religião de Estado. Nesta relação particular, prossegue Francisco Gomes (ibid., p.34), o Estado assegurava à Igreja a presença privilegiada na sociedade e, dependendo das circunstâncias históricas, o monopólio sobre a produção dos bens simbólicos, constituindo-a, além disto,

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em aparelho de hegemonia do sistema. 10 Já a Igreja assegurava ao Estado e aos grupos/classes dominantes a legitimação de sua hegemonia e dominação. Chamamos Cristandade (Christianitas) exatamente a estas modalidades de cristandade, marcadas pelo traço característico acima apontado. Tais modalidades, como visto, tiveram início no Império Romano do século IV, mas foi somente na Baixa Idade Média que a Cristandade (Christianitas), estruturada enquanto um território fisicamente demarcado e uma sociedade fundada na fé e na obediência a Roma, encontrou o seu apogeu, procurando então se distinguir, profundamente, dos “cismáticos” bizantinos e dos “infiéis” muçulmanos. Feito estas consideração preliminares, passemos então ao estudo do Império na Antigüidade e, posteriormente, na Idade Média. Se imperium era uma palavra latina, a idéia de um império e a idéia de um imperador não eram de origem latina. Devemos reconhecer no Império Romano o resultado da fusão da evolução política romana com as idéias helenísticas. Efetivamente, segundo Ernest Barker (1992, p.61), podemos dizer que Roma construiu um império num mundo impregnado do pensamento da Grécia e que este pensamento grego continuou a impregnar, chegando mesmo a cimentar, o império que Roma construíra. Foi no Oriente que os homens aprenderam a viver em uma sociedade universal única governada por um rei que era “como um deus entre os homens”, e foi no sentimento de lealdade pela pessoa deste monarca e até de adoração de sua divindade que uma vontade 10

Entendemos hegemonia, como o faz Francisco Gomes (id., p.34 e 35), sob o ponto de vista gramsciano. Para Gramsci, como observa Gomes, o outro elemento complementar e dialético da coerção é a hegemonia. Esta é então o elemento positivo da dominação, já que por ela se obtém o consenso social sem que seja necessária a intervenção constante dos aparelhos coercitivos. Hegemonia seria portanto a direção intelectual e moral de toda a sociedade segundo os desígnios da(s) classe(s) dominante(s) .

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social correspondente encontrou sua expressão. Alexandre unira o mundo conhecido de sua época (com exceção da Itália e dos confins do Ocidente) num único reino e supusera a igualdade de todos os homens livres deste reino. Mas uma unidade como Alexandre fundara necessitava de um princípio coeso, precisava de um centro comum de vínculo e lealdade pessoais. Este princípio, em suma, foi a divinização do governante. O rei divinizado podia reivindicar para si a universalidade e receber a adoração universal de um deus manifesto. Sob esta premissa, deveria se estabelecer a união entre as cidades gregas e os povos orientais. Foi, inclusive, nos domínios orientais do império de Alexandre que a adoração do governante deificado tornou-se (o que nunca fora feito formalmente pelo próprio Alexandre) uma instituição de Estado.11 Por outro lado, na filosofia estóica o universo inteiro é concebido como uma unidade inteligível, permeada pela razão; e a crença estóica em um mundo-Estado é simplesmente o aspecto político desta concepção filosófica geral.12 Está registrado por Plutarco de Zenão:

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Utilizamos o termo Estado para caracterizar uma sociedade com governo centralizado e organizado política e administrativamente, sendo o termo portanto aplicável à Antigüidade e a Idade Média tanto quanto à Era Moderna e à Era Contemporânea 12 Segundo os estóicos, o Universo inteiro era apenas uma Substância; uma Physis, em diferentes estados, e esta Substância una era a Razão, era Deus. Razão, Deus, Natureza eram todos sinônimos – sinônimos da essência inteligível e homogênea do Universo. Fisicamente, essa essência era considerada uma forma de matéria (fogo ou éter de fogo), “pura e sutilíssima”, “mais móvel do que qualquer movimento”, que “passa e penetra através de todas as coisas (...) o sopro do poder de Deus e uma influência pura fluindo da glória do Todo-Poderoso” (como está escrito no Livro da Sabedoria). Em Deus, esta Razão essencial era íntegra e pura; no homem era um fragmento, mas este fragmento era “o princípio dominante” no homem, que determinava o curso de sua vida. Por ele, em primeiro lugar, o homem se unia a Deus e aos seus semelhantes. Dele, em segundo lugar, o homem obtinha a lei. Considerando que a razão era o princípio dominante em ambos, era o princípio dominante da sociedade de todos, e considerando ainda que a razão era a natureza, a lei da sociedade universal baseada na razão era a mesma coisa que a lei da natureza. Uma sociedade universal, um Estado do mundo inteiro; uma lei da natureza, com a qual todos os seus membros devem viver em conformidade – estes são os dois grandes princípios do estoicismo.

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“(...) não devemos viver em cidades e demos, cada qual caracterizada por normas de justiça separadas, mas devemos considerar todos os homens como companheiros de demos e de cidade; e deve haver uma única vida e ordem assim como um único rebanho se alimentando em um pasto comum.” (PLUTARCO apud BARKER, ibid., p.68)13

Havia uma tendência religiosa, nos três últimos séculos antes do nascimento de Cristo, a uma fusão de cultos e a uma crença geral num único Deus do Universo. É impossível estudar adequadamente este movimento aqui; entretanto, é conveniente e necessário chamar atenção para suas conseqüências políticas. Um mundo com uma única religião também tendia a ser um mundo de um único Estado. Dada as concepções gerais do mundo antigo, podemos dizer que o crescimento do monoteísmo estimulou o crescimento de uma monarquia universal e vice-versa. Neste meio tempo, o desenvolvimento político de Roma propriamente dito tendia a encontrar o sistema de pensamento implícito nas monarquias helenísticas, na filosofia do estoicismo e na nova tendência religiosa. Com efeito, no período da Realeza, segundo as raras fontes disponíveis, o rei, eleito e vitalício, supremo che fe militar, civil, judiciário e religioso, recebia da Assembléia por Cúrias o poder coercitivo e os direitos de chefe supremo – imperium. O Senado elaborava uma lista tríplice (um nome por tribo, talvez), e a Assembléia por Cúrias elegia o rei dentre

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Os textos originais, gregos ou latinos, das passagens de fontes primárias citadas nesta Tese não serão apresentados, por se tratarem de fontes suplementares e também porque simplesmente não dispomos de grande parte deles. Exceção se faz as citações das obras marsilianas, por estas constituírem o corpus central de nossa pesquisa, onde os respectivos textos originais latinos serão apresentados em notas de rodapé.

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estes nomes. O Senado dava a confirmação chamada auctoritas patrum (autoridade dos pais). A eleição era precedida de cerimônias religiosas, como a consulta dos auspícios. Enquanto estes não fossem favoráveis, o Senado escolhia um “inter-rei”, que só podia ficar cinco dias no poder. Tal organização, no entanto, é bastante questionável. É muito difícil conciliar esta estrutura complexa com a época lendária dos reis não etruscos, quando na realidade Roma era um conjunto de aldeias humildes. No máximo podemos admitir uma miniatura destas instituições em cada aldeia autônoma. Tal sistema foi, provavelmente, introduzido pelos etruscos, mas o rei etrusco, apoiado na força militar, dificilmente seria eleito, a não ser “pró-forma”. Devemos, pois, olhar com desconfiança este quadro político, em que os cronistas romanos devem ter projetado instituições posteriores, já republicanas, atribuindoas, em forma mais ou menos modificada, ao passado. Os reis etruscos cerceavam o poder dos patrícios e concediam vantagens à plebe, e m que se apoiavam. Os últimos reis etruscos, porém, cobravam impostos altos demais e obrigavam a plebe a realizar trabalhos forçados nas obras públicas. Isto facilitou a adesão dos plebeus à revolta que os patrícios deflagaram em 509 a. C, que acabou levando à República. A revolta do Lácio contra o poder estrusco, contrariamente à tradição romana, não partiu, no entanto, da cidade de Roma, ela foi iniciada pelas outras cidades latinas com auxílio dos helenos. Com a instituição da República, a magistratura que substituiu a realeza foi o consulado. Os cônsules eram dois, ambos patrícios, e tinham os mesmos poderes que o antigo rei, à exceção do religioso, que era da alçada de outro magistrado, reminiscência da

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realeza desaparecida – o rex sacrorum. Na realidade, o supremo órgão religioso era o Colégio dos Pontífices, sacerdotes que interpretavam o costume, que tinha o valor de lei. Os cônsules eram, no entanto, sobretudo chefes militares. Eram eleitos pela Comitia Centuriata. Recebiam o imperium da Comitia Curiata, o que lhes dava o supremo poder militar fora de Roma (era proibido, como sacrilégio, entrar na Urbs com tropas). O Senado lhes conferia a confirmação chamada auctoritas patrum, em virtude da qual recebiam a potestas (capacidade de exercer uma magistratura). Entretanto havia duas grandes limitações do poder consular, através dos quais os patrícios se asseguravam contra tentativas de volta ao poder pessoal: a anualidade (ficavam só um ano no cargo) e a colegialidade (eram dois cônsules com poderes iguais; em caso de discórdia, o Senado resolvia). Com as conquistas militares, 14 as províncias que foram constituídas eram governadas por magistrados (procônsules, propreptores). Tais magistrados foram também investidos do supremo poder militar, o imperium, restrito, no entanto, aos limites da província e ao período que durasse seu governo. Tais conquistas, no entanto, se, por um lado, transformaram Roma, de uma pequena cidade do Lácio na cabeça de um imenso império que unificou toda a bacia do Mediterrâneo, por outro ocasionaram graves crises internas: a do século II a.C. e a do século I a. C.

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A unificação da Península Itálica por Roma nos séculos IV e III a.C.; a vitória sobre Cartago nas Guerras Púnicas (263 a.C. a 202 a.C.), que valeu a Roma o controle de toda a bacia do Mediterrâneo Ocidental; e, finalmente, o grande surto expansionista dos séculos III e II a.C., que levou a conquista, em linhas gerais, da maior parte dos territórios dos povos célticos à Ocidente e dos Reinos Helenísticos à Oriente.

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Com efeito, no século II a.C. as guerras constantes haviam afastado os camponeses de suas terras. Eles se endividavam, não tendo colheitas, pediam emprestado aos ricos, que cobravam juros altos. Acabavam assim tendo de entregar sua terra em pagamento, pois ainda sofriam a concorrência do trigo das províncias, mais barato. Mas nem como “assalariados” encontravam trabalho no campo: os grandes proprietários preferiam os escravos que, chegando em grande número devido às conquistas, eram baratos. Os camponeses, arruinados, migravam em grandes grupos para as cidades, sobretudo para Roma. Como também o artesanato urbano preferia a mão-de-obra escrava, constituíam uma multidão de desocupados que viviam de vender seus votas à nobilitas (aristocracia patrício-plebéia resultante da união do patriciado decadente com a parte mais rica da plebe). Mas também a condição dos escravos era a pior possível, fazendo surgir revoltas constantes, algumas de grande gravidade. Foi em conseqüência destas sérias tensões sociais que se deu a ascensão dos tribunos da plebe, em especial dos Gracos (Tibério Graco, tribuno em 133 a.C. e Caio Graco, tribuno em 123 e 122 a.C.). As medidas dos tribunos, em especial a redistribuirão do ager publicus em pequenos lotes à plebe pobre e um conjunto de ações com o intento de passar poderes da nobilitas aos eqüestres (grupo de plebeus enriquecidos como o comércio, o artesanato e a cobrança de impostos; tinham este nome porque, sendo ricos, iam ao combate a cavalo), foram, no entanto, posteriormente revogadas, especialmente nas épocas de Mário (final do século II a.C.) e de Sulla (82 a 79 a.C.). Mas ainda que a lei agrária continuasse a ser aplicada, isto não faria vo ltar ao antigo estado de coisas, pois agora Roma tinha um império. De fato podemos compreender da seguinte forma a chamada Crise da Ordem Republicana no século I a.C.: as instituições de

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uma cidade-Estado como eram as romanas, não podiam servir para a direção de todo um império. Em 89 a.C., após graves lutas por três anos, os italianos foram admitidos à cidadania. Mas como poderiam todos eles comparecer a Roma e atuar nas assembléias? A maior força política de Roma, o Senado, era atacada pelos plebeus pobres e pelos eqüestres. Os magistrados romanos viam diante de si chefes militares que passaram a fazer política pessoal. As províncias e os eqüestres, elementos econômicos essenciais, não tinham direitos políticos. O exército, força real e básica do poderio romano, não era uma força política legalmente reconhecida. Em resumo, a forma republicana era viável apenas para uma extensão restrita de território e cidadãos; a expansão levou à crise. O resultado das crises foi a extensão do poder pessoal baseado no exército. Tendia-se à suspensão das liberdades provinciais e locais, e das liberdades individuais. Eram comuns os golpes de Estado. Chegou-se enfim à centralização e a formulação, pelos juristas, especialmente por Cícero, de uma idéia nova de Estado enquanto personalidade jurídica abstrata, justificando um novo sistema: o Principado. Com Mário (final do século I a.C.) e com a Ditadura de Sulla (82 a 79 a.C.) teve início o poder pessoal baseado no exército e a era dos golpes de Estado. Seguiu-se o Primeiro Triunvirato – Júlio César, Crasso e Pompeu (60 a 48 a C.), a Ditadura de César (48-44 a.C.) e o Segundo Triunvirato – Marco Antônio, Lépido e Otávio (43 – 30 a.C.), em meio a sangrentas guerras civis. Enfim, após a vitória na batalha naval do Actium (31 a C), o duplo suicídio de Cleópatra e Marco Antônio e a conquista do Egito (30 a.C.), Otávio, sozinho no poder, gradualmente instaurou o Principado. Em 30 a.C., Otávio foi empossado como imperator (chefe dos exércitos), princeps (primeiro cidadão; o senador que fala em primeiro lugar) e augustus (divino), pondo fim a

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República e dando início ao Principado, a forma inicial que tomou o Império Romano (30 a.C. a 235 d.C.). Seus títulos principais, ao longo de seu reinado foram, no entanto, augustus, pai da patria, imperator (título a que faziam jus os generais vencedores). A “fórmula” do Principado, utilizada por Otávio, havia sido idealizada, conforme comentamos acima, por Cícero, visando sua aplicação por Pompeu. O sistema não se formou de vez: foi se estruturando aos poucos durante o governo de Otávio (30 a.C. a 14 d.C.). O Principado representou uma tentativa de manter as aparências republicanas. Com o estabelecimento do Império (Imperium), o antigo poder temporário do magistrado republicano (imperium) assume um caráter vitalício. A base do poder de Otávio era o imperium proconsulare maius, isto é, o supremo comando militar em caráter vitalício e extensivo a todo o Império, inclusive a própria Roma. Mas ele também açambarcou as atribuições de todas as magistraturas republicanas, através de concessões sucessivas do Senado. Otávio se preocupava, no entanto, em dar cunho legal a sua situação, e fazia com que o Senado lhe referendasse as atribuições, a intervalos de cinco ou dez anos. Continuavam a ser eleitos cônsules, pretores, e outros magistrados, mas sem poder efetivo e, além disto, Otávio fazia a indicação eleitoral e, desta forma, somente seus candidatos se elegiam. O Principado foi uma acomodação entre a forma republicana e o poder pessoal baseado no exército. Teoricamente, era uma diarquia, fundamentada na harmonia do princeps com o Senado. Na prática, todo o poder ficava nas mãos do primeiro. Otávio, no entanto, não quis ser tribuno da plebe, pois para isto teria de deixar a gens julia (gens de Júlio César, de quem era filho adotivo) e ele não queria perder o prestígio militar ligado ao

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nome de César (o tribuno da plebe tinha de ser plebeu ou adotado por família plebéia); entretanto, por uma acomodação, Otávio tinha o poder tribunício sem ser tribuno (potestas tribunicia), o que lhe conferia inviolabilidade e veto. Com os descendentes de Otávio, o termo imperator ganhou uma importância crucial e seu significado foi alargado: além do supremo comando militar, ele passou a designar um sistema complexo de direitos civis, militares e judiciários. Com efeito, segundo Léon Homo (1970, p.250), o termo imperator, termo que caracterizava o príncipe enquanto detentor do imperium proconsulare sobre seu triplo aspecto civil, militar e judiciário, foi sempre a primeira designação dos governantes do Império Romano, sendo César (Caesar) um prénome genérico que lembrava o prénome individual (de Júlio César) e Augusto (Augustus) um sobrenome de natureza religiosa que elevava o imperador acima da humanidade e lhe conferia um caráter sagrado. Gradualmente, a idéia romana de imperium, recuperando a tradição helenística, foi sendo associada à deificação da figura imperial e, em geral, à idéia monárquica oriental. Já com Otávio teve início a estruturação, ainda tímida porém, do cult o imperial. No Oriente (onde há milênios o governante era, em formas diversas, ligado à divindade), ele foi adorado ao lado da deusa Roma, e isto se espalhou aos poucos por todo o Império, respondendo a necessidade de se criar laços mais profundos entre cada habitante do Império e o seu imperador. O Império era a solução de um problema; até mais – era uma “salvação”. Os sentimentos religiosos sustentavam a instituição e sua continuidade. Este sentimento religioso era de adoração a um deus presente, enviado pela Providência para o fim da guerra e a salvação da comunidade humana. Após o reinado de Macrino (217 a 218 d.C.),

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uma conspiração militar pôs no trono Heliogábalo (218 a 222 d.C.), que introduziu em Roma o culto solar, sinal da crescente orientalização religiosa e cultural do Império. Quando Aureliano (270 a 275 d.C.) transformou a adoração do Sol em religião do Império, o imperador passou então a ser a imagem e a epifania do Sol Invictus. Era o nimbo emanado do sol que lhe conferia uma graça sobrenatural; e se ele deixava ao sol o título de “Senhor do Império Romano”, ainda assim pôde reivindicar para si não só o título de Senhor (dominus) como também o de Deus (deus). Com efeito, foi durante a chamada crise do século III d.C. que o culto imperial encontrou o seu apogeu. Desde meados do século II d.C., o belo edifício do Império se rachava: guerra civil, grave crise de falta de mão-de-obra (“crise do escravismo”), perigo germânico nas fronteiras, inflação, despovoamento dos campos, grande elevação dos impostos, entre outras crises. Mediante tal estado de coisas, os imperadores queriam eliminar os fatores de divisão e estreitar os laços entre os habitantes do Império por intermédio do culto oficial do imperador, tido como demonstração da lealdade ao Estado Romano na figura do imperador. Foi só então que os cristãos passaram a ser perseguidos de forma sistemática e, por diversas vezes, foi elaborada uma legislação anti-cristã destinada ao conjunto do Império,15 pois, embora afirmassem sua lealdade a Roma, se recusavam, logicamente, a realizar o culto imperial. Também a filosofia estóica veio a desfrutar de grande popularidade em Roma desde os dias de Cipião até os de Marco Aurélio. Influenciou os legisladores romanos com suas

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As perseguições durante os séculos I e II de nossa era tinham um caráter local e eram muito limitadas no tempo. Ademais, na época de Nero (54 a 68), na de Trajano (98 a 117) e na de Marco Aurélio (161 a 180), não foi jamais elaborada uma legislação anti-cristã precisa.

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doutrinas de uma lei universal da natureza e a igualdade de todos os homens livres diante desta lei (“omnes homines natura aequales sunt – diante da lei da natureza, todos os homens são iguais”). Sua concepção de Estado mundial impregnou o pensamento de Marco Aurélio. O texto clássico desta concepção pode ser encontrado em uma sentença de suas Meditações (apud BARKER, op. cit., p.69): “O poeta disse: Querida cidade de Cecrops; mas tu – tu não dirás, Querida cidade de Deus?” De fato, o pensamento que alimentava os patrícios romanos era um pensamento do mundo- Estado, a lei universal da natureza, a irmandade e a igualdade dos homens livres; e este pensamento inevitavelmente penetrou e determinou a concepção geral que eles tinham do seu império. A orientalização do Império prosseguiu no Dominat o (o Baixo Império – de 285 d.C. a 476 d.C.). O imperador, dominus et deus, vivia então cercado por luxuoso cerimonial de corte e por rigorosa etiqueta, o que dificultava o acesso a ele. Era assim um monarca de tipo oriental; devia-se ajoelhar na sua presença, sua imagem era adorada. Porém o Império, em grave crise desde finais do século II, tentou a superação desta através da aproximação com o cristianismo. O primeiro passo foi a “conciliação constantiniana” possibilitada pelo “edito de Milão”. Em fevereiro de 313, como salienta Jean Meyendorff (1993, p.20), os imperadores romanos Constantino (Ocidente) e Licínio (Oriente) entraram em acordo sobre o princípio de uma nova política religiosa.16 A política 16

Com efeito, o imperador Diocleciano (285 a 305 d.C.), devido a problemas internos (as comunicações haviam sido ainda mais dificultadas pela longa crise militar, a volta à economia natural tendia a fazer de cada região uma unidade econômica quase fechada) e externos (o aumento da pressão germânica em diversos pontos do limes), resolveu descentralizar o poder: estabeleceu que haveria dois “Augustos”, um no Ocidente e outro no Oriente; cada Augusto nomearia um ajudante, “César”, ao qual entregaria parte do seu território para governar. Após 20 anos de governo, os Augustos abdicariam, passando o poder aos Césares, que se tornariam Augustos e nomeariam, cada um, um César, e assim por diante. Esta tetrarquia funcionou bem enquanto viveu

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consistia em por fim a perseguição do cristianismo, declarando-o religio licita, restituindolhe as propriedades anteriormente confiscadas e instituindo um regime de tolerância religiosa. Na realidade, a Pax Ecclesiae foi somente uma das conseqüências do “edito de Milão”. Este, no entanto, não se referia especificamente ao cristianismo e sim a todas as religiões do Império. Como analisa Meyendorff (ibid., p.20), o imperador Constantino I (306-337), o primeiro “imperador cristão”, era originalmente um adepto do monoteísmo solar. Ele provavelmente passou por alguma espécie de conversão, impossível de se saber ao certo, na batalha da Ponte Milvius contra o usurpador Maxêncio (312), mas a mudança na política religiosa foi progressiva. Constantino I continuou a honrar o Sol Invictus sobre suas moedas e sobre os documentos oficiais e manteve-se como pontifex maximus do paganismo oficial romano, largamente sincrético. Não se observa igualmente nenhuma mudança de hábitos que pudesse atestar uma verdadeira conversão espiritual ao cristianismo: ordenou a execução de Licínio (324) e, posteriormente, de seu próprio filho, Crispus, e de sua própria mulher, Fausta (326). Entretanto, prossegue Meyendorff (id., p.21) desde o episódio da Ponte Milvius e ao longo de todo o seu reinado, Constantino I identificou progressivamente a Divindade Suprema que ele honrava desde sua juventude com o Cristo tal como era visto pelos

Diocleciano, mas depois levou à guerra civil e, posteriormente, a nova concentração de poder na época de Constantino (324-337). De fato, a partir de 306, o sistema político de Diocleciano se desequilibrou. Ao invés de quatro, passaram a existir sete imperadores, em luta uns com os outros. Constantino, no entanto, elimina todos os seus concorrentes no Ocidente. No Oriente, outra guerra civil termina com a vitória de Licínio. Mas Constantino e Licínio não tardaram a entrar em oposição. Derrotando e matando Licínio, Constantino se torna o único imperador em 324.

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cristãos. Ao mesmo tempo, ele se interessou cada vez mais pelos negócios da Igreja e concedeu favores ao clero. Tal processo culminou com seu batismo, já no leito de morte, pelo bispo ariano Eusébio de Nicomédia, em 337 . A transformação progressiva do Império em uma sociedade formalmente cristã continuou sob seus sucessores. Mas esta lenta evolução foi plena de contrastes e de paradoxos. Jean Meyendorff (id., p. 21 e 22) analisa todas as suas etapas nos seis parágrafos que se seguem. Os dois filhos sobreviventes de Constantino I, Constâncio II (337-361) e Constante (337-350), que reinaram respectivamente no Oriente e Ocidente (Constantino II foi morto em uma emboscada no norte da Itália em 340), seguiram a legislação constantiniana em favor do cristianismo e tomaram uma parte ativa nos assuntos de uma Igreja dividida pela crise ariana, especialmente Constâncio II. Constâncio, inclusive, foi um grande inimigo do paganismo: proibiu os sacrifícios, mandou fechar os templos e decretou pena de morte para os contraventores (356). Todavia esta legislação não foi aplicada de forma rigorosa. É preciso levar em consideração fortes resistências. O paganismo chegou mesmo a ser revivido no curto reinado do imperador Juliano (361-363). Com efeito, Juliano, o Apóstata, o único sobrinho de Constantino I a ter sobrevivido aos expurgos sanguinários de Constâncio II, atraiu a simpatia do povo romano ao restabelecer o paganismo. Mas também um outro pagão, o prefeito pretoriano Secundus Solutius, obteve a aprovação unanime do exército para suceder Juliano após sua morte. Secundus recusou esta honra em 363 e depois em 364 somente porque estava idoso e doente.

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Entre os imperadores do final do século IV, o caso de Valentiano I (364-375), que havia se recusado a oferecer sacrifícios pagãos, foi visto como uma exceção por seus contemporâneos. É provável que Valentiano fosse um cristão convicto. Mas como ele foi eleito pela mesma assembléia de militares de primeiro escalão que havia procedido a escolha do pagão Solitius, fica claro que por volta de 364, cinqüenta anos depois do “Edito de Tolerância”, as convicções religiosas do candidato eram consideradas como um fator pouco importante na escolha de um imperador. Foi Teodósio I (379-395) no Oriente e Graciano (375-383) no Ocidente que desenvolveram, cada vez mais intensamente, a perspectiva do cristianismo enquanto religião de Estado. Graciano renunciou ao título pagão de pontifex maximus em 381 d.C. e Teodósio foi o primeiro imperador a ser batizado no princípio do seu reinado. Como cristão praticante, Teodósio I rompeu naturalmente e totalmente com os cultos pagãos. Aprovou os pedidos dos bispos de fechar os templos (destes, alguns foram destruídos e outros foram transformados em igrejas), bem como diversas outras medidas contrárias ao paganismo. Por fim, em 391-392, Teodósio I publicou dois decretos banindo os cultos pagãos, públicos ou privados. Foi só então que o Império tornou-se constitucionalmente e legalmente um Estado cristão no qual o paganismo foi reduzido a uma minoria tolerada a muito custo. Entretanto, este sobreviveu por séculos ainda em grande parte do Ocidente. O usurpador Eugênio (392-394) favoreceu mesmo uma volta ao paganismo. Durante seu curto reinado, a antiga Academia de Atenas permaneceu aberta e vastas regiões rurais tornaram-se formalmente pagãs. Entretanto, todos os filhos e filhos adotivos de Teodósio que reinaram até a metade do século V seguiram o exemplo de seu pai tornando-se formalmente membros da Igreja e reforçando a legislação anti-pagã.

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Finalmente, após a queda do Império Romano no Ocidente, a política religiosa rigorosa de Justiniano (527-565) eliminou, no Império Romano do Oriente, o paganismo da vida pública. Com efeito, Justiniano tornou efetivamente o cristianismo segundo o dogma de Nicéia-Constantinopla a religião oficial do Império e simultaneamente responsabilizou oficialmente os bispos pela supressão, por intermédio da força, dos cultos pagãos. No Ocidente, entretanto, o paganismo, revigorado com a queda do poder romano, só foi vencido aos poucos, pelo avanço do processo de evangelização ao longo da Alta Idade Média. Podemos entender o cristianismo enquanto religião oficial do Estado Romano como a realização de uma verdadeira comunhão de interesses. A Igreja, favorecida e privilegiada desde 313, tornou-se então verdadeiramente institucionalizada. Quanto ao Império, segundo Francisco José Silva Gomes (op. cit., p.38), este encontrou no cristianismo uma nova forma de legitimação da ordem vigente, sacralizando-a; e na Igreja, um aparelho de hegemonia. Como comenta Francisco Gomes (ibid., p. 38 e 39) a divinização do poder imperial não lograra na fórmula do Dominato, em parte pela resistência que os cristãos lhe haviam oferecido. Os imperadores encontraram então uma nova legitimação da sua autoridade em termos cristãos. O imperador não era mais sobre a terra um deus de glória, mas a imagem visível do Deus invisível, do senhorio de Cristo (Kyrios). O poder imperial tornava-se a imagem da monarquia divina. A missão do Imperador enquanto vicarius Christi, juntamente com os bispos, ainda que de modo diverso, investia-o da tarefa de propagar o Reino e de defendê- lo dos inimigos. Os imperadores também se julgava m obrigados a manter a unidade da fé para manter a unidade do Império, a defender a divindade de Cristo contra as heresias que a negavam, para sustentar a sua função vicarial. Para tanto, passaram

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a organizar e presidir concílios que elaboravam as decisões dogmáticas e canônicas das questões conflitivas em matéria de doutrina e de disciplina, respectivamente. Em 395, Teodósio I dividiu definitivamente o Império Romano em duas partes: o Império do Ocidente, teoricamente com a capital em Roma (mas efetivamente em Milão, e posteriormente em Ravena), coube ao seu filho Honório; o do Oriente, capital em Constantinopla, coube a Arcádio, seu outro filho. As concepções de Império e imperador revelavam então, como salienta P. D. King (1993, p.122), a compenetração dos pensamentos romano e cristão de uma maneira particularmente clara. A unicidade do Império era a idéia fundamental, mantida apesar de reinarem simultaneamente dois imperadores (imperatores), possuindo cada um uma autoridade suprema (imperium) dentro de seus domínios. Mas será que chegou a ocorrer uma total identificação do Império com a Igreja? Segundo Francisco José Silva Gomes (op. cit., p.39) ocorreu antes uma quaseidentificação. Havia uma tendência a totalizar o sistema, sacralizando-o, mas mantendo simultaneamente uma reserva crítica.17 17

Na realidade, ocorreu uma interpenetração de duas operações concomitantes de quase-identificação: a da Igreja com o mundo e a da Igreja com o Reino. Francisco Gomes (ibid, p. 40 e 41) analisa ambos os processos. No primeiro, a operação de quase-identificação da Igreja com o mundo, a mensagem cristã se pretendia universal, mas tendeu a assimilar o universalismo romano. A civilização romana (a romanitas) considerava-se a única e verdadeira civilização, entendia-se como o único ecúmeno civilizado. O Império Romano era de fato um sistema fechado, totalizado. O universalismo cristão tendeu, pois, a identificar-se com o sistema, com a romanitas, a restringir o seu horizonte ao Império Romano, à latinidade. Com a situação de Cristandade (Christianitas) a partir do século IV, atenuava-se o sentimento de estranheza com relação ao mundo que tinha ocorrido na época das perseguições. Deu-se uma certa instalação no saeculum, uma certa mundanização. O querigma (anúncio) cristão sofreu um relativo rebaixamento no seu universalismo. Uma visão particularista do messianismo judaico-cristão tendeu a privatizar o reino de Deus, a identificar este último com o sistema, dando-se assim um certo reducionismo soteriológico. A missão, por sua vez, tendia a atrofiar-se diante do Outro. Evangelizar tendia a ser a cristianização do Mesmo, da população do Império Romano, e não tanto do Outro. Vejamos agora a segunda operação de quase-identificação, a da Igreja com o Reino. A Igreja tendia a identificar o reino de deus com a instituição eclesiástica. A autocompreensão da Igreja tomava assim um colorido “monofisita”. A Igreja acabava hipostasiada em Deus, colocada na sua eternidade; como no monofisismo cristológico, a natureza humana de Jesus era subsumida pela natureza

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Por outro lado, as bases das concepções e idéias fundamentais acerca das formas de governo se estabeleceram no Baixo Império, durante os séculos IV e V. Tais concepções e idéias constituíram os pilares principais dos esquemas de governo atribuídos à sociedade cristã, ao Império e à Igreja romanas, e serviram de base aos argumentos que alimentaram os conflitos entre o “poder secular”, o Império, e o “poder temporal”, o Papado, ao longo de toda a Idade Média. Com Constantino I (324 a 337), as relações de poder entre a Igreja e o Estado não parecem conduzir, durante algum tempo, a uma ruptura do equilíbrio. Como “cristão”, o imperador devia submeter-se às prescrições eclesiásticas e conduzir a política de acordo com a moral cristã. Entretanto, os poderes do soberano acabaram por estender-se sobre toda a Igreja e esta não pode preservar sua jurisdição sobre matéria religiosa. O imperador tornou-se “o primeiro senhor da Igreja”. Com Teodósio I (379 a 395), a Igreja institucio nalizara-se e, em decorrência, configurava-se uma hierarquia eclesiástica a que se reconhecia competência administrativa e jurisdicional: estabeleceu-se estatuto privilegiado aos clérigos, que passaram a gozar de favores fiscais, e a dispor de patrimônio resultante de doações e liberalidades. Tal institucionalização, ainda que materialmente favorável à Igreja, era extremamente nociva ao seu ministério espiritual.

divina numa única hipóstase. A Igreja passava a atribuir-se o monopólio da Salvaçã o, da Graça, de Deus mesmo. Esta autocompreensão da Igreja tendia a fixar a catolicidade da Igreja (seu universalismo), identificando-a parcialmente com o Império Romano, com a romanitas. A Igreja “católica” era como que rebaixada ao nível de Igreja de imp ério: era o Império Cristão. A Igreja interpretava a totalidade da história e da humanidade a partir dela mesma. Lá onde via Reino, lia Igreja. A visão de fé era como que rebaixada à visão da instituição eclesiástica. Assim, afirmava-se que o não-eclesial não era bom, nem santo. Era, pois, uma autocompreensão da Igreja que operava uma leitura reducionista do aforismo teológico: extra Ecclesium nulla salus. Era uma autocompreensão da Igreja que justificava o establishment eclesiástico e que realizava uma quase-identificação triunfalista da Igreja com o reino de Deus.

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Ademais, a tutela imperial sobre a Igreja tornou-se sufocante. Segundo Daniel Valle Ribeiro (1995 (1), p.16), teoricamente o imperador não determinava as fórmulas de fé – era assunto dos bispos. Também não se atribuía o direito de depor um bispo – era competência da Igreja. Na prática, porém, o cristianismo converteu-se na religião do imperador, não somente no sentido de que era professada, mas também dirigida por ele, Fraca ainda, a Igreja pouco pode fazer diante da onipotência do imperador. A Igreja contava, certamente, com homens de valor, alguns até de expressão política. Mas faltavalhe organização centralizada, aparelhagem administrativa, quadros e meios para aspirar a libertação da tutela do Estado Romano. Contudo, inicia-se uma reação por parte dos bispos de Roma que ficou conhecida na história da Igreja como o “Desenvolvimento do Primado”. Seria oportuno salientar que tal primado não é ainda matéria de definições dogmáticas ou de exposições doutrinais. Seguramente não se dava ao bispo de Roma reconhecimento amplo de jurisdição em matéria doutrinária e disciplinar. Portanto, seria melhor falar somente de um primado honorífico. Este se afirmou, no entanto, no desenrolar dos acontecimentos e foi a forma pela qual os pontífices expressaram sua missão. Percorreu, obviamente, diversas etapas de que ressaltaremos nos nove parágrafos que se seguem, baseando-se nas observações de Daniel Valle Ribeiro (ibid, p. 47 a 54), apenas os momentos mais significativos. A idéia de que a Igreja Romana é a Ecclesia Principalis, isto é, a mais antiga, a primeira, apareceu já no fim do século II. Em texto redigido por volta de 180, Santo Irineu, bispo de Lyon, sustentava que todas as Igrejas deviam por-se de acordo com a Igreja de Roma, em conseqüência da principalitas desta. A ela deviam ligar-se todos os fiéis, em virtude do seu propter potentiorem principalitem (principado mais poderoso).

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Já se reconhecia certa preeminência do bispo de Roma, e a idéia da sucessão apostólica seguia caminho firme. São Cipriano, em meados do século III, reconhecia que em Roma estava a Cathedra Petri, a Igreja princeps. Sustentava mesmo que a investidura de Pedro por Cristo constituía o pilar da unidade da Igreja. Mas as primeiras manifestações mais vigorosas do poder papal apareceram somente sob a pena dos papas dos séculos III e IV. Calisto I (217-222), a propósito da doutrina sobre a penitência, tentou impor sua autoridade como sucessor de São Pedro. Estêvão I (254-257) reivindicou a primazia da Cathedra Petri. Foi, no entanto, com Dâmaso I (366-384) que se deu o grande impulso. Ele procurou firmar a liberdade da Igreja de Roma mesmo diante do Oriente. Cunhada por Dâmaso, aplicava-se pela primeira vez a Roma a expressão apostolica sedes. O título excluía, naturalmente, as outras Igrejas apostólicas, já que Roma reivindicava suprema autoridade sobre as demais. Tal afirmação era uma resposta às pretensões da Igreja oriental expressas no cânone 3 do Concílio de Constantinopla (381), ao qual compareceram apenas os bispos orientais, que conferia ao bispo desta cidade lugar imediatamente inferior ao bispo de Roma porque Constantinopla era a “nova Roma”. Em 382, em um sínodo romano, invocando o versículo de Mateus (16,18), o papa afirmava que a primazia da Igreja de Roma não foi determinada por decreto de qualquer concílio; ela decorria dos poderes conferidos por Cristo a Pedro e Paulo, enqua nto a Constantinopla faltava autoridade para reclamar origem apostólica. As primeiras afirmações do primado logo encontraram severa oposição. No Concílio da Aquiléia (381) circulou um documento que contestava a pretensão de o papa situar-se

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em posição especial, acima dos demais bispos, e com direito de resolver questões dogmáticas fora de um Concílio Geral. O primado, no entanto, afirmava-se também em matéria legislativa. Sirício (384-389) deu-lhe formas jurídicas romanas, tomadas de empréstimo às constituições romanas. A jurisdição superior do papa aplicava -se no Ocidente através de decretais dirigidas às diversas regiões. Os sucessores de Dâmaso insistiram na idéia de que o papa gozava de prerrogativa especial, pois Roma possui a Cathedra Petri. Inocêncio I (402-417) afirmava ser Roma caput institutionem , ou seja, defendeu que todas as causae maiores (questões relevantes de fé) devem ser submetidas à jurisdição pontifícia, uma vez que todos os irmãos e co-bispos devem submeter-se ao único Pedro. Bonifácio I (418-422) foi o primeiro a aplicar o termo principatus à Sé Romana. Tal principatus teria sido concedido por Cristo a São Pedro, em virtude do que Roma é para todas as Igrejas do mundo, quer dizer, o mesmo que a cabeça é para os membros. Temos aí, pois, a idéia da Igreja Universal fundada na comissão petrina – Tu és Petrus. A Igreja adotava a estrutura do Império: quadros territoriais, princípios administrativos e normas de processo, procedimentos judiciais. No cume da hierarquia, o bispo de Roma publicava constituições análogas às do imperador, inspirava-se na Chancelaria e no Senado Romano, perseguia sua ascensão com o apoio dos imperadores. O período compreendido entre o pontificado de Damaso (morto em 384) e o de Leão I (em meados do século V) pode ser qualificado como a época de gestação das idéias que constituíram a função do papa enquanto instituição de governo. Tais idéias culminaram na

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posição monárquica do papa. Esta vista, logicamente, como uma pretensão, não aceita, absolutamente, pelo conjunto das Igrejas. Para a Igreja de Roma, as dificuldades doutrinais se referiam tanto à pessoa de São Pedro como à sucessão em suas funções. Por mais que pudesse ser considerado tradicional o fato de que Pedro fora martirizado e morrera em Roma, nem os Atos, nem as Epístolas de São Paulo, nem qualquer outro texto considerado autêntico indicava qualquer coisa acerca dos sucessores de São Pedro. Em todo caso, o fato de sua morte ter se dado numa localidade determinada não guardava necessariamente relação com as teses doutrinárias referentes a sua sucessão. Um escrito em grego e datado de fins do século II proporcionou, segundo parece, as provas históricas necessárias. Este texto foi traduzido por volta de fins do século IV ou nos primeiros anos do século V por Rufino de Aquiléia, conhecido por sua tradução da famosa Historia de Eusébio para o latim. Hoje em dia sabe-se tratar de um escrito espúrio, uma falsificação da época do Baixo Império. Mas graças a este “documento”, o tema histórico da sucessão de São Pedro iniciou uma carreira triunfal. Neste texto, uma longuíssima carta intitulada Epistola Clementis, tida como escrita pelo papa Clemente I a Tiago (“o irmão do Senhor”), 18 o papa informava a seu destinatário as últimas disposições a ele ditadas por São Pedro quando este sentiu que sua morte se 18

Clemente Romano teria sido, segundo o testemunho de Irineu de Lion, o terceiro sucessor de Pedro no episcopado de Roma, e conhecera pessoalmente Pedro. Estudos atuais, no entanto, não vêem razões para se dar crédito a estas afirmações. Possível autor da Carta aos Hebreus e provável autor da Carta de Clemente aos Coríntios, foi-lhe, no entanto, atribuído a autoria de diversos outros escritos. Numerosos fragmentos de duas cartas sobre a virgindade, chegados até nós numa versão siríaca de 1470, em nome de Clemente, são, na verdade, escritos do século III, recolhidas por um compilador do século VII. Atribui-se ainda a Clemente um grupo de 20 homilias e 10 livros de Recognitiones (Reconhecimentos ), sob o nome, hoje, de Pseudoclementinas. Também o texto em questão, chamada Epistola Clementis pela Igreja de Roma do Baixo

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aproximava. A carta afirmava que São Pedro havia transmitido ao papa Clemente, frente à comunidade romana, seu próprio poder para atar e desatar, de tal modo que, daí por diante, o que fora atado por Clemente e seus sucessores na terra seria também atado no céu. Em outras palavras, como salienta Walter Ullmann (1983, p.25), São Pedro nomeava, de maneira ostensiva e concreta, por meio de uma disposição testamentária, um sucessor para seu cargo, e no mesmo documento se referia também especificamente aos sucessores de Clemente. Foi, no entanto, o papa Leão I (440-461) que, partindo do nível histórico e doutrinal da geração precedente e graças ao seu domínio da lei romana, lançou as teses que culminaram na explicação da função monárquica do papa. O papa era juridicamente o sucessor dos poderes e das funções confiadas por Jesus Cristo a São Pedro, ou seja, tãosomente do cargo que Jesus Cristo havia conferido a São Pedro. Baseado nas leis romanas, considerou que os poderes (de atar e desatar) eram inteiramente objetivos e independentes da pessoa a quem originariamente foram concedidos, sendo assim suscetíveis de serem transmitidos. A transmissão se efetuava por herança, posto que, segundo a lei romana, o herdeiro, por direito, ocupava o status legal, ou seja, o mesmo crédito e a mesma responsabilidade (legais) do morto. Entretanto, a qualificação pessoal do defunto não podia, por razões evidentes, transmitir-se. Em virtude disto, Leão I, na caracterização da figura papal, empregou a breve fórmula de “indignus haeres beati Petri” (“indigno herdeiro de São Pedro”). Em suma, os poderes de São Pedro

Império, era certamente uma falsificação, tendo sido escrito em grego, provavelmente pouco antes de sua tradução latina, ou seja, em fins de século IV ou princípios do século V.

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foram transmitidos por herança e portanto continuavam na pessoa do papa, ainda que seus méritos não pudessem ser transmitidos. Duas foram as conseqüências das disposições leoninas. Primeiro, os poderes do papa eram exatamente os mesmos que os de São Pedro. Não existia, segundo a lei, diferença alguma entre ambos: o papa era o mesmo São Pedro que seguia exercendo suas funções através dele, por indigno que fosse. O valor fundamental desta tese, segundo Walter Ullmann (ibid. p.28), reside na clara distinção que se estabeleceu entre o cargo e a pessoa que o ocupa. O essencial era precisamente o cargo que ocupava, que exercia legitimamente e pelo qual seus decretos, leis, ordens, em outras palavras, seus atos de governo, constituíam uma conseqüência de suas funções oficiais como papa. Em outras palavras, por exemplo um decreto, ainda que redigido por um papa sujeito à críticas, se não há qualquer contestação quanto a legitimidade da eleição papal, ou seja, trata-se de um papa legítimo, significa dizer que o decreto também é legítimo, uma vez que o mesmo procede do cargo e não da pessoa. A segunda conseqüência crucial está ligada à monarquia de São Pedro: nenhum papa, enquanto monarca, sucedia ao seu imediato antecessor, mas sucedia imediatamente e sem intermediários a São Pedro. Este aspecto da posição do papa se denomina tecnicamente potestas iurisdictionis, porque corresponde ao poder que o papa tem de promulgar as leis: sancionar o que deve e o que não se deve fazer. Algo distinto sucedia com outro aspecto da posição papal, a potestas ordinis, suas funções enquanto bispo de Roma, que foram transmitidas em uma seqüência temporal desde os Apóstolos até ao titular no momento na cadeira pontifícia. Este poder não teria assim nada que ver com o governo e se referia

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exclusivamente às matérias sacramentais, como a ordenação, a confirmação, a consagração de Igrejas, etc. Neste segundo aspecto, o papa não se diferenciava de qualquer outro bispo. Posto que somente o papa, enquanto herdeiro e continuador dos poderes de São Pedro, era o único possuidor do que Leão I denominou a plenitude do poder (plenitudo potestatis) e que tal poder relacionava-se apenas ao gobernatio (o governo) e, por isto, com a lei, o papa não apenas ocupava o principatus da Igreja (“o primeiro fiel”) como não necessitava possuir nenhuma ordem clerical específica. Qualquer laico, desde que fosse batizado, podia ascender ao Papado. O essencial era que a eleição papal fosse válida: uma vez eleito corretamente era ele o herdeiro de São Pedro. Mas, datando de meados do século V, devemos ainda ressaltar a obra do PseudoDionísio. É preciso salientar que, no entanto, tal obra só foi conhecida no Ocidente graças a transmissão realizada por João Escoto Erígena no século IX. O Pseudo-Dionísio se referia a si mesmo como o Dionísio, o Areopagita, citado nos Atos dos Apóstolos (XVII, 33-34), seguidor de São Paulo. Tratava-se mais exatamente de um sírio que conseguiu esconder sua verdadeira identidade e persuadir a todos na Idade Média que era efetivamente o discípulo de São Paulo. O Pseudo-Dionísio, como estuda Walter Ullmann (id. p.32), partindo de premissas helenísticas, paulinas e neoplatônicas, sustentava que existia um único ser supremo que possuía a suma e o total de todo o poder, e que este ser era Deus, a quem denominou, “princípio de unidade”. Todo poder derivava deste ser supremo, que assim garantia a ordem do mundo. Para ele, ordem era a diferença em graus e categorias entre os diversos cargos, organizado de maneira que cada um deles estivesse sob a direta dependência do cargo imediatamente superior. As diferenças de categoria, função e ordem eram expressas por

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meio do termo de “hierarquia” (hierarchia). Deus havia erigido nos céus diversas ordens que tinham correspondência nas da terra. A hierarquia eclesiástica era, segundo este autor, uma simples continuação da hierarquia celestial. Segundo Ullmann (id., p. 32 e 33) o Pseudo-Dionísio elaborou um detalhado esquema da estrutura hierárquica do poder eclesiástico. Todo poder desce do Ser Supremo até aos diversos graus, de tal modo que existe uma espécie de pirâmide cujo vértice representa o sumo poder. Na correta distribuição do poder até aos estratos inferiores por parte dos próprios hierarcas via o autor uma garantia de harmonia e ordem. A concepção de São Paulo de que não existe nenhum poder além do de Deus foi confirmada pela obra de Pseudo-Dionísio e ganhou uma prática. Insistiu-se em especial no princípio de obediência daqueles que se acham em um nível inferior com respeito aos seus superiores. Esta idéia de subordinação, que tem na Bíblia claros antecedentes, adquiriu com a obra de PseudoDionísio um caráter acentuadamente vertical. A importância desta obra reside no fato de que ela dotou de uma base teológica a teoria já amplamente aceita do poder descendente, tornando explícito o que até então havia permanecido implícito. Foram, com efeito, a chamada Epistola Clementis, a afirmação do primado por Leão I (como momento culminante de uma longa tradição que vinha desde Santo Irineu e desde Calisto I) e os escritos do Pseudo-Dionísio, o conjunto de fontes provenientes do Baixo Império que formaram as bases da perspectiva, monárquica, de primado de fato que a Igreja de Roma, durante a Idade Média após a chamada Reforma Gregoriana – século XI, pretendeu exercer sobre toda a Igreja no Ocidente, e também as bases da perspectiva de tutela dos papas sobre os poderes políticos que, detidamente, est udaremos mais adiante.

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Vamos agora analisar a doutrina governamental do Baixo Império Romano. O desenvolvimento da doutrina imperial no Baixo Império, já cristalizada, culminou com a concepção do imperador como monarca no sentido literal da palavra, o que veio a significar que ele era de uma só vez rei e sacerdote. Suas funções sacerdotais se baseavam por completo nas práticas da antigüidade pagã e não foram relegadas, ao contrário, foram estimuladas sob a religião monoteísta cristã. O monoteísmo cristão contribuiu poderosamente na elaboração e difusão da idéia de que, da mesma maneira que havia só um Deus no céu, havia um único monarca na terra. Cristo era visto como rex, o que também contribuiu para acentuar a posição monárquica do próprio imperador. O principal forjador desta ideologia imperial que relacionava o monoteísmo com o conceito imperial romano foi, no século IV, Eusébio de Cesaréia em sua Historia Ecclesiastica (313). Acentuava que antes de Augusto predominava o politeísmo e, em conseqüência, havia uma multiplicidade de governantes; agora, ou seja, a partir do surgimento de Cristo, que coincidiu com o reinado de Augusto, existia apenas um Deus, e portanto devia haver também um imperador, o único que podia garantir a paz, a piedade e a verdadeira religião. O lema característico da ideologia imperial foi: “um Deus, um Império, uma Igreja”. A combinação dos poderes real e sacerdotal era a principal característica da singularidade da posição do imperador. Expressava, como comentado, sua função como vigário de Cristo sobre a terra. Segundo Walter Ullmann (id., p.34), se considerava, efetivamente, que a plenitude do poder de Jesus Cristo no céu descia à terra encarnada na pessoa do seu vigário. As leis, os decretos, as ordens do imperador eram leis, decretos e ordens da Divindade publicados através da pessoa do imperador. Foi o que, conforme

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vimos, Francisco Gomes (op. cit., p.39) chamou, na caracterização do “imperador cristão”, a imagem visível do Deus invisível, do senhorio de Cristo (Kyrios). No início do século IV, Eusébio de Cesaréia dizia que o imperador é um “bispo de fora”: ele possui assim uma espécie de poder episcopal sobre o conjunto do seu Império. Nítida concepção sagrada do poder político, pelo lado do Império; franca justificação “teológica” da monarquia imperial, pelo lado dos cristãos. Por fim, entre os séculos IV e V, São João Crisóstomo (bispo de Constantinopla entre 398 e 404) chegou mesmo a recomendar aos súditos que deviam escutar as Sagradas Escrituras com o mesmo temor e a mesma reverência com que ouviam “em sagrado silêncio” a publicação das leis imperiais. As funções do imperador enquanto vicarius Christi implicavam, segundo a análise de Walter Ullmann (op. cit., p.35) que sua pessoa e seu cargo estivessem rodeados por uma aura de sacralidade que caracterizava seu status singular frente aos outros mortais. Devido à sua função de sacerdote oficializava cerimônias litúrgicas. Neste contexto, era de particular importância a função do imperador no terreno da doutrina religiosa como promulgador de decisões sobre o dogma. Ademais, ele era considerado a “lei viva” (lex animata), o que significava que sua vontade, e nada mais que ela, tinha força de lei. Enquanto rei, a política tributária, a organização do Império, o comando militar, a decisão da paz e da guerra, enfim todo o poder público era de sua exclusiva competência. E, ainda aqui, todas as suas ações levavam o selo de ações divinas. Sentado em seu trono, símbolo manifesto da elevada posição da majestade imperial, o imperador recebia as aclamações da plebe romana. Dirigia-se então ao céu para transmitir à própria Divindade as prédicas e os desejos do “povo”, gesto simbólico característico que exemplificava o papel de mediador entre Jesus Cristo e os cristãos atribuído ao imperador.

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Tais manifestações simbólicas tinham por objetivo deixar bem entendido que o imperador era o vigário do Pantocrator (o Senhor Onipotente), ao mesmo tempo que o Autocrator – o Senhor autônomo, independente frente a todo agente mortal. O Senado que deliberava junto com o imperador se denominava “sagrado consistório” (tal designação se aplicou mais tarde ao Colégio Cardinalício, o senado do papa) do imperador ou “Tribunal do Santo Senado”. De acordo com Walter Ullmann (ibid., p. 36), este sistema de governo culminava no que, em efeitos práticos, constituía o exercício do poder e da autoridade divinas por meio da pessoa do imperador. O imperador era o Autocrator e Cosmocrator, governava o “mundo”, que se identificava com o Império Romano, como se fosse ele o próprio Deus. Estava totalmente acima da lei, uma vez que não havia corpo, autoridade ou tribunal que podia julgá-lo. Tatava-se ao mesmo tempo de um poder pessoal de caráter supremo. Entretanto, o governo monárquico do imperador também tinha seus limites. Ele, como observa Ullmann (id., p.36), não se considerava como portador de uma carte blanche para o exercício de um governo “tirânico”. Pelo contrário, dado que apenas o imperador conhecia os desígnios divinos, ele era a primeira custódia das leis e podia mudá-las de acordo com sua vontade se a justiça divina o exigia. As leis imperiais se denominavam mesmo “leis sagradas” uma vez que nelas e através do imperador se manifestava a própria vontade divina. Walter Ullmann (id., p.37) salienta igualmente que o aspecto “sacerdotal” da dignidade imperial não se referia à qualificação sacramental, carismática e pneumática do imperador, mas simplesmente a suas funções de governante, de legislador; em outras palavras, aos aspectos exteriores do seu governo. Nenhum imperador pretendeu ter poderes

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para ordenar, consagrar ou para levar a termo qualquer dos atos especificamente sacramentais que pressupõe a posse de um carisma. Mas também a penetração da idéias helenísticas na Roma Imperial não fez “tábua rasa” das antigas concepções políticas e ideológicas. É preciso se levar em conta a longa tradição republicana. Com efeito, é mais exato se falar que as idéias helenísticas se misturaram à tradição republicana formando algo inteiramente novo. Pois bem, segundo esta tradição o poder podia somente emanar dos cidadãos romanos. Igualmente, apenas a estes cabia fazer as leges. Como que tais concepções podem ser conciliáveis à perspectiva de um imperador vicarius Christi, Autocrator e Cosmocrator, lex animata in terris? Foi particularmente no campo do Direito que a fusão entre a tradição republicana e as idéias helenísticas forjaram a concepção de imperador que atravessou todo o Império Romano. É preciso, portanto, desenvolvermos, antes de tudo, algumas linhas sobre o direito romano na época imperial. Nos nove parágrafos seguintes, P. G. Stein (1993, p. 38 a 41) traça-nos um quadro resumido da sua evolução do século I ao VI. Com efeito, quando a República cedeu lugar ao Império, as leis, no sentido de decisões das assembléia s populares, logo desapareceram. Em substituição, os senatusconsulta, as decisões do Senado (um corpo composto em grande parte de antigos magistrados), que não tinham força coercitiva legal na época da República, adquiriram a qualidade de lex. Elas se tornaram uma fonte do Direito ao longo dos séculos I e II. Na época do imperador Adriano (117-138), o edito pretoriano foi codificado sob uma forma permanente pelo jurista Juliano. Gradualmente, ao curso do Principado, o imperador exerceu os poderes legislativos, que ele exprimia nas constituições imperiais. Ele podia legislar e ele legislava efetivamente por intermédio dos editos, mas sua influência sobre o

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direito se exercia geralmente sob a forma de glosas, de respostas escritas preparadas pela chancelaria imperial a partir de questões ou de pedidos que lhe eram enviados por funcionários, como governadores de províncias, ou por cidadãos a título privado. No tempo de Adriano, os mais eminentes juristas eram membros do conselho do imperador. A maior parte das glosas eram redigidas por eles e, assim, exprimiam o direito dos juristas sob a forma de constituições imperiais. Normalmente, estas glosas serviam a tornar mais claro, diminuindo ou eliminando o risco de erros de julgamento, o direito já existente. No domínio do direito privado, os imperadores não mostraram nenhuma inclinação a efetuar mudanças importantes. No começo do século III, as idéias jurídicas foram resumidas na obra de três grandes juristas: Palpiniano, prefeito pretoriano na época de Sétimo Seve ro (193-211), que se especializou na análise de causas individuais, Paulo e Ulpiano, dois acessores de Palpiniano. Estes escreveram comentários sobre o edito pretoriano e sobre o direito civil (ad Sabinum). A obra de Ulpiano, em particular, tratava de todos os aspectos do direito recuperando grande parte das idéias jurídicas anteriores. Depois de sua morte, em 223, os escritos jurídicos de qualidade tornaram-se bastante raros, se bem que as constituições do imperador Diocleciano (285 a 305) demonstrem que sua chancelaria possuía ainda juristas sábios e interessados a salvaguardar o direito clássico. Os séculos IV e V conheceram um declínio dramático do nível da ciência jurídica. Em meio as agitações sociais que colocavam em risco a própria estabilidade do go verno, não se pode preservar um sistema jurídico evoluído e, também, mediante a afirmação do cristianismo enquanto religião do Estado Romano, os melhores espíritos passavam comumente do direito à teologia.

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O Edito de Caracala ou Constitutio Antoniana (212) tinha virtualmente tornado cidadãos todos os habitantes do Império, mas as regras do direito romano não eram mais aplicadas uniformemente através do Império. Na prática, elas eram modificadas para se adaptar às constituições locais das diversas províncias. Reconhecia-se então abertamente que o imperador era um monarca absoluto e o abandono da teoria, largamente difundida no Principado, que ele dividia o poder com o Senado foi simbolizada pela mudança de um dos títulos imperiais: princeps para dominus. As constituições imperiais, deste momento em diante reconhecidas formalmente como leges, continuaram a ser freqüentemente publicadas e tomando, mais freqüentemente que antes, a forma de leges generales, de regras normativas de cunho geral. A lei dos cidadãos publicada por Teodósio II (426) identificava cinco autoridades principais entre os juízes: Palpiniano, Paulo, Ulpiano, Modestinus (um aluno de Ulpiano, que se tornou o primeiro dos juristas clássicos) e Gaios, um mestre do século II, pouco reputado em seu tempo, mas que conheceu uma celebridade póstuma por causa da clareza de suas exposições. Em 438, foi publicado o Código de Teodósio, uma compilação oficial das constituições imperiais de caráter geral promulgadas depois da época de Constantino I. Após a queda do Império Romano no Ocidente, Justiniano tornou-se, em 527, imperador no Oriente. Uma dos mais significativos empreendimentos de seu programa, destinado a restabelecer a antiga glória do Império Romano, foi sua codificação do direito romano. A parte mais significativa da codificação de Justiniano é o Digesto (ou Pandecta), uma antologia dos extratos de escritos de trinta e nove juristas da época clássica; um terço destes extratos era, no entanto, atribuído às obras de Ulpiano, e um sexto, às obras de Paulo. Foi o Código de Justiniano que serviu de base a concepção imperial medieval.

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Pelo visto acima, a função do imperador enquanto lex animata in terris, apresentava na prática determinadas limitações. Em termos gerais, tal função, expressa por intermédio dos editos, se exercia geralmente sob a forma de glosas. Ou seja, como supradito, eram respostas escritas formuladas a partir de questões ou de pedidos enviados por funcionários, como governadores de províncias, ou por cidadãos a título privado. Tais glosas, no entanto, só raramente eram desenvolvidas pelos próprios imperadores. A maior parte delas eram redigidos pelos juristas da chancelaria imperial. Desta forma, na realidade, tais glosas exprimiam, sob a forma de constituições imperiais, o direito destes juristas. Ademais, elas normalmente serviam tão-somente a esclarecer o direito já existente. Com relação ao período fulcral de nossa análise, o Baixo Império, as constituições imperiais, só então reconhecidas formalmente como leges, continuaram a ser freqüentemente publicadas. Mas tomavam então, geralmente, a forma de leges generales, de regras normativas de cunho geral. De fato, como comentado acima, ao menos desde o século III, as regras do direito romano não eram mais aplicadas uniformemente através do Império. Eram, na prática, modificadas para se adaptar as constituições locais das diversas províncias. Ou seja, as constituições imperiais tornaram- se apenas regras referenciais para as constituições provinciais. Com relação, no entanto, a questão da proveniência do poder, isto é, se a supremacia pertencia aos cidadãos romanos ou ao imperador e, em conseqüência, a quem cabia o direito de fazer as normas que regiam o Império Romano, Stein (ibid., p. 45) salienta que o texto de Juliano, em particular o Cod.,8,52,2, afirma que o costume tem autoridade somente quando ele não é contrário à lex ou à razão, mas, de uma maneira geral, a codificação

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realizada por Juliano do edito pretoriano confirma que o costume não escrito deve ser seguido como a lei, porque ele foi aprovado pelo povo. Contrastando com a idéia de supremacia popular expressa no texto de Juliano, alguns textos parecem justificar o poder legislativo ilimitado do imperador. Isto foi sendo aceito de uma forma progressiva. Os primeiros imperadores se consideravam ligados as leis, ao menos que o Senado os dispensassem da aplicação de uma lei determinada. Posteriormente, no entanto, os imperadores, de certa forma, procuraram se desligar das leis. Foi o que Ulpiano caracterizou no texto célebre que descreve o imperador como estando “legibus solutus” (“desligado das leis”) (Digesto, 1,3,31). Em um outro texto freqüentemente citado (Digesto, 1,4,1), Ulpiano afirma que o que o imperador decidiu (quod principi placuit) tem força de lex. Mas, segundo Stein (id., p. 45), Ulpiano desejava provavelmente dizer apenas que onde a lei era duvidosa, era a vontade do imperador que devia decifrá- la. O próprio Ulpiano explica sua declaração citando a lex de imperio da Assembléia Popular, votada ao princípio do reinado de cada imperador, que formalmente dava-lhe o poder de fazer tudo o que fosse necessário para o bem do Estado. Na época de Otávio, esta medida se referia ao poder executivo, mas ela foi mais tarde utilizada pelos juristas para justificar também um poder legislativo do imperador. No entanto, sublinha Stein (id., p.45), ficava sempre subentendido que, de uma certa maneira, quando o imperador legislava, ele agia a título de delegado do povo se apoiando em textos como o Cod., 1,14,4 (digna vox), uma constituição promulgada por Teodósio II em 429, que afirmava que o imperador devia se declarar ele próprio ligado às leis, pois sua autoridade repousava sobre a autoridade das leis.

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Com efeito, os textos do período clássico e mesmo textos posteriores parecem sugerir, ainda segundo Stein (id., p.45), que o poder legislativo do imperador era limitado pela necessidade de respeitar o direito tradicional e dele se afastar somente em caso de necessidade patente, e pela necessidade de aprovação do povo para toda mudança. Mas com relação a questão inicial, a saber: de como associar a perspectiva de um imperador vicarius Christi e identificado como a lei viva sobre a terra, com a do poder e capacidade legislativa emanando dos cidadãos de Roma, devemos ainda tecer algumas cons iderações. O princípio, helenístico, de um poder imperial teocrático (dominus et deus) que, com o cristianismo, foi transformado numa perspectiva hierocrática, a do representante terreno de Cristo (vicarius Christi), constituía de fato o exercício do poder e da autoridade divinas por meio da pessoa do imperador. Todo o poder público era realmente de sua exclusiva competência e, nisto, todas as suas ações levavam com efeito o selo de ações divinas. Significa inclusive que as leis do imperador eram leis divinas promulgadas por intermédio dos imperadores. Mas como havia uma associação destas perspectivas, de cunho helenístico (ainda que redefinidas pelo cristianismo), com a tradição republicana, que dizia que o poder emana do “povo” de Roma, o imperador, ainda que sagrado, era, efetivamente, um delegado dos cidadãos romanos. A visão compartilhada por quase todos era que a origem do poder imperial é divina porque é Deus quem inspira os cidadãos romanos e, assim, este é o instrumento de Deus quando escolhe, através da lex de imperio da Assembléia Popular, o imperador.

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Também as leis imperiais, com todas as suas já vistas limitações, tinham de fato um caráter sagrado. Mas, longe de expressar a vontade do imperador a título puramente pessoal, representavam sim, na forma de um consenso, a vontade popular promulgada pelo imperador. Com efeito, a vontade consensual dos cidadãos romanos também provinha de uma inspiração divina. Havia assim coincidência entre esta e a própria vontade divina. Destarte, podemos dizer, em resumo, que as constituições imperiais eram “leis sagradas” uma vez que nelas se expressava a vontade inspirada dos cidadãos romanos. Em todo o caso, as posições do papa e do imperador não eram conciliantes em conseqüência dos seus fatores e enunciados, e também da visão distinta que os dois tinham acerca da natureza de suas funções. Cada um a considerava sob um ponto de vista distinto. Para o imperador, pura e simplesmente, o Império Romano havia se convertido ao cristianismo. Uma vez que era o Império Romano o foco de suas atenções, tinha ele dever, de acordo com sua função monárquica, de governá-lo em todos os aspectos, fossem em questões puramente mundanas ou em assuntos espirituais, ou em seus aspectos organizativos. Deus lhe havia confiado o governo do Império Romano. Dado que a religião cristã desempenhava um papel importante na manutenção da coesão do Império, o imperador considerava que uma de suas principais funções era, através da convocação de Concílios Gerais e de sua direção sobre os mesmos, intervir nas disputas religiosas dogmáticas e doutrinárias e, diretamente, na organização dos estamentos eclesiásticos, dotando-os de funcionários adequados na pessoa de patriarcas, arcebispos, entre outras dignidades.

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Para o bispo de Roma, a Igreja, sua união e organização, era o objetivo de sua função monárquica. Uma vez que a Igreja era vista como a reunião de todos os fiéis, incluindo os clérigos e os laicos, ela se identificava com o Império Romano. Considerando que o que importava era a Igreja e visto que esta era, de certa forma, o próprio Império, logo se instaurou uma disputa de poderes onde os papas começaram a reagir contra a intromissão dos imperadores nos assuntos espirituais. Já no final do século IV (390), Ambrósio, bispo de Milão, não hesitou a excomungar o imperador Teodósio I por ocasião do massacre de Tessalônica: sendo o imperador cristão era um membro da Igreja e, como tal, devia se submeter a ela, quer dizer, aos seus desígnios e princípios. Na segunda metade do século V, quando se acharam na posse de uma doutrina solidamente baseada na lei romana, os papas começaram mesmo a se perguntar se o imperador estava capacitado para governar como monarca pelo simples fato de ser imperador. A idéia defendida tinha por suposição que a Cristandade (Christianitas) não apenas abarcava a totalidade dos homens e determinava sua vida em todos os aspectos, mas que também exigia a totalidade do homem, não apenas uma parte dele. Para ambos os governos contava o conjunto, a totalidade do homem, não só sua conduta religiosa, política ou moral. Em conseqüência, dado que os próprios imperadores punham tanta ênfase no caráter cristão do Império, os papas se empenharam em defender algumas questões cruciais. Quem se encontrava qualificado para definir a doutrina, o propósito e a finalidade desta “congregação de todos os cristãos” e de elaborar a partir da doutrina leis obrigatórias, o imperador ou o bispo de Roma?

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Os papas sustentavam que a doutrina devia ser definida por aqueles que se achassem qualificados para pronunciar-se a este respeito. Os princípios puramente abstratos da fé deviam traduzir-se em uma linguagem inteligível, e quem senão o papa, enquanto princeps da Igreja e sucessor de São Pedro, estava qualificado para fazê-lo? Posto que o Império era cristão, era imprescindível que a religião cristã estivesse bem precisada e definida em seu conteúdo, ao ser então a Cristandade (Christianitas) uma força viva de primeira importância para a totalidade da vida social e impregnar todos e cada um de seus aspectos. Contava o imperador com a necessária qualificação para pronunciar-se em matéria doutrinal? Dispunha de conhecimentos suficientes para designar aqueles que deviam ocupar cargos dentro dos organismos eclesiásticos? Ademais, dado que o imperador era um cristão, ele se achava sujeito à jurisdição papal, a lei dos papas. O imperador se encontrava no interior da Igreja e não acima dela. Foi, com efeito, no século V que, diligentemente, os meios ligados a Sé Apostólica se empenharam em utilizar a metáfora pai/filho para aludir a relação entre o governo cristão e o papa. Tal definição foi fundamental. Leão I havia dedicado sua atenção aos objetivos do governo secular ao dizer que o dever primordial de um governante cristão era o amparo da congregação cristã. Este argumento teológico não podia senão contribuir à ressurreição da argumentação de São Paulo de que o príncipe não detém o gládio temporal sem razão. A razão pela qual o príncipe detém o gládio temporal é o dever de contribuir na realização dos desígnios de Deus sobre a terra: havia recebido a espada para administrar os bens do mundo por meio da aplicação dos princípios do cristianismo. Dado que não havia nenhum poder além do de Deus, Este havia criado o governo secular (o qual tinha uma função puramente

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auxiliar dentro da totalidade do esquema divino) para erradicar o mal por meio da espada, e esta era a única razão pela qual Deus havia conferido ao dito governo um poder real. Mas a reação contra os imperadores também foi encabeçada pela doutrina dos Padres da Igreja. Como salienta Daniel Valle Ribeiro (op. cit., p. 12), na tradição patrística, os súditos devem obedecer a lei civil, submeter-se à justiça secular. Entretanto, a obediência ao Estado conhece limites. Sujeita-se a uma hierarquia de ordens e de leis. A Lei de Deus sobrepõe-se à lei humana. Nada se deve fazer contra a primeira, sob o pretexto da obediência à segunda. Em conseqüência, a resistência à lei má ou injusta é legítima. A segunda metade do século IV assinalou, prossegue Ribeiro (ibid., p. 12 e 13), o começo da época mais próspera da literatura patrística. Foi a época de Atanásio de Alexandria, João Crisóstomo, Agostinho de Hipona, Ambrósio de Milão, entre outros. Segundo Ribeiro, a efervescência religiosa favorecia então a expansão da vida espiritual e permitia que a Igreja se organizasse. A liturgia ganhava magnificência. As indagações de natureza especulativa propiciavam o surgimento de controvérsias sobre questões fundamentais do dogma. Foi também a época em que as relações de poder entre a Igreja e o Estado se revestiram de uma significação especial. Santo Ambrósio (333-397), bispo de Milão e conselheiro dos imperadores Graciano e Teodósio, procurou estabelecer as atribuições respectivas dos poderes religioso e imperial. Animado por forte sentimento de independência, e mesmo de preeminência, da Igreja, asseverava que o imperador era um cristão revestido de púrpura, ou seja, estava sujeito à lei moral da Igreja como todos os fiéis. São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla (398-404), professava, igualmente, a superioridade do poder espiritual. Para ele, a Lei Divina impõe-se aos que detém o poder.

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Em sua Homilia 4, procurou inicialmente distinguir a função do rei da do sacerdote para, depois, afirmar a superioridade do sacerdócio sobre a realeza, o que se configura pela cerimônia de unção. Vejamos nas suas palavras:

“Ao rei são confiados os corpos; ao sacerdote, as almas. O rei perdoa as dívidas, o sacerdote perdoa os pecados. Aquele, pelo constrangimento; este, pela exortação. O rei dispõe de armas visíveis; o sacerdote, de armas espirituais. Aquele faz guerra aos bárbaros, este luta contra os demônios (...) Eis porque o rei curva a testa sob as mãos do sacerdote, e em todo o Antigo Testamento os sacerdotes ungiam os reis (...) Eu digo is so não porque queira difamar os reis, mas para os que exaltam a presunção e a cólera, a fim de que saibas que o sacerdócio é maior do que a realeza” (SÃO JOÃO CRISÓSTOMO apud RIBEIRO, id., p.13).

Mas o período compreendido entre a morte de Teodósio (395) e a ascensão de Zenão (474) foi especialmente favorável, sobretudo no Ocidente, às relações entre a Igreja e o Estado. Como comenta Daniel Valle Ribeiro (id., p.19), superam-se então as dificuldades, e mesmo uma ou outra crise mais séria não perturbou a aproximação. A doutrina eclesiástica já não acentuava com o mesmo rigor a distinção entre os domínios. Insistia-se agora na colaboração, apressava-se o entendimento. A fraqueza da autoridade dos imperadores e mesmo sua devoção à Igreja favoreciam um quadro sensível de influência eclesiástica. No início do século V, Santo Agostinho aparece como o grande defensor desta política de “colaboração”. Vimos como, pela observação de Francisco Gomes, o Império Romano conseguiu, em meio a grave crise, encontrar no cristianismo uma nova forma de

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legitimação do sistema. Mas, no século V, com o agravamento das migrações germânicas, com a própria cidade de Roma sendo saqueada por Alarico e os visigodos (410), os pagãos defenderam a tese que a ruína do Império fora causada pelo abandono dos deuses tradicionais. Em resposta Santo Agostinho escreveu o De Civitate Dei (c.412 – 427). O mundo que então Agostinho via desfazer-se era o mundo antigo mas, no momento da maior derrota de Roma, ele via o futuro e o futuro estava no cristianismo. O tema central do De Civitate Dei é, de fato, a demonstração do caráter providencial de Roma que, por suas próprias virtudes, preparou as vias necessárias à Cidade de Deus e nisto tornou possível sua realização. Como salienta Philotheus Boehner e Etienne Gilson (1970, p.195), em Santo Agostinho a ordem social não é senão um prolongamento da ordem moral fundamental, ou seja, da reta ordem do amor. A concepção agostiniana da moralidade ou da vida feliz é inseparável de sua doutrina social: a vida moral e a felicidade pressupõem uma vida em comunidade. Com efeito, em Santo Agostinho, o tema histórico se enriquece de uma especulação teológica onde a obediência ao poder civil se dava por intermédio do amor de Deus, o que ocorria mesmo se este poder fosse injusto. A partir destes princípios, distinguem-se duas ordens ou cidades, onde a doutrina agostiniana se inclina no sentido de uma colaboração mais e mais estreita da autoridade religiosa com a política. A distinção das cidades tinha, de fato, um caráter fundamentalmente místico: a cidade terrestre (a do Diabo) e a celeste (a de Deus) se interpenetravam no “misto” que constituía a sociedade humana; e esta, por sua vez, contribuía à sua maneira, à realização da perfeição cristã. Boehner e Gilson (ibid., p. 199) salientam que o convívio entre as duas cidades era um aspecto fundamental da argumentação agostiniana. A cidade de Deus é uma

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comunidade espiritual. Igualmente a cidade terrena. Há entre as duas comunidades uma distinção de ordem espiritual, e não material. Materialmente, uma se confunde com a outra, dada a íntima convivência dos seus cidadãos. Contudo, embora façam uso das mesmas coisas, elas não visam a um mesmo fim. O que significa dizer que o cristão deve as mesmas obrigações que cabem ao súdito do Império: o respeito à ordem estabelecida foi um dos componentes da política de Santo Agostinho, pois esta ordem foi estabelecida pelo próprio Deus. Assim o pensamento agostiniano se esforçou sempre por justificar a interpenetração das instâncias políticas e religiosas. De sua parte, a Igreja deve ao estado seu ensinamento moral, suas preces, e impõe a seus fiéis a obrigação de obediência. Cabe ao Estado assegurar à Igreja paz, proteção e ajuda. A passagem seguinte do De Civitate Dei deixa bastante claro a concepção agostiniana de colaboração entre as duas cidades e de obediência à autoridade política. O elemento central de sua argumentação é a paz terrena, da qual ambas as cidades precisam para o sustento da sua vida mortal. Com efeito, a cidade celeste, enquanto peregrina na Terra, ou seja, até passar a mortalidade, também usa desta paz por necessidade. É necessário, portanto, para ambas as cidades, haver concórdia entre governantes e governados e obediência às leis, já que nisto reside o sustento da paz terrena:

“(...) Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz terrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas a cidade celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste

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vale e vive da fé usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz. Por isso, enquanto está como viajante cativa na cidade terrena, onde recebeu a promessa de sua redenção e como penhor dela o Dom espiritual, não duvida em obedecer às leis regulamentadoras das coisas necessárias e do sustento da vida mortal. Como a mortalidade lhes é comum, entre ambas as cidades há concórdia com relação a tais coisas (...)” (SANTO AGOSTINHO, 1999, p. 408).

É preciso, no entanto, salientar que a política de “colaboração” proposta por Santo Agostinho não implicava em perda da preeminência do espiritual sobre o temporal. O domínio espiritual é superior ao temporal uma vez que os fins da Igreja são superiores aos do Estado. O próprio papa Leão I adotou a doutrina de união dos poderes, sem renunciar aos direitos da Santa Sé. Além da grande contribuição à doutrina da primazia papal, Leão I deu um importante auxílio à idéia de colaboração estreita entre a Igreja e o Império. Daniel Valle Ribeiro salienta que tal doutrina de aproximação atendia às necessidades da época e, assim, não parece estranha a cautelosa adesão do papa. Posto que favorável à união dos poderes temporal e espiritual, Leão tinha nítida idéia sobre os direitos da Sé Romana. Julgava que o primeiro dever do imperador era ajudar à Igreja. Esta ajuda se traduzia pelas intervenções imperiais na vida da Igreja que o papa admitia e às vezes solicitava. Ele aceitava, prossegue Ribe iro (op. cit., p.20), que o imperador reunisse o Concílio Geral, mas se reservava o direito de decidir sobre o momento mais oportuno desta reunião e de fixar a ordem dos trabalhos da assembléia. Tal doutrina destinava -se também a resolver querelas doutrinárias ou mesmo questões disciplinares. À autoridade religiosa cabia

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determinar matéria de fé, regulamentar a disciplina e administrar o patrimônio. Evidentemente, a aplicação desta doutrina de estreita colaboração só tem êxito quando o imperador é devotado à Igreja e pronto a respeitar- lhe os direitos. Com a queda do Império Romano do Ocidente, formalmente ocorrida em 476 com a deposição do imperador infante Rômulo Augusto por Odoacro, chefe da confederação de tribos germânicas dos hérulos, e a formação dos diversos reinos romano- germânicos,19 a unidade do antigo mundo romano parecia definitivamente comprometida. Entretanto, após a conquista germânica do Ocidente, o princípio gelasiano (do papa Gelásio I, 492 a 496), enunciada numa carta escrita ao imperador oriental Anastácio I em 494, viria a propor, pela primeira vez, a “fórmula” de coexistência dos dois poderes que regem o mundo. O texto é marcado pela distinção entra a auctoritas dos pontífices e a potestas régia, sendo a primeira entendida como um poder moral fundado no direito e a segunda como um poder de fato, de administração das coisas e pessoas. Apesar do caráter de simples distinção dos poderes, a fonte já expressava um princípio de subordinação da potestas em relação à auctoritas:

“Augustíssimo imperador, este mundo é governado particularmente por dois: a sagrada autoridade dos pontífices e o poder real (auctoritas sacrata pontificum et regalis potestas). Destes, a autoridade sacerdotal é tanto mais importante enquanto tem de dar conta dos mesmos reis dos homens ante o tribunal divino. Pois, há de saber, clementíssimo filho, que, ainda que tenhas o primeiro lugar em dignidade 19

Com efeito, a denominação reinos bárbaros implica em se aceitar e assumir o preconceito romano com relação aos povos não-romanos ou romanizados. Também a denominação reinos germânicos é imprópria uma vez que numericamente os germanos eram minoria. De fato, a denominação mais apropriada é reinos romanogermânicos, ou seja, reinos de populações basicamente hispano-romanas, galo-romanas, ítalo-romanas, mas onde o poder político ficou nas mãos dos chefes germânicos.

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sobre a raça humana, contudo tem que se submeter (submittis) com devoção aos que têm a seu cargo as coisas divinas, e buscar neles os meios de tua salvação (...)” (GELÁSIO I apud BLANCO, 1973, p. 83).

Mas também os chefes germânicos, em geral, mantiveram a tradicional reverência ao Império, sediado em Constantinopla. Nós não conhecemos de fato praticamente nada das concepções de realeza no interior dos diversos regna que herdaram o Ocidente no final do século V. Mas o reino vândalo parece ser uma exceção, sobre o qual a História da Perseguição (484) de Victor de Vita lança alguma luz. Segundo P. D. King (op. cit., p.22), tratava-se de um reino independente, romano e cristão em seus fundamentos, onde o governante apresentava um controle efetivo sobre toda a sociedade e influindo decisivamente nas questões dogmáticas da Igreja ariana. Mas o mais significativo para nós é a persistência da idéia imperial. O rei vândalo descrevia-se então, segundo a nomenclatura imperial tradicional, como “Nossa Piedade” e “Nossa Clemência”. Acreditava efetivamente possuir a “majestade”, e quem se endereçasse a ele deveria usar a linguagem reverencia l tradicionalmente empregada para o imperador. Os casos de imitatio imperii puderam ser habilmente multiplicados. O exemplo vândalo antecipava em muitos pontos a imagem que foi eventualmente veiculada por quase todos os reinos romano- germânicos. O que realmente havia desaparecido no Ocidente era uma função imperial distinta. A autoridade imperial sobreviveu na medida onde muitos reis, inteiramente independentes de fato, consideravam que seus territórios eram parte do Império e se esforçavam para obter a sanção imperial para seu poder.

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Os reis borgúndios Gundobaldo (morto em 516) e Sigismundo (morto em 524) haviam ambos recebido os títulos honoríficos de patrícios e “mestres de soldados”, e a função vicarial de Sigismundo se exprime claramente em uma carta que ele endereçou ao imperador do Oriente (Avit, Epist. 93 apud KING, ibid., p.124): “(...) meu povo vos pertence (...), a nossos olhos nós não somos nada além de vossos soldados (...)”. Também o fato de que a Itália, sob os hérulos (Odoacro) e sob os ostrogodos (Teodorico), era considerada como fazendo parte do Império está abundantemente atestado. No caso de Clóvis, os testemunhos estão longe de ser claros mas, de acordo com P. D. King (id., p.124), duas cartas, Epist. Aust., 2 e Epist. 46, insinuam que seus territórios eram também considerados como fazendo parte do Império. Assim, como salienta King (id., p. 124), pode-se acreditar que as dignidades outorgadas ao chefe franco pelo imperador, o consulado honorário, o patriciado, as regalia, em Tours (508), não foi uma simples iniciativa diplomática, mas a manifestação culminante de uma consideração endereçada a um dirigente que dependia oficialmente do imperador desde muito tempo e porque acreditava -se ter obtido ele uma vitória “imperial” ao curso de sua recente campanha visigótica (Vouillé, 507). Estas dignidades ou títulos honoríficos outorgados aos reis germânicos no Ocidente confirmam o desejo de Constantinopla em manter, pelo menos diplomaticamente, a ficção da unidade do Império, colocando os reis numa hierarquia com relação ao imperador. O princípio vicarial dos reis germânicos não foi, entretanto, suficiente para que a Igreja romana de fins do século VI (Gregório, o Grande (590-604)), que continuava a manifestar com relação à Bizâncio o respeito tradicional ao Império, tivesse semelhante

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atitude para com os reinos romano-germânicos. Para com estes o que importava, antes de tudo, era um princípio evangelizador. Como observa Jeannine Quillet (1972, p. 26 e 27), por um lado, o discurso de Gregório era dirigido ao imperador do Oriente e, por outro, a própria dispersão do Ocidente, dividido em várias unidades políticas, serviu de “pano de fundo” às suas concepções ideológicas. Já que a única unidade subsistente no Ocidente era a da Igreja de Roma, seu bispo pôde desenvolver, no bojo de uma visão agostiniana das duas cidades, uma concepção “ministerial” de Império. Retomando a distinção gelasiana, mas em muito lhe reforçando o caráter, originalmente tímido, de hierarquização, Gregório desenvolveu a tese de que na medida onde a Igreja detinha a auctoritas, ela detinha por isso a supremacia. O Império estava efetivamente a serviço da Igreja como seu protetor. Por ocasião de um conflito com o imperador, Gregório, o Grande, assim se pronunciou claramente:

“O poder (potestas) foi dado do Alto aos meus senhores [ao imperador e a seu filho] sobre todos os homens para ajudar aqueles que querem fazer o bem, para abrir mais largamente a via que conduz ao céu, para que o reino terrestre estivesse a serviço do reino dos céus” (GREGÓRIO MAGNO apud QUILLET, ibid., p.27).

A concepção “ministerial” aparecia então também sob outra pena, a de Isidoro, bispo de Sevilha (c.560-636). Entretanto, não com relação ao Império de Constantinopla que havia, na “Reconquista” de Justiniano, se apossado de territórios do reino visigótico, sendo então visto como um “invasor” por Isidoro, mas com respeito ao rei germânico Sisebuto.

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Daniel Valle Ribeiro (1995 (2), p. 103 a 112) aponta a importância de Isidoro enquanto “pensador político”. Ele, segundo Ribeiro, foi quem desenvolveu a primeira contribuição objetiva à idéia de realeza no Ocidente medieval. É nas Sentenças (um manual de teologia dogmática, espiritual e moral) que se encontra o essencial das idéias isidorianas acerca da realeza. Elas repousam no princípio de que a realeza está a serviço da Igreja: a monarquia é uma instituição a serviço da causa cristã, segundo a vontade de Deus. Mas a teologia política isidoriana é cristológica por excelência. O príncipe, ao tornar-se cristão, tem alterada a natureza de seu poder e a maneira de exercê- lo. Estabelece-se, desta forma, estreita relação entre a realeza e a Igreja; do mesmo modo, criam-se novos laços entre governantes e governados. Este traço de igualdade entre todos, de comunhão sob a autoridade de Cristo, é que, segundo Ribeiro, dá especial originalidade à teoria isidoriana do poder. No século VIII, com a fraqueza dos descendentes de Clóvis e a ascensão dos prefeitos do palácio da Austrásia, fundamentalmente depois da vitória de Carlos Martel em Poitiers (732) livrando a Cristandade (Christianitas) da ameaça muçulmana, a Igreja de Roma, selando uma aliança com a nova casa franca, legitimou a transição dinástica por ocasião da sagração, em Saint Denis, de Pepino, o Breve, pelo papa Estêvão II, em 754. A formação do núcleo central dos futuros “Estados Pontifícios”, a famosa “Doação de Pepino”, foi um dos elementos centrais desta aliança, confirmada por seu filho, Carlos Magno, quando da conquista definitiva do reino dos lombardos, inimigos declarados de Roma. Seguiu-se a grande obra de expansão do reino carolíngio e, com ele, da Cristandade (Christianitas), empreendida por Carlos Magno (a conquista e submissão dos povos pagãos

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do Norte e do Leste: frisões, ávaros, saxões principalmente), reconstituindo sob a égide franca uma nova unidade em grande parte do Ocidente. Mediante estes dois fatores, a Igreja de Roma, afastada do poder bizantino que, por motivo de sérios problemas internos (a Questão Iconoclasta), não a havia podido socorrer qua ndo da invasão do Exarcado de Ravena pelos lombardos, pensava em fazer do rei carolíngio um novo imperador. A coroação de Carlos Magno, na noite de Natal de 800, pretendia ser uma restauratio et translatio Imperii, isto é, desejava representar não apenas a restauração do Império no Ocidente mas também a sua transferência, já que os bizantinos haviam perdido a dignidade imperial (episódio da mutilação do filho da imperatriz Irene, herdeiro legítimo do Império, a mando seu), do Oriente para o Ocidente. Jacques le Goff (1983, p. 69 e 70) informa- nos da tríplice vantagem vista por Leão III em “dar a coroa imperial” a Carlos: preso e perseguido por uma nobreza romana hostil, necessitava ver sua autoridade restaurada, de fato e de direito, por um poder que a todos se impusesse sem contestação; como chefe de possessões temporais, o “Patrimônio” de Pedro, desejava o reconhecimento deste poder soberano temporal confirmado por um rei superior a todos os outros; finalmente, pretendia fazer Carlos Magno imperador de todo mundo cristão, incluindo Bizâncio, a fim de lutar contra a heresia iconoclasta e poder ter condições de estabelecer a supremacia do pontífice romano sobre toda a Igreja. Mas, se o bispo romano tinha interesses notórios a serem defendidos, hoje em dia não se sustenta mais a famosa tese, levantada por muitos historiados, que o carolíngio não sabia ou não pretendia tornar-se imperador. Na realidade, suas duas únicas surpresas foram: a inversão do rito bizantino (diverso do que ocorria em Constantinopla, Carlos foi

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inicialmente coroado e só depois aclamado pelo populus) e o fato de ter sido, ao contrário do basileus que se autocoroava, feito imperador pelas mãos do bispo romano. Segundo Jeannine Quillet (op. cit., p.35), ao ser coroado pelo papa, Carlos Magno ficava em estado objetivo de dependência e subordinação com respeito ao patriarca ocidental. O que pode se explicar, de certa forma e entre outros fatores, pela sagração romana dos carolíngios ter se tornado um fator fundamental de sua legitimidade. Mas, como observa Quillet (ibid., p. 36), o reinado do novo imperador teve a particularidade de inclinar em proveito da autoridade política esta dependência inicial. Conseguiu, por ação própria e de seus conselheiros (destaca-se o papel de Alcuíno), reunir sob a pessoa imperial todos os atributos da supremacia temporal e espiritual. Efetivamente, Alcuíno considerava Carlos Magno rector ecclesiae, ou seja, condutor da “sociedade dos cristãos” (este é, efetivamente, o sentido de Christianitas na época carolíngia, ou seja, plebs Christi). Acreditava que ele, por suas virtudes e sucessos pessoais tinha um poder realmente superior ao do papa e ao do imperador oriental, que apenas com ele podiam contar as igrejas e por isso Deus lhe havia concedido o poder supremo sobre diversos povos. Vejamos então as palavras de Alcuíno, numa carta dirigida a Carlos Magno em junho de 799, ou seja, seis meses antes da coroação imperial:

“Até hoje três pessoas têm ocupado as mais altas posições neste mundo: a sublimidade apostólica que, como vigária do bem-aventurado Pedro, príncipe dos Apóstolos, rege o seu cargo (...) Outra é a dignidade imperial, poder secular da Segunda Roma (...) A terceira é a dignidade real da qual o desígnio de Nosso

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Senhor Jesus Cristo vos encarregou, como condutor do povo cristão: excede as outras dignidades apontadas em poder, renome pela sabedoria e sublime autoridade real. A salvação das igrejas de Cristo agora em perigo repousa apenas em vós: sois o vingador das más ações, o guia daqueles que andam perdidos, o consolador dos que estão tristes, a exaltação dos bons (...)” (ALCUÍNO apud QUILLET, op.cit., p. 130 e 131).

Segundo Francisco Gomes (op. cit., p.45 e 46), a coroação imperial foi o arremate final nesta perspectiva, a nova sagração lhe acrescentava uma nova missão, a de eleito do Senhor para unificar a Cristandade. Mas o Império restaurado permanecia a serviço da Igreja e o poder imperial devia ser regido por normas morais e religiosas. Foi o chamado “moralismo carolíngio”, conjugado com a antiga concepção “ministerial” do Império. O bispo romano, em certa medida, tornava-se então delegado ao “ministério da oração”, isto é, a função eclesiástica estava restrita à jurisdição eclesiástica, à oração e à distribuição dos sacramentos. Mas Carlos Magno já concedia à hierarquia da Igreja um lugar eminente e específico no aconselhamento e na orientação do príncipe. Como novamente observa Francisco Gomes (ibid, p. 46 e 47), a modalidade carolíngia de cristandade estava assim longe de insistir na distinção gelas iana. Tendia a um sistema de supremacia único numa reductio ad unum (redução ao uno). Insistia antes na unidade da Cristandade: una Ecclesia, unum Imperium (uma Igreja, um Império). São desenvolvidas então duas importantes redefinições no texto gelasiano: hic mundus (este mundo) passou a ser lido como Ecclesia; a auctoritas passou a ser lida como potestas. Passava-se doravante a falar de dois poderes que regiam indistintamente a Ecclesia e o

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Imperium, ou seja, a única Christianitas. Dava-se não só a indistinção da Igreja e do Império, quanto a da Igreja e da sociedade. Porém o Império Carolíngio, nos fatos, não durou muito. Sem dúvida se constituiu num grande “parêntesis” na história do Ocidente, ligado ao imenso poder e ao prestígio inigualável de Carlos Magno. Na época de seu filho, Luís, o Piedoso, levantes dos Grandes e querelas dinásticas já ameaçavam a unidade. Na dos seus netos, o castelo ruiu. Em 843, pelo Tratado de Verdum, Lotário, Luís e Carlos dividiram o Império em três grandes reinos: Carlos, mais tarde intitulado o Calvo, recebeu a parte ocidental: Nêustria e Aquitânia (que formaria a Francia Occidentalis); Luís, o Germânico, reinou na Austrásia além do Reno, mais um importante enclave na região de Maiença e de Worms, na margem esquerda, e na Germânia – Francia Orientalis; Lotário manteve, com o título imperial e as duas capitais (Aix-la-Chapelle e Roma), a zona central e a Itália – Lotaríngia. A partir desta divisão inicial, mediante o enfraquecimento do poder real e minado pelas invasões de magiares, escandinavos e sarracenos, o mundo carolíngio foi- se desagregando e o poder se atomizou dando origem ao mundo feudal. Com isto, o próprio título imperial, no fim do século IX quando o esfacelamento territorial se acentuou, após uma última tentativa de Arnulfo da Francia Orientalis, foi usado apenas por pequenos príncipes da Itália: Lamberto de Espoleto, depois por Luís da Provença e Berengário de Friul. Na Francia Orientalis, entretanto, a fragmentação territorial não chegou às mesmas proporções da Francia Occidentalis. Como observa Guy Fourquin (1970, p.29), tal esfacelamento não chegou na Germânia ao nível das castelanias, ficou tão-somente no dos principados. Criou-se um feudalismo em dois patamares: um deles formado pelos quatro

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grandes ducados (Saxônia, Francônia, Baviera e Suábia) e pelos principados eclesiásticos (governados por bispos), cujos senhores eram vassalos diretos do rei da Germânia; e um outro formado pelos vassalos destes grandes senhores territoriais. Dois dos ducados, a Francônia e a Saxônia, foram a partir do início do século X os berços de uma nova realeza: muito mais cedo que na Francia Occidentalis, os carolíngios foram aqui destronados. Em 911, os duques derrubaram o último deles e entregaram a coroa do reino da Germânia ao duque da Saxônia, Henrique I, cuja dinastia iria ocupar o trono até à sua extinção, em 1024, quando começou a reinar a grande dinastia dos Sálios com Conrado II. Realmente, salienta Fourquin (ibid., p.29), os duques da Francônia pretendiam-se descendentes dos francos sálios, eles com os seus homens, daí o prestígio que os predestinava a retomar a obra carolíngia. Entretanto, a oposição entre os ducados era muito acentuada, muito mais do que na Francia Occidentalis, de forma que tão grave particularismo político iria trazer profundas conseqüências, muito além do fim da Idade Média. Assim, como salienta Fourquin, a designação de um novo rei pressupunha o acordo entre os grupos dos Stammes (grupos étnicos e políticos que formavam a Francia Orientalis e que deram origem aos ducados), daí ter -se mantido o princípio de eleição que viria a caracterizar o Sacro Império, enquanto na França este princípio cedeu rapidamente o lugar a uma hereditariedade de fato, depois de direito. O filho de Henrique da Saxônia, Oton I (936-973) deteve, além da coroa da Germânia, a da Itália (o Regnum Italicum,20 centro-norte da península) devido ao seu 20

O Regnum Italicum é o reino surgido de duas tradições: inicialmente, o regnum longobardorum, conquistado por Carlos Magno no século VIII e entregue ao governo do seu filho, Pepino; e, posteriormente, um dos reinos originados da fragmentação da Lotaríngia, que ficou sob o controle imperial devido ao casamento de Oton I com Adelaide (herdeira, descendente da linha carolíngia, do reino) no século X.

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casamento com a descendente da linha carolíngia Adelaide, o que, de outra, valeu- lhe a ligação de seu destino à tradição de Carlos Magno. Posteriormente, os otónidas abarcariam também a da Borgonha-Provença. Nascia assim, de novo, um grande poder no Ocidente, unificando três importantes reinos e, com isso, atraindo a atenção dos bispos de Roma que desejavam a proteção de uma casa forte, esperando assim que um rei exercesse o seu dever “ministerial” com relação à Igreja. Quando suas tropas derrotaram as temíveis hordas dos pagãos magiares na famosa batalha de Lechfeld (955), Oton I apareceu, diria quase naturalmente, como o grande salvador da Cristandade (Christianitas). Também, campanhas vitoriosas contra os eslavos foram acompanhadas de intensos esforços missionários. Tudo concorria então para que, em 962, quando atendendo a um apelo de ajuda do papa, Oton I marchasse para Roma e fosse lá coroado imperador. Dava-se então uma nova translatio Imperii, do poder carolíngio ao poder germânico. Por volta do ano mil, o Império era, segundo Georges Duby (1979, p.23), o mito em que a Cristandade Romana, que o feudalismo fragmentava em múltiplos lo calismos, reencontrava a unidade fundamental com que sonhava e que julgava conforme o plano de Deus. Ligava-se também a uma utopia, à esperança escatológica: o fim do mundo e a consumação do Império cristão ocorreriam simultaneamente, quando o último dos imperadores fosse ao Gólgota fazer a oferenda a Deus de suas insígnias, abrindo assim o reinado do Anticristo. Duby (ibid., p.23 e 24) sublinha que na Baixa Idade Média, de fato, três noções se conjugavam para formar a dignidade imperial. A primeira era que ela, em sua

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profundidade, era concebida como uma eleição divina: o Todo-Poderoso escolhia um chefe, dava- lhe a vitória e no mesmo instante enchia-o com sua graça, com o poder mágico, felicitas, königsheil, que o colocava acima de todos os outros suseranos como guia único do povo de Deus. Este foi exatamente o sentido da aclamação, por parte de seus guerreiros no próprio campo de batalha, que dava a Oton I o imperium. Mas os otónidas rapidamente souberam agir como sucessores de Carlos Magno. A lembrança dos triunfos carolíngios, a aura que rodeava Aix, formava, com efeito, o segundo pilar da idéia medieval de Império e implicava imediatamente o terceiro: o que no Ocidente revivia era o Imperium romanorum (o Império dos romanos). O mito imperial não se dissociava do mito romano, o próprio Império Carolíngio se concebia assim, como um prolongamento no tempo do antigo Império Romano. Eram sucessivos momentos da construção de um mito que sustentava a idéia de unidade. Unidade esta, desde os carolíngios, do Império e da Igreja, na única Cristandade ou societas christiana / plebs Christi. Realmente, o mito carolíngio e o mito romano sobreviveram ao desaparecimento das estruturas políticas de seus antigos impérios e formaram os elementos fundamentais do imaginário imperial otónida. Os imperadores germânicos da Casa da Saxônia procuraram sempre, reportando-se à tradição de Carlos Magno e à de Roma, enfatizar a idéia imperial como aglutinadora político-religiosa da Cristandade. Tal perspectiva é particularmente nítida na época de Oton III (983-1002). Este imperador chegou mesmo a protagonizar alguns gestos encaminhados a revitalizar a memória de Carlos Magno, tal como o observa um cronista de princípios do Segundo Milênio:

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“O Imperador, desejoso de renovar os costumes dos romanos, em boa parte caídos já em desuso, se entregou a diversos gestos que foram apreciados de maneira muito distinta. Sentava apenas em uma mesa feita quase em semicírculo e situada acima daquelas onde os demais romanos tomavam acento. Como tivera dúvida do lugar em que repousavam os restos do César Carlos, mandou escavar em um lugar onde suspeitava que poderia os encontrar. Uma vez encontrada sua sepultura, tomou a cruz que pendia do pescoço de Carlos juntamente com a parte da vestimenta que não havia se destruído e as depositou com grande veneração.” (THIETMAR DE MERSEBURGO apud DUBY, id., p.184).

Também, em 998, Oton III decidiu transferir sua residência para o Aventino, e se a bula com que selou as suas atas tinha a efígie de Carlos Magno, na o utra face apresentava a imagem da Cidade, a Roma Aurea. O imperador nomeava-se a si mesmo e, ao recitar a longa seqüência de suas dignidades, era com o título de “romano” que se adornava em primeiro lugar. Renovatio Imperii Romani: “Nós proclamamos Roma capital do mundo”, dizia ele. De fato, como afirma Georges Duby (id., p.24), o Império renascente afirmava seu caráter universal e, muito mais consciente do que os predecessores carolíngios, os seus senhores afirmavam-se senhores dos senhores do universo. Entretanto, não devemos nos deixar levar, pelo discurso imperial, a uma visão incorreta das perspectivas políticas do Sacro Império Romano-Germânico. A evocação de Roma (e de Carlos Magno) não implicava num projeto de reconstituição do antigo Império Romano (ou do Império Carolíngio), mas, como já comentado, numa idéia de translatio Imperii (translação do Império) de Roma aos imperadores germânicos pela via do Império

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Carolíngio. Efetivamente, revestidos da dignidade imperial, os otónidas se viam, respeitando os diversos localismos da sociedade medieval, como os ordenadores únicos da Cristandade (Christianitas). Em todo caso, mediante tal perspectiva, o período de harmonia entre a Igreja romana e o Império foi bastante breve. Já o imperador Oton II (973-983) havia inaugurado, com a deposição de João XII, a prática de fazer os papas, forçando a eleição de personagens favoráveis à causa imperial. De fato, os otónidas desejavam renovar a tradição de Carlos Magno na conduta temporal e espiritual do Império. Foram inicialmente favorecidos pela decadência na qual caiu a Igreja Romana no século X (simonia,21 nicolaísmo,22 despreparo do baixo clero, florescimento de uma religiosidade de corte cristão ainda bastante fluída nas zonas rurais, principalmente a subordinação dos clérigos aos leigos em todos os níveis e a feudalização das instituições eclesiásticas). Mas, ao contrário, foi exatamente este estado de coisas que motivou o imenso e multissecular movimento de reforma, iniciado nos séculos X e XI e emblematicamente representado pela figura de Gregório VII,23 que conduziu o 21

Ação de obter por meio de influência ou em troca de uma soma em dinheiro um ofício divino. Na linguagem corrente, recusa do celibato dos sacerdotes, de fato, todos os atentados contra a pureza dos costumes eclesiásticos. 23 Observemos então, nos parágrafos que se seguem, segundo a concepção de Francisco Gomes (op. cit., p. 48 a 50), o sentido de reforma na História da Igreja: Para este autor, a feudalização das instituições eclesiais e eclesiásticas, a tutela dos leigos sobre estas mesmas instituições provocaram o grito dos reformadores do século XI: libertas Ecclesiae. Para a emancipação da tutela dos leigos e da sua intromissão nos assuntos eclesiásticos, foi necessário à Igreja reforçar um processo de clericalização já existente, mas bloqueado com o surgimento do feudalismo. No entanto, uma reforma do clero fazia -se necessária, pensava -se, para conseguir, num segundo momento, uma reforma dos fiéis. Tratavase, pois, de lutar contra os pecados e as misérias dos cristãos, clero e leigos: reforma na Igreja. Mas era opinião corrente que a reforma na Igreja só seria possível com mudanças necess árias nas instituições, isto é, uma reforma da Igreja. Durante o primeiro do cristianismo parece que predominou na Igreja a dimensão de reforma na Igreja. As mudanças nas instituições objetivavam, primordialmente, lutar contra os pecados e as misérias dos cristãos num verdadeiro processo de renovatio e de reformatio do homem (anakaínosis/metamórfosis). Este era um conceito bíblico, neotestamentário, particularmente paulino, Qua exegese patrística prolongou. Neste conceito de reforma salientava-se o processo de renovação pessoal, o processo de conversatio (renovatio) no seguimento de Jesus Cristo. Daí uma maior conformação com Cristo numa conversão 22

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bispo de Roma a um relativo controle da Igreja no Ocidente e às suas pretensões hierocráticas. 24 Durante a famosa “Querela das Investiduras”, como afirma Francisco Gomes (op. cit., p.51), foram buriladas duas importantes distinções conceituais. A distinção entre o poder espiritual e o poder temporal era acompanhada da sua relação assimétrica, porque devia haver subordinação do segundo ao primeiro. A segunda distinção dizia respeito a uma fronteira que passou a ser reconhecida entre a Christianitas (Cristandade) e a Ecclesia Universalis (Igreja Universal).

cristoforme. Este processo precisava da regeneração do batismo para ter seu início e inserir o homem numa contínua palingenesia. Com efeito, o homem fora criado ad imaginem et similitudinem Dei, fora regenerado da sua situação de pecador por Jesus, o Cristo, imagem perfeita de Deus. Era assim o batismo que transformava o homem de pecador, de velho Adão, velho homem, em justo, novo Adão, homem novo, recuperando assim a imago Dei no homem. Estando o cristão no mundo em condição encarnatória, de peregrino em marcha para a casa do Pai, a renovatio era, pois, um processo. O cristão pelo batismo se achava justificado, mas ainda era pecador: o justus simul pecator de São Paulo aos romanos. Os cristãos entendiam contudo que os pecados pessoais tinham repercussão sobre o corpo inteiro da comunidade a que pertenciam pelo batismo e criavam na Igreja situações pecaminosas. Assim sendo, a Igreja achava-se também sujeita ao imperativo de uma renovatio, segundo o espírito de Cristo. A Igreja não era apenas uma Congregatio Fidelium (reunião de fiéis), mas era também uma comunidade de salvação: corpus Christi, sponsa Christi, templum Dei. Se ela era unam sanctam “sem mancha, nem ruga, santa e imaculada” de São Paulo aos efésios, sua santidade era encarnatória e peregrinante, submetida à situação de estar na carne, na lei do pecado. Como corpo de Cristo e sua esposa, a Igreja estava indissoluvelmente unida à sua cabeça e esposo, que era o filho e o santo de Deus (tu solus sanctus). A santidade da Igreja não excluía os pecados dos cristãos, antes os supunha. A Igreja era assim a casta mertrix de Santo Agostinho. A Igreja peregrinante se realizava na expectação do advento de Cristo e do Reino. Por isto, devia aproveitar o tempo presente para se converter, olhando continuamente as suas origens, que lhe eram paradigmáticas, e o seu futuro. Com este conceito bíblico e patrístico, que respaldava toda a tentativa de reforma na Igreja, imbricava-se a reforma da Igreja. As reformas eclesiásticas em regime de cristandade sempre desejaram reformas que fossem simultaneamente na e da Igreja, numa síntese de conversão cristoforme e de mudanças nas instituições. A acentuação muda, todavia, com a “Reforma Gregoriana” no século XI. A dimensão de reforma da Igreja passou a predominar, sendo considerada condição sine qua non para haver a reforma na Igreja. A “Reforma Gregoriana” operou a síntese das duas comp reensões de reforma numa nova configuração. Esta reforma tornou-se desde então o modelo paradigmático de reforma na Igreja Ocidental. 24 Utilizaremos, ao longo da Tese, os termos hierocracia e hierocrático ao invés de teocracia e teocrático (que são mais habituais), por se tratar da reivindicação de um poder sagrado; não de um poder divino. Com efeito, os papas, mesmo quando os princípio hierocráticos se firmaram (nos séculos XII e XIII), se consideravam apenas vicarius Christi (vigário de Cristo) e caput (chefe) da Igreja; jamais proclamaram, para si e para Santa Sé, qualquer forma de poder divino.

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Continuava intocada, prossegue Gomes (ibid., p.51), a unidade do Orbis Christianus (Mundo Cristão), mas a Igreja sacralizava com maior intensidade o sistema religioso e o poder espiritual (sancta Ecclesia) e dessacralizava parcialmente o domínio do poder temporal (sacrum Imperium). Assim, no universo indistinto e confuso da herança carolíngia, retornava-se a velha distinção gelasiana, insistindo-se porém na relação assimétrica que unia a auctoritas à potestas, aliás ambas as instâncias lidas como potestas. O Dictatus Papae (março de 1075) de Gregório VII (1073 a 1085) já apresentava, ainda que numa primeira fase de elaboração, muitas das principais reivindicações que, nos séculos seguintes, estariam sempre presentes no discurso dos papas, na construção de uma perspectiva de monarquia papal e, inclusive, de subordinação do poder político à supremacia do seu poder espiritual. A título de exemplo:

“Que a Igreja romana foi fundada unicamente por Deus. Que apenas o pontífice romano pode, em justiça, ser chamado universal (...) Que apenas seu nome deve ser mencionado nas igrejas. Que seu titulo é único no mundo. Que apenas a ele é lícito depor imperadores (...) Que nada tem poder de retratar uma sentença que tenha sido imposta por ele (...) Que o mesmo não pode ser julgado por ninguém (...) Que apenas ele tem autoridade para depor ou restabelecer os bispos sem necessidade de convocar um sínodo. Que o que não está em conformidade com a Igreja romana não pode ser tido por católico (catholicus). Que apenas o papa tem autoridade para desligar (absolvere) súditos de homens injustos de seu juramento de fidelidade” (GREGÓRIO VII apud BLANCO, op. cit., p. 117).

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Durante os séculos XII e XIII, o conflito entre os papas e os imperadores, a chamada Querela do Sacerdócio e do Império, inaugurado no século anterior pela disputa entre Gregório VII e Henrique IV, foi marcado por dois aspectos: o estabelecimento de forma mais precisa dos princípios ideológicos do Papado (a hierocracia) e do Império (a chamada ideologia fredericiana), 25 e a disputa entre os dois poderes, de pretensões universalistas, pelo controle do solo italiano. Foi entre os pontificados de Inocêncio III (1198-1216) e Inocêncio IV (1243-1254) que a ideologia hierocrática se precisou. O que então os papas pretendiam era uma potestas indirecta ratione pecati (poder indireto devido ao pecado). Como observa Marcel Pacaut (1989, p.115), já Inocêncio III reivindicava, por ser o vigário não só de Pedro mas também de Cristo, não apenas a chefia de toda a Igreja, mas o direito de, em caso de pecado, intervir no temporal depondo reis e imperadores. Vejamos como, nas palavras de Inocêncio III, utilizando para tanto da simbologia das luminárias celestes, o poder político já aparecia nitidamente como “derivado” da autoridade pontifícia:

“Do mesmo modo que a lua recebe sua luz do sol, assim também o poder real recebe da autoridade pontifical o esplendor de sua dignidade” (INOCÊNCIO III apud PACAUT, ibid., p.225).

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Termo empregado por Jeaninne Quillet em sua obra intitulada Les Clefs du Pouvoir au Moyen Âge. Questions d’Histoire. Tours: Flammarion, 1972.

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Inocêncio IV agravou sensivelmente a concepção de potestas indirecta. Para ele, como salienta Jeannine Quillet (op. cit., p. 64 e 65), ser vicarius Christi e caput da Igreja não se referia somente a uma autoridade de caráter carismático; esta qualidade introduzia a uma ordem propriamente jurídica, a dos poderes legados no passado por Cristo e seus sucessores, cujos papas eram os herdeiros legítimos – a potestas plena. Este poder, de caráter essencialmente espiritual na origem, tornou-se um verdadeiro poder político: era o papa quem detinha os dois gládios do Evangelho, o espiritual e o temporal; o imperador apenas fazia uso do gládio temporal sob a delegação do pontífice. Todo o poder vem do Alto para as mãos dos papas e se estes delegam ao imperador a utilização do poder político é para que ele, em sua própria pessoa, não se sirva deste poder, mas governe em função da Igreja. Porém, segundo Yves Congar (1970, p.257), Inocêncio IV pretendia ir ainda mais longe: ele desejava legislar “não pelo efeito de um esforço humano de busca, mas sob a monção de uma inspiração divina”. Observemos então, através da bula de deposição do imperador Frederico II, como Inocêncio IV, efetivamente assumindo a potestas plena, se via, como vigário de Cristo e devido ao “Poder das Chaves” (dado a Pedro e também a ele, por herança), como o “guardião moral” da Cristandade (Christianitas) e assim, em caso de pecado, tendo o direito de depor reis e imperadores:

“Havendo sido elevados, ainda que indignos, a suprema altura da dignidade apostólica pelo favor da divina majestade, estamos obrigados a cuidar de todos os cristãos com vigilante solicitude, discernir seus méritos por um exame profundo e

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pesá-los cuidadosamente na balança de nossas reflexões, para assim elevar com favores adequados os que sob um justo exame mostram-se ser dignos, e afligir com os devidos castigos os culpados (...) Por tudo o qual, nós, que, ainda indignos, somos o vigário de Cristo sobre a terra e a quem foi dado na pessoa de Pedro o Apóstolo: ‘O que ligares na terra’ etc, mostramos e declaramos, devido aos mencionados crimes e de outros muitos, depois de consultar com todo escrúpulo a nossos irmãos e ao santo concílio, que o dito príncipe, o qual o mesmo se fez ni digno de toda honra e da dignidade do império e do reino, e o qual tem sido, por causa de seus vícios, privado por Deus de agir como rei ou imperador, está ligado por seus pecados e lançado fora e despossuído de toda honra e dignidade por Deus, ao qual acrescentamos também nossa sentença de privação (...)” (INOCÊNCIO IV apud BLANCO, op. cit., p. 254 a 267)

Foi igualmente a dinastia dos Hohenstaufen que reagiu de forma vigorosa contra a ascendência progressiva do Papado sobre os assuntos políticos. No c hamado ressurgimento do Direito Romano, a partir dos séculos XI e XII, quando o mesmo passou a ser glosado principalmente pelos juristas das escolas urbanas do norte da Itália, foi basicamente, conforme comentamos anteriormente, o Código de Justiniano que foi recuperado, servindo assim de base à concepção imperial dos Hohenstaufen. Já na dieta de Roncaglia (1158), com o auxílio de célebres doutores bolonheses, Frederico Barbaruiva precisava o sentido em que aceitava receber a coroa imperial das mãos do papa: a eleição dos príncipes conferia ao rei dos romanos o pleno exercício dos

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direitos imperiais; a sagração nada acrescentava de constitutivo a esta dignidade, tendo apenas um caráter moral marcado pela tradição. Vejamos então nas palavras de Frederico Ba rbaruiva, expressando, mediante a eleição direta de Deus e, inclusive, revertendo em seu favor a autoridade petrina, a total independência do poder imperial, elemento central de toda a “ideologia fredericiana”:

“Posto que a potência divina, fonte de todo poder, tanto nos céus como na terra, nos confiou, seu ungido, o governo do reino e do império, e decretado que a paz da Igreja seja mantida pelas armas do império, nos vemos obrigados, não sem dor de coração, a queixar-mos a vós, amados, porque parece que motivos de discórdia, sementes de maldade e o veneno de uma enfermidade pestilífera foram dimanados da cabeça da Santa Igreja na qual Cristo imprimiu o caráter de sua paz e amor (...) E, posto que, pela eleição dos príncipes, recebemos o reino e o império de Deus, o qual, pela paixão do seu Filho, Cristo, submeteu este mundo ao governo das duas espadas necessárias; e posto que o apóstolo Pedro ensinou ao mundo esta doutrina: ‘Teme a Deus, honra ao rei’, o que diga que recebemos a coroa imperial como um benefício do senhor papa, contradiz as instituições divinas e o ensinamento de Pedro, devendo ser tido por mentiroso (...)” (FREDERICO BARBARUIVA apud BLANCO, ibid., p. 269 e 271).

Foi também em Roncaglia, aplicando de forma mais direta as regras do direito romano ao direito feudal (Barbaruiva fez inserir mesmo leis novas no Código de Justiniano), que o imperador exigia a restituição dos direitos que a coroa imperial detinha

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sobre as cidades italianas, incluindo as do Patrimonium Petri. Detentor de um poder supremo, que lhe advinha diretamente do Alto, o imperador se via efetivamente como o dominus mundi. A canonização de Carlos Magno, obra de Barbaruiva, foi então muito significativa: como era no antigo Império Carolíngio, também no Sacro Império a pessoa do imperador deveria reunir todos os aspectos religiosos e políticos do poder. Com seu neto, Frederico II, a doutrina fredericiana vai ser marcada, como salienta Jeaninne Quillet (op. cit., p.56), por um profundo espiritualismo e um integral jurisdicismo. O imperador era a lex animata in terris (a lei viva sobre a terra): não a fonte do direito (que, naturalmente, era o próprio Deus); mas seu guardião, seu defensor e executor. Ele era, a este título, a encarnação mesma da Lei Divina e, portanto, cabia a ele fazer as leis que regiam o Império. Por outro lado, ele era o herdeiro direto de César e Augusto. Estas diversas autoridades o permitiam, não somente subtrair o Estado à dominação da Igreja, mas reformar a própria Igreja, reconduzir seus ministros ao estado original de pobreza e de submissão à autoridade política, conforme o ensinamento Paulino. Com efeito, observamos anteriormente que, durante o Império Romano, o poder do imperador enquanto lex animata in terris, ou seja, em resumo, a autoridade de fazer as leis que regiam o Império, como atesta o próprio Direito Romano, tinha determinadas restrições. O imperador não podia desrespeitar o direito tradicional e dele só devia se afastar em caso de necessidade patente, era também necessária a aprovação dos cidadãos romanos para toda mudança significativa. Entretanto, como salienta Stein (op. cit., p.45), certas declarações, como a de Ulpiano no Digesto,1,3,31 e 1,4,1, podiam ser facilmente interpretadas no sentido do reconhecimento de um poder absoluto do imperador. O próprio

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Justiniano, sublinha Stein, permaneceu no equívoco, exprimindo este ponto de vista, em particular, no domínio dos assuntos eclesiásticos. Isto explica as concepções de Frederico Barbaruiva e Frederico II que, embasando-se no Código de Justianiano, procuraram construir uma idéia de Império onde o poder do imperador, porque provinha diretamente de Deus, era pleníssimo, tanto no domínio político quanto no religioso, e expressava-se fundamentalmente por sua autoridade de fazer as leis que deviam reger a Cristandade (Christianitas), inseridas na seqüência das dos imperadores romanos da Antigüidade. Tal concepção, segundo Felice Battaglia (1987, p. 67 e 68), não implica, no entanto, em negar que o poder imperial seja uma concessão dos cidadãos romanos ao seu Príncipe. Tal perspectiva, aliás, encontra-se também no próprio Código de Justiniano. Seus glosadores, inicialmente os juristas de Bolonha e depois, a partir do século XIII, os de diversas universidades, pondo em evidência o “povo”, nele encontram o fundamento do poder, reclamando a autoridade dos jurisconsultos romanos. Desta forma, para os glosadores medievais do Código o imperador romano-germânico é o continuador legítimo de Justiniano, de Trajano, de Augusto. Como os imperadores antigos fundaram seu direito soberano sobre uma determinada concessão popular, também o imperador medieval não prescinde da antiga norma: é a lex regia de imperio a fonte do poder público. Com efeito, dizer, segundo a percepção Hohenstaufen, que o poder imperial provém diretamente de Deus, não significa dizer que não haja nisto a mediação dos romanos mas, antes, que o poder imperial não é uma concessão dos papas. A origem do poder imperial é diretamente divina porque é Deus quem inspira os romanos e, assim, estes são o instrumento de Deus quando escolhe o imperador. Apenas tal escolha não se faz

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diretamente, mas através dos príncipes eleitores (os legítimos representantes dos romanos), sendo estes, desta forma, os verdadeiros intérpretes da vontade divina. Foi

no entanto somente no campo de batalha que as disputas entre os Hohenstaufen

e os papas encontraram uma solução. De fato, as invasões do Regnum Italicum durante os séculos XII e XIII (de Frederico Barbaruiva e de Frederico II) objetivavam dar ao Império um controle mais direto sobre as ricas e poderosas cidades do centro-norte da península, subjugar o Papado porque o desenvolvimento do poder pontifício no centro da Itália era um dos maiores obstáculos à constituição de um Império que deveria se estender do norte das províncias germânicas ao sul da Sicília (após o Império ter conseguido, numa hábil aliança matrimonial e através de importantes campanhas militares, fundar, com Frederico II, um poder forte no Reino da Sicília), mas também se ligava, uma vez mais, ao mito romano, isto é, a idéia, sempre muito difundida, de que quem controla a urbs controla o orbis. De fato, ao Império da Segunda Idade Média interessava construir um poder sólido sobre os territórios colocados sobre sua suserania direta; quanto ao restante do Ocidente, cabia ao imperador somente um poder de caráter jurisdicional fundamentado no fato de ser ele o grande ordenador universal. Mas as pretensões imperiais foram obstaculizadas pelas comunas da famosa Liga Lombarda que, ciosas de resguardar suas liberdades político-administrativas, se aliaram aos inimigos tradicionais do Sacro Império, o Papado e o concorrente capetíngio (não deve haver dúvidas sobre as pretensões, realmente imperiais, da casa francesa, ao menos com relação à Itália), forçando Barbaruiva, após a vitória de Legnano (1176), a negociar a Paz de Veneza (1177) e, no século seguinte, infligindo nova decisiva derrota as tropas de Frederico II.

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Realmente, conforme salienta Perry Anderson (1985, p.146), apesar do Papado ter sido o vencedor formal da disputa contra os Hohenstaufen, a principal causa da derrota e eliminação da dinastia se encontrava na decisiva superioridade sócio -econômica do centronorte, fonte de sua superioridade militar. Na longa luta, os papas forneceram regularmente os anátemas; a maioria das tropas e dos fundos foram dados pelas comunas. O final da Idade Média trouxe importantes modificações. Por um lado, a prolongada disputa havia extenuado tanto o Império quanto o Papado e, por outro, assistia-se aos primeiros êxitos mais significativos da centralização do poder régio, que somente na modernidade chegariam a uma conclusão. Apesar da decadência, no início do século XIV, o papa Bonifácio VIII reconstruiu de forma radical o princípio hierocrático, ligando-o a uma idéia de potestas directa onde o papa, efetivamente, pretendia governar in temporalibus. As bulas Ausculta Filii (1301) e Unam Sanctam (1302) nos dão uma exposição minuciosa da doutrina bonifaciana. Na Ausculta Filii, o papa reclama o primado do seu poder: como vicarius Christi ele é a cabeça e o chefe (caput) único da Igreja. Seu poder é pleníssimo, ninguém pode lhe demarcar os limites. Tal plenitude é dupla: espiritual e temporal. Em direito, o papa possui o poder temporal, mesmo se ele o confia à execução do príncipe. A bula Unam Sanctam, por sua vez, constituí-se numa verdadeira declaração dos direitos do pontífice romano. Primeiramente, ela exprime uma eclesiologia interna. A idéia de unidade e mesmo de unicidade domina tudo. Mas, se há apenas um corpo, há apenas uma cabeça, um único princípio. Este princípio é Cristo, mas, pela mesma exigência, é o papa, seu vigário. O que, identificado à realidade jurídica, significava que o corpo, formado pelos homens, devia se submeter à jurisdição do papa.

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Em seguida, ela trabalha a relação entre os dois poderes. Neste ponto, Bonifácio articula à sua afirmação de unidade e de unicidade, uma outra de dualidade: duo gladii, duae potestates. Mas esta dualidade deve ser reconduzida ao superior, o que significava, concretamente, que o poder espiritual institui o temporal e deve julgá-lo se ele se desvia, ou seja, tem plena jurisdição sobre ele. Efetivamente, a Unam Sanctam designa claramente que o poder temporal tem apenas um caráter de execução em relação ao papa, a quem deve sempre consultar e obedecer:

“(...) Por tanto, há nesta só e única Igreja, um só corpo e uma só cabeça, não duas cabeças como se fora um monstro; a saber, Cristo e Pedro, o vigário de Cristo e o sucessor de Pedro (...) De onde provém o poder da Igreja; isto é, as espadas espiritual e temporal; uma, para ser utilizada em favor da Igreja, e a outra, pela Igreja; a primeira, pelo sacerdote; a última, pela mão dos reis e cavaleiros mas sob a vontade e com o consentimento tácito do sacerdote. Pois é necessário que uma espada seja subordinada a outra, e que a autoridade temporal esteja sujeita à espiritual (...)” (BONIFÁCIO VIII apud BLANCO, op. cit., p.283 e 285).

Mas seu confronto com o poderoso rei francês, Felipe, o Belo, não somente ditou sua derrota pessoal como a do próprio Papado, deslocado para Avignon e mantido, em certa medida, sob a tutela do poder capetíngio por cerca de setenta anos. Na segunda década do século, a perspectiva radical reapareceu, em pleno “Cativeiro da Babilônia”, com João XXII. Sua luta contra o imperador Luís da Baviera, que tinha como elemento fulcral a antiga questão do direito dos papas, sempre muito contestado, de

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intervir na designação do imperador, novamente foi marcada por uma frustrada invasão imperial da Itália. Quando Carlos IV substituiu Luís da Baviera, a questão parecia resolvida: o novo imperador se mostrou conciliante para com a Igreja e renunciou às “aventuras italianas”. Porém, em 1356, a Bula de Ouro estabelecia definitivamente o processo de eleição do imperador dando autonomia completa aos sete eleitores; o papa não era formalmente excluído, mas nem sequer era mencionado. Esta foi a última grande luta entre o Império e o Papado. O Império, apesar de aparentemente vitorioso, saiu enfraquecido e humilhado: não tendo mais nenhum poder real na Itália, se encontrava definitivamente “regionalizado”, tornava-se exclusivamente alemão. A forma radical da hierocracia, defendida por Bonifácio VIII e João XXII, foi, no campo das idéias, enfrentada, entre outros, respectivamente por Dante Alighieri e Marsílio de Pádua. As perspectivas do último na contestação da plenitudo potestatis papalis (plenitude do poder dos papas) e, precipuamente, a constituição por ele de um conceito de Império ligado ao discurso fredericiano, correspondem ao objeto desta Tese.

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MARSÍLIO DE PÁDUA E O SEU SÉCULO

Neste capítulo tratamos dos “lugares” da produção marsiliana, ou seja, do contexto onde ela foi gerada. Ciro Flamarion e Ronaldo Vainfas caracterizam da seguinte forma o contexto:

“(...) diz respeito (...) ao ‘contexto histórico’, às estruturas sociais e/ou ao universo simbólico no qual se insere(m) o(s) discurso(s) analisado(s). Trata-se de uma unidade arbitrária, posto que extratextual, que somente o historiador pode determinar, conforme suas opções teóricas, suas escolhas temáticas e suas hipóteses de investigação.” (1997, p.383).

No nosso caso trata-se fundamentalmente de analisar o quadro sócio-político do começo do século XIV, bem como as idéias a ele relacionadas. Dentro deste quadro, dois momentos são fundamentais: o do conflito entre Felipe, o Belo, rei da França e o papa Bonifácio VIII (1301-1303) e, posteriormente, recuperando as lutas entre o Império e o Papado, o conflito entre Luís da Baviera e João XXII (1316-1334). Antes, porém, traçamos um quadro geral do período correspondente aos séculos XIV e XV, que se convencionou chamar de “Fim da Idade Média” ou, mais recentemente, “Período Tardo-Medieval”. Tais séculos são caracterizados, em relação à época anterior, os “Te mpos Feudais” (séculos XI, XII, XIII), por continuidades e rupturas. As primeiras correspondem aos processos históricos de longa duração que caracterizam a Baixa Idade Média: as estruturas

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senhoriais e as feudo- vassálicas, o desenvolvimento urbano, os conflitos entre Império e Papado, a expansão do ensino universitário, entre outros aspectos. As segundas dizem respeito aos elementos da “Depressão” ou “Crise” que, segundo muitos autores, se abateram então sobre o conjunto da sociedade medieval. De fato, os anos de penúria ou de fome parecem, no dizer dos cronistas e estudandose os documentos fiscais do período, bem mais numerosos que nos séculos XII e XIII. O abandono das aldeias antigas parece então ser o aspecto mais espetacular da decadência da economia agrária: os camponeses abandonavam suas terras; matagais e mesmo florestas tomavam conta dos campos cultivados; surgiam então aldeias desertas, largadas ao abandono, as lost villages em Inglaterra, os weistüngen na Alemanha. A grande epidemia de 1348-49, a “Grande Peste” ou “Peste Negra” foi então, indubitavelmente, a mais grave das catástrofes que conheceu o Ocidente cristão, tendo dizimado cerca de um terço da população européia, onde, sem dúvida, a fraqueza fisiológica derivada da subalimentação crônica, conseqüência direta da desestruturação da produção agrícola, estava intimamente ligada à gravidade das perdas. Também a “Guerra dos Cem Anos”, o primeiro grande conflito entre Estados Monárquicos, ocasionou, especialmente sobre o território do reino da França, grandes infortúnios, e teve importantes repercussões sobre grande parte do Ocidente. Finalmente, as cidades também sofreram as conseqüências: guerras, fomes, pestes, queda de população em muitas delas, o que levou a grandes tensões sociais e, mesmo, uma série de revoltas, fundamentalmente ao longo do século XIV. Mediante tais indicadores, a perspectiva de uma crise profunda e generalizada marcando os dois últimos séculos da Idade Media é defendida pela maior parte dos

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medievalistas. A recente obra de Guy Bois, La Grande Dépression Médiévale (XIVe et XVe Siècles) – Le Précédent d’ une Crise Systémique, dá continuidade a esta perspectiva. Guy Bois (2000, p.5 a 10) efetivamente nos fala não somente de uma depressão econômica de uma gravidade e duração excepcionais; mais de bouleversements de grande amplitude em todas as instâncias da sociedade, em outras palavras, de uma depressão generalizada, um século e meio de marasmo e desordens antes que a Europa chegasse ao “Renascimento”. Mas tal opinião, ainda que dominante, não é unânime. Segundo Jacques Heers (1991, p. 194 e 195), esta visão negativa, de crise e contração, apóia-se, inicialmente, numa visão de conjunto, na leitura das crônicas, posteriormente nos trabalhos dos primeiros historiadores da economia medieval, em particular Henri Pirenne. Mas estas crônicas e trabalhos, segundo Heers (ibid., p. 194), descrevem somente os infortúnios da França do Norte na Guerra dos Cem Anos. Por outro lado, acrescenta Heers (id., p.195), muitos destes historiadores foram vítimas de uma “mística da Renascença”: afirmar que os séculos XIV e XV foram tempos de infortúnios e desordens era lidar com a idéia de uma recuperação no século XVI. Com efeito, a referida “Crise” não acarretou a depressão de toda a economia ocidental e também não afetou por igual todas as categorias sociais nem todas as pessoas. Tal ou tal setor geográfico ou econômico foi afetado enquanto, ao seu lado, novo avanço se esboçava para substituir e compensar as perdas. O mesmo parece ter se dado nos outros aspectos da vida social, como o político e o cultural por exemplo. Em nossa opinião, o Período Tardo-Medieval foi caracterizado, não por uma depressão ou crise de caráter generalizado, mas por um processo de reestruturação da sociedade medieval nas suas

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diversas instâncias (econômica, política, cultural). Processo que se deu gradual e lentamente, avançando pela Idade Moderna e, naturalmente, acarretando dificuldades e perdas aqui e ali, mas recuperações igualmente e, mesmo, grandes avanços em determinados aspectos ou regiões. Com relação aos processos sócio-políticos, os séculos XIV e XV foram marcados por um quadro complexo de múltiplas formas de poder em conflito. Num extremo encontravam-se poderes locais, de toda sorte, que ainda marcavam pro fundamente o Ocidente – aldeias, cidades, castelanias, dioceses, condados tinham uma vida animada e às vezes influente. Nestes quadros encontravam-se organizados grupos de contornos por muito tempo mal definidos, de clérigos, nobres, mercadores e até mesmo camponeses. No outro, os poderes de pretensão universalista, ainda que decadentes – o Império e o Papado. Entre os dois, se desenvolviam as figuras do rei e do Estado Monárquico que, lutando contra todas estas forças, foram progressivamente se impondo num processo multissecular de avanços e recuos que, de fato, só chegou a conclusão na Idade Moderna. Foi este quadro complexo, turbulento e indefinido, bem como os embates entre teses hierocráticas e anthierocráticas a ele relacionado, que serviram de base ao pensamento político de Marsílio de Pádua. Com efeito, Marsílio Mainardini nasceu em Pádua em ano impreciso, entre 1275 e 1280. Seu pai era notário da Universidade patavina. Estudou Direito nesta Universidade e depois na de Paris, de onde se tornou reitor em dezembro de 1312. O que nos leva a crer que já vivia há algum tempo nesta cidade e que fazia parte do corpo de professores da Faculdade de Artes, cujo Decano, após o término de seu mandato, era normalmente escolhido Reitor da instituição. Foi nesta sua primeira estada em Paris que se inteirou da

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primeira grande querela política da primeira década do século XIV, entre o rei francês Felipe, o Belo e o papa Bonifácio VIII (1301-1303), também da transferência do Papado para Avignom (1309), uma de suas principais conseqüências. Muito provavelmente, também das perspectivas radicais de Bonifácio VIII e seus defensores como Egídio Romano e Tiago de Viterbo, da literatura jurídica dos chamados “legistas do rei” defendendo, em oposição à plenitudo potestatis dos papas, os direitos do poder secular, e, possivelmente, do pensamento “dualista” de João Quidort. Com relação ao pensamento dantesco (De Monarchia, 1310), devido a sua repercussão puramente peninsular, é pouco provável que suas teses tivessem chegando neste momento aos ouvidos do Paduano. Vejamos então as principais questões entre o poder secular e o eclesiástico na primeira metade do século XIV. No início do século, o poder soberano do imperador, 26 nos três reinos que formavam o Sacro Império, era extremame nte questionado. Ele se encontrava praticamente ausente na Borgonha-Provença, cujas diferentes regiões eram dominadas por príncipes franceses. Na Germânia, o Império, carente de recursos materiais e, conseqüentemente, sem um exército e uma administração de relevo, se via obrigado a renunciar às pretensões de controle que mantivera até então contra as cidades, dominadas por ricos mercadores, e contra os príncipes. Algumas regiões se mantinham fiéis ao Império Universal como era o caso da 26

Segundo Nicola Matteuci, a Idade Média conhece o termo “soberano”, não o de soberania. A palavra soberano, na Idade Média, indicava apenas uma posição de proeminência,a posição daquele que era superior num determinado sistema hierárquico; por isto até os barões eram soberanos em suas baronias, como os reis em seus reinos e o imperador, pretensamente, no conjunto do Ocidente. É neste sentido que o termo poder (es) soberano (nos) é utilizado ao longo desta Tese. MATTEUCI, Nicola: Soberania, In: MATTEUCI, N;. BOBBIO, N; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: EdUnb, 1993, vol. 2 (L – Z). p. 1181.

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Confederação Helvética. Outras, no entanto, como os Países Baixos e a Boêmia eram francamente insubmissas. O caso da Península Itálica era mais complexo. Veneza sempre se manteve independente. Como foi visto no capítulo anterior, o reino da Sicília, após a derrota e aniquilação da dinastia Hohenstaufen , havia caído em mãos angevinas e se tornado aliado da Santa Sé. Todo o resto da Península, da Sabóia ao “Patrimônio de São Pedro”, fazia parte do velho Reino da Itália (Regnum Italicum). No interior deste reino, o papa era o grande suserano nos chamados Estados da Igreja, ainda que sua suserania fosse também freqüentemente contestada por uma infindável série de poderes locais. Mas em qualquer outra parte o imperador não havia renunciado ainda às suas pretensões de domínio efetivo. Entretanto, também aqui, o poder imperial encontrava-se em franco declínio, sem dúvida pelas derrotas militares que havia sofrido durante os séculos XII e XIII no confronto com as cidades do centro- norte da Itália, mas também por algumas outras bastante significativas no campo das idéias político-jurídicas. Igualmente as pretensões temporais do Papado foram duramente atingidas, também fundamentalmente a partir do início do século XIV, quando colocadas frente a frente com novas perspectivas políticas, defendidas pelos poderes soberanos temporais e, após as mortes dos papas Bonifácio VIII (1303) e João XXII (1334), a hierocracia foi gradualmente sendo substituída por uma concepção conciliar de Igreja. A vitória da tese conciliarista não teve, entretanto, vida longa. Os papas não demoraram a recuperar sua autoridade monárquica sobre a Igreja. Mas sua perspectiva de domínio temporal, de tutela de reis e imperadores, não voltou à pena dos teólogos e canonistas.

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No quadro político do Ocidente, enquanto Império e Papado entravam em processo de decadência, despontava o poder do rei e o dos Estados Monárquicos. De um lado, os reis lançavam mão de uma enorme gama de expedientes na progressiva construção do seu domínio: exploravam a seu favor as relações feudo- vassálicas e fundavam ordens de cavalaria, desenvolviam uma administração local e central de grande eficácia, reassumiam o controle dos impostos, da moeda e da justiça em última instância, entre muitas outras medidas. Entretanto, o desenvolvimento do poder real estava intimamente ligado à idealização da figura do rei e esta, por sua vez, dependia estreitamente do universo sacralizado e hierarquizado da Idade Média. O clássico de Marc Bloch, Os Reis Taumaturgos (1993), ao estudar o poder de cura das escrófulas por intermédio do toque, atribuído aos reis franceses e ingleses, apresenta- nos a concepção de uma realeza maravilhosa e sagrada que perdurará para bem além do fim da Idade Média. De outro lado, os Estados Monárquicos desenvolviam contornos mais nítidos. Joseph Strayer (s/d, p.11 a 15) salienta os sinais que, na sua opinião, identificam o surgimento do Estado, ou seja, a permanência no tempo e no espaço, a formação de instituições políticas impessoais relativamente permanentes e a substituição dos antigos laços de lealdade por novos, formados agora em relação ao Estado, com a aquisição por parte deste de uma autoridade moral capaz de servir de suporte à sua estrutura organizativa e teórica supremacia legal. São de fato os elementos que começavam a se estruturar no século XIV, ao lado da idealização do Estado e do desenvolvimento gradual da idéia de autonomia do poder real. Segundo Bernard Guenée (1987, p.239), o período foi marcado por uma “monarquia limitada e uma democracia de privilegiados”. Ou seja, para Guenée (ibid., p.239), em

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diversas regiões do Ocidente a união das “ordens” (dos poderes locais, ofícios ou comunidades) integrados no Estado constituía-se num “país”,27 cujas assembléias representativas e seu diálogo com o rei marcaram profundamente a vida política do século XIV. Mas estas assembléias que teoricamente deveriam representar os diversos segmentos sociais e políticos do reino, na realidade defendiam apenas os interesses dos grupos privilegiados, fundamentalmente os da nobreza, mas já também, gradualmente, os dos ricos “patriciados” (grupos de mercadores enriquecidos, donos das manufaturas e da banca nascente que assumiram o controle político das cidades). Os estratos sociais menores, camponeses e citadinos, achavam-se excluídos deste processo, o único caminho que para eles se abria era o da violência, daí as constantes revoltas, camponesas e urbanas, que caracterizam a época. Entretanto Jacques Le Goff (1983, p.132), ao traçar- nos um quadro dos êxitos e fracassos das monarquias centralizadoras no século XIV, mostra- nos que a França, a Inglaterra e as Monarquias Ibéricas eram exceções, e mesmo estes, os Estados mais fortes, não estavam sequer dinasticamente seguros e territorialmente definidos. Já na Península Itálica, na Germânia, a leste e a norte da Europa, o fracasso da centralização era manifesto. Na Itália, segundo Le Goff (ibid., p. 137), foi a extrema complexidade e a incrível instabilidade do quadro político que explica a não unificação da península. 27

Para Bernard Guenée, em O Ocidente nos Séculos XIV e XV. Os Estados (1987), o termo e a idéia de país” é compreendido pelo conjunto das “ordens” integradas no Estado, seja uma corporação ou comunidade. Isto evidentemente não elimina os outros sentidos que o termo possui até hoje entre, por exemplo, franceses, italianos e suíços, podendo significar um departamento, província ou cantão, ou até mesmo pequeníssimas unidades administrativas, como uma pequena cidade ou vila, sendo geralmente identificado como a terra dos ancestrais.

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Tal explicação, entretanto, nos parece equivocada. As comunas do centro- norte italiano, reunidas em ligas de cidades em suas lutas contra o Império, pretendiam apenas resguardar suas liberdades político-administrativas. Com efeito, tais ligas constituíam apenas uniões efêmeras, marcadas pela necessidade de uma defesa comum, não havendo qualquer idéia ou sentimento de que elas pudessem vir a formar uma unidade de fato. Já na Germânia, foi a “miragem italiana” que afastou os imperadores das realidades locais, o que, associado às constantes querelas dinásticas e às guerras entre pretendentes à coroa, foram as causas que na opinião de Le Goff (id., p.132 a 139) levaram ao fracasso a centralização monárquica. Também, ainda segundo Le Goff (id., p.132 a 139), a leste e a norte da Europa, guerras dinásticas, a fragmentação das fronteiras e a permanência das instituições feudais trabalhavam contra a autoridade central – foi o caso da Dinamarca, Suécia, Noruega, Hungria, Polônia. Jacques Le Goff dá- nos desta forma uma imagem de quão incipientes eram então os processos de desenvolvimento do poder real e dos Estados Monárquicos, principalmente quando abandonamos alguns casos específicos e partimos para uma análise de conjunto do Ocidente. Com efeito, no “Período Tardo-Medieval” a supremacia do Novo Príncipe e o fortalecimento dos reinos não eram processos concluídos, mas tão-somente tendências históricas. O Império medieval não havia abolido a idéia de realeza, anterior a ele e igualmente sagrada. Significativo é o fato do imperador ser eleito como “rei dos romanos”. De mesma forma, a renovação da idéia e do poder da instituição real iniciado por volta de princípios do século XIV, procurava também se revestir da dignidade imperial. Frances A. Yates demonstra com precisão, em sua obra intitulada Astraea. The Imperial Theme in the

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Sixteenth Century (1993), como as monarquias inglesa e francesa, em plena Idade Moderna, faziam uso da “aura” imperial. Efetivamente, o processo de constituição da supremacia dos reis e dos reinos não se opunha a idéia romana de Império, se erguia sim contra o seu detentor germânico. E mesmo, em momentos determinados, reivindicava, mediante a decadência do Sacro Império Romano-Germânico, a própria autoridade imperial. Na realidade, como analisa Georges Duby (1979, p.26 e 27), desde que se deu a Restauração Saxônica, aos poderes soberanos romanos e germânicos, certos reis do Ocidente disputavam o título imperial, principalmente nas regiões que Carlos Magno jamais submetera. Foi o caso dos reis ingleses que se diziam “imperadores augustos de toda a Albion”. Também os reis de Leão, protetores de Santiago de Compostela, quando do enfraquecimento dos príncipes de Córdoba, pretendiam também constituir seu imperium submetendo os outros reis ibéricos. Mas no próprio interior do mundo carolíngio, havia ainda um rei cujos biógrafos insistiam de revestir da dignidade imperial. Para eles, o imperator fracorum não era o rei da Francia Orientalis, mas o da Francia Occidentalis. No ano mil todos consideravam este rival do imperador teutônico. O próprio rei da Germânia tratava-o, de fato, como um igual: quando em 1032, Henrique II, imperador, e Roberto, rei da França, se encontraram, junto ao Mosa, na fronteira dos seus reinos, para discutir “a situação do Império”, acolheram-se mutuamente como irmãos. A maioria dos homens de reflexão, prossegue Duby (ibid., p. 27), viam então o Ocidente basicamente dividido em dois grandes domínios, um que César governava, o outro onde reinava o verdadeiro descendente de Clóvis, o rei sagrado em Reims, perto da pia batismal onde fora no passado selada a aliança entre Deus e o povo dos francos.

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Tal dignidade jamais deixou os reis franceses. No começo do século XIV, Felipe, o Belo (1285-1314), a representava perfeitamente. Seus “teóricos”, com destaque para Pierre Dubois, jamais se cansaram em proclamar a substituição da antiga autoridade imperial sobre a Europa, pela nova hegemonia da monarquia francesa. Mas apesar da monarquia capetíngia também ter sido construída às expensas da idéia imperial, o conflito entre o papa Bonifácio VIII e o rei francês Felipe, o Belo, no início do século XIV, representou um caráter novo nas disputas entre o poder espiritual e o temporal, o do Papado contra o poder de um rei. O que ocorreu de fato foi que, em sua multissecular disputa com o Sacro Império Romano-Germânico, não tendo jamais bases legais ou de prestígio para reivindicar o Império, os pensadores franceses trataram de fortalecer, a fim de garantir a independência da França, o poder real. Realmente, a corrente dominante do movimento ideológico francês foi sempre a que procurou sustentar e elevar a potência do reino; sendo a outra, a que colocava o acento em perspectivas imperiais, de um modo geral, minoritária. Na virada do século XIII para o XIV, quando se delinearam dois grupos, o dos “teóricos” e o dos “legistas”, esta oposição apareceu de forma mais nítida. Os primeiros defendendo a prerrogativa imperial do rei da França, foram sempre considerados extremados; ao contrário, foram os “legistas” (ideólogos originários das províncias meridionais, amantes do direito romano, que ensinavam as doutrinas romanas da supremacia do Estado) que, ao fornecerem uma base ideológica sólida às pretensões do poder real, constituíram-se numa ajuda fundamental à vitória capetíngia durante a querela com o Papado. De fato, o rei francês, com relação ao seu pretenso poder imperial, poderia apenas ser visto como um usurpador e, inclusive, a incursão capetíngia na Itália no século XIII, a

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conquista angevina do Sul, se não fosse pela aliança na ocasião com o Papado, seria vista como ilegítima. Bonifácio VIII, em virtude da plenitudo potestatis papalis (a plenitude do poder pontifícia), se julgava, conforme vimos no capítulo anterior, detentor do direito de zelar sobre a política dos reis e imperadores e podia inclusive, em caso de necessidade, sancionála. Uma tal doutrina não podia ser ratificada por Felipe, o Belo. Já a resistência dos Hohenstaufen tinha por muito tempo colocado o Papado em dificuldades. Felipe, o Belo, à beira do século XIV, Luís da Baviera vinte anos depois, prosseguiram sua obra. Em face da afirmação da plenitudo potestatis papalis elaborou-se uma ideologia que tinha como base histórica as lutas imperiais dos séculos XII e XIII e que reivindicava a autonomia do poder político, tentando se libertar da tutela do Papado. Deste momento em diante, na luta contra o Sumo Pontífice, a balança pendeu em favor do poder político. Efetivamente o choque se deu quando, no fim do século XIII, Bonifácio VIII, através da bula Clericis Laicos (1296), contestava a validade das taxas cobradas dos eclesiásticos na França sem a permissão do papa. Tal bula, entretanto, não tratava especificamente do caso francês; tinha sim um caráter geral, de proibir o pagamento de taxas e o atendimento de outras demandas (a concessão de bens da Igreja, ajudas de qualquer sorte, etc) por parte de clérigos a qualquer poder soberano temporal sem o consentimento expresso da Sé Apostólica. Mas, em virtude de trocas de acusações prévias entre o papa e Felipe, o Belo, ficava evidente que seu “alvo” era, de fato, o rei da França. Vejamos no texto da bula:

(...) O tempo nos tem mostrado que os laicos têm sido sempre hostis em excesso para com o clero; e isto o demonstra claramente a experiência dos tempos

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presentes, pois, não contentes com suas limitações, os laicos desejam coisas proibidas e dão rédea solta à busca da ganância ilícita (...) Ordenamos severamente a todos os prelados e pessoas eclesiásticas (...) em virtude da obediência e sob a pena de deposição que agora em diante não consintam em tais demandas [pagamentos de taxas entre muitas outras] sem a permissão expressa da dita Sé.” (BONIFÁCIO VIII apud BLANCO, 1973 , p.273 e 275).

O que se seguiu foi uma série de episódios com medidas drásticas tomadas de ambos os lados. Por fim, poucos dias depois do papa emitir a bula Super Petrio Solio (1303), desligando os súditos de Felipe da obediência ao seu rei, Nogaret (conselheiro francês), à frente de uma pequena tropa, entrou na cidade de Anagni, onde estava o papa, e o aprisionou. Bonifácio foi logo posto em liberdade (ficou só três dias aprisionado), mas morreu, em virtude do choque possivelmente (há também suspeita de maus tratos), cerca de um mês depois. Foi o episódio que ficou conhecido como o “Atentado de Anagni”, que selou a vitória capetíngia, uma vez que, conforme comentado no capítulo anterior, após a morte do papa Bonifácio, o Papado deslocou-se para Avignon, passando a ser, de certa forma, tutelado pelo poder real francês. No bojo das disputas entre Bonifácio e Felipe, desenvolveu-se um brilhante conflito de teses, hierocráticas e antihierocráticas. Na defesa do Papado, além das teses do próprio papa (estudadas no capítulo anterior), ergueram-se nomes de peso como Egídio Romano e Tiago de Viterbo. Egídio Romano, teólogo agostiniano, arcebispo de Bourges, em seu De Ecclesiastica Potestate (1301), defendia a preeminência temporal e espiritual do papa e a direção

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suprema dos dois domínios pela Igreja Universal segundo os argumentos mais correntes. Ele, de acordo com Yves Congar (1970, p.272), via a Igreja sob um ângulo cristológicohierárquico e não comunitário-pneumatológico, como corpo hierarquizado, resumido na autoridade do seu caput, o Cristo, representado na terra pelo papa “qui tenet apicem ecclesie et potest dici ecclesia” (“que é quem ocupa o ápice da Igreja e pode ser visto como a própria Igreja”). De fato, como estuda Marcel Pacaut (1989, p.147), sua obra só adquiriu uma amplitude original quando estudou as noções de autoridade e de posse. Por um lado, elas eram necessariamente únicas para a harmonia do universo, pertencendo em princípio ao Sacerdote. Por outro, constatando que os defensores do poder político identificavam o reino como um patrimônio pessoal do rei onde sua autoridade é pleníssima, expôs que os bens do mundo pertencem somente a Deus e que ele os concedeu à Igreja e aos príncipes para que estes realizem não sua obra material e humana, mas a obra divina, isto é, a defesa da religião e a procura da Salvação. Em seguida, desenvolveu a idéia que estes bens estão a serviço das almas, mesmo quando utilizados pelos corpos. Estão assim, em princípio, a serviço da Igreja que é quem tem a jurisdição absoluta sobre as almas. Dentro desta mesma idéia, prossegue Pacaut (ibid., p. 147), para Egídio Romano as leis temporais, decididas apenas pelos príncipes, tinham valor somente se se apresentavam de acordo com a Justiça. A razão de Estado é secundária e não pode, de maneira nenhuma, ser invocada contra a responsabilidade e o direito da Igreja. Desta forma o papa, que se encontra na direção da Igreja inteira, é que tem o verdadeiro dominium, ou seja, a posse e a autoridade. Os príncipes e particulares em geral, têm somente “domínio útil” (um domínio inferior) que, inclusive, pode lhes ser retirado se eles se mostram indignos.

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Vejamos então a passagem do De Ecclesiastica Potestate onde Egídio Romano esclarece a quem pertence, no que se refere as coisas temporais, o domínio superior e o domínio inferior:

“A Igreja tem em todas as coisas temporais um domínio superior, enqua nto que os outros só podem ter um domínio inferior” (EGÍDIO ROMANO, 1989, p. 135).

Segundo Luís A De Boni (1989, p.19), o De Ecclesiastica Potestate à primeira vista pode parecer que simplesmente retoma a disputa teórica da época das investiduras, com seus mesmos argumentos e exemplos. Na realidade, segundo De Boni (ibid., p.19), ainda que os argumentos e exemplos sejam os mesmos, a questão é nova, não é mais a relação entre o papa e o imperador dentro de uma única Cristandade; trata-se agora de definir qual a relação entre o poder eclesiástico e o civil na constituição de novos Estados soberanos. A fim de explicar a relação entre os dois poderes, Egídio Romano desenvolve toda uma teoria sobre o domínio (dominium). Trata-se de um conceito-chave. Domínio é relação do superior para com o inferior. Quanto entre pessoas chama-se autoridade; quando entre coisas, posse. Em primeiro lugar, prossegue De Boni (id., p.19), o domínio da Igreja é universal e genérico, enquanto o domínio do príncipe é particular e específico. Em segundo lugar, o domínio do poder civil age como o que prepara a matéria para o poder espiritual. Assim os príncipes, ao administrarem a justiça e manterem a tranqüilidade entre os súditos,

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limitavam-se a preparar as pessoas para o exercício de virtudes que transcendem os horizontes de sua atuação. Com efeito, partindo da idéia de dominium, do domínio da Igreja e do domínio do poder civil, Romano determina que o poder temporal se limita a dominar as coisas temporais, mas o poder espiritual submete tanto estas como seus donos, uma vez que domina o próprio poder terreno. Retornemos ao texto do De Ecclesiastica Potestate:

“O poder terreno domina as coisas temporais (...) tal poder está sujeito, com todo direito e razão, ao poder espiritual (...) o poder espiritual domina não só o poder terreno, mas também as coisas temporais, uma vez que se mostre que o poder eclesiástico tem sujeitas tanto as coisas temporais como os seus donos.” (EGÍDIO ROMANO, op. cit., p.96).

No século XIV, Egídio Romano, como estuda De Boni (op. cit., p.13 a 20) , não pode negar um âmbito específico de ação do Estado, nem seu direito à existência. O Estado é uma exigência da natureza, como diz a tradição aristotélica-tomista, à qual, porém, Romano acrescenta que é uma exigência da natureza enquanto voltada para o fim superior da natureza: a salvação do homem. Na realidade não passa de um momento intermediário dentro de um ordenamento maior; é um degrau superior ao qual tendem necessariamente os homens, a fim de verem satisfeitas as suas necessidades terrenas, mas não passa disto. O fim, para o qual tende, sequer o pode descobrir por si mesmo; encontra-o através da Igreja, instituída para conduzir a este fim e revelá- lo aos homens. Sem o ordenamento à Igreja, torna-se impossível pensar no Estado, seria o mesmo que abstraí-lo do universo.

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De fato, Egídio Romano acredita que, por um lado, o poder dos reis deriva da Igreja e, por outro, sem a Igreja nenhum soberano pode reinar justamente. Três são os meios apontados por Romano, através dos quais a Igreja concede aos reis os seus reinos: a instituição, a regeneração ou absolvição e a unção e benção. Vejamos mais uma passagem do De Ecclesiastica Potestate:

“Das três maneiras diz-se que (...) se tornaram reis através da Igreja: ou porque foram instituídos através dela, ou porque foram regenerados ou absolvidos por ela, ou porque foram ungidos e abençoados por ela (...) Não há ninguém, pois, que não deva reconhecer que seu reino vem da Igreja, através da qual reina justamente, e sem a qual não pode reinar justamente” (EGÍDIO ROMANO, op cit., p.189).

Tiago de Viterbo, aluno de Egídio Romano, deu prosseguimento a sua obra. Em seu De Regimine Christiano (1301-02), como estuda Marcel Pacaut (op. cit., p.148), a Igreja tem dupla jurisdição: por um lado sacerdotal (conferir os sacramentos, celebrar os ofícios, pregar); política por outro lado (julgar, punir, administrar). Também, prossegue Pacaut (ibid., p.148), a análise do poder civil em Tiago de Viterbo parte da idéia que, dentro de seu princípio essencial, todo o poder vem de Deus, autor das leis naturais, mas que, no seu exercício, o poder civil tem necessidade, para satisfazer sua missão (conduzir os homens para a Salvação), da fé e da graça, sem as quais seria inadequado à sua finalidade. Como se tratam de coisas sobrenaturais, resulta que o poder temporal não pode realmente agir em desacordo com a autoridade espiritual, sob a jurisidição da qual ele está sempre colocado.

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Assim, conclui Pacaut (id., p.148), por um raciocínio filosófico e teológico que é uma das características essenciais desta literatura do século XIV, Tiago de Viterbo atribui ao papa uma supremacia total e única (PACAUT, 1989, p.148). Tiago de Viterbo acredita realmente, pela própria origem e finalidade do poder secular (conduzir as pessoas a uma vida virtuosa), que este, ainda que dependa de uma inclinação natural dos homens (e, portanto, daquele que é o soberano do domínio natural, ou seja, de Deus), depende também do poder espiritual, porque, em caso contrário, seria imperfeito e sem forma. Vejamos no próprio texto do De Regimine Christiano :

“O poder secular, se ele é justo e está ordenado, tende em sua origem e em seu fim a conduzir as pessoas para uma via virtuosa (...) O estabelecimento do poder temporal depende naturalmente e logicamente de uma inclinação natural dos seres humanos e, assim, de Deus, uma vez que o domínio natural é o domínio de Deus. Mas, para ser perfeito e para tomar forma, ele depende do poder espiritual (...) Pois todo poder humano, não formado e não completado pelo espiritual, é imperfeito e sem forma (...) (TIAGO DE VITERBO apud PACAUT, id., p. 149 e 150).

Disto resultam duas grandes conclusões: a) uma vez que o poder temporal existe em função do espiritual ele deve sempre lhe fornecer ajuda e lhe prestar submissão; e b) o caput da Igreja, o papa, possui assim um poder único com competência sobre o temporal e o espiritual. Voltemos ao De Regimine Christiano em duas passagens distintas:

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“(...) O poder temporal é chamado a ajudar o espiritual, e, por este apelo, ele deve lhe fornecer ajuda e lhe prestar submissão (TIAGO DE VITERBO apud PACAUT, id., p.150).

“O papa não possui dois poderes distintos e separados, mas, por seu poder único, ele tem competência sobre o temporal e o espiritual” (TIAGO DE VITERBO apud PACAUT, id., p. 150).

Do lado da corrente antihierocrática encontravam-se cabeças muito variadas, mas que tinham em comum o fato de pretender limitar, a todo custo, o poder dos papas. Com efeito, ao longo dos séculos XIII e XIV, duas causas modificaram gradualmente as possibilidades de se abordar as questões do poder gerando um modo distinto da versão hierocrática. Uma foi o fortalecimento do Estado, não apenas no plano dos fatos, mas também devido ao gradual desenvolvimento de uma consciência lú cida de autonomia do poder temporal em sua ordem e do caráter humano e ético da verdadeira função que ele exerce. Desenvolveuse também a concepção que é o conjunto dos súditos que forma o sujeito da vida e do poder: quod totus populus habeat rationem principis. Nesta mesma linha ganhou também força um conceito de Igreja não clerical, uma Igreja composta pelos seus membros, pelos seus fiéis: Congregatio Fidelium identificada como a Ecclesia Universalis. A outra foi a substituição por uma epistemiologia de tipo “empírico-científica” da intelectualidade de tipo sacral e simbólica que em grande parte nutria as afirmações hierocráticas: ao lugar de se tirar profundas conseqüências políticas de textos interpretados simbolicamente e de alegorias arbitrárias, a procura de um sentido mais literal, histórico.

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Esta segunda mudança deve-se fundamentalmente a recepção na Europa cristã do corpus central do pensamento aristotélico, ocorrido durante os séculos XII e XIII. Em conseqüência destes processos, no início do século XIV, surgiram novas perspectivas no campo das “idéias políticas”. Em conseqüência do confronto com a teoria radical de Bonifácio VIII, desenvolveu-se uma radicalização das posturas, tanto as embasadas fundamentalmente no direito romano, os “teóricos” e “legistas”, quanto, embora em menor escala, as embasadas no pensamento tomista: João Quidort e Dante Alighieri. De fato os dois, segundo Yves Congar (op. cit., p.285), representaram uma “via média” entre a supremacia dos papas e a dos reis. No século IX a exaltação do poder real na França fora celebrada por Jonas d’Orléans no seu De Institutione Regia (composto à intenção de Pepino da Aquitânia). Nesta obra, o poder régio é inteiramente confundido com o exercício da justiça: o rei justiciador não deve se submeter a outro controle senão ao de Deus. Mas até Felipe, o Belo, os reis franceses tiveram sucesso em conciliar o sentimento bastante vivo que tinham de sua independência no controle do reino com uma atitude de submissão, aparente ou real segundo o caso, ao papa. Entretanto, diante da proposta radical, de potestas directa, de Bonifácio VIII, e mediante o fortalecimento do Estado e das idéias de autonomia do poder temporal, o conflito se abriu. A autonomia do poder temporal foi de fato a grande ambição dos príncipes do século XIV, mas ela, lá ainda, só podia se afirmar reivindicando em seu proveito a totalidade dos poderes. Para ser legítima, ela devia ser garantida por seu fundamento em Deus: nestas condições, o poder temporal devia se encontrar investido das mesmas responsabilidades e prerrogativas das quais o papa se estimava o legítimo detentor De mais, em virtude do

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poder coercitivo, reis e imperadores tinham, muito mais diretamente, os meios de se fazer respeitar, tanto pela Igreja quanto pelo mundo dos laicos. A autoridade suprema e universal do Papado foi então enfrentada pela supremacia única, absoluta e a competência universal do poder real. Tantos as incursões do Papado no temporal podiam parecer, ao nome do princípio da distinção dos poderes, ilegítimas, quanto as intromissões do Estado nos assuntos eclesiásticos podiam ser consideradas como sujeitas a caução. Mas a história das relações entre os poderes foi constantemente marcada por este movimento pendular que jamais cessou de ocorrer durante a Idade Média. Paradoxalmente, foi o próprio Papado que, no decurso de seus conflitos com o Império, forneceu uma ajuda ideológica preciosa ao desenvolvimento da monarquia francesa. Inocêncio III, na decretal Per Venerabilem (1202), declarava que o rei da França não possuía superior no temporal. Inocêncio IV (1243-1254), rejeitava igualmente a idéia de uma subordinação do rei da França ao imperador germânico. Também o enfraquecimento do Sacro Império, perpetuamente em luta com o Papado, permitiu, sobretudo após a desintegração dos Hohenstaufen, em larga medida aos capetíngios se libertarem de sua tutela, e afirmarem a autonomia do seu poder real e, mesmo, de alguma forma, procurarem assumir o prestígio e o espaço político do poder imperial decadente. A corrente ideológica da supremacia real apareceu e se confirmou com a ajuda tanto do direito romano como do canônico. Com efeito, Tancredo, Gui de Baisieux, Vicente de Espanha prepararam em suas glosas a via que conduziria à fórmula de Inocêncio III no Per Venerabilem Foi o próprio papa, como vimos, quem reconheceu a autoridade real. Os

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“legistas” franceses realizaram a etapa decisiva. Os ideólogos do poder real estabeleceram claramente, face ao poder pontifício e imperial, a autonomia e supremacia do poder real. O rei São Luís (Luís IX – 1226 a 1270) tinha já fortemente enraizado nos espíritos a idéia segundo a qual o “poder legislativo” emana da pessoa do rei. Mas as ordenações reais, que naturalmente visavam o bem comum do reino da França, tinham peso somente no domínio real propriamente dito; os territórios feudais não estavam incluídos nesta submissão, o rei devia compor com os barões do reino. Foi de fato somente com Felipe que a idéia da inalienabilidade do poder público se impôs: a querela bonifaciana permitiu aos “legistas” precisar sua idéia de Estado e, em particular, colocar um acento sobre a reivindicação da plenitude da jurisdição em favor do poder real. Uma tal reivindicação visava, no primeiro plano, as imunidades eclesiásticas. Não encontrava-se formulada enquanto um protesto de caráter geral, mas na forma de críticas a questões específicas, por exemplo a respeito da propriedade eclesiástica, ou da jurisdição religiosa. O conflito em si, porém, já que uma vez mais tocou na questão do princípio da distinção dos poderes, permitiu também ao Estado, além de reencontrar a plenitude dos seus direitos no temporal, procurar recuperar, ao menos em parte, a autoridade espiritual. Um dos argumentos mais marcantes dos “legistas” foi o da dependência direta do poder real com relação a Deus. A melhor prova da independência de seu poder é o fato de que ele vem diretamente de Deus. A autonomia do Estado foi então, em certa perspectiva, legitimada por sua origem divina. Ela conferia ao rei uma responsabilidade sem limites. Rapidamente se defendeu o aspecto religioso da função real. Recuperando a antiga idéia “ministerial”, agora porém em favor do poder político, se defendeu a tese de que Felipe devia ser o “defensor” da Igreja. Ele, o ungido do Senhor, devia ter ao menos um poder

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indireto sobre o espiritual. Com efeito, o caráter sagrado da monarquia francesa foi um fator de primeira ordem na sua independência, e mesmo, de certo modo, um instrumento fundamental de sua autoridade espiritual: a sagração torna o rei o representante no temporal de Deus sobre a terra da França e, consequentemente, o verdadeiro chefe da Igreja francesa. Na realidade, ao longo da querela, as reivindicações fundamentais do poder real contra o Papado se articularam, como salienta Jeannine Quillet (op. cit., p.73), ao redor de quatro grandes temas: poder soberano sobre os bens e pessoas, exercício exclusivo da justiça, autonomia absoluta da legislação, e mesmo, numa certa medida, controle do espiritual. Os “legistas” insistiam, em particular, sobre a identificação progressiva da idéia do rei a do Estado. Eles concentravam nas mãos do rei os principais componentes do poder público: controle da propriedade eclesiástica, fortalecimento da jurisdição real em detrimento das jurisdições eclesiásticas, pleno poder do rei sobre a Igreja do reino, entre outros pontos. Entretanto é preciso salientar que eles jamais chegaram a desenvolver uma idéia de subordinação completa do poder religioso ao político. Foi somente Marsílio de Pádua quem realizou esta etapa decisiva como estudaremos nos capítulos seguintes. A grande diferença entre os “legistas” e João Quidort é que o segundo, embora súdito de Felipe, não era um “ïdeólogo de corte”, ou seja, não estava diretamente envolvido no conflito tendo como função defender a política de seu rei, mas uma pena relativamente independente (tratava-se sim de um homem da igreja, um dominicano). É evidente, entretanto, que João Quidort, ao estudar o poder real, toma por modelo e tem no primeiro plano de suas preocupações a França de Felipe. Ele, em sua De Regia Potestate et Papali (1302-03), defendia um caminho

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antihierocrático que já identificava uma distinção de ordens, a temporal ou do regnum (reino) e a espiritual ou da Igreja (sacerdócio). O reino era visto como um poder político e o sacerdócio como um poder religioso. O primeiro era o governo de um único príncipe, mas em nome de uma multidão perfeita e ordenado ao bem comum. O segundo era o poder confiado por Cristo aos sacerdotes para dispensarem os sacramentos aos fiéis. Vejamos nas palavras de Quidort nestas duas passagens distintas do De Regia Potestate et Papali :

“O reino, em sentido próprio, pode ser definido assim: reino é o governo de uma multidão perfeita, ordenado ao bem comum e exercido por um só indivíduo” (JOÃO QUIDORT, 1989, p.44).

“(...) pode ser assim definido o sacerdócio: o sacerdócio é o poder espiritual conferido por Cristo aos ministros da Igreja para dispensarem os sacramentos aos fiéis” (JOÃO QUIDORT, ibid., p.48).

Desta forma, os sacerdotes não tem qualquer direito ou jurisdição em coisas temporais, excetuando-se apenas o necessário para gerir seu próprio sustento. Ou seja, com a distinção entre regnum e Igreja, Quidort procurava resguardar a autonomia do poder temporal. Voltemos ao texto do De Regia Potestate et Papali:

“Cumpre agora ver o que podem os bispos e sacerdotes sobre os príncipes, em coisas temporais, pelos poderes que lhes foram dados. Por nenhum dos referidos poderes têm eles poder direto, ou jurisdição em coisas temporais, a não

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ser para que possam receber o necessário ao sustento” (JOÃO QUIDORT, id., p.88).

Na realidade, entretanto, Quidort acreditava que as duas jurisdições, regnum e Igreja, deviam viver em paz, respeitando uma o domínio da outra. Isto é, para ele as intromissões do poder real no âmbito eclesiástico eram tão ilegítimas quanto a dos sacerdotes no âmbito político. Foi em virtude desta distinção rígida, de fato em duas ordens totalmente independentes uma da outra, que seu pensamento foi caracterizado por alguns autores, como, por exemplo, Yves Congar (op. cit., p.281), como dualista. Com efeito, como visto acima, João Quidort caracteriza o regnum como uma instituição puramente natural e a função régia tem por fim assegurar o bem comum das pessoas. Segundo Congar (ibid., p.285), tal fim consiste, para cada indivíduo e para toda a cidade, “viver segundo a virtude”. Tais virtudes são de fato as cristãs, mas já se admitia também as virtudes cívicas, úteis apenas para a grandeza do Estado. Segundo Luís A De Boni (1988, p.33), João Quidort conseguiu, ao tratar da relação entre os poderes, salvar o princípio tomista de que a ordem natural constitui um fim em si mesma. Não se trata mais de equacionar dois poderes dentro de uma só Cristandade, mas de situá-los em duas instituições diferentes, independentes e correlatas. O Estado agora consegue tornar-se mundano, mas para tanto é necessário que a Igreja se torne espiritual. A nível histórico, encontrava-se rompida a unidade político-religiosa da Idade Média. A unidade, entretanto, foi resguardada de outra forma. Com efeito, segundo De Boni (ibid, p.33), Quidort não repudiava a lei da unidade, que toda a Idade Média tem como necessária à ordem e à inteligibilidade do fenômeno

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político. Mas enquanto o “sacerdotalismo” situava o centro comum no Papado, fonte de todo o poder humano, João Quidort o colocava em Deus, donde derivam igualmente o Papado e a Realeza. Como conseqüência, a construção clássica da Idade Média encontra-se espiritualizada em seu próprio princípio. De fato, como resposta a questão da derivação do reino e do sacerdócio, Quidort estabelece uma distinção entre ordem de dignidade e ordem da causalidade. Com relação ao primeiro aspecto, admite uma certa superioridade ao sacerdócio. Mas tal superioridade não significa que o reino derive do sacerdócio como afirmam as autoridades eclesiásticas e, em especial, o Papado. Ou seja, ainda que haja uma ordem de dignidade entre os dois, não há uma ordem de causalidade. Na realidade, tanto o reino quanto o sacerdócio foram criados imediatamente por Deus e, portanto, cada um se ordena ao seu próprio fim e não de um para o outro. Vejamos nas palavras de João Quidort:

“Eles [o reino e o sacerdócio] têm, de fato, uma certa ordem de dignidade (...), mas não de causalidade, pois um não provém de outro, assim como todos os anjos são produzidos por Deus segundo uma certa ordem de dignidade, enquanto, por natureza, um é mais digno que o outro, mas não há entre eles ordem de causalidade, pela qual um provém do outro, mas todos são criados imediatamente por Deus (...) a ordenação de cada um para seu próprio fim e não a de um para outro, o que fica claro pelo que se segue, ao falar do príncipe (...) (JOÃO QUIDORT, op. cit., p.112). (O grifo é meu).

Mas a concepção política de João Quidort, além de procurar afastar as intromissões

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papais no âmbito político, já procurava limitar seu poder dentro da própria Igreja. Tal concepção tinha por conclusão a idéia que o poder do Concílio Geral podia, em sua plenitude, inclusive depor um papa em caso de heresia ou escândalo. Segundo Yves Congar (op. cit., p. 285), com relação ao Papado, Quidort excluía inteiramente a tese monárquica, uma vez que o papa, além de ter apenas um poder episcopal, encontrava-se submetido a uma “teologia da Ecclesia”: ele é o elemento supremo da Igreja, encontra-se à sua testa para resguardar sua unidade, mas há questões que ultrapassam o âmbito da autoridade papal. A fé, com efeito, não pertence ao papa, mas à Ecclesia, é por isto que ele não pode definir questões dogmáticas sem um Concílio Geral. Vejamos, por mais esta passagem do De Regia Potestate et Papali, como Quidort, ainda que admitindo ao papa uma virtude suprema, caracteriza o Concílio Geral (e secundariamente o Colégio de Cardeais) como aquele corpo dotado da autoridade espiritual máxima na Igreja, derivada mesmo do próprio Deus, e, portanto, com poder de depor um papa quando seus pecados forem manifestos e sua incorrigibilidade for evidente:

“Embora seja a virtude suprema numa só pessoa, há contudo uma virtude igual ou superior a ele no colégio de cardeais ou em toda a Igreja. Ou pode-se dizer que o papa pode ser deposto pelo colégio e mais ainda pelo concílio geral, com autoridade divina, cujo consentimento supõe-se e presume-se, quando é manifesto o escândalo e a incorrigibilidade do dirigente supremo” (JOÃO QUIDORT, op.cit., p. 147).

Em João Quidort, entretanto, estamos ainda na linha de pensamento que admitia a

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existência de uma única beatitude, um só fim último - a felicidade espiritual. Pois, ainda que o reino devesse conduzir a multidão a um fim terrestre, à virtude, este fim, posteriormente, deveria se ordenar a um fim superior, à fruição de Deus. Vejamos as palavras de Quidort:

“O reino (...) está constiuído com a finalidade que a multidão reunida viva segundo a virtude; isto, porém, ordena-se posteriormente a um fim mais elevado, que é a fruição de Deus” (JOÃO QUIDORT, ibid., p.53).

Foi somente Dante Alighieri que chegou ao ponto de conceber a existência de duas beatitudes, dois fins últimos. Dante, diferentemente dos “legistas” e de Jean Quidort, não se opôs a Bonifácio VIII por defender os capetíngios (na realidade, ele os censurava vivamente devido às perspectivas imperiais da monarquia francesa, vistas como uma usurpação da verdadeira autoridade imperial, a do Sacro Império), mas por outros motivos, ligados a Itália e a Florença conforme estudaremos. Efetivamente, em Dante a felicidade temporal não se encontra mais subordinada à espiritual: elas correspondem de fato aos cumes de dois caminhos distintos, duas vias, respectivamente a filosófica e a teológica. Em outras palavras, duas são as beatitudes: a beatitude terrestre, ou seja, o exercício da virtude (figurada pelo paraíso terrestre) e a beatitude celeste, quer dizer, a fruição divina (que se estende pelo paraíso celeste). Dois são também os meios para se alcançar as beatitudes: chegamos à primeira se cumprirmos os ensinamentos filosóficos (isto é, aristotélicos) e se exercitarmos as virtudes morais e intelectuais (Justiça, Temperança, Prudência e Firmeza d’Alma); chegamos à segunda por meio de doutrinas espirituais (a Revelação) e

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exercitando as virtudes teológicas (Fé, Esperança e Caridade). Vejamos nas palavras de Dante na De Monarchia:

“Dois fins deu ao homem a inefável Providência: a beatitude desta vida que consiste no exercício da própria virtude e que se figura pelo paraíso terrestre; e a beatitude da vida eterna, que consiste na fruição da presença divina, à qual não pode ascender a virtude se não é ajudada pela luz divina e que se estende pelo paraíso celeste. A estas diferentes beatitudes, como a diversas conclusões, se deve chegar por diversos meios. Chegamos à primeira por doutrinas filosóficas, desde que, todavia, sigamos os ensinamentos destas e exercitemos as virtudes morais e intelectuais. Chegamos à segunda por meio de doutrinas espirituais que excedem a razão humana, desde que as ponhamos em prática com o auxílio das virtudes teologais, fé, esperança, e caridade” (DANTE ALIGHIERI, s/d, p. 210 e 211).

As duas vias, porém, conforme apontei no artigo O Pensamento Político de Dante Alighieri, não são colocadas no mesmo plano de importância: a terrena é logicamente inferior à celeste, ou como nos diz o próprio Dante: “A felicidade mortal ordena-se em certo modo à felicidade imortal” (DANTE ALIGHIEIRI, ibid., p.213). E, além disto, há uma perfeita associação entre as duas. A perfeição temporal aparece como um estágio inicial necessário, a pré-condição para a perfeição eterna; e esta última por sua vez, completa e consagra a primeira. Também a felicidade temporal ou perfeição deste mundo já é para Dante plenamente sagrada, uma santidade da natureza, que não se confronta com a

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Santidade, puro dom da graça; por um lado é sua pré-condição para o desenvolvimento da alma e, por outro, prepara já esta alma, para que a graça complete e dignifique ainda mais a santidade da natureza (TÔRRES, 1998, p.26). Entre 1315-20, Marsílio esteve a serviço de potentados gibelinos da Itália Setentrional (Mateus Visconti de Milão e Cangrande della Scala de Verona - vigários imperiais em nome de Luís IV, da Baviera). Em 1318 recebeu uma provisão papal para exercer o canonicato em Pádua. Isto levou muitos autores a pensar que ele tivesse recebido ordens maiores. Mas era apenas um provisio sub expectatione praebendae (provisão na expectativa de uma prebenda), que não obrigava o agraciado a vincular-se pelo sacramento da Ordem à hierarquia eclesiástica. Estando então Marsílio em comunas gibelinas e militando junto às cortes dos seus signori é bastante provável que tenha sido então que ele tomou contato com a perspectiva dantesca, uma vez que se sabe que cópias do manuscrito da De Monarchia circulavam então por estas cidades e eram inclusive utilizadas, por muitos potentados, como libelo da causa gibelina. Passando a analisar especificamente a Itália vemos que, no começo do século XIV, a atmosfera política peninsular continuava bastante agitada e confusa. O conflito Império-Papado no solo italiano, desde o século XII, favoreceu o surgimento na península de dois partidos, o gibelino e o guelfo. Havia cidades cujos governos estavam ligados a um ou ao outro partido. Também, dentro de uma mesma cidade, tais disputas ocorriam: de um modo geral, entre os gibelinos enfileirava-se a velha nobreza e já os guelfos representavam o partido dos popolani (os mercadores). Tal luta marcou profundamente toda a vida peninsular desde o fim do século XII: discórdias, guerras e levantes, exílios, confisco de bens, represálias, vendette. Mas ela, entretanto,

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como salienta Jacques Heers (op. cit., p. 131 e 132), não se resumia, como se afirma freqüentemente, na dos partidários do imperador e do papa. Tal divisão é somente básica e não vale absolutamente para todas as situações, variando de acordo com as características das velhas rivalidades locais, manifestando-se em lutas que, muitas vezes, pouco ou nada tinham a ver com o Império e o Papado. A relativa supremacia pontifícia obtida após a destruição da linha Hohenstaufen fez arrefecer, mas não eliminou de todo, a luta de mil episódios entre guelfos e gibelinos. Somado a isto, e a isto inextricavelmente ligado, a violência endêmica das facções sociais em luta, processo variável de cidade para cidade, opondo nobres, mercadores, a “massa” de artesãos e extratos sociais inferiores, se agravou muito a partir de fins do século XIII, tornando a vida citadina algo próximo da guerra civil. Segundo o que observa Salvador Claramunt (1995, p. 291 e 292), no Trecento a Itália aparecia muito mais dispersa e dividida em seu quadro político que nos séculos anteriores. Entre o arco alpino e os “Estados Pontifícios”, as numerosas comunas disputavam o espaço político, em meio a um agitado panorama onde o velho sistema de liberdades, tão dificilmente alcançado, foi substituído pelo governo fechado de diferentes famílias. Era geral na Itália do norte a instabilidade política e as dissensões internas. Como comenta Quentin Skinner (1996, p.45 a 47), os popolani, a despeito de sua riqueza crescente, não tinham voz ativa nos conselhos governantes de suas cidades, mantidas sob controle das principais famílias da nobreza. A primeira investida dos mercadores tomou a forma da instalação, por eles próprios, de um conselho ou popolo, presidido por um líder eleito diretamente, o capitano del popolo. Uma vez aberta esta cunha no monopólio aristocrático do governo citadino, o passo seguinte que os popolani

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geralmente deram constituiu em forçar uma série de medidas visando a restringir ou mesmo proibir o acesso dos nobres às posições de poder político. Porém, qua nto mais os popolani se batiam por pretensos direitos, mais a velha nobreza resistia, gerando um quadro de lutas violentas que gradualmente se acirravam. O que acabou levando, na maior parte das cidades, à ascensão dos signori. Diante deste panorama de lutas civis que se acirravam, não parece surpreendente, prossegue Skinner (ibid., p. 47), que em fins do século XIII a maior parte das cidades tenha chegado à conclusão, mais ou menos voluntária, de que sua melhor esperança de sobrevivência residia em aceitar a chefia forte e unificada de um signore, em vez de liberdades em estado caótico. O século XIV assistiu igualmente a duas novas investidas imperiais contra a Itália: a de Henrique de Luxemburgo no início do século e a de Luís da Baviera na década de vinte. Na primeira, a rápida e eficaz reação citadina eliminou facilmente o invasor; a última redundou em terrível fracasso com as tropas imperiais, derrotadas, se dissolvendo por falta de paga. Ou seja, estas duas últimas incursões do Império em solo peninsular em nada puderam lembrar a glória dos Hohenstaufen. Aliás, na longa luta que travaram contra o Império, as comunas não obtiveram apenas vitórias militares, como já dito no capítulo anterior, constituíram também um arsenal de armas ideológicas no sentido de legitimar a resistência àquele que era, nominalmente, seu suserano. Não podemos evitar a comparação entre as cidades italianas e o reino francês. A grande diferença é que as cidades do centro-norte da península, ainda que autônomas, estavam contudo reatadas ao Império por ligações jurídicas que, mesmo sendo formais, não

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estavam em segundo plano conforme observamos; já o rei francês, como vimos, rápido deixou de reconhecer uma tal dependência, mesmo de pura forma. Quentin Skinner salienta (id., p. 29 e 30) que, com efeito, as afirmações de libertas contra o Império não tinham realmente força legal. O estudo do direito romano renascera nas escolas urbanas de Ravena e de Bolonha em fins do século XI e, em conseqüência, o Código Romano passou a servir como base em que se enquadravam a teoria e a prática da lei por todo o Sacro Império. Também, desde que os juristas começaram a estudar e glosar os textos antigos, o princípio mestre para a interpretação da lei foi o de seguir fielmente todos os itens do Código de Justiniano. Pois bem, os textos antigos enunciavam que o princeps, ou seja, o imperador romano, devia ser considerado o dominus mundi. Porém, em começos do século XIV deu-se uma alteração radical de perspectiva. Segundo Skinner (id. p. 30 a 34), o grande nome aqui foi o de Bartolus ou Bartolo de Saxoferrato (1314-1357), o fundador da escola posteriormente chamada dos pósglosadores, que adotou como único preceito que, quando havia colisão entre a lei e os fatos, era a lei que devia se conformar aos fatos. Segundo Skinner, a idéia de Bartolo é que, ainda que o imperador pudesse pretender o direito de ser o único governante supremo do mundo e somente ele portar o merum Imperium (um complexo conjunto de poderes legislativos, judiciários, executivos e mil itares, sancionado pelo Código), como havia muitos povos que de fato não obedeciam ao imperador e, por toda a Itália da época, governos de muitas cidades assumiam de fato o exercício destes mesmos poderes, a lei e o próprio imperador deviam se preparar para aceitar a situação de fato. Pode se questionar que tal solução vinculava-se apenas à prerrogativa imperial segundo o direito romano, deixava de fora portanto o direito feudal que detinha o

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imperador sobre as cidades (todo o Regnum Italicum, conforme vimos no primeiro capítulo, era vassalo do Império desde a aliança matrimonial entre Oton I e Adelaide). Mas, de fato, desde a paz de Veneza (1177), o guelfismo nascente não rejeitava o imperador, seu suserano supremo. O que se defendia, entretanto, era que o Império não correspondia a uma federação nem uma confederação, mas uma simples assembléia de entidades políticas diversas. No centro- norte da Itália, o imperador devia exercer apenas alguns direitos regalistas, quando estivesse presente. Em última análise, as cidades exigiam que fossem respeitados as liberdades e costumes de cada uma delas. Aceitavam assim a pretensão do universalismo imperial, se ele respeitasse as liberdades político-administrativas locais. Com efeito, a Idade Média não via em oposição, mas em articulação, a parte e o todo, ela os via segundo a idéia de corpo. Jean-Claude Schmitt (2001, p.344 a 359) salienta que a Idade Média, fazendo frente à fragmentação feudal, como imagem organicista de unidade e de coesão social, pôs em relação três grandes aspectos: o corpo do homem individual, o corpo divino e o corpo social. Estuda então como os medievais trabalharam cada uma destas concepções concluindo que, em todos os casos, a idéia de corpo foi bem o paradigma eficaz que dava sentido e coesão a toda uma sociedade, a toda uma cultura. Foi, no século XII, João de Salisbury (c. 1115-1180) quem deu a primeira expressão coerente à metáfora organicista do reino. O rei é a cabeça do grande corpo do reino, onde os oficiais, os clérigos, os cavaleiros, os mercadores são os diferentes membros, sem esquecer os camponeses que são os pés. Nesta visão, o imperador, rei dos romanos, compunha a cabeça de uma grande unidade, o Sacro Império (a nova Roma), onde reinos, cidades, feudos, poderes locais de toda a sorte, ou seja, suas partes integrantes, formavam seus membros.

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Durante toda a luta que travaram contra o Império, as cidades italianas tiveram como grande aliado o Papado conforme vimos no capítulo anterior. Entretanto, esta aliança guardava um enorme perigo : o de que os papas procurassem eles mesmos governar o Regnum Italicum. Quentin Skinner (op. cit., p.34 e 35) , estudando também esta questão, salienta que um fato militar, a derrota de Frederico II e de seus filhos, deixou o Papado no papel de poder predominante numa área vastíssima do norte, do centro e do sul da Itália. Também por esta época, como Skinner observa, os papas começaram a procurar, aliás com sucesso, manipular as políticas internas das comunas, de forma que, já em fins do século XIII, conseguiram assumir controle direto e temporal sobre vasta parte do centro da Itália, assim como considerável influência sobre a maioria das principais cidades do Regnum Italicum. Clemente IV concentrou-se em Orvieto, percebendo a importância estratégica de sua posição, a meio caminho entre Florença e Roma. Até chegou a transferir a Cúria para essa cidade em 1266, e nisto foi seguido por Gregório X, em 1272, e por Martinho IV e Nicolau IV em várias ocasiões no último quartel do século. Os papas começaram inclusive a ampliar sua influência sobre a Toscana. Martino IV firmou uma aliança com a Liga Guelfa em 1281, concedendo a Florença, Siena e Volterra o direito de coletar impostos papais como um meio de trazê-las uma vez por todas para a sua causa. Na década seguinte, Bonifácio VIII começou a intervir nas facções internas de Florença, esperando controlar a cidade a fim de aumentar seus rendimentos e garantir a fronteira setentrional dos territórios que o Papado possuía então. Quando os florentinos lhe enviaram uma embaixada (da qual afirma-se que Dante tenha participado), para protestar contra estas ingerências, Bonifácio, que havia excomungado todo o governo da cidade,

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incubiu Carlos de Valois (irmão de Felipe, o Belo) de invadí- la, promovendo assim o golpe de estado de 1301, que derrubou este mesmo governo dos “brancos”, hostil ao papa, e levou os “negros”, seus aliados, ao poder.28 Pouco depois, em março de 1302, Dante, julgado a revelia, foi acusado de baratteria (delito de concussão e venalidade) e, assim, foi b anido de Florença e condenado, se retornasse, a morte em fogo brando. Finalmente os papas conseguiram, por essa mesma época, impor sua autoridade sobre a Emília-Romanha (tradicionalmente o maior sustentáculo gibelino), num processo de negociações iniciado por Gregório X (em 1273) quando do seu apoio à candidatura ao Império de Rodolfo de Habsburgo, já que uma de suas condições foi que toda a região em torno de Bolonha, a Emília-Romanha, fosse cedida pelo Império e posta sob o controle direto do papa, o que ocorreu em 1278, quando ambas as regiões foram formalmente anexadas por Nicolau III. Na realidade, a dimensão destas ingerências na vida político-administrativa das comunas dão-nos uma imagem falsa a respeito do poder dos papas. Perry Anderson (1985, p. 145 e 146) sublinha que no início do século XIV, tanto o Império quanto o Papado eram instituições decadentes. Segundo ele, a própria posição do Papado enquanto “Estado 28

Na realidade, o conflito entre “brancos” e “negros” foi originário de Pistóia. Lá se tratava de uma querela entre os dois ramos dos Cancellieri. O conflito se iniciou de fato entre os dois filhos de um mesmo pai (ainda que de mães diferentes) por causa do rompimento de uma promessa de casamento. A primeira mãe se chamava Bianca (Branca), de onde o nome Cancellieri “brancos”; seus adversários tomaram a cor oposta. Para fazer a paz o governo de Pistóia recorreu à Florença, que consentiu em acolher os chefes de um dos partidos, o dos “negros”. Era, de fato, como “acolher a peste”, já que ela propagou em Florença a devastação. Havia na cidade duas grandes famílias guelfas de interesses concorrentes. Uma era a dos Donatti, que representavam a velha nobreza e o partido dos Grandes, mal satisfeitos com um regime que dependia do sufr ágio das Artes Menores. A facção rival era dos Cerchi, que chefiavam o primo popolo (os mercadores, dono da manufatura e da banca) e desejavam um governo moderado e reconciliado com os mais resignados dos nobres. Entre as duas casas, a guerra estava prestes a estourar. A questão de Pistóia, com cada uma destas facções assumido a defesa de um dos lados em conflito, lhe forneceu o impulso decisivo : os Cerchi formaram os “brancos”; os Donatti, os “negros”.

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italiano” foi sempre frágil e ineficaz. Enormes esforços foram despendidos por sucessivos papas no sentido de consolidar e ampliar o “Patrimônio de Pedro” na Itália central. Mas o Papado medieval não conseguiu sequer estabelecer um controle sólido sobre a pequena região colocada sob sua suserania direta. As cidades da Umbria e da Marca opus eram-se vigorosamente à intervenção papal em seu governo, e a própria cidade de Roma foi por diversas vezes desleal ou causava sérios problemas. Com efeito, simultaneamente ao avanço pontifício, muitas comunas começaram a reagir. Tal processo iniciou-se em Pádua (Lombardia), em 1266, numa importante disputa com as igrejas locais a propósito da recusa destas em pagar impostos, e, em 1282, praticamente privando o clero paduano da proteção da lei. Ao lado desta reação, levantaram-se a Toscana e toda a Itália Central. Em Florença surgiram denúncias contra os tribunais eclesiásticos e as imunidades clericais em 1285; enquanto os privilégios do clero local foram duramente contestados em Pisa, no ano de 1296. Por todo este período a facção política florentina hostil ao papa (os “brancos”) bateu-se por eliminar a interferência pontifícia nos assuntos da cidade, combatendo a facção favorável ao Sumo Pontífice (“os negros”). Ao lado de toda esta reação, as cidades começaram a desenvolver uma ideologia política q ue fosse capaz de legitimar sua contestação aos poderes e imunidades que a Igreja então pleiteava. Isto ocorreu principalmente em Florença, autoproclamada “guardiã das liberdades toscanas”, e também em Pádua, que desde a restauração de seu governo comunal, em 1256, aparecia como a maior defensora dos valores citadinos.

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Uma maneira evidente de se opor às pretensões da Igreja ao domínio temporal consistia em clamar ao imperador para que reequilibrasse a balança demasiado favorável aos papas. Era lógico portanto reconhecer a antiga alegação imperial que o Regnum Italicum era parte integrante do Sacro Império Romano e, por causa disto, o Papado não podia ser o legítimo governante da Lombardia e Toscana, já que isto seria usurpar os direitos legais do imperador. Esta estratégia parecia especialmente tentadora no começo do século XIV, quando da invasão de Henrique de Luxemburgo, parecendo momentaneamente devolver à realidade o ideal do Império medieval. Foi neste contexto que nasceu o pensamento político do “historiador” florentino Dino Compagni (1255 -1324), em sua Crônica destes anos e do, igualmente florentino, Dante Alighieri em seu tratado intitulado De Monarchia (1310). Tal proposta, entretanto, teve pequena repercussão fora da Itália e, em solo peninsular, foi muito pouco aceita. Em nossa opinião, a causa fundamental da proposta de Compagni e de Dante não ter tido grande consideração estava no fato dela não apresentar uma eclesiologia (uma interpretação teológica sobre a Ecclesia (Igreja)) que viesse a se constituir numa perspectiva efetiva de contestação aos argumentos ideológicos da plenitudo potestatis papalis. Tal contestação eclesiológica vai ser desenvolvida por Pádua cerca de uma década após a morte do Florentino. Ela pertenceu a Marsílio de Pádua através de sua principal obra, o Defensor Pacis (concluído em 1324). Esta resposta, que se encontra principalmente no segundo dos dois Discursos (Dictiones) que compõem o Tratado, proporcionou, como era seu intento, a sustentação ideológica que as cidades do Regnum mais precisavam naquele momento.

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A derrota de Henrique de Luxemburgo não foi de fato suficiente para que a idéia imperial fosse extirpada do solo italiano, as lutas entre Império e Papado se estenderam à década seguinte. No início da década de vinte, de volta à Paris, fugindo da guerra entre gibelinos e guelfos, liderados estes por Roberto de Anjou (rei de Nápoles e vigário pontifício para a Itália), Marsílio dedicou-se aos estudos e ao exercício do magistério e da medicina. Foi nesta época que consta que ele travou contato com João de Janduno. Como vimos, em junho de 1324 terminou a redação do Defensor Pacis. A princípio, o tratado circulou apenas de modo restrito, entre os intelectuais da Universidade de Paris. Dois anos depois, entretanto, foi divulgado mais amplamente e logo chamou a atenção das autoridades eclesiásticas por suas idéias antipapais. Com isto, Marsílio e Janduno (denunciados conjuntamente como seus autores) foram intimados a comparecer a Avignon, mas temendo por possíveis castigos, no verão de 1326 preferiram fugir para a corte imperial de Luís, em Munique. De fato, a partir da década de vinte do século XIV, apesar da vertiginosa decadência do Império e do Papado avinhonês não ser logicamente nem sombra do dos gloriosos tempos de Inocêncio III e Bonifácio VIII, um último conflito entre os poderes com pretensões universalistas se desenvolveu. A designação do imperador tornou-se havia bastante tempo função da eleição dos príncipes; o jogo destas eleições era comandado por forças freqüentemente antagonistas, no qual o Papado era poder integrante de elevado peso. Segundo a doutrina de Inocêncio III, expressa na decretal Venerabilem (1302), a eleição imperial devia ser submetida à aprovação da Sé Apostólica: é confirmando, ungindo e coroando o rei eleito dos romanos que o papa estabelece o imperador. Vejamos então as palavras deste papa:

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“(...) os príncipes [os sete príncipes germânicos, eleitores do imperador] devem reconhecer, e o reconhecem, que o direito e autoridade de examinar a pessoa eleita rei, a qual deve ser elevada ao cargo de imperador, pertence a nós, que a ungimos, consagramos e coroamos” (INOCÊNCIO III apud BLANCO, op. cit., p. 251 e 253). (o grifo é meu).

Mas este princípio contrastava com o direito germânico segundo a qual a eleição dos príncipes conferia ao rei dos romanos o pleno exercício dos direitos imperiais na totalidade do Sacro Império; a sagração romana não intervinha de maneira constitutiva no estabelecimento do poder imperial. Esta oposição estava na base da luta entre o imperador Luís da Baviera e o papa João XXII; o objetivo final era, uma vez mais, o efetivo controle do solo italiano. A independência do Papado e o retorno à Itália, que era sua précondição essencial, foram, de acordo com Geoffrey Barraclough (1970, p. 146), os objetivos fundamentais de João XXII. Ele equipou o exército pontifício com a intenção de reconquistar os territórios italianos, de Bolonha para sul. Bolonha devia tornar-se a sede da corte papal, o que o conduziu a uma guerra contra os Visconti de Milão. Mas a grande oposição aos seus objetivos, como salienta Barraclough, vinha da Germânia, onde os Habsbourgs, seus aliados, não tinham podido estabelecer sua autoridade. Em 1314, prossegue Barraclough (ibid., p. 146), tinha acontecido uma dupla eleição: Luís da Alta Baviera e Frederico, o Belo, Duque da Áustria. Mas Frederico derrotou militarmente seu adversário e assumiu o trono imperial, sendo empossado como Luís IV. O papa, entretanto, recusou-se a aceitar este fato. Ele sabia que Luís tinha também intenções

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de intervir na Itália, com apoio dos Visconti e dos gibelinos. Assim, em 1323, o acusou de ter agido como rei e imperador antes que sua eleição fosse examinada e aceita pelo papa, exigindo completa submissão. Ficava evidente, segundo Barraclough (id., p.147) que João XXII se reportava à vitória recente de Luís sobre Frederico na batalha de Mühldorf, quando o primeiro passou a constituir uma ameaça real para os interesses pontifícios na Itália ao nomear um delegado imperial. Mas, como observa Barraclough, Luís contra-ataca afirmando que o papa não tinha direito algum no processo de eleição imperial e, inclusive, acusando-o de herege (principalmente com relação a determinadas questões doutrinárias pelo papa defendidas no que se refere à pobreza de Cristo). Em conseqüência da sua disputa com o papa, o imperador invadiu a Itália em 1327, e com ele foi Marsílio. Em maio deste mesmo ano chegou a Roma. Marsílio foi então nomeado vigário espiritual da cidade, e teve contribuição ativa nos documentos imperiais com os quais se sancionou a deposição do papa como herege por não admitir como verdadeira a doutrina acerca da pobreza absoluta de Cristo e dos Apóstolos, e nomeou Pietro Rainalducci ou de Corvara com o nome de Nicolau V. Foi na condição de vigário imperial que Marsílio deu início à perseguição dos clérigos que não aceitavam a supremacia do poder político sobre a pars sacerdotalis (no conceito marsiliano, a parte sacerdotal da sociedade política ou cidade - da civitas). Pouco depois, foi indicado para o arcebispado de Milão. Foi então que Luís, constrangido pelo reagrupamento de seus inimigos, liderados pelo rei Roberto, foi obrigado em agosto a deixar a cidade e fugir rumo ao Norte. Mas a perseguição continuou de forma intensa de

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modo que o Paduano não chegou a tomar posse de sua arquidiocese e, em 15 de setembro de 1327, quando fugiam para Munique, João de Janduno veio a falecer. No seu retorno a Munique, Marsílio passou a fazer parte do corpo de conselheiros do imperador. Entre estes também se encontravam o ex-Ministro Geral dos Menores, Miguel de Cesena, Guilherme de Ockham, entre outros franciscanos dissidentes. A convivência entre eles e Marsílio nem sempre foi harmônica, famosas são as divergências entre o Paduano e os Menores e, em especia l, com Ockham, particularmente no que dizia respeito à negação marsiliana do poder jurisdicional do papa e dos bispos. É fácil explicar a existência de tantos franciscanos na corte de Luís. Uma das conseqüências mais importantes da doutrina da plenitude pontifícia foi a afirmação, pelos partidários da hierocracia, do direito de cuidado que tem os papas sobre todos os bens temporais, sejam da Igreja ou não. Vimos como Egídio Romano estabeleceu que todos os bens temporais devem ser colocados sob a jurisdição pontifícia. Mas tal posição, mesmo no interior da Igreja, não era absolutamente unânime. Com efeito, a Ordem dos Frades Menores encontrava-se, há décadas, dividida em duas facções, os “Espirituais” e os “Conventuais”, por causa de sérias divergências na interpretação do conceito de Usus Pauper e sobre a vivência da pobreza.29 Como observa René Fédou (1971, p.81), desde o século XIII a corrente de idéias favoráveis à autonomia do poder político se apoiava também sobre a ofensiva que 29

O conceito de “Usus Pauper” (“uso moderado”) foi desenvolvido, na segunda metade do século XIII, por São Boaventura. Seu comentário da Regra, sua Vida de São Francisco e as constituições que redigiu e foram aprovadas no capítulo de Narbona (1260), deram forma a uma via média entre o relaxamento e o rigor, e propunham o ideal do “uso moderado” de todas as coisas. Cerca de cinqüenta anos após a sua morte, divergências na interpretação do seu conceito estão entre as raízes das querelas que então se desenvolveram entre os franciscanos.

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franciscanos “Espiritua is” e joaquimistas lançavam contra a Igreja Romana, contestando o clero por suas riquezas, o Papado por suas ações e compromissos políticos. Segundo Jeaninne Quillet (op. cit., p. 151), o ressurgimento da Querela da Pobreza Meritória no começo do século XIV pôs mesmo em causa a idéia de um estatuto de posse relacionado ao Papado ou à Igreja. É pelo menos significativo que tenha sido durante a primeira fase aguda do conflito entre João XXII e Luís da Baviera, que o imperador, ultrapassando o plano político do conflito, o situava no plano espiritual acusando o papa de heresia por ter ensinado publicamente que Cristo e os Apóstolos tinham possuído, de próprio e de comum, bens temporais. É preciso notar igualmente, prossegue Quillet (ibid., p.151), que muito da oposição às teses pontifícias veiculadas pelo imperador vinha do meio dos franciscanos “Espirituais” que defendiam a abdicação de toda posse, mesmo coletiva, como uma condição da vida perfeita, e defendiam que Cristo e seus Apóstolos tinham professado tal doutrina e, portanto, vivido na mais estrita pobreza, condenando expressamente as riquezas e a corrupção da Igreja, e singularmente, na corte de Avignon. Em virtude de tudo isto, O papa João XXII combatia decisivamente os “Espirituais” e, em 1318, havia mesmo mandado quatro deles para a fogueira, condenados por heresia. Temendo mesma sorte, Miguel de Cesena, Guilherme de Ockham, entre outros, fugiram para a corte imperial. No seu retorno a Munique, grande foi a contribuição política de Marsílio junto ao imperador. Segundo Alfredo Sabetti (1964, p.6), foram provavelmente inspiradas por Marsílio a Declaração de Rense (1338) e a Constituição elaborada na Dieta de Frankfurt em

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agosto do mesmo ano, com as quais se afirmou, segundo os princípios do Defensor Pacis, a absoluta independência do Império frente ao Papado e a direta derivação de Deus do poder e da dignidade imperiais. José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (2000/2001, p.287 a 314) defende inclusive que o opúsculo Quonian Scriptura Testante, escrito com o objetivo de dissuadir Luís de restabelecer a paz com João XXII, e de ressaltar os direitos e privilégios do Império, de seu titular e dos príncipes eleitores, foi escrito por Marsílio em conjunto com os Menores dissidentes de Munique. 30 De 1342 é o Defensor Minor que reassume as teses da primeira obra marsiliana, acentuando em sentido mais favorável a afirmação do absoluto poder imperial, e o Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus. A razão do Tractatus foi que o imperador desejava, por motivos político-dinásticos, casar seu filho com a duquesa do Tirol, mas o novo papa Bento XII (1334-1342) não anuiu ao pedido do Bávaro porque o conflito entre o Império e o Papado permanecia sem solução, porque a duquesa tinha fugido do seu marido e, ainda, havia o impedimento de consangüinidade (eles eram primos). Foi provavelmente após estes fatos que Marsílio escreveu sua última obra, o opúsculo intitulado Tractatus de Translatione Imperii . Não conhecemos com precisão o ano de sua morte, mas é presumível que tenha sido entre os últimos meses de 1342 e os primeiros de 1343, devido à alusão a seu falecimento feita pelo papa Clemente VI em um pronunciamento de abril do ano de 1343. 30

Para um estudo pormenorizado dos argumentos de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza, ler o seu artigo em publicação separada: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Os Franciscanos Dissidentes de Munique, Marsílio de Pádua e o Opúsculo Quonian Scriptura Testante. Centro de História da Cultura. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2000/2001, p. 287 a 314.

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Pode-se dizer que as grandes lutas entre Império e Papado não tinham, no começo do século XIV, mais sentido em vista da decadência de ambos os poderes. Mas a querela entre Luís da Baviera e João XXII (1316-1334) se constituiu neste século no segundo grande momento de embate entre teses hierocráticas e antihierocrá ticas. Luís da Baviera havia de fato conseguido reunir em sua corte talentos consideráveis: em 1324 lá estava Pedro Olivi, em 1327 lá encontramos Ubertino de Casale, sem falar do próprio Marsílio de Pádua que, como vimos, havia acompanhado o imperador em sua incursão peninsular; finalmente, em 1328, a ele aderiram Guilherme de Ockham e Miguel de Cesena. Com tal grupo de talentos em plena atividade, não chega a constituir surpresa a enorme carga de polêmicas que se abateu sobre o papa. A corrente hierocrática, entretanto, permanecia viva. Seus principais autores neste momento escrevem já em reação á reflexão sobre o Império, o Estado e a Igreja de Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua. Entre eles dois nomes se destacaram: Agostino Trionfo e Álvaro Pais. O pensamento de Marsílio de Pádua e, muito especialmente seu conceito de Império, Objeto desta Tese, será estudado nos Capítulos 3 (p.128 a 193), 4 (p.194 a 252) e 5 (p.253 a 331). As disputas teóricas entre Marsílio e Ockham, bem como as contestações hierocráticas, de Agostino Trionfo e de Álvaro Pais, ao pensamento dos dois serão analisadas no Capítulo 6 (p.332 a 358), que será justamente dedicado ao estudo da posteridade do pensamento marsiliano.

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O conflito entre os poderes havia prolongou-se ainda durante o pontificado de Clemente VI (1342-1352). Com efeito, apesar da derrota militar, Luís tornou-se ainda mais firme em seus princípios com a declaração, ratificada na Dieta de Frankfurt (1338), onde reafirmava que o rei dos romanos podia ser eleito e entrar no exercício de todos os seus direitos de rei e imperador, sem necessidade alguma de aprovação pontifícia; tal aprovação era necessária apenas para a coroação e obtenção título imperial. O novo papa, porém, não entrou em conflito direto com o Bávaro, sua política se limitou a persuadir Carlos de Luxemburgo a fazer a maioria das concessões exigidas de Luís em troca de promover sua eleição para rei. Luís morreu em 1347, ainda excomungado, e foi substituído à testa do Império pelo Habsburgo, que tomou o nome de Carlos IV. O governo de Carlos IV (1346-1378) foi caracterizado sobretudo pelo esforço do rei em construir um forte principado que, por ocasião de sua morte, compreendia o Luxemburgo, a Boêmia, o Brandenburgo, a Lusácia, a Silésia e a Moravia. Instalou sua corte em Praga. A obstinação em reunir terras alemãs explica sua atitude diante da Itália: “uma espécie de renúncia, um recuo às regiões germânicas”, como comenta Jacques Heers (op. cit., p.221). Na realidade, Carlos IV tentou, novamente, restabelecer certas tradições e afirmar seu prestígio ao sul dos Alpes: em 1355, foi a Milão procurar a coroa de ferro dos reis lombardos e, a Roma, à sagração do papa. Mas, já no ano seguinte, a célebre Bula de Ouro, como estudamos no capítulo anterior, marcava claramente o abandono das antigas pretensões imperiais e a nova concepção de um Império principalmente germânico. Ela, conforme comentamos, ao consagrar a ruptura entre as duas grandes estruturas do Ocidente cristão, “regionalizou” de uma vez por todas o Império medieval que, tornado

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definitivamente alemão, renunciou às suas pretensões universalistas. Tal ruptura ocorreu porque a Bula estabeleceu definitivamente, como vimos, o processo de escolha do imperador através de completa autonomia de sete príncipes eleitores reunidos em Frankfurt (os arcebispos de Maiença, de Trèves e de Colônia, os príncipes do Saxe, do Platinado, da Boêmia e do Brandenburgo) e sequer mencionado o nome do papa. Eliminava-se assim definitivamente a tutela que o Papado havia tentado estabelecer sobre o Império desde Gregório VII.

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A TEORIA POLÍTICA DE MARSÍLIO DE PÁDUA: OS NOVOS CONCEITOS DE PAX, DE CIVITAS E DE LEX

Neste capítulo, ao estudarmos a teoria política de Marsílio, queremos comprovar como ele, partindo de Aristóteles, reestrutura os conceitos de paz (pax), de cidade (civitas) e de lei (lex). Tal redefinição é realizada na Primeira Parte ou Dictio do Defensor Pacis que será, portanto, a fonte precipuamente analisada. O método empregado será o de apresentar, para cada um destes conceitos, um histórico do seu desenvolvimento no pensamento ocidental, com o intento de situar a ruptura marsiliana. Em seguida, desenvolvendo igualmente para cada um dos conceitos o pensamento aristotélico, demonstraremos como as perspectivas marsilianas se encontram vinculadas, diretamente, às do Estagirita. É preciso entretanto ressaltar que, em Marsílio, as concepções de pax, de civitas e de lex não são entidades isoladas mas, ao contrário, encontram-se profundamente interrelacionadas, sendo aqui estudadas separadamente por motivo puramente de apresentação. No início do século XIV, como vimos nos capítulos anteriores, o papa Bonifácio VIII redefiniu o princípio hierocrático no sentido de uma potestas directa (Bula Unam Sancta, de1302) e, na década seguinte, esta perspectiva radical reapareceu com João XXII. Foi, como já analisado, no contexto da luta deste papa com o imperador Luís da Baviera que surgiu a obra de Marsílio de Pádua. Este, então reitor da Universidade de Paris, compôs um extenso tratado

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político e eclesiológico denominado Defensor Pacis (concluído em 1324), que representou um golpe brutal nas perspectivas de governo temporal dos papas. O Defensor Pacis, severamente condenado por João XXII através da bula Licet Iusta Doctrinam (de 27 de outubro de 1327), foi então atribuído a dois mestres: Marsílio de Pádua e João de Janduno. Hoje em dia, autores como Jean Chélini (1982, p.38) ainda sustentam a tese da corredação, mas Yves Congar (1970, p.287) afirma que a participação do segundo, suposta exatamente pela censura de João XXII em 1327, foi totalmente excluída enquanto corredação pelos estudos de A. Gewirth (Speculum, 1948, pp. 267 -72) e M. Grignaschi (Bull. d. Ist. Sorico Ital. per Il Medio Evo 70, 1958, pp. 425-96), o que, entretanto, não quer dizer que Janduno, mestre paduano amigo de Marsílio, não tivesse exercido influência alguma no texto da obra. Hoje em dia, de fato, a tese da corredação parece definitivamente afastada. Entre os teólogos que, a pedido do papa, examinaram a obra estava o agostiniano Guilherme Amidani de Cremona e o carmelita Siberto de Beek; a estes, juntou-se o premonstratense (cônego regrante da Ordem de Santo Agostinho) Pedro de Luna a quem talvez se deva a formulação dos erros pontuados no corpo do texto. O fruto deste trabalho foi a bula acima referida que elenca cinco proposições condenadas. Trata-se das teses consideradas mais radicais apresentadas no Tratado: a) todos os bens temporais da Igreja estão sujeitos ao controle do imperador; b) Cristo não deixou nenhum caput (chefe) para a sua Igreja, e São Pedro não tinha nenhuma autoridade sobre os demais Apóstolos; c) cabe ao imperador corrigir e, eventualmente, destituir o papa; d) todos os sacerdotes, inclusive o papa, possuem igual

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autoridade; e) nem o papa, nem a Igreja podem exercer o poder coercitivo, salvo se o imperador lhes atribuir tal competência. O tratado estrutura-se em três partes ou Dictiones. A Primeira Parte, que estudaremos neste capítulo, trata propriamente, conforme foi dito, da teoria política de Marsílio de Pádua. A Segunda Parte, que analisaremos no capítulo seguinte, discorre acerca das concepções eclesiológicas do Paduano. A Terceira Parte, por sua vez, contém as conclusões principais de ambas as Partes anteriores. As teses condenadas na Licet Iusta Doctrinam encontram-se na Segunda Parte da obra onde Marsílio, após ter desenvolvido os argumentos políticos necessários à fundamentação da sua argumentação eclesiológica (exatamente os novos conceitos de pax, de civitas e de lex), parte para o ataque da plenitudo potestatis papalis (a plenitude do poder pontifício). Observando-se, entretanto, a Prima Dictio (Primeira Parte), verificamos que ela apresenta, em linhas gerais, três temas fundamentais: a) a origem e finalidade da cidade (civitas); b) a teoria da lei (lex) como fundamento do Estado; c) a teoria das partes da cidade (civitas), entre as quais está o sacerdócio. A idéia de paz (pax), por sua vez, sendo o princípio inspirador, não somente da Prima Dicto, mas de todo o Tratado, aparece direta ou indiretamente em todo o texto. A fonte fundamental de Marsílio é Aristóteles, especialmente a Política e a Ética a Nicômaco. Marsílio fez então, rompendo com a tradição tomista, uma releitura da obra aristotélica. É devido à sua particular leitura de Aristóteles que nasceu a redefinição dos princípios políticos acima apontados. Portanto, antes de analisarmos o Defensor Pacis,

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deveremos traçar algumas linhas sobre o processo de penetração do aristotelismo no Ocidente Medieval e sua influência nas concepções políticas da Baixa Idade Média. Com efeito, com relação às fontes de Marsílio na Prima Dictio do Defensor Pacis, verificamos que são as obras ético-políticas de Aristóteles que formam sua base fundamental, nomeadamente a Política (citada 81 vezes) e a Ética a Nicômaco (citada 14 vezes). Marsílio utiliza também do Estagirita a Retórica, a Física, a Metafísica, os Analíticos, o De Generatione e o De Anima. Outros autores citados nesta parte são Cícero (De Officiis), Sêneca e Salústio. Passagens do Novo Testamento são citadas também, mas em número bastante reduzido. Em geral a filosofia da Baixa Idade Média é apresentada como inteiramente dominada pela autoridade de Aristóteles. Isto não é absolutamente verdadeiro. A razão entretanto da hegemonia aristotélica é bastante fácil de se compreender. Alexandre Koyré (1991, p.27) assinala que Aristóteles foi o único filósofo helênico cuja obra completa foi traduzida para o árabe e, mais tarde, para o latim; a obra de Platão não mereceu esta honra, tendo sido bem menos conhecida. Isto não foi por acaso. A obra de Aristóteles forma uma verdadeira summa do conhecimento humano. Além da medicina e das matemáticas, ali se encontra tudo: lógica, física, astronomia, ciências naturais, psicologia, ética, política, retórica. Em compensação, observa Koyré (ibid., p.28), a expressão platônica não é facilmente compreensível. A forma dialogal não constitui uma forma escolar. Seu pensamento é sinuoso, difícil de assimilar, e muitas vezes pressupõe um saber considerável e portanto pouco encontradiço. Por isto, na tradição histórica, Platão aparece, de certa forma, neoplatonizado.

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Mas é, no entanto, através dos escritos neoplatônicos, através de Cícero, Cassiodoro, Ibn Gabirol e sobretudo Santo Agostinho, que podemos falar de um vivo platonismo medieval. Este inspirou o pensamento latino na Alta Idade Média, igualmente nos séculos XI e XII, e não desapareceu com a chegada triunfal de Aristóteles às escolas urbanas, depois às universidades. Tanto é assim que o maior dos aristotélicos cristãos, Santo Tomás de Aquino, e o maior dos platônicos, São Boaventura, foram exatamente contemporâneos. Também não é verdade que Aristóteles fosse completamente desconhecido na Alta Idade Média. Era conhecido fundamentalmente apenas através dos fragmentos do Organon então disponíveis. Apesar disto, no conjunto de uma filosofia dominantemente neoplatônica, foram desenvolvidos comentários de importância sob aspectos do pensamento do Estagirita. No início do século VI, Boécio, magister officium de Teodorico, rei dos ostrogodos, foi um grande comentador do Organon. Suas análises das Categorias e do De Interpretatione constituíram durante séculos a grade de leitura obrigatória da semântica e da síntese lógica de Aristóteles. Também Isidoro de Sevilha (c. 560 - 633) soube fazer uso de Aristóteles em suas Etimologias e nas Sentenças. Desenvolveu algumas argumentações de fundo aristotélico a partir dos elementos de lógica peripatética que foram transmitidos ao Ocidente por Cassiodoro. Praticamente ausente em Beda, o Venerável, e em João Escoto Erígena, os maiores nomes do pensamento ocidental do século VII ao IX, Aristóteles, após o lapso intelectual do século X, ressurgiu no chamado “século de Santo Anselmo”, o século XI, rico em individualidades de toda

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a espécie, de Berengário de Tours a Pedro Damião, teólogos versados nas artes da linguagem que o redescobrem e dele extraem toda uma nova especulação. Mas foi de fato a partir do século XII, com o fenômeno que ficou conhecido como o “Renascimento Urbano”, que o corpus central das obras filosóficas de Aristóteles chegou ao Ocidente. As cidades eram então centros de irradiação na circulação dos homens, tão repletas de idéias como de mercadorias, lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do comércio e da divulgação intelectual. Durante o século XII, enquanto o Ocidente exportava fundamentalmente matérias-primas, os produtos raros e os objetos de valor vinham do Oriente, de Bizâncio, Damasco, Bagdá ou vinham da Espanha mulçumana, de Córdoba, e, junto com as especiarias e as sedas, manuscritos trouxeram a cultura greco-árabe para o Ocidente cristão. As obras de Aristóteles (bem como as de Euclides, Ptolomeu, Hipócrates, Galeano) seguiram no Oriente os cristãos heréticos (monofisitas e nestorianos) e os judeus perseguidos em Bizâncio, sendo por eles doadas às bibliotecas e escolas muçulmanas, onde foram amplamente acolhidas. A partir do século XII, aos poucos, chegaram à Christianitas. Os escritos aristotélicos, especialmente, chegaram ao Ocidente de forma paulatina e gradual, muitas vezes conservados em traduções árabes, outras tantas na língua original, em grego. Estes textos, graças aos esforços de notáveis como o bispo Raimundo de Toledo, foram traduzidos por eruditos isolados, ou, o que aliás era mais comum, por equipes especializadas. O processo começou no início do século XII, a partir fundamentalmente do Califado de Córdoba, e só se completou por volta de meados do século XIII.

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De início foram os tratados lógicos, depois os de filosofia moral e de metafísica. O ponto culminante deste processo deu-se, já no século XIII, por volta do início da década de 50, quando a Política, traduzida, se tornou acessível aos medievais. Foi de fato o dominicano Guilherme de Moerbeke quem completou a primeira tradução da Política, pouco depois de 1250. Os efeitos iniciais da recepção deste novo conhecimento foram provocados pela Lógica e deram-se no campo da “teoria científica” que passou a impor uma concepção racional da investigação e da argumentação, conforme estudamos no capítulo anterior. Mas, além disto, os estudos de Aristóteles nos campos da física e da metafísica demonstraram que a realidade podia de fato ser investigada buscando suas causas nela mesma e não fora dela. Além do mais, tais obras apresentavam uma sólida concepção integral do mundo. Nelas, Aristóteles analisa todas as instâncias da realidade de forma puramente racional, a partir dos níveis mais ínfimos até chegar ao primeiro princípio, ao primeiro motor. Porém a crise mais aguda provocada pela divulgação da obra do Estagirita deu-se no campo da conduta moral e dos fins do homem. Ele sustentava que era o homem que construía sua própria felicidade, que ele o fazia mediante o exercício de virtudes puramente naturais e que esta felicidade encontrava uma situação perfeita e completa já neste mundo. Realmente, como comenta Quentin Skinner (1996, p.71), a filosofia moral e política de Aristóteles questionava a fundo o agostianismo que então predominava na concepção do que seria uma vida política cristã. Santo Agostinho representava a sociedade política como uma ordem determinada por Deus e imposta aos homens, decaídos, como remédio para seus

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pecados. Além disto, em Agostinho a teoria da cidade (civitas) estava subordinada a uma escatologia, que considerava a vida do peregrino na terra pouco mais que uma preparação para a vida por vir. Já a Política, prossegue Skinner (ibid., p.71) que completava a ética aristotélica e a projetava na ordem social, transportando as relações humanas da ética individual para as relações políticas que ocorrem na pólis, considerava a cidade como uma criação puramente humana, destinada a atender a fins estritamente mundanos. Também Aristóteles, no livro I da Política, afirmava que as relações sociais e políticas tinham sua origem numa tendência natural do homem, não no pecado que era dado integrante da história da Salvação. Enquanto o peccatum transformava a Ecclesia numa comunidade onde os homens estão reunidos neste mundo, em busca da salvação eterna, a natura aristotélica impulsionava os homens a se congregarem na sociedade política em busca da felicidade ou perfeição natural e completa, possível de ser alcançada neste mundo. Devido a todos estes aspectos, considerados contrários à religião revelada, presentes na obra de Aristóteles foram despendidos consideráveis esforços a fim de conciliá-lo com as Escrituras e, inclusive, no sentido de associar a concepção aristotélica da autarquia da vida cívica e as preocupações mais escatológicas que caracterizavam o pensamento agostiniano. Este movimento surgiu na Universidade de Paris. Esta universidade foi de fato o palco principal das tentativas de conciliação entre a filosofia peripatética e o pensamento cristão. Aquelas questões eram então debatidas com veemência

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pelas novas Ordens Mendicantes. É bem verdade que os franciscanos e, em especial, São Boaventura, continuavam a opor-se a qualquer tentativa de conciliação, mas seus rivais dominicanos rapidamente se empenharam na construção de uma síntese filosófica consistente, tendo como alicerces o pensamento grego e o cristão. O pioneiro foi Santo Alberto Magno que, na década de 1240, era professor na Universidade de Paris. Mas a nova tendência teve como maior expressão seu discípulo, Santo Tomás de Aquino, que começou a lecionar em Paris no início da década de 1250, regressando à mesma universidade entre 1269 e 1272. Ao falecer, dois anos depois, o Aquinate, entre outras grandes obras, tinha praticamente concluído a Summa Teologica (faltava apenas a terceira parte), uma completa filosofia cristã fundada em uma “integral aceitação” do pensamento moral e político de Aristóteles. Assim, apesar do fracasso das tentativas albertinas, complicadas aliás por sua tendência neoplatônica e, principalmente, pela sua concepção, especulativa e ética, da filosofia como forma de vida contemplativa que possuía grandes empréstimos dos peripatéticos das terras do Islão (Averróis sobretudo), o pensamento tomista conseguiu unir de forma decisiva Aristóteles e o cristianismo. Mas o desenvolvimento doutrinal do século XIII caracterizou-se por uma notável fidelidade às teses desenvolvidas anteriormente. Tal perspectiva encontra-se, ao menos em Santo Tomás, vinculada diretamente a concepção de um fim último do universo. De acordo com Fernand Van Steenberghen (1990, p.74), em Santo Tomás, tal princípio encontra-se ligado a uma distinção prévia: fim transcendente e fim imanente. O fim da criação querido por Deus não pode ser senão o próprio Deus, causa transcendente. Com efeito, o fim

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supremo da vontade criadora só pode ser o Bem absoluto (per se) e essencial (per suam essentiam). Ora, no seio do universo apenas se encontram bens parciais, participações no Bem total. É por isto que toda criatura tende naturalmente para Deus como para o Bem supremo. Tal é a intenção do Criador (finis operantis). Mas este fim transcendente implica um fim imanente que é a perfeição realizada no seio do mundo criado (finis operis). Pelo seu ser, cada criatura participa na perfeição do Ser infinito. Pela sua atividade, tende a assemelhar-se-lhe tanto quanto lhe permite a sua natureza. Mas só os seres humanos, capazes de consciência e de fruição, são o motivo suficiente do ato criador, pois só eles têm um fim em si e por si, só eles são capazes de uma perfeição e de uma felicidade definitivas. Também, prossegue Van Steenberghen (ibid., 1975), o bem dos homens criaturas é digno de ser querido pelo Criador, pois é uma participação na sua bondade infinita: amando os homens que cria, Deus ama a sua própria imagem; além disto, é o objeto supremo do seu pensamento e do seu amor, visto que o fim último de qualquer inteligência é conhecer a ordem universal e o seu Princípio, e o fim último de qualquer vontade é fruir aquilo que a inteligência conhece. É bem verdade que os grandes comentários da Politica realizados pelos dominicanos e, muito especialmente, por Santo Tomás de Aquino, permitiram uma tomada de consciência mais significativa da distinção de cidade (civitas), que foi definida como uma realidade natural, autônoma em seu plano, e a Igreja, sociedade religiosa. Uma tal distinção, que admitia um certo nível de autonomia para as realidades terrestres, permitia desta forma ao poder político reencontrar uma zona de exercício autônoma. Para Santo

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Tomás, como nos diz Etienne Gilson (1995, p.712), o papa detinha um poder soberano e absoluto pois, na ordem dos fins, o temporal devia se subordinar ao espiritual e, em conseqüência, o poder secular devia se submeter ao poder pontifício. Mas não se trata aqui de confusão de domínios. Era a tarefa do príncipe que permitia a realização perfeita dos fins humanos da sociedade natural, como era a do pontífice conduzir à realização dos fins sobrenaturais. Nesta teoria, entretanto, o papa permanecia a cabeça dos dois domínios, a supremacia total pertencia ainda ao detentor do poder espiritual. O século XIII viu, efetivamente, culminar a corrente favorável à plenitude do poder pontifício. Mesmo Santo Tomás que restabeleceu, de certa maneira, a autonomia do Estado, definindo a cidade como uma realidade natural que tem, em seu plano, uma finalidade própria, em harmonia com as exigências do homem neste mundo, não deixou de afirmar a supremacia absoluta do papa. Como afirma Gilson (ibid., p.712), Santo Tomás pensava que, na medida em que a sociedade política se articulava, em última e definitiva instância, a fins transcendentes, à procura da salvação eterna, ela estava subordinada a estes fins e então àquele que detinha a autoridade espiritual, o vicarius Christi (vigário de Cristo) e caput (chefe) da Igreja, ao papa. Em outros termos, para Santo Tomás, como o temporal existia para o espiritual, tínhamos de fato dois domínios, mas o temporal estava integrado e subordinado ao espiritual, mais ou menos como a filosofia estava integrada à teologia e a ela estava subordinada. Da mesma forma, o príncipe, que tinha autoridade sobre o âmbito secular e o conduzia a seus fins temporais, estava subordinado ao

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papa, que conduzia o príncipe e seu povo a seu fim espiritual último. Nas próprias palavras de Santo Tomás na pequena obra intitulada Do Reino ou Do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre, fica bastante claro que todos os reis dos povos cristãos, que têm o cuidado dos “fins antecedentes”, devem se submeter ao papa como ao próprio Cristo, uma vez que ele, como seu vigário, é quem tem o cuidado do “fim último”:

“Tal governo pertence àquele rei que não é somente homem, mas também Deus, isto é, Senhor Jesus Cristo, que, tornando os homens filhos de Deus, introdu-los na glória celeste. É este, pois, o governo a Ele entregue e que não se corromperá, sendo por isso chamado nas Sagradas Escrituras não só sacerdote, mas também rei, dizendo Jeremias (23,5): “Reinará um rei, e será sábio”; por isso, d´Ele deriva o sacerdócio real. E, o que é mais, todos os fiéis de Cristo, enquanto são membros d´Ele, são denominados reis e sacerdotes (Ap. 1,6; 5,10; 20,6). A fim de ficar o espiritual distinto do terreno, foi, portanto, cometido o ministério deste reino não a reis terrenos, mas a sacerdotes e, principalmente, ao Sumo Sacerdote, sucessor de Pedro, Vigário de Cristo, o Romano Pontífice, a quem importa serem sujeitos todos os reis dos povos cristãos, como ao próprio Senhor Jesus Cristo. Assim, pois, como já foi dito, a ele, a quem pertence o cuidado do fim último, devem submeter-se aqueles a quem pertence o cuidado dos fins antecedentes, a ser dirigidos por seu comando” (SANTO TOMÁS DE AQUINO, 1997, p. 164 e 165).

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Na II Sententiarum e na sua obra principal, a Summa Teologica, Santo Tomás é ainda mais incisivo, justificando inteiramente o direito que têm os papas de intervir no temporal, uma vez que o Sumo Pontífice é a um só tempo sacerdote e rei, e porque o poder secular está submetido ao poder espiritual como o corpo à alma:

“(...) O poder espiritual e o secular são ambos derivados do poder divino; e, portanto, o poder secular está sob o poder espiritual na medida em que foi estabelecido por Deus, a saber: nas coisas referentes à salvação, e por isso o poder espiritual deve, em tais assuntos, ser obedecido preferentemente ao secular. Mas naquelas coisas que se referem ao bem-estar civil, o poder secular deve ser obedecido preferentemente ao espiritual, de acordo com o dito em Mateus 22,21: “Daí a César o que é de César”. A menos que o poder secular esteja unido com o espiritual, como no caso do Papa, que detém ambos, o espiritual e o temporal, porque ele é sacerdote e rei; sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedec, mas rei de reis e mestre daqueles que têm o domínio (dominus dominatium)”.

“O poder secular é submetido ao espiritual como o corpo à alma e não usurpa o julgamento, pois o poder espiritual se introduz nas coisas temporais, pelo menos naquelas nas quais esse poder lhe é submetido ou que lhe são entregues pelo poder secular.” (SANTO TOMÁS DE AQUINO apud PACAUT, 1989, p.134).

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Mas também o pensamento anthierocrático fundamentado precipuamente no tomismo, desenvolvido fundamentalmente no início do século XIV, não conseguiu romper com a tradição teológica da filosofia escolástica. As idéias de paz (pax), de cidade (civitas) e de lei (lex) presentes em João Quidort e em Dante Alighieri seguiam esta tradição. Tratava-se de um conceito metafísico de paz, cujo grande objetivo era reproduzir na terra a perfeição e a harmonia do céu. Com relação ao conceito de cidade, este se desenvolveu ligado à tradição agostiniana das duas cidades espirituais. Igualmente a idéia de lei só era compreensível sob a direta inspiração divina. O grande avanço do pensamento de Dante sobre o de Quidort foi, como apontado no capítulo anterior, o fato do primeiro já considerar a existência de duas beatitudes, dois fins últimos. Mas, como salienta José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (1997, p.29), Dante colocou sua teoria política dentro de um abrangente esquema de teologia da história cristã. Ele voltava a resolver a problemática política na teologia. Seu programa político se enquadrava numa escatologia que devia resolver-se intra-historicamente, e que, dirigida providencialmente, se orientava para a convergência e a culminação, num mesmo instante, da história sagrada e da história profana, ou seja, da história da linhagem de Cristo e da história do Império Romano. Este foi, entretanto, o ponto máximo a que uma teoria política fundamentada basicamente no pensamento aristotélico-tomista conseguiu chegar. É de fato bastante natural que Dante, concebendo um Aristóteles cristianizado, não tivesse conseguido se desembaraçar completamente da teologia.

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Foi somente Marsílio de Pádua que, como vimos, escreveu na década seguinte à divulgação do pensamento do Florentino, devido a uma releitura da obra de Aristóteles, (bem como, em segundo plano, do Novo Testamento, de Padres da Igreja e escritores eclesiásticos), rompeu com esta supremacia teológica. Foi a partir desta ruptura que seu pensamento encontrou uma determinada singularidade que começaremos a investigar em seguida. Iniciamos pela reestruturação marsiliana do conceito de paz (pax). Nos filósofos áticos, em Platão e em Aristóteles, a idéia de paz relacionava-se diretamente ao bem-estar individual. Era compreendida, em oposição às dissensões sociais e à guerra, como a harmonia entre o indivíduo e a comunidade, bem como entre as comunidades, sendo a condição de felicidade individual e de uma comunidade humana (pólis) ideal. Em Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), nas Filípicas, a “pax est tranqüilas libertas”. Seu conceito estava relacionado intimamente à idéia de segurança jurídica. Jean-Claude Eslin (1999, p.36) salienta que era porque os imperadores se proclamavam a cabeça, o centro, não apenas de uma formação política particular, mas de todos os ocupantes da terra habitada (oikouméné), que Cícero os considerava como chamados pela Providência a assegurar a paz sobre toda a terra através das leis que refletiam as exigências universais da razão. A revelação cristã, potencializando a concepção greco-romana de paz, ou seja, em linhas gerais, a realização do homem, a designou como a plenitude da realização, o acabamento perfeito de todos os seres, segundo os desígnios salvíficos de Deus. Aceitando assim os valores humanos e sociais da concepção profana de paz, a Revelação ultrapassava-os, para elevá-los a uma nova

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dimensão, mais ampla e escatológica: o Reino de Deus. Com efeito, se no pensamento clássico a paz é compreendida, sob um ponto de vista natural, como o estado oposto à guerra, possível de ser alcançado na comunidade humana (pólis/civitas), na Bíblia, ela é vista, fundamentalmente pelo seu lado místico, como a vida em plenitude, só possível em Deus e na sua amizade. Santo Agostinho, no De Civitate Dei (413-426), depois de analisar e articular entre si os elementos que integram as diversas dimensões e domínios da paz, desde o corpo até à cidade celeste, formulou, de modo profundo e conciso a definição geral de paz, reconhecida por toda a tradição cristã ocidental: “pax omnium rerum tranquillitas ordinis” (a paz é a tranqüilidade da ordem de todas as coisas). Vejamos nas suas palavras:

“Assim, a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, e a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, a ordenada concórdia. A paz da casa é a ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade, a ordenada concórdia entre os governantes e os governados. A paz da cidade celeste é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem (pax

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omnium rerum tranquilitas ordinis) (...) (SANTO AGOSTINHO, 1999, p. 402 e 403).

Segundo Vincenzo Omaggio (1996, p.18 e 19), esta ordem é compreendida em Santo Agostinho como a disposição dos seres iguais e desiguais que determina a cada um o lugar que lhe convém. Infelizes são aqueles que não se encontram inseridos na paz: em conseqüência são privados da tranqüilidade da ordem. Entendida enquanto ordenação interna e externa, a paz encontrava-se intimamente associada ao direito e à justiça. Com efeito, em Santo Agostinho, “opus iustitiae pax” (a paz é obra da justiça). Desta forma, a par de sua dimensão eminentemente pessoal, a paz comporta também uma dimensão social e política. Assim, segundo Manuel da Costa Freitas (1991, p.1381 e 1382), para Santo Tomás de Aquino na Summa Teologica, a paz do homem consigo mesmo é compreendida como a concórdia dos homens entre si. De fato, em Santo Tomás a idéia de paz assenta no reconhecimento e respeito de uma ordem já parcialmente estabelecida enquant o inscrita na própria natureza dos seres (ordem ontológica), mas, ao mesmo tempo, numa permanente invenção (ordem ética e social) pela prática sincera e promoção decidida da verdade, da justiça, da solidariedade, da liberdade e desenvolvimento material e cultural, componentes maiores de uma paz que se pretende sólida e eficazmente estabelecida.

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Mas, como analisa Omaggio (op. cit., p.18), a reflexão de Santo Tomás, que dedica ao tema da paz uma quaestio inteira, estabelece uma distinção entre a concórdia pura e simplesmente e o que seria uma paz verdadeira, conferindo à concórdia um papel qualitativamente inferior. Esta consiste numa simples relação com os outros enquanto convergência das vontades numa decisão única. Já a paz é compreendida enquanto reordenação hierárquica das vontades em cada pessoa, antes mesmo do que nas relações externas. Em Dante Alighieiri a paz foi sempre a preocupação central. Esta se afirma, no seu De Monarchia (1310), como condição necessária e sinal distintivo da vida perfeita, em beatitude, da qual as formas sociais são a expressão. Desta maneira, a exigência da Monarquia ou Império dáse pelo afastamento da guerra neste mundo. É julgando sabiamente as querelas e disputas entre reis, reinos, senhores feudais, cidades, que o imperador irá gerar a harmonia e a concórdia necessárias ao perfeito desenvolvimento humano. Este princípio, entretanto, é de imediato metafísico. De fato o gênero humano deve, na medida em que a natureza lhe permite, reproduzir a bondade divina, uma vez que é ótimo tudo quanto se adapta à intenção do agente primeiro ou Deus. O gênero humano, segundo Dante, mais imita Deus quanto mais se unifica, daí a Monarquia ou Império ser considerada a forma de governo terrestre que melhor pode reproduzir os caracteres do céu, uma vez que, logicamente, o gênero humano alcança o máximo da unidade quando, por inteiro, se une num só homem, num único príncipe. Esta é, em última análise, a importância e a função do princípio dantesco de unidade: reproduzir na terra a paz divina.

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Assim, sem romper totalmente com o conceito clássico de paz, o pensamento cristão ocidental o revestiu de um profundo sentido moral, e de um sentido espiritual. De acordo com Vicenzo Omaggio (ibid., p.15), na tradição medieval latina a paz é a convivência ordenada, inspirada nos princípios de uma ética superior ao ordenamento positivo. A noção de paz propriamente dita eleva-se portanto ao nível da adesão metafísica à lei eterna, sem a qual a única concórdia possível é aquela fundada sob o temor de um mal iminente. Em Marsílio, ao contrário, o conceito de pax, repensado diretamente a partir do princípio aristotélico, baseia-se em concepções puramente naturais, segundo uma idéia de paz que corresponde ao Estado terreno perfeito, e tão-somente à ausência de conflito, possível de ser realizada apenas no interior da sociedade civil (a cidade – civitas). No Defensor Pacis, Marsílio discorda de maneira límpida da paz enquanto obra da caridade em relação a Deus e ao próximo. Discorda, portanto, que a ordem moral seja o pressuposto da aspiração à paz. Esta é pensada de uma forma nova, na dependência de um interesse recíproco de natureza biológica e econômica que, longe de legar os seres humanos ao destino ultraterreno, se funde com a idéia de civitas e constitui uma relação fecunda de circularidade com a lei positiva (lex) da qual é, ao mesmo tempo, origem e conseqüência. Segundo Vicenzo Omaggio (id., p. 19 e 20), o pensamento de Marsílio, com relação ao tema da paz, apresenta um notável momento de ruptura com a tradição, despojando o homem da sua suposta natureza divina e redimensionando-o na sua natureza física em meio aos outros seres animados da biosfera, onde deve encontrar o seu lugar, a sua paz. Em Marsílio, a paz é tão-

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somente a paz civil, fruto da civitas, exigência biológica que deriva da necessidade política, harmoniosa relação entre os indivíduos na civitas e não numa dimensão ético-espiritual. Marsílio de fato apropria-se do conceito aristotélico, segundo o qual a idéia de paz vinculase somente a princípios naturais, ao equilíbrio da comunidade política. A grande diferença entre Aristóteles e Marsílio encontra-se nas causas que podem levar à quebra deste equilíbrio e assim conduzir à instauração de um estado de desordem ou mesmo à guerra. Com efeito, em Aristóteles, a idéia de paz encontra-se, devido as experiências históricas dos atenienses, intimamente vinculada por um lado ao “espectro” da stásis (da discórdia, perturbação, desordem, sedição que pode levar a destruição da comunidade política, da pólis) e,31 por outro, às constante guerras entre póleis e, muito especialmente, à Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).32 Estudando, a princípio, as causas gerais de desordem, comuns a todas as póleis, Aristóteles coloca em primeiro plano, seguindo a lógica de sua concepção da justiça distributiva, a existência de um sentimento de injustiça, e portanto de desigualdade, neste ou naquele elemento da comunidade política. É por demais significativo o seguinte trecho da Política:

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Historicamente, a stásis foi uma grave crise agrário-demográfica que afetou extensas partes do mundo helênico a partir do século VIII a.C. Devido ao grande movimento de escravização por dívidas dos pequenos camponeses, em muitas póleis ocorreram graves movimentos sociais. Em Atenas, segundo a Constituição de Atenas de Aristóteles (329 a 322 a.C.), houve mesmo uma violenta guerra civil só solucionada com a subida ao poder do arconte Sólon por volta de 594 a.C. 32 A Guerra do Peloponeso foi o grande conflito entre as simaquias (entre a Liga de Delos chefiada por Atenas e a Liga do Peloponeso chefiada por Esparta) que levou a desestruturação do mundo helênico a partir do século IV a.C., em muito facilitando a conquista macedônica.

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“Falando de um modo geral, a circunstância principal que leva os cidadãos a se inclinarem para a revolução (...) Aqueles que desejam igualdade se engajam na luta entre facções se pensam que têm muito pouco, apesar de serem iguais aos que têm mais, enquanto os que desejam igualdade ou superioridade fazem o mesmo se supõem que, apesar de serem desiguais, não têm senão uma participação igual ou menor que a dos que lhes são inferiores; estas pretensões às vezes são justas, mas às vezes são injustas porque os que estão em situação de inferioridade se revoltam para obter a igualdade, e os que já desfrutam de igualdade lutam para chegar à superioridade. Dissemos, então, quais são os sentimentos que levam os homens a revoltar-se. Os objetivos pelos quais os homens se revoltam são o desejo de ganho e honrarias, ou o contrário disto, pois os homens também se engajam em revoluções nas cidades para livrar-se a si mesmos e a seus amigos de desonra e de perdas” (ARISTÓTELES, 1997, p. 165). A vigorosa análise aristotélica enfatiza um estado de espírito, uma disposição psicológica favorável à mudança. As outras causas não têm a mesma importância. São elas o atrativo do ganho e o desejo das honras, bem como os seus contrários (perda de dinheiro ou privação de honras alcançadas). Aristóteles coloca no mesmo plano a desigualdade das honras e a desigualdade dos bens materiais sem atribuir nenhuma preponderância ao móvel econômico. Ele não se esquece de modo algum que os homens se levantam uns contra os outros, não só com o

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propósito de adquirir bens e honras para si próprios, mas também porque vêem outros homens, de maneira ora justa, ora injusta, deterem uma parte privilegiada destes bens. Mas, após apresentar a “circunstância principal”, ao longo do Livro V da Política Aristóteles enumera diversas outras causas da sedição: a intemperança (e a cupidez) dos dirigentes, o excesso de superioridade de um ou de alguns deles, o medo, o desprezo (desprezo da maioria pelos que se acham no poder, maioria esta que acaba por sentir que é a mais forte, numa oligarquia; desprezo dos ricos pela desordem, numa democracia), o crescimento desproporcional de alguma parte da cidade, como, por exemplo, o número de pobres numa democracia. E ainda: as manobras eleitorais, a incúria, a desatenção a pequenas mudanças que insensivelmente acabam por provocar uma grave alteração (a de todo o sistema institucional, de todo o regime), a disparidade ou heterogeneidade da população e até da posição geográfica. Pois qualquer objeto de desacordo é para a cidade um motivo de desunião, observa sentenciosamente Aristóteles. Partindo destas causas gerais, para examinar o que se passa e como se processam as mudanças em cada tipo específico de pólis, nas democracias, nas oligarquias, nas aristocracias, apresenta Aristóteles uma enorme série de fatos precisos, que comenta com pertinência à luz da análise precedente. Termina com uma observação que, novamente, se aplica a todas as póleis: estas não são destruídas somente por causas internas; perecem às vezes em virtude de uma influência externa quando, em especial, há um sistema contrário de governo, quer na vizinhança, quer num lugar afastado, e tendo nas mãos a força:

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“Todas as constituições caem por causa de movimentos de dentro para fora ou de fora para dentro, quando há uma forma oposta de constituição em cidades próximas, ou distantes mas poderosas. Isto acontecia no tempo em que os atenienses e os lacedemônios lutavam pela hegemonia da Hélade; os atenienses aboliam oligarquias em toda parte, e os lacedemônios aboliam as democracias. Já mencionei mais ou menos as causas determinantes das revoluções e dissensões nas cidades” (ARISTÓTELES, ibid., p.181).

Depois das causas da “doença”, os “remédios” correspondentes ou, antes (o que aliás estava em consonância com a medicina helênica da Época Clássica, voltada muito mais para a prevenção do que para a terapêutica), as medidas necessárias para evitar estas “doenças”. Tais medidas foram agrupadas por Aristóteles em seis categorias principais. Há, primeiramente, um princípio elementar e de importância fundamental que convém repetir sempre, segundo o qual a fração da cidade que deseja manter o conjunto das leis responsável por sua ordenação deve ser mais forte do que aquele que pretende alterá-la (sem desprezar o fato de que o fator qualitativo intervém, simultaneamente, com o fator quantitativo, entendendo-se por qualidade a condição de liberdade, a riqueza, a educação, a nobreza de raça). Em segundo lugar, há alguma coisa que se costuma perder de vista: a justa medida. A palavra de ordem é, portanto, moderação na aplicação do princípio em que repousa cada forma de governo. Incumbe ao Legislador saber quais são, dentre as instituições de “caráter popular”,

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aquelas que preservam a democracia e as que a destroem; dentre as instituições de caráter oligárquico, as que preservam a oligarquia e as que a destroem. Seria um erro crasso adotar às cegas medidas que levassem a um excesso na direção de um ou outro grupo social. Afinal de contas, nem democracias, nem oligarquias podem subsistir sem a presença simultânea de ricos e pobres. Deve, pois, a democracia tratar com deferência os ricos. A oligarquia, ao menos na aparência, deve favorecer os interesses do demos. Em terceiro lugar, é necessário que mesmo as melhores leis obedeçam a costumes e a uma educação consentâneos com o espírito da pólis: democráticos se as leis são democráticas e oligárquicos se elas são oligárquicas. Em quarto lugar, é importante que as magistraturas ou funções públicas jamais se transformem em fontes de renda. Isto em qualquer regime, mas de um modo todo especial nas oligarquias, pois nada desperta mais a ira da multidão, já excluída das dignidades públicas (fato com que, a rigor, ela ainda se conforma, pois isto lhe confere a possibilidade de dedicar-se aos seus próprios negócios), do que a idéia de ver o tesouro pilhado pelos magistrados. Em quinto lugar, cumpre impedir que um cidadão aumente excessivamente o seu poder. É mais conveniente conferir dignidades medíocres mas duradouras, do que dignidades consideráveis mas efêmeras. A razão deste princípio é que os homens facilmente se deixam corromper e poucos dentre eles são capazes de suportar a prosperidade.

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Em sexto lugar, Aristóteles dá mostras de seu realismo quando ministra àqueles que vigiam pela pólis o conselho de manter os cidadãos sempre receosos e preocupados, de sorte que estes, como sentinelas noturnas, guardem fielmente os seus postos e não se descuidem da vigilância. Marsílio de Pádua, tendo logicamente vivido em uma época bastante diferente da vivenciada por Aristóteles, ainda que considere todas estas “etiologias” e “medidas preventivas” (estudaremos, por exemplo, o papel fundamental que Marsílio atribui à harmonia entre as diversas partes da civitas) encaminhou seu discurso fundamentalmente na “cruzada” contra um outro grande mal: a plenitudo potestatis papalis. A paz (pax) era, como o próprio nome da obra indica, a preocupação central do Defensor Pacis. Com efeito, o Tratado inicia-se com um apaixonado exórdio em defesa da paz. Trata-se de uma citação de Cassiodoro:

‘Todo reino deve buscar a tranqüilidade, pois ela proporciona o desenvolvimento da população e salvaguarda o interesse das nações. De fato, a paz é a causa total da beleza, das artes e das ciências. É ela que, multiplicando a raça dos mortais, mediante uma sucessão regenerada, aperfeiçoa as possibilidades e cultiva os costumes, sugerindonos a idéia de que o ignorante desconhece tais bens porque jamais os procurou.’33

33

CASSIODORO, VARIAE,I,1,MGH,AA,XII,10. Apud MARSÍLIO DE PÁDUA, DP, I,I,1,p.67: ‘Omni quippe regno desiderabilis debet et tranquilitas, in qua et populi proficunt, et utilitas gencium custodditur. Hec est enim bonarum arcium decora mater. Hec mortalium genus reparabili successione mutiplicans, facultates protendit, mores excolit. Et tantarum rerum ignarus agnoscitur, qui eam minime quesisse sentitur.’ ( DP, I, I,1, p. 1 e 2).

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Em seguida, Marsílio faz referência às ameaças e aos conflitos que fazem a paz perigar. O grande perigo é logo denunciado, trata-se, como comentado, da pretensão papal e eclesiástica à plenitudo potestatis (plenitude do poder):

“Daí ser necessário desmascarar o sofisma que existe por detrás daquela causa já mencionada [a plenitude do poder pontifícia], única em sua espécie, geradora das disputas que ameaçam todas as comunidades e reinos com prejuízos incomensuráveis. Qualquer pessoa tem a obrigação de saber que a utilidade e o bem comum são necessidades indispensáveis a todos, e por isso, a sociedade em geral deve ter um cuidado e solicitude diligentes para consegui-los. Assim sendo, se este sofisma não for desmascarado, essa peste com seus efeitos perniciosos não serão evitados e tampouco extirpados de todos os reinos ou sociedades civis.”34 Todavia, a paz (pax) ou tranqüilidade (tranquilitas) não é o fim último da atividade política. Representa sim o instrumento basilar para a construção de uma vida suficiente (sufficientia vitae) fundada sobre o “viver bem” (bene vivere).

Obs: Todas as citações do Defensor Pacis apresentadas nesta Tese serão realizadas a partir da tradução em língua portuguesa de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza: MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Tradução e Notas de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. O texto latino, apresentado em notas de rodapé, será o da edição de Richard Scholz: MARSILII DE PADUA. Defensor Pacis , ed. Richard Scholz, Fontes Iuris Germanici Antiqui in Usum Scholarum ex Monumentis Germaniae Historicis Separatim Editi. Hannover, Hahnsche Buchhandlung, 1932. 34 DP, I,I,4, p.70 e 71: “(...) quinimo necessitas, iam dicte singularis cause licium, regnis atque communitatibus omnibus nocumenta non parva minantis, reserare sophisma, curam vigilem diligentemque operam huic prebere tenetur quilibet, commune volens et potens utile cernere. Hoc enim immanifesto, nequaquam pestis hec evitari potest, nec ipsius perniciosus effectus a regnis seu civilitatibus resecari perfecte.” (DP,I,I,4, p.6). O grifo é meu.

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A condição da vida suficiente é dada pelo funcionamento não conflituoso da organização civil. No desenvolvimento perfeito entre as diversas partes da sociedade política, cada uma com suas funções específicas, reside a condição de saúde da civitas. Tal condição é chamada bene vivere. Nela encontram-se, formando uma unidade, a tranquilitas e a vida suficiente. Observa Marsílio, seguindo os passos do Filósofo e de acordo com a concepção organicista de sociedade característica da Idade Média, que a saúde do corpo assim como a paz da cidade é unum et idem com a boa disposição da cidade, pela qual cada uma de suas partes pode cumprir perfeitamente as operações que dela se espera segundo a razão e sua instituição:

“Ao analisarmos a questão da tranqüilidade e o seu oposto, procederemos de conformidade com Aristóteles em seu livro intitulado Política, partes I e V, capítulos II e III. O Filósofo descreve a cidade como um ser animado ou vivo. De fato, todo vivente bem constituído, segundo sua natureza, se constitui de partes distintas proporcionais e ordenadas umas às outras, cada uma delas exercendo suas funções numa permuta recíproca em função do todo. A cidade também deve igualmente se compor de partes determinadas, se for previamente bem planejada, para que possa estar racionalmente organizada. Portanto, como as partes integrantes do ser vivo devem estar em função de sua saúde, da mesma as partes integrantes da cidade deverão estar organizadas com o propósito de propiciar a tranqüilidade a seus habitantes.

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Esta ilação é digna de crédito, considerando-se o que todos entendem por saúde e paz ou tranqüilidade. Com efeito, saúde é a boa disposição de um ser vivo, de acordo com sua natureza. A paz que deve existir numa cidade concebida e organizada racionalmente é a sua maior riqueza. A saúde, na opinião dos médicos mais competentes, ao descrevê-la consiste na boa disposição do organismo humano, mediante a qual cada um dos órgãos executa perfeitamente as funções peculiares à sua natureza. Analogamente, a tranqüilidade reside na boa organização da cidade, de acordo com a qual cada uma de suas partes desempenha totalmente as tarefas que lhe são peculiares, conforme a razão e o motivo graças aos quais foram instituídas.”35

Assim sendo, a falta de tranqüilidade é dada pela má organização da cidade (sociedade política, civitas), seja uma cidade (comuna) ou um reino,36 como se ela estivesse acometida por

35

DP, I, II,3, p. 76 e 77: “Debentes itaque describere tranquillitatem et suum oppositum, suscipiamus cum Aristotele primo et quinto Politice sue capitulis 2° et 3° civitatem esse velut animatam seu animalem naturam quandam. Nam sicuti animal bene dispositum secundum naturam componitur exquibusdam proporcionatis partibus invicem ordinatis suaque opera (sibi) mutuo communicantibus et ad totum, sic civitas ex quibusdam talibus constitutor, cum bene disposita et instituta fuerit secundum racionem. Qualis est igitur comparacio animalis et suarum parcium ad sanitatem, talis videbitur civitatis sive regni et suarum parcium ad tranquillitatem. Huius vero illacionis fidem accipere possumus ex eo, quod de ipsarum utraque comprehendunt omnes. Extimant enim sanitatem esse disposicionem animalis optimam secundum naturam, sic quoque tanquillitatem disposicionem optimam cvitatis secundum racionem institute. Sanitas autem, ut aiunt periciores physicorum describentes ipsam, est bona disposicio animalis, Qua potest unaqueque suarum parcium perfecte facere operaciones convenientes sue natures; secundum quam siquidem analogiam erit tranquillitas bona disposicio civitatis aut regni, qua poterit unaqueque saurum parcium facere perfecte operaciones convenientes sibi secundum recionem et suam institucionem”. (DP,I,II,3, p: 11 e 12). 36

Com efeito, é freqüente em Marsílio a dualidade no uso do termo. Quando ele se refere à cidade isoladamente, esta corresponde à sociedade política seja ela qual for, a civitas; quando se refere à cidade ou

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uma doença, pela qual todas ou algumas de suas partes são impedidas no cumprimento das operações que lhe são pertinentes, operações necessárias ao completo e perfeito funcionamento da civitas:

“Tendo em vista que uma boa definição esclarece tudo, inclusive os termos contrários, a intranqüilidade consiste, pois, na má organização da cidade ou reino, da mesma forma que a moléstia ou doença do ser vivo, má organização essa que impede todas ou algumas das partes da cidade de executarem as funções que lhe são próprias, senão total ou quase completamente. Esta é uma comparação figurada entre a tranqüilidade e seu oposto, a intranqüilidade”.37

Neste sentido, a paz não pode continuar a ser apenas um objeto de reflexão intelectual, prerrogativa de poucos homens sábios. Muito ao contrário, compreendida como a tranqüila composição dos interesses em vistas à sufficientia vitae, ela pertence tematicamente à universitas dos homens. Assim, conclui Marsílio, é preciso esclarecer todos os espíritos com relação ao risco que existe por detrás da pretensão eclesiástica e papal ao governo político, ou

reino, o termo cidade quer antes significar comuna, onde a referência às repúblicas (res publica) do centro norte italiano parece evidente. 37 DP, I,II,3, p.77: “(...) Et quia bene diffiniens contraria consignificat, erit intranquillitas prava disposicio civitatis aut regni, quemadmodum infirmitas animalis, qua impediuntur omnes aut alique partes illius facere opera sibi conveniencia, simpliciter vel in complemento. De tranquillitate (quidem) igitur et intranquillitate opposita sic figuraliter sit dictum a nobis”. (DP, I, II,3, p.12).

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seja, efetivamente a discórdia e as dissensões que conduzem ao imperfeito funcionamento da sociedade política ou cidade (civitas) e, conseqüentemente, impedem a paz (pax) de reinar. Marsílio vai de fato tentar demonstrar que esta pretensão carece mesmo de espaço legítimo no interior da civitas. Foi por isto que ele organizou toda a Prima Dictio ao redor das verdadeiras necessidades da universitas civium (o conjunto dos cidadãos),38 necessidades que, segundo os padrões aristotélicos, designou por bene vivere. Com efeito, segundo Francisco Bertelloni (1997, p.27), o objetivo da ciência política de Marsílio foi desenvolver uma teoria que tornasse possível, neste mundo, a satisfação destas necessidades e a obtenção deste “viver bem”, ou seja, um fim perfeito, completo e independente de qualquer outro. Assim, em Marsílio o conceito de paz (pax) integra-se com o de cidade (civitas), uma vez que a primeira é simultaneamente instrumento e condição da vida suficiente fundada sobre o “viver bem”, ou seja, instrumento e condição do estado de saúde da civitas. Estudemos, portanto, o conceito marsiliano de sociedade política ou cidade (civitas). Em Platão e em Aristóteles, o conceito de pólis estava associado aos fins que a totalidade do gênero humano deve ter em vista e dos meios que a razão indica para a consecução de tais

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Estudaremos detidamente o conceito marsiliano de cidadão no Capítulo 5 (p.253-331): “O Conceito de Império em Marsílio de Pádua”. Adiantamos, no entanto, que ele se refere a todos as pessoas natas, adultas e do sexo masculino que habitam na civitas.

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fins. Tal conceito foi introduzido na cultura ocidental pelos escritores latinos, especialmente por Cícero, que o hauriram no estoicismo. Nos escritores áticos, os aspectos estatal e social encontravam-se fundidos no conceito de pólis. Foram os estóicos que o dissociaram, resultando então dois conceitos. A cidade (civitas) passou a ser considerada enquanto “sociedade” (societas) e enquanto “comunidade” ou “organização política”. Foi expondo a doutrina dos estóicos que Cícero disse da societas: “Nascemos para a agregação dos homens e para a sociedade (societas) e a comunidade do gênero humano” (CÍCERO apud ABBAGNANO, 2000, p.913). Enquanto “comunidade” ou “organização política”, os estóicos utilizaram uma fórmula, que aliás reapareceu sob a pena de Marco Aurélio (Memórias) e de outros pensadores do Império Romano, comparando a cidade, como comunidade de seres racionais, a um organismo. Em Santo Agostinho, o conceito de civitas encontra-se ligado à sua famosa distinção, já comentada no primeiro Capítulo 1 (p.11 a 80), de duas cidades, a de Deus e a do Demônio. De acordo com Francisco Manfredo Tomás Ramos (1995, p.31), Santo Agostinho tinha em vista sempre a condição do homem concreto e nela ele sabia distinguir, e ao mesmo tempo coerentemente interligar, as dimensões ontológicas, existencial e escatológica. Isto vale para o homem singular e para a civitas. O seu conceito de cidade é tributário destes três pilares convergentes da sua sapientia: do metafísico de linha platônica, do crente e místico cristão, e também do homem de seu tempo, perfeitamente inserido na realidade do dia-a-dia e por ela questionado.

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Segundo Philoteus Boehner e Etienne Gilson (1982, p.197) há, em Santo Agostinho, duas maneiras de utilizarmos as coisas temporais: ou a relacionamos em sua totalidade a um bem temporal e terreno (à uma paz terrena), ou a referimos a uma ordem transcendente e ultraterrena (à paz eterna e divina). Aquele é o fim da cidade terrena, este o da cidade de Deus. Os que se associam no amor àquele fim terreno formam a cidade terrena ou do Demônio; os demais, unidos pela caridade, formam a cidade celeste ou de Deus. Naqueles predomina o amor às coisas temporais; nestes, o amor a Deus na caridade. A cidade de Deus é uma comunidade espiritual. O mesmo vale para a cidade terrena. Há, prossegue Boehner e Gilson (ibid., p. 198 a 200), entre as duas comunidades não uma distinção material, mas de ordem espiritual. Materialmente elas se confundem devido à íntima convivência dos seus cidadãos. Mas, apesar de fazerem uso de coisas comuns, eles não visam a um mesmo fim. A cidade terrena, que não vive da fé, apetece a paz, porém firma-a na concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo acordo humano de vontades. Mas a cidade celeste, “a parte que peregrina no vale do mundo e vive da fé”, usa desta paz apenas por necessidade, ou seja, até passar a mortalidade e, na redenção, gozar da paz eterna, a verdadeira e “única digna de ser e dizer-se paz da criatura racional”, o que corresponde a “ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, simultaneamente, em Deus”. Tal distinção, com efeito, tem apenas um caráter místico. Efetivamente, no pensamento agostiniano há uma única e só república de todos os cristãos:

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“omnium enim christianorum una respublica est”. Por reivindicarem uma mesma fé, todos os cristãos formam uma única sociedade espiritual. Segundo Etienne Gilson (op. cit., p. 307) a noção agostiniana das duas cidades vai ser complementada, já na Alta Idade Média, por outra, a de Christianitas. O sentido mais antigo de Christianitas era equivalente a cristianismo. Posteriormente, o termo foi empregado, com sentido honorífico, para caracterizar os poderes soberanos cristãos: Christianitas Vestra. Surge pela primeira vez com o sentido de congregação de todos os cristãos numa carta dirigida ao imperador Miguel pelo papa Nicolau I (já no século IX). Realmente, prossegue Gilson (ibid., p.307), foi somente no pontificado de João VIII (872-882) que esta noção alcançou total consciência de si mesma. Christianitas, tota Christianitas, omnis Christianitas, designava então uma sociedade comparável ao Império, porém mais vasta que ele e cuja capital era Roma. João VIII definia a Igreja de Roma como a que possui autoridade sobre todos os povos e à qual todas as nações estão reunidas como única mãe e cabeça. Ou seja, ele associava à Igreja de Roma, não somente as outras Igrejas, mas também os povos (gentes) e as nações (nationes). Todos deviam constituir um só corpo em Cristo. Como época de transmissão cultural fundamentalmente, a mesma pobreza especulativa que caracteriza o século X na ordem da teologia e da filosofia, revela-se na do “pensamento político”; o mesmo “despertar” se verifica no século XI, no pontificado de Gregório VII (1073-1085).

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De ordinário, costuma-se agrupar em torno deste papa várias personagens, chamados de “pré-gregorianos” ou de “gregorianos”, segundo tenham preparado sua obra ou lhe dado posterior justificação doutrinal. Pedro Damião acreditava na existência de uma comunidade espiritual que tomava forma e ânimo apenas no interior da Igreja, não sendo capaz de subsistir como tal separado dela. Não há aqui, nem razão, nem ordem temporal, senão que ambas estão totalmente absorvidas, pela fé e o sobrenatural. Inteiramente subsumida sob a graça, ou assumida por ela, a natureza não tem nem domínio nem jurisdição que possa reivindicar como seus. Segundo Gilson (id., p. 307 e 308), talvez seja exagerado dizer que Pedro Damião não concebesse a existência de uma ordem natural, ou que não tinha a menor idéia de sua natureza precisa, mas certamente é exato dizer que ele não tinha nenhuma idéia “distinta” a este respeito. Os autores ligados a Gregório VII em geral não se preocuparam em definir no abstrato as relações normais da Igreja com os Estados temporais mas, antes, exprimir, em casos particulares e em função de circunstâncias históricas definidas, a relação complexa de todos os cristãos com a Santa Sé e o novo tipo de sociedade que disto resultava. Sob suas penas, a Cristandade (Christianitas) apresentava-se, primeiramente, como a sociedade formada por todos os cristãos em todo o mundo, unidos sob a supremacia espiritual do papa. Neste aspecto, em nada diferia da Igreja, mas logo uma primeira determinação vai distinguí-la desta. Enquanto membros da Igreja, os cristãos formam uma sociedade religiosa essencialmente sobrenatural mas, por viverem no

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espaço-tempo, eles formam uma sociedade temporal e, desta forma, um povo. É o populus christianus dos papas (a antiga respublica christianorum de que falava Santo Agostinho). Esta sociedade temporal, entretanto, não se confundia com nenhum corpo político existente, não sendo ela mesma um corpo político. Pois, embora fosse uma realidade temporal (no que se distinguia da civitas Dei), seus vínculos constitutivos eram espirituais e ela só se servia dos meios temporais com vistas a fins puramente espirituais. No século XII, Oto de Freising (cisterciense do mosteiro de Morimond), ao retornar à história das duas cidades místicas em sua obra De Duabus Civitatibus (1146), deu continuidade à ambigüidade da noção agostiniana. Seguindo a análise de Gilson (id., p. 311), de início Oto as descreve de fato como duas cidades místicas, uma do tempo e a outra da eternidade, uma terrestre e a outra do céu. Em suma, o que os eclesiásticos, recordando as vicissitudes dos antigos hebreus, em geral chamavam: uma da Babilônia e a outra de Jerusalém. Mas ele vai identificar a cidade terrestre ao Império, ou melhor, aos “impérios” que se sucederam desde o começo do mundo. Mas uma vez que, reunidos na romanitas, todos os povos se tornaram cristãos, Oto não via mais sentido em se falar de duas cidades, mas virtualmente de uma só, a que chamou Igreja (Ecclesia). O Sacro Império Romano-Germânico, a que ele próprio pertencia, apresentava-se como uma espécie de corpo terrestre da cidade de Deus. Temos portanto aqui uma mudança fundamental de perspectiva: a absorção da cidade terrestre e do Império pela cidade de Deus e pela Igreja, o que parece ser característico do século XII.

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Hugo de São Vítor (c.1095-1141), na parte do seu De Sacramentis (II,2) intitulada De Unitate Ecclesiae, foi quem deu uma completa justificação doutrinal de uma ordem temporal inteiramente integrada à Igreja, o que foi desenvolvido a partir da eclesiologia de São Paulo. No começo dos tempos, o homem estava em pecado, mas ignorava-o. Deus promulgou então a Lei para revelar-lhe este estado, depois lhe concedeu a Graça para fortalecê-lo. Foi a obra do Espírito Santo. Seu efeito foi duplo: dissipar a ignorância e inflamar os corações. A vida da graça anima todos os corações e, como uma alma, faz deles um só corpo, de quem Jesus Cristo é o chefe. É pela fé que nos tornamos membros deste corpo; pelo amor, participamos de sua vida. Assim a Igreja, o corpo de Cristo, vivificada por um só Espírito e unida por uma só fé, é o conjunto dos crentes. No seu interior, os fiéis distribuem-se em duas ordens, leigos e clérigos, como que os dois lados de um mesmo corpo: os leigos são o lado esquerdo porque Deus lhes confiou o cuidado temporal; os clérigos, encarregados de ministrar a vida espiritual, são o lado direito do corpo de Cristo. Duas ordens que correspondem a duas vidas: uma corporal (onde o corpo vive da alma); outra espiritual (onde a alma vive de Deus). Para regular estas duas vidas, foi preciso forjar duas ordens de autoridade sob dois chefes: o poder secular (para os leigos), entregue ao rei ou ao imperador, que se estende sobre as coisas terrestres; o poder espiritual (para os clérigos), entregue ao papa, que se estende sobre as coisas celestes. Mas o poder espiritual prevalece sobre o temporal da mesma forma que a vida espiritual sobre a temporal. É por isto que o papa desfruta de duas prerrogativas, que garantem a unidade da Igreja: instituir o poder temporal e julgá-lo, se errar, excomungando-o se for preciso.

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João de Salisbury (c.1110-1180) em seu Polycraticus acreditava que o rei é a imagem de Deus na terra, mas ele próprio é servo das leis, da justiça, da equidade e, assim, deve se submeter aos sacerdotes. Realmente a Igreja não empunha o gládio temporal (ela se reserva ao governo das almas porque o dos corpos é indigno dela), mas é ela quem o possui. Ela confia o gládio temporal ao príncipe para que ele o utilize com a finalidade de reger os corpos. Sendo assim o príncipe é, de certa forma, também um ministro do sacerdote, exatamente aquele que exerce a parte dos ministérios sagrados que a Igreja, por não se imiscuir em questões de sangue, não pode exercer. Vejamos as palavras do mestre chartriano a este respeito:

“(...) Portanto, o príncipe recebe sua espada das mãos da Igreja, porque esta última absolutamente não pode usar o gládio de sangue. Entretanto, o possui também, embora faça uso dele, através do príncipe, a quem concedeu o poder de corrigir os corpos. Por conseguinte, o príncipe, de certo modo é um ministro do sacerdote, e quem exerce aquela parte dos ministérios sagrados que parece lhe ser indigna de a exercer, pois todo ofício das leis sagradas é religioso e pio (...)” (JOÃO DE SALISBURY apud SOUZA; BARBOSA, 1997, p.104).

De fato, poucos no século XII esqueceram a metáfora dos “dois gládios”. Segundo Gilson (op. cit., p. 408 e 409), mesmo São Bernardo, cuja preocupação com a pura espiritualidade cristã leva a desviar os papas de toda intromissão na ordem temporal, explicita no seu De

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Consideratione (IV,3) que os dois gládios estão nas mãos do pontífice e é livremente que este encarrega os príncipes de empregarem para ele o gládio temporal. A visão tomista sobre a idéia de civitas foi já estudada no início deste capítulo, o que, em linhas gerais pode ser entendido da seguinte forma: embora já reconhecesse, certamente devido à influência aristotélica, um certa autonomia para as realidades terrestres (a civitas é compreendida com uma realidade natural que tem, em seu plano, uma finalidade própria, em harmonia com as exigências do homem neste mundo), Santo Tomás, por acreditar em um único fim último, a fruição de Deus, submeteu inteiramente o domínio político ao poder espiritual, ao papa, aquele que tem o cuidado deste fim último. Dante Alighieri, como analisamos no capítulo anterior, rompendo com esta tradição, instituiu a concepção de uma dupla beatitude, dois fins últimos. Se por um lado tal perspectiva, desenvolvida como foi no confronto com a proposta radical, de potestas directa, de Bonifácio VIII, buscava de certa forma recuperar a simetria dos “dois gládios”.39 Com efeito, Dante instituiu dois poderes supremos na Cristandade (Christianitas), cada um em sua via própria, a do

39

Com efeito, Francisco Gomes (1997, p.52), sintetizando esta questão, afirma que as relações entre a Igreja e o Império eram explicadas pelos pensadores ligados à hierocracia segundo duas correntes: a corrente dualista que insistia na distinção dos dois poderes, dos dois gládios; e a corrente dualista, que insistia antes na relação assimétrica de subordinação do poder temporal ao poder espiritual. Esta última corrente reuniu, por sua vez, duas tendências: a tendência moderada, que falava de uma potestas indirecta da Igreja e do Papado ratione peccati; e a tendência radical que defendia a potestas directa da Igreja e do Papado sobre toda a Cristandade, sobre o Império. A primeira corrente dualista foi dominante nos séculos XI e XII e foi bem representada, respectivamente, por Pedro Damião e por São Bernardo. A tendência moderada tornou-se vitoriosa na solução dos conflitos com os Hohenstaufen nos séculos XII e XIII. A tendência radical preponderou no final do século XIII e entrou em colapso a partir dos conflitos de Bonifácio VIII com Felipe, o Belo, e de João XXII com Luís da Baviera.

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imperador e a do papa. Por outra, pode bem ser entendida, como é nossa opinião, como um desenvolvimento ou “metamorfose”, sem dúvida uma aplicação ao contexto do final da Idade Média, da noção agostiniana das duas cidades. Até porque em Santo Agostinho ambas as cidades têm um caráter místico. Em Dante, como analisamos no capítulo anterior, a via do imperador, ou seja, o domínio temporal, era considerada também completamente sagrada, uma “santidade da natureza”. Foi de fato somente Marsílio que, revisitando Aristóteles, rompeu com a tradição agostiniana, passando a caracterizar a cidade (civitas) como uma sociedade inteiramente natural, que existe somente para a realização de seus próprios fins. Com efeito, em Aristóteles, os dois primeiros capítulos da Política estabelecem os fundamentos de toda sua filosofia política. Constituem um todo, e este todo já está de algum modo contido no primeiro parágrafo. Neste, Aristóteles esboça um raciocínio cujos suportes e conseqüências são desenvolvidos no conjunto dos dois capítulos, e, além disto, anuncia a sua conclusão que é a tese dominante da Política:

“Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política”. (ARISTÓTELES, op. cit., p.12).

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Tal conclusão que caracteriza a cidade (pólis) como a comunidade que tem por finalidade o soberano bem, fundamenta-se, como se pode observar, em três premissas: a) que a cidade é um certo tipo de comunidade; b) que toda comunidade é constituída em vista de um certo bem; c) que de todas as comunidades, a cidade é a mais “importante” (a soberana comunidade) e aquela que inclui todas as outras. Disto se depreende facilmente que o bem próprio visado por esta comunidade soberana é o bem soberano. Segundo Francis Wolff (1999, p. 36) esta tese é fundamental. Ela distingue Aristóteles de todos seus predecessores, pois, em vez de justificar a cidade por razões gerais comuns a qualquer associação, atribui a cada tipo de comunidade uma razão de ser própria e confere assim à política uma esfera singular. Ao invés de atribuir à cidade a mais baixa das finalidades, ou, ao menos, a justificação mínima (a comunidade política é necessária porque é necessário afinal viver, no sentido de sobreviver, isto é, ajudar-se mutuamente), Aristóteles confere-lhe desde logo a finalidade mais elevada: se os homens vivem em cidades, não o fazem somente por não poderem evitá-lo, mas para atingir o mais alto, o maior dos bens. De fato, Aristóteles define a cidade como a forma última da comunidade humana, aquela que pode permitir aos homens uma “vida melhor”. Disto resultam duas conseqüências quase imediatas: a cidade existe naturalmente e o homem vive por natureza em cidades. Tais considerações ficam evidentes nesta passagem:

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“A comunidade constituída a partir de vários povoados é a cidade definitiva, após atingir ao ponto máximo de uma auto-suficiência praticamente completa; assim, ao mesmo tempo que já tem condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma vida melhor. Toda a cidade, portanto, existe naturalmente, da mesma forma que as primeiras comunidades; aquela é o estágio final destas, pois a natureza de uma coisa é o seu estágio final (...) Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão” (ARISTÓTELES, op. cit., p.15). Como afirma Émile Boutroux (1998, p.121), em Aristóteles, segundo a ordem do tempo, a primeira sociedade que se forma é a família. Depois vem a união de muitas famílias ou kome (aldeia). A cidade (pólis), vem por fim: é a mais elevada das sociedades. Tal é a ordem cronológica; mas, desde o ponto de vista da natureza e da verdade, a cidade vem antes dos indivíduos, da família e da aldeia, assim como o todo vem antes das partes; estas têm naquele sua causa final e sua realização mais elevada. Tal concepção evolutiva baseia-se no princípio naturalista de Aristóteles. Com efeito, segundo Maria Cristina Seixas Vilani (2000, p. 47), no pensamento do Estagirita os elementos evoluem do mais simples ao mais complexo e perfeito. Somente nos estágios mais evoluídos,

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quando as coisas adquirem o seu grau de complexidade maior, é que se expressa e transparece sua natureza autêntica. As comunidades humanas evoluem e, à medida que progridem, vão explicitando sua natureza intrínseca. Na forma social mais primitiva já estão presentes seus elementos naturais, mas somente quando as comunidades adquirem formas mais evoluídas, desenvolvem as capacidades mais altas de sua própria natureza. A cidade é portanto o fim, o acabamento, o termo do desenvolvimento “histórico” que conduz os homens a se associar em comunidades. A autarquia, porém, não é apenas o fim do devir (termo do desenvolvimento) das comunidades naturais, e a cidade não é apenas o fim delas: a autarquia é também o fim (seu objetivo) dela, o fim de sua existência. Tendo sido constituída para permitir que se viva, a cidade permite, uma vez que exista, levar uma vida feliz, ou seja, “viver bem”. Existindo então por uma finalidade que se confunde com sua própria natureza, a cidade é seu próprio fim, para si mesma. Encontramos aqui dois fins (a vida e a “vida boa”). Enquanto não houver cidade, tem-se necessidade dela para suprir a necessidades da vida que a família ou o vilarejo não pode satis fazer. Mas, desde que a cidade exista, ela é para si mesma o seu próprio fim, e permite a “vida boa”, ou seja, a felicidade. Entretanto, estes dois fins não são verdadeiramente distintos; coincidem na noção de autarquia. Porque a autarquia, à qual a cidade permite que se alce, supõe satisfeitas todas as necessidades da vida, é sinônimo de vida perfeita e de felicidade:

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“Uma cidade é uma comunidade de clãs e povoados para uma vida perfeita e independente, e esta em nossa opinião é a maneira feliz e nobiliante de viver” (ARISTÓTELES, op. cit., p.94).

Disto deriva o elemento fundamental da ontologia aristotélica que Francis Wolff (op. cit., p.70 e 71) caracteriza da seguinte forma: um homem, uma comunidade, um ser qualquer serão felizes somente se puderem se bastar a si mesmos, isto é, se encontrarem em si mesmos aquilo com que sejam eles mesmos, serem sem ter necessidade de nada. Ninguém é plenamente, se lhe faltar alguma coisa, se não for plenamente. Um homem sozinho é “carente”. Não pode ser. Carece dos outros, porque carece de tudo. Os homens, seres “de carência”, podem juntos se completar com aquilo que lhes falta. O homem não pode ser, e portanto não pode ser homem, se não for pela e na comunidade. A comunidade política sendo aquela que não carece de nada, é a única a plenamente ser. Portanto, é somente por ela que o homem é plenamente: é na cidade e pela cidade que o homem é homem. Em Marsílio, a perspectiva aristotélica é levada ao “pé da letra”, se bem que transportada para a realidade sócio-política do início do século XIV. A civitas para Marsílio é concebida assim como uma comunidade de seres humanos, universal e naturalmente ordenada, que se constrói pela razão tendo em vista o “bem viver”, ou seja, o viver plenamente sem qual o homem não pode ser homem. Desta forma ela é um todo perfeitamente natural: tem como causa a

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tendência natural do homem à sociabilidade, como origem a sua vontade racional e como objetivo a felicidade e o bem-estar da comunidade. Marcel Pacaut (1989, p. 163 e 164) salienta que, para o Paduano, a sociedade civil existe para ela própria e por ela mesma e não, como pensava por exemplo Santo Tomás, como uma comunidade ordenada em vista de um bem que lhe é superior. De fato, a cidade é aqui completamente circunscrita à sua dimensão terrestre. Marsílio recusa assim a tradição agostiniana das duas cidades e assume uma representação imanente da vida sócio-política. Ordenada somente em função do viver bem, ela não é em princípio uma comunidade de aspirações morais, mas tão-somente de interesses materiais. Gérard Mairet (1993, p.764 e 765) observa que Marsílio considera que o bem extramundano não consta como princípio constitutivo da cidade. Assim é, portanto, a finalidade única da civitas: prover as necessidades materiais e trocar mutuamente os bens capazes de satisfazê-las. Baseado no princípio naturalista de Aristóteles, Marsílio acreditava que a sociedade politicamente organizada havia sido precedida de formas “pré-civis”, carentes de ordenamento jurídico:

“Foi portanto das formas primitivas mais imperfeitas que os homens, aprimorandose, chegaram às comunidades perfeitas e aos regimes e modalidades de vida que nelas existe. De fato, como sabemos, a natureza e a arte, sua imitadora, sempre partem do menos ao mais perfeito. Ademais, não é possível ao ser humano possuir a ciência, sem

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antes conhecer as causas e os princípios primeiros, buscando seus elementos constitutivos. É por isso que, adotando este método, e principiando nossa reflexão, não podemos nos esquecer de que as sociedades civis, conforme a diversidade de regiões e épocas em que surgiram, tiveram a sua origem quase do nada e só com o passar do tempo muito paulatinamente se expandiram até alcançarem seu aperfeiçoamento, de acordo com o que dissemos acerca de toda atividade que provém da natureza e da arte.”40

De acordo com Marsílio, a organização familiar (domus) foi a primeira forma de associação humana e nela imperava o arbítrio do pai. Na vila (vicus), reunião de famílias que Marsílio considerou como a primeira comunidade humana, os homens criavam normas comuns de conduta baseadas nas regras dos mais velhos. A vida civil perfeita só se realiza na cidade (civitas), comunidade natural e auto-suficiente que serve à finalidade humana do “bem viver”. Surgiu quando os homens se concentraram em um determinado espaço para permutar seus bens e serviços, distinguindo claramente os grupos sociais, buscando satisfazer, através da razão e da experiência, suas necessidades para viver, e “viver bem”. Nas palavras do Paduano: 40

DP, I,III, 2-3, p.78 “(...) Ex quibus, tamquam imperfectis, processerunt homines ad perfectas communitates, regimina et modos vivendi in eis. Nam ex minus perfectis ad perfecciora sempre est nature atque artis, sue imitraticis, incessus. Nec homines aliter scire arbitrantur unumquodque, nisi cum causas illius primas et principia prima cognoverint usque ad elementa.

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“Porém, à medida que as comunidades foram crescendo, a experiência dos homens foi aumentando. As habilidades e as regras ou maneiras de viver foram sendo consolidadas, de forma que os diversos grupos sociais existentes na cidade passaram a ser mais claramente distintos uns dos outros. Enfim, a razão e a experiência humanas gradualmente foram descobrindo o que é necessário para viver, e viver bem, a fim de poder se realizar. Foi assim que surgiu a comunidade perfeita, denominada cidade, na qual há grupos sociais ou partes diversificadas (...)”41

Podemos então concluir que, como afirma Maria Cristina Seixas Vilani (op. cit., p.47 e 48), em Marsílio a cidade é um todo orgânico composto de dimensões físicas e éticas, necessárias à vida organizada e virtuosa (no seu sentido terreno) dos membros que a constituem, e o problema central da política se refere ao ordenamento das partes que a compõem com vistas a alcançar a tranqüilidade e a paz.

Secundum hunc itaque modum ingredientis, oportet non latere, quod communitates civiles secundum diversas regiones et tempora inceperunt ex parvo, et paulatim suscipientes incrementum demum perducte sunt ad complementum, sicuti evenire iam diximus in omni accione nature vel artis (...)” (DP, I,III,2-3, p.13). 41 DP, I,III,5, p.81 “Augmentatis autem hiis successive, aucta est hominum experiencia, invente sunt artes et regule ac modi vivendi perfecciores, distincte quoque amplius communitatum partes. Demum vero que necessaria sunt ad vivere et bene vivere, per hominum racionem et experienciam perducta sunt ad complementum, ed instituta est perfecta comunitas vocata civitas cum suarum parcium distinccione (...)” (DP, I,III, 5, p. 15 e 16).

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No pensamento marsiliano, como no aristotélico, a perfeição humana (caracterizada por este fim inteiramente natural, o “viver bem”), só é possível de ser alcançado numa civitas, e é exatamente sua consecução o tema com que Marsílio se ocupa na Prima Dictio. Mas, para tanto, era preciso desenvolver uma determinada concepção de lei (lex). Platão (428-7 a.C. – 348-7 a.C.), na República, ao tratar da justiça definiu a lei como aquilo que possibilita que um grupo qualquer de homens, ainda que bandidos e ladrões, conviva e aja com vistas a um fim comum. Assim, como observa Nicola Abbagnano (op. cit., p, 279) esta seria uma função puramente formal da lei, graças a qual ela é simplesmente a técnica da coexistência. Já Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), na Política, qualificava a lei tomando como referência a coexistência justa, racionalmente perfeita. Os estóicos só fizeram explicitar o fundamento desta doutrina, identificando a lei natural com a justiça e a justiça com a razão. Em Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), no De Legibbus, como salienta Abbagnano (ibid., p.279), o conceito de lei induzia a reconhecer a igualdade de todos os homens visto que, em todos eles, pela sua natureza racional, revelava-se a lei eterna da razão. Assim, para Cícero, o princípio e o fundamento de qualquer Direito devem ser procurados na lei natural dimanada antes que existisse qualquer Estado; portanto, se o povo ou o príncipe podem fazer leis, estas não terão verdadeiro caráter de Direito se não derivarem da lei primitiva.

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No século III, distinguiu-se a lei das gentes da lei natural. Para Ulpiano, no Digesto, a lei natural é o que a natureza ensinou a todos os animais e por isso não é próprio apenas do gênero humano (a união do macho e da fêmea, a procriação, etc); a lei das gentes, ao contrário, é aquela de que se valem todas as raças humanas, sendo própria somente dos homens (por exemplo, a escravidão). Tal concepção gerou, logicamente, a quebra do vínculo obrigatório entre a lei natural e a razão. Por isso, como informa Abbagnano (id., p.280), a lei natural foi remetida àquilo que, nos animais, constituía sob o ponto de vista estóico o equivalente da razão, o instinto. Segundo os Padres da Igreja, a lei natural estava escrita no “coração” dos homens como uma espécie de força inata ou instinto. Para Santo Agostinho (354-430), no De Divina Quaestia, a lei natural não foi gerada por uma opinião, mas inserida nos homens por uma força inata, do mesmo modo como, na religião, estão a piedade, a graça, a observância, a verdade. Também os juristas medievais consideravam a lei natural exatamente como um instinto ou uma tendência inata, que eles interpretavam como sinal ou marca posta no homem por Deus. Graciano, no século XII, no Decretum, dividia todas as leis em dois tipos, atribuindo a Deus as leis naturais e, aos costumes, as leis humanas. A identificação da lei natural com a lei divina constituíu-se no fundamento do Direito Canônico. Segundo Maurílio César de Lima (1999, p. 31), as fontes primárias cognoscitivas do Direito Canônico e a parte mais nobre das leis eclesiásticas estão na Revelação que se apresenta, para nós, pela Palavra de Deus contida nos livros sagrados inspirados (as Sagradas Escrituras) e também naquela que nos chegou oralmente (a Sagrada Tradição). Constituem-se nelas o Direito

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Divino positivo como expressão da vontade do supremo Legislador e Juiz da Igreja, mas também, talvez por outro título, como expressão da lei natural. A distinção de Graciano entre lei divina e lei humana foi assumida como fundamento da doutrina tomista do Direito. Para Santo Tomás de Aquino, na Summa Teologica (parcialmente finalizada em c.1274, faltando apenas a terceira parte), há uma lei eterna, uma razão que governa todo o universo e que existe na mente divina. A lei natural que está nos homens é reflexo ou “participação” desta lei eterna. Mas além desta lei eterna, que para o homem é natural, há duas outras espécies de leis: aquela inventada pelos homens que, de modo diverso, trata das coisas a que a lei natural já se refere; e a divina necessária para encaminhar o homem a seu fim sobrenatural. Santo Tomás considerava a lei natural, a um só tempo, instinto e razão, uma vez que incluiu nela tanto a inclinação que o homem tem em comum com os seres da natureza e com os animais, quanto a inclinação específica do homem. Quanto a esta última, ele estabeleceu entre os preceitos da lei natural e a razão prática a mesma relação que havia entre os primeiros princípios das demonstrações e a razão especulativa. Tanto os preceitos quanto os primeiros princípios eram “conhecidos de per si”, isto é, evidentes. Mas em todas as suas determinações, tanto instintivas quanto racionais, a lei natural foi sempre a participação na “lei eterna”, na ordem providencial ou divina do mundo. Efetivamente, durante toda a Antigüidade e Idade Média, até o surgimento do pensamento marsiliano na segunda década do século XIV, a lei natural conservou a função de fundamento e, às vezes platonicamente, de arquétipo ou modelo de toda lei positiva.

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Na primeira década do século XIV, Dante Alighieri, como pensador ligado fundamentalmente à tradição aristotélico-tomista, seguiu os princípios do grande Doutor Angélico e assim deu continuidade a sua concepção de lex. Mas isto não nos impede de salientarmos a especial contribuição dantesca. Efetivamente, preocupado com a função ordenadora que tem o imperador na condução da sociedade humana à beatitude que pode ser alcançada no mundo - o “paraíso terrestre”, Dante, considerando-o como o grande “árbitro” e legislador político da Cristandade, desenvolveu uma visão própria das relações entre a lei e a função imperial. A base desta concepção encontra-se na teoria dantesca da Ordinatio ad Unum (ordenação ao Uno), ou seja, no imperador. Mas para Dante, isto não significa que os mais ínfimos regimentos duma cidade, por exemplo, devam vir diretamente do imperador. Como nações, reinos, cidades têm propriedades diversas, exigem governos com leis correlativamente diversas, já que a lei é entendida como “uma pauta por onde deve regular-se a vida” (DANTE ALIGHIEIRI, s/d, p.124). Na realidade, o gênero humano será governado por um único Monarca naquelas questões que importam a toda e qualquer sociedade política, sendo, portanto, encaminhado a paz por uma única Lei, uma regra geral que os príncipes particulares devem receber do Monarca. Neste ponto o imperador é identificado como o possuidor do intelecto especulativo; e os príncipes particulares, do intelecto prático.42 Então Dante nos explica como se deve dar o mecanismo de transmissão da lex entre as duas instâncias:

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Efetivamente, como nos informa Ernst Kantorowicz (1989, p.342 a 345), Dante concebia o gênero humano como uma pessoa única, um corpo incorporado único. A diferença entre Dante e Averróes, com relação a

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“Assim, o intelecto prático recebe do intelecto especulativo a proposição maior que comanda a conclusão prática para, subsumindo nela a proposição particular que constitui propriamente o seu objeto, concluir em tal ação. Ora isto não apenas é possível a um só como, mais, só por um pode ser efetuado, sob pena de se introduzir a confusão nos princípios universais” (DANTE ALIGHIEIRI, ibid., p.124 e 125).

Este mecanismo pode parecer complexo ou mesmo um tanto confuso, mas Dante se apressa em exemplificar, utilizando para tanto o Êxodo de Moisés. Este deixava aos notáveis eleitos em cada tribo dos filhos de Israel os juízos menores e guardava para si os juízos maiores que importassem a toda a comunidade; das decisões tomadas no âmbito destes últimos, os notáveis extraíam o que tivesse aplicação nas suas tribos. É este, em resumo, para Dante, o relacionamento político e de poder que deve ser estabelecido entre o seu Monarca e os diversos príncipes, a fim de que o gênero humano, vivendo otimamente, possa alcançar a perfeita ordenação do mundo. Em Marsílio, a releitura das obras aristotélicas leva-o a romper com esta tradição teológica que, em resumo, concebia a lex da seguinte forma: toda lei positiva tem como fundamento a lei

noção de “intelecto universal”, é que o averroísmo acreditava na existência de um intelecto agente único que, não pertencendo ao homem, agia sobre cada indivíduo, cada intelecto passivo, de fora. Dante, ao contrário, pensava na coletividade. Imaginava um intelecto mundial imanente. Um que assim não estava separado de seus componentes humanos individuais, ainda que os transcendesse enquanto elementos isolados, e ainda que pudesse somente ser atualizado completamente por uma universitas agindo como “um só homem”, como um indivíduo coletivo. A figura do Monarca, que representa em si toda a humana universitas, aparecia então como a natural detentora deste intelecto universal.

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natural e esta última é reflexo ou “participação” no homem (como em toda a natureza) da lei divina. Segundo Carlo Dolcini (1999, p.29), a teoria marsiliana da lei supera o panteísmo jurídico dos canonistas, que tinham identificado a natureza com Deus, o voluntarismo dos teólogos franciscanos com a sua inspiração ética exclusivamente fundada sobre os Evangelhos, e o racionalismo de Santo Tomás de Aquino que tinha definido a lei natural, comum a todos os homens, como participação da lei eterna na criatura racional. Vimos que em Aristóteles a lei é concebida como a norma de coexistência justa, racionalmente perfeita. Ela é portanto definida, na Ética a Nicômaco, como aquilo que pode criar e conservar, no todo ou em parte, a felicidade da comunidade política:

“Como vimos que o homem sem lei é injusto e o respeitador da lei é justo, evidentemente todos os atos legítimos são, em certo sentido, atos justos; porque os atos prescritos pela arte do legislador são legítimos, e cada um deles dizemos nós, é justo. Ora, nas disposições que tomam sobre todos os assuntos, as leis têm em mira a vantagem comum, quer de todos, quer dos melhores ou daqueles que detêm o poder ou algo nesse gênero; de modo que, em certo sentido, chamamos justos aqueles atos que tendem a produzir e a preservar, para a sociedade política, a felicidade e os elementos que a compõem” (ARISTÓTELES, 1991, p.82).

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Segundo Aristóteles, a felicidade, enquanto fim próprio do homem, é sua realização ou perfeição. A felicidade somente poder ser obtida em uma pólis. Ela depende da ordenação da pólis e da Justiça, sendo somente alcançada com o uso da razão (a maneira de ser e agir específica do homem). A lei, enquanto o produto da razão que conduz à felicidade, é portanto, para Aristóteles, a norma que constitui a ordem da comunidade política e a determinação do que é justo. O pensamento aristotélico com relação ao papel da lei na sociedade política (o que se encontra expresso fundamentalmente na Política), tendo como realidade histórica a pólis ateniense do século IV a.C. e como objetivo a busca do regime perfeito, se estrutura a partir de sua análise sobre a democracia. Entre os antigos helenos, como afirma Jean-Pierre Vernant (1989, p.34), o que implicava o regime democrático era, primeiramente, uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder. Palavra que não era mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação. Entre a política e o logos, havia assim relação estreita, um vínculo recíproco. A arte da política era essencialmente exercício da linguagem, e o logos, na origem, tomava consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através de sua função política. Uma segunda característica da democracia helênica apontada por Vernant (ibid, p.35) era o cunho de plena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social. Pode-se dizer que a pólis democrática passou a existir apenas no momento em que se distinguiu um

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domínio público, nos dois sentidos diferentes mas solidários do termo: um setor de interesse comum, opondo-se aos assuntos privados; práticas abertas, estabelecidas em pleno dia, opondose a processos secretos. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à pnix (local onde, em Atenas, se realizava a assembléia de todos os cidadãos, a Ecclesia), sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia de poder, no recesso de tradições familiares. Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política; é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos. A escrita pode satisfazer a esta função de “publicidade” porque ela própria se tornou, quase com o mesmo direito da língua falada, o bem comum de todos os cidadãos. Compreende-se assim, conclui Vernant (id., p 36)., o alcance de uma reivindicação que surge desde o nascimento da pólis: a redação das leis. Ao escrevê-las, não se fazia mais que assegurar-lhes permanência e fixidez. Subtraí-las à autoridade privada do basileus, cuja função era “dizer” o direito; torná-las bem comum, regra geral, suscetível de ser aplicada a todos da mesma maneira. De fato, como novamente afirma Jean-Pierre Vernant (id., p.36 e 37), no mundo de Hesíodo, anterior à pólis, a dike (justiça) atuava ainda em dois planos, como dividida entre o céu e a terra: para o pequeno cultivador beócio, a dike era, neste mundo, uma decisão de fato dependente da arbitrariedade dos reis “comedores de presentes”; no céu, era uma divindade

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soberana, mas longínqua e inacessível. Ao contrário, pela divulgação que lhe confere a escrita, a dike, sem deixar de aparecer como um valor ideal, vai poder encarnar-se num plano propriamente humano, realizar-se na lei, regra comum a todos mas superior a todos, norma racional, sujeita à discussão e modificável por decreto. O uso que Aristóteles faz da palavra “democracia” na Política liga-se a uma determinada ambigüidade. Nos livros IV a VI, ela é empregada, num sentido geral e baseada numa divisão dicotômica, para designar todo o regime no qual o demos é soberano, opondo-a então simplesmente à “oligarquia”. Mas já observamos o emprego propriamente aristotélico de “democracia” para designar uma das duas espécies de “regime popular”, a espécie pervertida, por oposição à espécie “normal”, o “regime constitucional”. A “democracia” é então um regime no qual, de fato, uma maioria de pessoas livres mas pobres são os donos do poder. A extensão restritiva do conceito acompanha a nuança pejorativa da palavra: o poder se exerce em benefício de apenas uma parte da cidade. Mas, tomando a “democracia” em sentido lato, a crítica aristotélica se encaminha, fundamentalmente, a partir de sua idéia de liberdade. Na cidade como no mundo, os seres verdadeiramente livres não são, para Aristóteles, aqueles que se deixam guiar ao acaso de seu capricho, reduzidos à errância de sua singularidade, mas aqueles cuja ação é regulada pela ordem da totalidade: são os astros mais que os viventes terrestres. Do mesmo modo, na pólis, os homens livres são os membros da politeia, submissos à ordem desta totalidade que organiza suas relações; ao passo que os escravos, que vivem somente para si, são assim submissos à arbitrartiedade e à desordem.

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Neste âmbito, Aristóteles, destacando que na realidade existem diversos tipos de democracia, ressalta a importância fundamental da lei. Vejamos nas suas palavras:

“A primeira espécie de democracia baseia-se principalmente na igualdade; nos termos da lei reguladora desta espécie de democracia, a igualdade significa que os pobres não têm mais direitos que os ricos, e nenhuma das duas classes é soberana de maneira exclusiva, mas ambas são iguais (...) Esta é (...) uma espécie de democracia onde as funções de governo são exercidas com base na qualificação pelos bens possuídos, mas os bens classificatórios são de pouca monta; quem tiver os bens estipulados participará do governo, mas quem os perder não participará. Outra espécie de democracia é aquela em que participam das funções de governo todos os cidadãos não sujeitos a desqualificação, sendo a lei soberana. Ainda há outra espécie de democracia, na qual todos participam das funções de governo, desde que sejam simplesmente cidadãos, sendo a lei soberana. Outra espécie de democracia é igual as demais em tudo, com a exceção que as massas são soberanas, e não a lei; isto ocorre quando os decretos da assembléia popular se sobrepõem às leis. Tal situação é provocada pelos demagogos; em cidades governadas democraticamente e sob o império da lei não aparecem demagogos, e as melhores classes de cidadãos ocupam as posições mais proeminentes; onde, porém, as leis não são soberanas, então aparecem os demagogos, pois o povo se transforma numa espécie de monarca múltiplo, numa

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unidade composta de muitos, já que os muitos são soberanos não como indivíduos, mas coletivamente” (ARISTÓTELES, 1997, p.131 e132).

Suas críticas, como se pode observar, não visam o regime democrático em sua estrutura isonômica fundamental, mas o tipo regime democrático onde a lei não é soberana. Francis Wolf (op. cit., p.134) salienta que a crítica aristotélica, com efeito, não é dirigida à “democracia” enquanto regime de “soberania popular”, mas a sua perversão “individualista”, na qual pode cair todo o regime. Numa releitura escolástica de Aristóteles, e adaptando-o à realidade política da primeira metade do século XIV, Marsílio distingue, ao lado da Lei Divina, a lex, lei civil ou humana, de origem inteiramente natural. Tal distinção, já entrevista no Defensor Pacis, é somente elaborada de forma definitiva no Defensor Minor:

“No entanto, a lei considerada propriamente é um preceito coercitivo permitindo ou proibindo fazer determinadas ações e com a capacidade de infligir um castigo aos seus transgressores. A Lei Divina é um preceito coercitivo estabelecido imediatamente por Deus, sem nenhuma participação humana, com o propósito de levar as criaturas humanas a alcançar o fim último da vida futura e capaz de infligir um castigo aos seus transgressores apenas na outra vida, não nesta. Ao contrário, a lei humana é um preceito coercitivo, procedente

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de modo imediato da vontade ou decisão humana, com o propósito de se alcançar um objetivo neste mundo, cujos infratores serão castigados aqui na terra somente”.43 Com efeito, segundo Carlo Dolcini (op. cit., p.50 e 51), o Defensor Minor não é exatamente um resumo ou uma redução da “Obra Maior”, como o título pode dar a entender. Mas é indubitável que nele Marsílio retoma as principais teses doutrinário-eclesiológicas do Defensor Pacis, bem como algo de suas posições políticas, analisando e justificando seus pontos de vista. Na realidade, trata-se de novas abordagens de antigos temas, ou melhor, como nos diz Dolcini, de temas que no Defensor Pacis tiveram seu ponto de partida e, agora, encontram ulteriores elaborações do pensamento. Desta forma, foi a propósito da questão do casamento, ou melhor, de quem deve exercer sua autoridade sobre o mesmo, o papa ou o imperador, que Marsílio constrói em caráter definitivo sua distinção.44 Como o casamento é visto por Marsílio como uma questão puramente natural, assentado apenas na comunhão de vontades entre os noivos e não, como o via (e vê) a 43

DM,XIII,3, p.:87: “Lex autem sumpta praeceptum coactivum est de fiendis aut omittendis humanis actibus sub poena transgressoribus infligenda. Verum lex divina est praeceptum coactivum a Deo factum immediate absque humana deliberatione, propter finem in futuro saeculo consequendum, et sub poena transgressoribus infligenda in eodem tantummodo saeculo, non praesenti” (DM,XIII,3,p.268). Obs: Todas as citações do Defensor Minor apresentadas nesta Tese serão realizadas a partir da tradução em língua portuguesa de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza: MARSÍLIO DE PÁDUA. Defensor Menor. Introdução, tradução e notas por José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 11 à 110. O texto latino, apresentado em notas de rodapé, será o da edição bilingüe de Colette Jeudy e Jeaninne Quillet: MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979. 44 Sua motivação, como comentado no capítulo anterior, deve-se ao fato de que o imperador Luís desejava casar, por motivos político-dinásticos, seu filho Luís, marquês de Brandemburgo, com Margarida Maultasch, duquesa do Tirol; mas o papa, Bento XII, não aquiesceu ao seu pedido devido ao conflito aberto entre o Papado e o Império que já durava quase três anos, ao fato dela já ser casada e ter fugido de seu marido (João Henrique de Morávia, filho do rei da Boêmia) e a um impedimento de consangüinidade, pelo fato de serem primos.

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Igreja, um ato sacramental, ele é da competência exclusiva da lei humana (a lex), regulada pelo imperador. Com efeito, em Marsílio a lei humana é simplesmente uma norma cuja causa eficiente é o homem, a causa final é o bem terreno e a material é o homem na sua disposição à paz.45 Entretanto, na construção de seu conceito de lei (lex), em primeiro lugar Marsílio distingue todas as ações em actus imperati e actus non imperati, segundo são causados por determinações do intelecto ou não. Os primeiros podem ser immanentes ou transeuntes: immanentes são os pensamentos ou desejos que permanecem na esfera do sujeito agente; transeunt es são todos os impulsos do corpo e da alma que tem uma manifestação objetiva em uma pessoa diversa do agente:

“No entanto, algumas das atividades e paixões humanas provêm de causas naturais sem ocorrer a intervenção da inteligência, pois acontecem através de diversificação dos elementos constituintes de nosso corpo, face à sua própria 45

A filosofia medieval, sistematizando o pensamento d e Aristóteles, elaborou a teoria das quatro causas. Haveria, segundo os pensadores medievais, a causa natural – a matéria de que um corpo é constituído (por exemplo, o bloco de mármore de uma estátua); a causa formal – a forma que a matéria possui para constituir um determinado corpo (a forma da referida estátua); a causa eficiente – a ação que faz com que a matéria passe a ter uma determinada forma (o escultor da referida estátua); a causa final – a razão pela qual uma determinada matéria passou a ter uma determinada forma (para colocar a referida estátua numa igreja ou para colocá-la num jardim, por exemplo). As relações entre as quatro causas explicam tudo o que existe, o modo como existe e o fim para o qual existe. Mas estas quatro causas não possuem o mesmo valor, são antes concebidas como estando hierarquizadas. Assim sendo, a causa eficiente é a menos importante e a causa final é a mais importante. Esta teoria está, pois, articulada com uma concepção metafísica da realidade, e serve para explicar os fenômenos físicos e os fenômenos humanos (ética, política, técnica). Tudo isto, naturalmente, está relacionado com as categorias de forma e matéria; de causas primeiras e causas segundas: mediatas e imediatas.

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composição. Tal é o caso das atividades relacionadas com a nutrição, bem como aquelas outras produzidas pelos elementos de nosso organismo, devido à alteração de suas qualidades. Ainda se enquadram nesta teoria as transformações advindas por causa da ingestão de outras substâncias: alimentos, bebidas, medicamentos, venenos e igualmente outros elementos semelhantes a esses. Mas as outras são atividades e paixões geradas em nós e por nós mesmos graças às nossas faculdades cognitiva e volitiva. Dentre estas, algumas são denominadas imanentes, como é o caso dos pensamentos, dos atos da vontade ou das inclinações humanas, porque não passam de um agente para outro e porque não são realizadas por algum dos órgãos externos ou pelos membros locomotores, conforme o lugar. Algumas outras atividades são transeuntes e assim denominadas, porque, de certa maneira ou sob determinada circunstância, são diferentes das referidas imediatamente antes”.46

Os actus imperati podem ser compreendidos segundo a perspectiva de uma retribuição em termos de pena ou de prêmio e, sob esta observação, se articula o eixo fundamental da teoria

46

DP, I,V,4, p.88. “Accionum autem humanarum et suarum passionum quedam proveniunt a causis naturalibus preter cognicionem, quales fiunt per elementorum contrarietatem, nostra componencium corpora, propter ipsorum permixtionem. In quo genere reponi possunt convenienter acciones particule nutritive. Qu od eciam capitulum ingrediuntur acciones, quas faciunt elementa nostrum corpus continencia per alteracionem suarum qualitatum; de quorum genere sunt eciam alteraciones que fiunt ab ingredientibus humana corpora, veluti sunt cibi, potus, medicine, venena et reliqua similia hiis. Alie vero sunt acciones et passiones a nobis vel in nobis per virtutes nostras cognoscentes et appetentes. Quarum quedam vocantur immanentes, ut quia non transeunt in aliud subiectum a faciente, nec exercentur per aliquod exteriorum organorum seu membrorum motorum secundum locum, ut sunt cogitaciones et hominum desideira affecciones. Alie vero sunt et dicuntur transeuntes, quia modo altero vel utroque predictorum opposite se habent immediate predicitis” (DP, I,V,4, p.22).

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marsiliana. Em particular, a retribuição pode realizar-se neste mundo ou no outro, donde constatamos a summa divisio entre lex humana e Lex Divina. A lei humana regula os actus humani imperati transeuntes, diferentemente da Lei Divina que regula os actus humani imperati immanentes et transeuntes. Marsílio opera assim, como observa P. L. Zampetti (1954, p.221), uma restrição da esfera do direito com relação a da moral: apenas atos externos (não todos) podem ser juridicamente regulados, enquanto a norma moral-religiosa não apenas estende a sua supremacia sobre os atos internos mas também sobre os externos. A Lei Divina e a lei humana constituem a sanção que representa, respectivamente, a pressão espiritual e a coação terrena, capazes de dirigir os actus humani imperati. A Lei Divina, entretanto, apesar de refletir um campo mais vasto de ações, manifesta-se somente na vida futura, uma vez que falta nela o princípio de coerção inerente ao preceito jurídico. De fato, isto que se define por lei (entendida em seu significado mais próprio) é uma regra coercitiva pela qual cada transgressão deve ser punida por um poder consensual que deve julgar segundo aquela própria lei. Em outras palavras, a Lei Divina, por estar munida apenas da sanção espiritual, não tem execução nesta vida e é chamada assim impropriamente de lei, ao passo que um preceito jurídico se conhece não somente pela sua alteridade, mas também e sobretudo pela sua coercitividade atual. A Lei Divina, para Marsílio, é portanto “doutrina” e não “lei”. A Lei Divina e a lei humana são apresentadas desta forma como dois comandos positivos estranhos um ao outro, mas da mesma natureza. Com efeito, ambas são prescrições definindo o

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que se deve fazer e o que se deve evitar, e ambas são sancionadas por recompensas ou por punições. Mas a lei humana pode ser entendida de duas maneiras diferentes. Primeiro revelando somente o que é justo ou injusto, útil ou nocivo. Neste caso, ela é entendida nela mesma e deve ser chamada doutrina ou ciência do direito. De fato, para Marsílio, a lei em seu sentido mais correto trata-se somente do preceito coercitivo que institui uma punição ou uma recompensa a ser atribuída neste mundo, conforme a finalidade do seu cumprimento ou na medida em que é dado mediante tal preceito. Nas palavras de Marsílio: “A palavra ‘lei’ tomada conforme esta última acepção pode ser analisada sob dois aspectos. Primeiro: em si mesma, enquanto revela somente o que é justo ou injusto, útil ou nocivo, e, como tal, é chamada doutrina ou ciência do direito. Segundo: enquanto considera o que um preceito coercivo estipulado impõe como recompensa ou castigo a ser atribuído neste mundo, conforme a finalidade do seu cumprimento, ou, ainda, na medida em que é dado mediante tal preceito. Assim considerada, denomina-se lei e de fato o é no sentido mais correto”.47

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DP, I,X,4, p.117 “(...) sermo igitur seu oracio ab abliqua prudencia seu intellectu, politico scilicet, id est ordinacio de iustis et conferentibus et ipsorum oppositis per prudenciam politicam, habens coactivam potenciam, id est, de cuius observacione datur preceptum, quod quis cogitur observare, seu lata per modum talis precepti, lex est” (DP, I, X,4, p.50).

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Foi só então que Marsílio pode explicitar, inteiramente, o que entendia por lei, mas não sem antes recorrer, uma vez mais, à autoridade de Aristóteles. Observemos primeiro as palavras do Estagirita na Ética a Nicômaco:

“A lei tem esse poder coercitivo, ao mesmo tempo que é uma regra baseada numa espécie de sabedoria procedente da razão prática” (ARISTÓTELES, op. cit., p.169).

Vejamos então como o Paduano, embasando sua convicção na perspectiva aristotélica, de uma vez por todas define a lex:

“Portanto, a lei é um enunciado ou princípio que procede duma certa prudência e da inteligência política, quer dizer, ela é uma ordem referente ao justo e ao útil, e ainda aos seus contrários, através da prudência política, detentora do poder coercitivo, isto é, trata-se de um preceito estatuído para ser observado, o qual se deve respeitar, ou, ainda, a lei é uma ordem promulgada através de determinado preceito.” 48

Em Marsílio, a lei propriamente dita, o praeceptum coactivum, fundamenta-se, despossuída de toda e qualquer inspiração divina, apenas no consenso geral dos cidadãos. 48

DP, I,X,4, p.117: “(...) sermo igitur seu oracio ab abliqua prudencia seu intellectu, politico scilicet, id est ordinacio de iustis et conferentibus et ipsorum oppositis per prudenciam politicam, habens coactivam potenciam, id est, de cuius

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Devemos, entretanto, compreender adequadamente o processo, proposto por Marsílio, através do qual a vontade da universitas civium se expressava na sanção da lei. De acordo com Omaggio (op. cit., p.21), o esquema de “relativização” dos princípios temáticos morais empreendido por Marsílio ocorre também a propósito da lei que, não mais opus virturtis, mas discernimento do útil do danoso, reabilita constitutivamente o “povo” (populus),49 que vai encontrar o seu papel enquanto elemento de legitimação. Segundo Bertelloni (op. cit., p.27), a universitas civium marsiliana tem sua própria lei: ela é um conjunto de cristãos autogovernados por sua própria vontade, que assim tomam a função governamental daquele que, até então, havia pretendido exercê-la: o papa. A idéia de autogoverno abre caminho para a de consensus, entendido este como a condição indispensável ao processo formal de sanção da lex. Esta já não é lei por um caráter eudemonológico (por seu conteúdo bom ou mal), mas pelo seu caráter coercitivo, proveniente do consensus. O clero, assim, não só perde a exclusividade de suas competências jurisdicionais (mediante a transferência da potestas iurisdictionis para a universitas civium), mas igualmente sua preeminência no interior da civitas ao ser concebido, baseando-se na idéia, já vista neste

observacione datur preceptum, quod quis cogitur observare, seu lata per modum talis precepti, lex est” (DP, I, X,4, p.50). 49 O sentido medieval da palavra populus poder ser também associado à aristocracia. Em Marsílio, no entanto, isto não ocorre. No texto do Paduano a palavra populus significa “povo” ou, mais precisamente, o conjunto dos cidadãos da civitas. Isto é, como falamos, todos os natos, adultos e do sexo ma sculino que habitam em determinada sociedade política.

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mesmo capítulo, de harmonia das diversas partes da pólis retirada da filosofia natural de Aristóteles, apenas como uma das partes (a pars sacerdotalis), de mesma importância que as outras e da mesma forma subordinada à vontade da universitas civium.50 Desta forma, recolocando o clero como uma parte entre as partes, o poder torna-se uno e indivisível, com o que desaparecem as possibilidades de conflito entre os poderes espiritual e temporal. A lei (lex) nasce portanto do consenso (consensus) de todos os cidadãos, clérigos e leigos conjuntamente. Novamente a inspiração aristotélica parece evidente. É de fato no exemplo da autarquia políade, analisado e justificado na Política, que Marsílio embasa suas reflexões. Mas adaptando-o às estruturas políticas do século XIV (onde as comunas italianas, os Estados Monárquicos emergentes e o Sacro Império Romano-Germânico são a referência), o Paduano articula a sua idéia de consenso uma outra, de representação: populus seu eius valentior pars. Yves Congar (op. cit., p.287 e 288) salienta que, de fato, pelo princípio aristotélico, o sujeito político em Marsílio é de fato o próprio “povo” (o ideal da pólis); mas, pela idéia do valentior pars (parte preponderante), ele deve delegar o poder a seus representantes e finalmente ao governante ou príncipe. É este que incarna a autoridade absoluta do Estado. É igualmente à totalidade dos cidadãos da civitas, aos seus representantes, finalmente ao governante, que incumbe fazer as leis.

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Com efeito, a teoria marsiliana das partes da civitas baseia-se na concepção aristotélica (Política, livro II, cap. VI). São as seguintes: a agricultura, o artesanato, o exército, a “financista”, o sacerdócio, e a judicial ou consultiva.

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Nossa análise do texto do Defensor Pacis, entretanto, mostra uma divergência com a leitura de Congar. Por um lado, as leis devem ser elaboradas pelos representantes imediatos da comunidade dos cidadãos da civitas, ou seja, por homens prudentes e experimentados que formam a valentior pars. Por outra, a missão do governante é, pelo seu poder coercitivo, zelar pelo cumprimento das leis; e somente usar de seu arbítrio em aspectos das ações humanas civis não regulados pela lei. Vejamos o que diz o Paduano em duas passagens não seqüenciais:

“Por tal razão é oportuno e muito útil que o conjunto dos cidadãos confie a homens prudentes e experimentados não só a procura, a descoberta e a elaboração das regras, futuras leis ou estatutos, relativos ao que é justo e útil à cidade, mas também a reflexão a respeito do que lhe é nocivo e acerca das responsabilidades comuns a todos.” 51

“(...) foi necessário confiar ao arbítrio dos governantes a competência para julgar determinados aspectos das ações humanas civis, no caso, as que não estavam reguladas pela lei em si mesmas, ou segundo determinada circunstância ou modalidade, mas

51

DP,I,XIII,8, p.143: “Et propterea iustorum et conferencium civilium et incommodorum seu onerum communium et similium reliquorum regulas, futuras leges sive statuta, querendas seu inveniendas et examinandas prudentibus et expertis per universitatem civium committi conveniens et perutile est (...)” (DP,I,XIII,8, p.76).

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naqueles outros aspectos fixados pela lei, de maneira que o dever do príncipe consiste em cumprir à risca sua determinação. (...)”52

Marsílio vai mesmo caracterizar o conjunto dos cidadãos ou sua representatividade imediata, o valentior pars, como o “fiel legislador humano”: “O legislador humano é apenas a totalidade dos cidadãos ou sua parte preponderante.”53 Mas, num sentido mais amplo, como aliás comenta Congar na observação citada acima, o próprio poder do governante ou príncipe também provém do consenso dos cidadãos. A capacidade coercitiva, que permite ao príncipe, como ordenador de todas as partes da civitas e de todas as funções sociais, ser o guardião, defensor e executor da lei (lex), trata-se, no entanto, de uma delegação de poder. É o “povo”, ou seja, o conjunto dos cidadãos (universitas civium), que quando, através de sua parte preponderante (valentior pars), elege o governante, lhe delega seu poder coercitivo. O governante ou príncipe é, portanto, aquele que representa em si toda a universitas civium e é daí que deriva seu poder pleno sobre a civitas.

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DP,I,XIV,5,p.147: “Hec propter oportuit eveniencium in civilibus actibus hominum arbitrio principancium iudicanda committere, que scilicet secundum se aut modum aliquem sui seu circumstanciam lege determinate non sunt. Nam in hiis que lege determinata fuerint, debitum est principantem sequi legalem determinacionem.” (DP,I,XIV,5,p.80). Obs:. Bem é verdade que, no entanto, no Defensor Minor, Marsílio parece mudar de opinião e vai atribuir ao imperador o supremo poder legislativo. Mas, mesmo então, tal poder não é extensivo aos demais governantes ou príncipes. Também estudaremos detidamente esta questão no capítulo 5 : “O Conceito de Império em Marsílio de Pádua”. 53 DP,III,II,6,p.692: “Legislatorum humanum solam civium universitatem esse aut valenciorem illius partem (...)” (DP,III,II,6,p.604).

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A representação da civitas para Marsílio está baseada num modelo de relação do todo com suas partes. A paz (cuja determinação das condições é o objeto teórico de sua “Obra Maior”) é atingida e assegurada se, e somente se, cada parte da civitas se limitar à execução das tarefas que lhe cabem. Assim, se a parte sacerdotal, encarregada da prática diária das coisas ligadas à Salvação (cumprir os ofícios divinos, distribuir os sacramentos, etc), se incumbir do governo da cidade, há o risco da guerra. E este risco não está apenas no plano teórico, é o que se tem verificado através de toda a Idade Média, o conflito dito do Sacerdócio e do Império e sua repercussão por outras unidades políticas, especialmente pelas cidades italianas. Já que se encontra determinada a causa da discórdia civil; falta apenas determinar as condições da harmonia. Segundo o que nos diz Mairet (op. cit., p.766 e 767) é com efeito para evitar a quebra da unidade do corpo social que Marsílio pensa na totalidade como unidade. E é da noção de unidade do corpo social, prossegue Mairet, que será deduzida a de unidade propiciada pela parte governante: uma sociedade una conduzida por um só chefe. Este único chefe é o governante ou príncipe, aquele que representa, conforme comentamos, o fiel legislador humano. Mas, salienta Jeannine Quillet (op. cit., p.106 e 107), o poder deste príncipe está, de fato, duplamente fundado: de um lado, sem dúvida sobre o assentimento popular; mas, de outro, também sobre a vontade divina. Assim, ressacralizando o poder político, Marsílio conclui definitivamente que o poder coercitivo do papa é apenas uma imposição. Desta forma é preciso quebrar de uma vez por

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todas, embasando-se em conceitos políticos redefinidos (os novos conceitos de civitas, de pax e de lex), mas usando para tanto de argumentos eclesiológicos, uma por uma, as bases sobre a qual se eleva o pensamento hierocrático. É com isto justamente que Marsílio se ocupa na Secunda Dictio do Defensor Pacis, analisada no capítulo seguinte.

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OS ARGUMENTOS ECLESIOLÓGICOS DE MARSÍLIO DE PÁDUA

Marsílio de Pádua, após ter desenvolvido, na Primeira Parte ou Dictio do Defensor Pacis, a sua teoria política, instaurando os novos conceitos de pax, civitas e lex, na Segunda Parte ou Dictio estabelece com sua análise crítica um desmantelamento gradual do pensamento sóciopolítico eclesiástico. A Primeira Parte funciona desta forma como a introdução do Defensor, onde, partindo diretamente de Aristóteles, o Paduano reestrutura com princípios puramente naturais aqueles três conceitos para, fazendo uso deles na Segunda Parte, poder desenvolver argumentos eclesiológicos que procuram desmontar a plenitudo potestatis papalis. Desconstrução que se faz passo por passo, e de uma forma radical e mordaz. Elaborado de acordo com os anseios políticos dos Estados Monárquicos emergentes e os interesses das cidades italianas, ciosas de resguardar suas liberdades político-administrativas frente à ação do Papado, mas principalmente no sentido de dar ao Império justificativas ideológicas que dessem fundamento a suas pretensões políticas que, para além da simples autonomia, reivindicavam uma posição de controle sobre a própria Igreja. É exatamente nesta Secunda Dictio, que Marsílio desenvolve seu princípio conciliarista, atribuindo à reunião da Igreja, o Concílio Geral, uma gama tal de poderes que o tornava, efetivamente, a assembléia organizadora e diretora da Igreja.

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É também nesta Secunda Dictio que, ao tratar diretamente das relações entre os poderes religioso e político, Marsílio vai, pela primeira vez na história do multissecular conflito entre o Sacerdócio e o Império, submeter de uma forma absoluta o domínio espiritual ao poder político. Na Secunda Dictio, se comparada à primeira, notamos que as citações de obras profanas se reduzem drasticamente, cedendo lugar para o Novo Testamento, em particular, os quatro Evangelhos e as Epístolas Paulinas; cujos textos são preferencialmente interpretados de maneira literal, ainda que convenha ressaltar que Marsílio também recorreu à Glosa Ordinária, à Glosa Interlinear, à Catena Aurea, e às Collectanea in Epistolas Sancti Pauli, de Pedro Lombardo (século XII). Nesta Secunda Dictio, o Paduano utiliza também alguns Padres da Igreja: Sto. Ambrósio, Sto. Agostinho, São João Crisóstomo, Sto. Hilário de Poitiers, São Bernardo (De Consideratione e De Moribus et Oficies Episcoporum); alguns teólogos, em particular, Pedro Lombardo (Comentários às Sentenças) e Ricardo de S. Vítor (De Potestate Ligandi atque Solvendi); as teses de Egídio Romano, Tiago de Viterbo e outros hierocratas, ao expor a teoria da plenitudo potestatis, sem no entanto os nomear, designando-os simplesmente por adversários ou oponentes. Segue a mesma atitude ao se referir, ou mesmo transcrever, passagens do Decreto de Graciano, das Decretais (Gregório IX), do Livro Sexto das Decretais (Bonifácio VIII) e das bulas de João XXII no tocante à Pobreza evangélico-franciscana e de outros papas relativas a problemas políticos envolvendo os poderes espiritual e secular.

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Munido deste verdadeiro arsenal de fontes, Marsílio parte então para um ataque direto às pretensões de poder político do Papado. Como tal ataque, entretanto, se faz gradualmente, podemos dividir o texto em oito blocos temáticos que apresentam um plano lógico e articulado. O primeiro bloco (capítulos I ao III) é uma introdução geral à Secunda Dictio e trata do sacerdócio cristão e da noção pontifícia da plenitude do poder. Previamente, três conceitos são desenvolvidos, exatamente aqueles ao redor dos quais se orientará a maior parte de sua argumentação: a definição de “Igreja”, a distinção dos termos “temporal” e “espiritual” e a distinção das palavras “juiz” e “julgamento”. A Igreja é vista por Marsílio como uma comunidade de fiéis, clérigos e leigos reunidos na Congregatio Fidelium, identificada com a Ecclesia Universalis. Com efeito, Marsílio, após analisar os diversos significados da palavra Igreja (Ecclesia), vai optar pelo sentido original do termo, o de “conjunto dos fiéis que acreditam em Cristo e invocam Seu nome”, exatamente por ser sua primeira definição e ter sido ela usada costumeiramente entre os Apóstolos e na Igreja Primitiva. Vejamos nas suas palavras:

“O conceito ‘Igreja’ num outro sentido, isto é, o mais exato e apropriado de todos, segundo a principal definição deste nome ou conforme a intenção daqueles que o estabeleceram inicialmente, ainda que não seja tão corrente nem esteja conforme o uso

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moderno, se aplica ao conjunto dos fiéis que acreditam em Cristo e invocam Seu nome, e a todas as partes deste conjunto em cada comunidade, inclusive a doméstica”.54 De acordo com Felice Battaglia (1987, p.109), para Marsílio é o elemento humano que de fato conta, não a forma da congregação. Onde existe um certo número de homens que elevam o pensamento a Deus, aí está a Igreja, e sobre todos os que se encontram reunidos desce o Espírito Santo. A organização hierárquica é posterior e histórica. A verdadeira Igreja se encontra portanto nos fiéis, não na hierarquia sacerdotal, que se formou por um lento desenvolvimento histórico. Nem o conjunto total dos sacerdotes, nem o conjunto mais restrito dos sacerdotes romanos podem assim aspirar a ser chamados com o nome de Igreja. A unidade da Cristandade reside na união de todos os cristãos. Não é o corpo, a ordem, o colégio que determina o status do indivíduo, mas é o conjunto dos indivíduos que sanciona o corpo e seus organismos. De acordo com Alfredo Sabetti (1964, p.114), a Igreja é vista por Marsílio como um corpo e como uma civitas. Seu equilíbrio é devido não a prevalência de uma parte sobre as outras, mas através da ordem ou disposição apropriada das suas partes, através da distribuição precisa das tarefas e das responsabilidades e através da participação de todo o corpo eclesiástico na direção da sociedade religiosa organizada. Este corpo da Igreja, com o qual se identifica a universitas fidelium, não pode consistir somente no papa, nem apenas nos sacerdotes, porque a

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DP, II,II,3,p.216: “Rursum, secundum aliam significacionem dicitur hoc nomen ecclesia, et omnium verissime ac propriissime secundum primam imposicionem huius nominis seu intencionem primorum imponencium, licet non ita famose seu secundum modernum usum, de universitate fidelium credencium et invocancium nomen Christi, et de huius universitatis partibus omnibus, in quacumque communitate, eciam domestica” (DP,II,II,3, p.144).

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Igreja significa precisamente todo o corpo dos fiéis que crêem e invocam o nome de Cristo, e todas as partes deste corpo em cada comunidade, igualmente em cada família. Com efeito, para Marsílio, o termo Igreja pode ser compreendido tanto como a totalidade dos fiéis da Cristandade quanto como cada uma de suas partes em cada unidade política e, mesmo, em cada família. Em outras palavras, a Igreja é o corpo e a civitas formada pelo conjunto dos fiéis, no Império, em cada reino, feudo ou cidade e, ainda, em cada família cristã. Concordamos de fato com a observação de Marcel Pacaut (1989, p.168) de que a Igreja marsiliana encontra-se repartida entre as diversas unidades políticas, ganhando forma somente no interior destas unidades políticas e graças a elas. Acrescentamos porém que a Igreja também ganha forma no interior das famílias cristãs e graças a elas. Tal perspectiva encontra-se vinculada ao fato de, no pensamento marsiliano, haver, de certa forma, coincidência entre a universitas fidelium e a universitas civium em uma sociedade cristã perfeita.55 As duas vivem sob a mesma autoridade e poder, a do fiel legislador humano representado pelo governante ou príncipe. Tendo entretanto em mente que a Igreja não é simplesmente uma comunidade de fiéis (Congregatio Fidelium), mas igualmente uma comunidade de Salvação (Sponsa Christi), Marsílio salienta que Cristo não se entregou à morte somente pelos Apóstolos ou seus sucessores neste cargo, os bispos e presbíteros ou diáconos, mas principalmente pela totalidade do gênero

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Com efeito, a coincidência não é absoluta. Isto porque no pensamento marsiliano os fiéis são todos os cristãos e os cidadãos, como abordado no capítulo anterior, são somente, dentre todos os habitantes da civitas, os adultos natos do sexo masculino. Portanto, mulheres, estrangeiros e crianças são fiéis mas não são cidadãos, pertencem a universitas fidelium mas não pertencem a universitas civium.

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humano, daí concluir que, por um lado, todos os fiéis são eclesiásticos e constituem a esposa de Cristo e,56 por outro, os ministros, bispos e presbíteros ou diáconos são tão-somente uma parcela da Igreja. Segundo o texto marsiliano em dois momentos não seqüenciais:

“É por isso que, conforme este significado da palavra ‘Igreja’, aliás o mas exato e apropriado de todos, os fiéis cristãos, tanto os padres quanto os leigos, são e devem ser chamados de eclesiásticos, pois Cristo os adquiriu e os resgatou a todos graças à efusão do seu sangue”. 57

“Portanto, não foi absolutamente apena s sobre os Apóstolos que o sangue de Cristo foi espargido. Logo, de modo algum eles não foram ou são os únicos a terem sido ou a serem resgatados por Ele, nem tampouco, os padres ou ministros do templo são os seus sucessores exclusivos neste cargo. Por conseguinte, ainda, só eles apenas não constituem nem integram a Igreja que Cristo obteve pela efusão do seu sangue, e, pelo mesmo motivo, esses ministros, bispos ou presbíteros e diáconos são apenas uma

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Para Marsílio, todos os membros da Igreja, ou seja, todos o fiéis, são chamados de ecclesiastici, isto é, eclesiásticos. Como a palavra Igreja para Marsílio tem uma única acepção correta, a de Congregatio Fidelium e não dois significados como na eclesiologia oficial, a saber: reunião de todos os fiéis (clérigos e leigos conjuntamente), ou seja, a Congregatio Fidelium e a hierarquia formada pelos clérigos, conseqüentemente não existe também em Marsílio a distinção entre eclesial e eclesiástico. 57 DP, II,II,3, p.217: “Et propterea viri ecclesiastici secundumhane verissimam et propriissimam significacionem sunt et dici debent omnes Christi fideles, tam sacerdotes, quam non sacerdotes, eo quod omens Christus acquisivit et redemit sanguine suo” ( DP, II,II, 3, p.145).

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parcela da Igreja, a esposa de Cristo, uma vez que ele se entregou a si próprio por sua esposa”. 58 Definida a Igreja enquanto Congregatio Fidelium, Marsílio parte para estabelecer a distinção entre “temporal” e “espiritual”. Principia por definir “temporal” de quatro maneiras diferentes: a) como sendo todas as coisas corpóreas, naturais e artificiais, distintas do ser humano; b) como tudo aquilo que principia e termina no decurso de um determinado espaço de tempo; c) se referindo a todo hábito, ação ou paixão humana, realizado pelo ser humano em si próprio ou em relação a outrem, com vista a alcançar um objetivo neste mundo ou nesta vida; e d) todas as paixões ou ações humanas voluntárias e transeuntes, ordenadas em benefício ou em prejuízo de uma outra pessoa diferente do agente. Em seguida, explana a respeito dos cinco significados da palavra “espiritual”. Numa primeira acepção, espiritual significa todas as substâncias incorpóreas e suas ações. Espiritual também significa toda ação ou paixão humana resultante de sua capacidade de conhecer ou de querer o que lhe é imanente. O termo espiritual refere-se igualmente à Lei Divina, isto é, à doutrina e ao ensinamento dos preceitos e dos conselhos provenientes dela e relativos a ela, igualmente a todos os sacramentos eclesiásticos e seus efeitos, toda graça divina, todas as virtudes teológicas e os dons do Espírito Santo, nos dispondo para a vida eterna. Marsílio

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DP,II,II,3, p.217: “Sic igitur non pro solis apostolis effusus est Christi sanguis; ergo non soli acquisiti sunt aut fuerunt per illum, nec per consequens presbyteri aut templorum ministri, successores illorum in officio; non igitur sunt ipsi soli ecclesia, quam Christus suo sanguine acquisivit. Nec propter eandem causam sunt isti ministri, episcopi seu prebyteri et diaconi, soli ecclesia, que sponsa Christi est, sed pars sponse huius, quoniam Christus pro hac sponsa se tradidit” (DP,II,II,3, p.145).

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considera esta acepção como sendo a mais correta e, para tanto, recorre a duas auctoritates, a São Paulo na Epístola aos Corintos e a Santo Ambrósio numa glosa em que ele comenta a expressão “bens espirituais”. Há, entretanto, ainda duas acepções para o termo espiritual. Em uma delas, espiritual significa toda ação ou paixão humana voluntária, tanto a realizada em si mesmo quanto a feita para outrem, com o intuito de merecer a bem-aventurança no outro mundo, como o amor ao próximo, os casos da contemplação e do amor divino, dos vários tipos de abstinência, dos atos de misericórdia, das preces, entre outros. Espiritual designa igualmente o templo ou igreja e todos os vasos e ornamentos que aí se encontram e se destinam à celebração do culto divino. Marsílio considera esta acepção menos apropriada que os demais significados. Assim, segundo Felice Battaglia (op.cit., p.110), Marsílio observa que a delimitação entre temporal e espiritual é completa e, desta forma, não permite qualquer possibilidade de mútua contaminação. Mas, prossegue Battaglia (ibid., p.110), a contaminação se torna possível na extensão sucessiva do espiritual. E se já alguns sacerdotes integram no âmbito do espiritual o templo e os dispositivos do culto (como vimos na última acepção, o que, embora aceito por Marsílio, já é visto de forma menos adequada), outros desses são mais audazes e estendem tal designação a compreender e significar cada ação voluntária, não apenas imanente mas também transeunte, dos clérigos, ainda que visando a um bem da vida presente. Uma vez posta sobre esta via, a degeneração do termo não tem mais limite, e o espiritual passa a compreender as possessões e os bens móveis e imóveis dos próprios clérigos. Como

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observa Battaglia (id., p.111), esta generalização é, segundo Marsílio, contrária à Lei Divina e à interpretação apostólica. Nem todos os atos dos clérigos são espirituais, pelo contrário a maior parte são civis, carnais e temporais. Os clérigos de fato podem trocar, vender, roubar, matar. Realizam estas ações, o empréstimo, a compra e venda, o furto, o assassínio, ditas espirituais apenas porque seus agentes são clérigos. Evidentemente não é este o caso. A delimitação entre espiritual e temporal deve se fazer sobre um terreno mais rígido e exato. Uma vez determinado o âmbito do temporal e o do espiritual e denunciado o grande problema que reside na confusão dos domínios, Marsílio parte para explanar os diversos significados das palavra “juiz” e “julgamento”, considerando que existem três acepções diferentes: A palavra juiz, num primeiro significado, refere-se a toda pessoa que discerne ou conhece, especialmente no tocante a um hábito especulativo ou prático, e a palavra julgamento refere-se ao ato de conhecer ou de discernir feito por tais pessoas. Noutra acepção, os vocábulos juiz e julgamento referem-se respectivamente à pessoa que possui a ciência do direito político ou civil e a escolha ou discernimento proferido por ela. Ademais, a palavra juiz aplica-se ao governante ou ao príncipe, e o termo julgamento refere-se à sentença do governante detentor da autoridade para julgar a respeito do justo e do útil, em conformidade com as leis e os costumes, e, graças ao seu poder coercitivo, a competência para ditar e executar as sentenças que proferiu.

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Piero di Vona analisa a distinção marsiliana dos significados dos termos iudex e iudicium. Segundo Di Vona (1974, p.133), o primeiro significado tem uma analogia com os outros dois. De fato, o significado comum, ao qual todos os três significados se referem, é um hábito teórico e prático segundo o qual algumas pessoas são capazes de discernir e conhecer. A posse da ciência do direito político e civil é apenas um hábito particular entre os muitos que se encontram rigorosamente determinados no primeiro significado da palavra juiz. E o terceiro significado do termo não é outro senão um hábito em que é reconhecida a autoridade de julgar em conformidade com a ciência, e de fazer cumprir utilizando a força coercitiva a sentença promulgada. Temos em todos estes casos, prossegue Di Vona (ibid., p.133) um ordenamento a uma ciência fundada em um hábito teórico ou prático relativo a esta própria ciência. A esta relação, comum aos primeiros dois significados do termo juiz, o terceiro significado acrescenta a autoridade e a força coercitiva derivada do exercício do poder público. São estes dois últimos aspectos, no comum ordenamento a uma ciência fundada sobre um hábito teórico ou prático, que caracterizam o juiz segundo o terceiro significado do termo e o diferem dos outros dois juizes. Marsílio, munido destas definições, procura apresentar (no capítulo III), “com mais segurança” (“inde securius”) conforme confessa (DP,II,III,1,p.224 – DP,II,III,1,p.152) seu objetivo principal, ou seja, a sua “cruzada” contra plenitudo potestatis papalis. Procura então, nesse capítulo, identificar os pontos-chaves contra os quais deve endereçar sua luta: o chamado “Poder das Chaves” do qual os papas julgam ser os detentores; o direito que

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os papas pensam ter em dispor de todas as coisas temporais, exercendo uma plenitude de poder e de posse sobre as mesmas; e o direito que eles pensam ter em estabelecer julgamentos sobre as coisas seculares e, muito especialmente, comandar os dois gládios do Evangelho. Alude então os argumentos que, segundo os pontífices romanos, justificariam tais direitos como a subordinação dos corpos às almas, dos fins terrenos ao fim último, o fato do papa ter coroado Carlos Magno transferindo o imperium dos gregos para os germanos, entre outros. Sua contestação a tais pretensos poderes e falsos argumentos é, entretanto, desenvolvida somente a partir do capítulo IV. No segundo bloco temático (capítulos IV ao VII), Marsílio, apoiado na autoridade do próprio Cristo (nos textos bíblicos), e mediante comentários feitos por santos e doutores da Igreja, trata da questão do poder sacerdotal, atestando que o Bispo de Roma, qualquer outro bispo ou presbítero ou clérigo, não pode reivindicar para si próprio, nem se atribuir o governo coercitivo ou a jurisdição contenciosa, e ainda, muito menos, o supremo governo sobre todos os fiéis, clérigos e leigos. Com efeito, Cristo não veio ao mundo para organizar um reino temporal ou segundo a carne, e para proferir julgamentos coercitivos, mas antes, para edificar um reino espiritual ou celeste. Ele próprio, com preceitos e conselhos, recusou-se a exercer neste mundo o poder coercitivo e proibiu os Apóstolos e seus sucessores de o fazerem. Mas, além disto, o próprio Cristo submeteu-se à autoridade dos juízes seculares. Desta forma os ministros eclesiásticos, seguindo suas palavras e seu exemplo, devem também se abster de exercer qualquer forma de

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coerção e igualmente devem ser submissos à autoridade do legislador político. Marsílio o expressa nesta passagem:

“Dando continuidade ao nosso propósito, resta agora comprovar que, não apenas o próprio Cristo recusou o governo do mundo, isto é, fazer julgamentos coercivos aqui na terra, pelo que deu o exemplo a seus Apóstolos e discípulos e aos sucessores deles para que agissem de maneira semelhante, mas também que Ele ensinou, por meio de sua atitude e com sua pregação, que todos os homens, padres ou leigos, devem estar real e pessoalmente subordinados ao julgamento coercitivo dos príncipes seculares” 59

De importância singular neste segundo bloco é o capítulo VI que trata do “Poder das Chaves”. Tal poder encontra-se enunciado nos Evangelhos. Especialmente nas palavras de Cristo dirigidas a Pedro no Evangelho de Mateus, capítulo XVI, versículo 19; nas palavras dirigidas por Cristo a todos os Apóstolos no Evangelho de Mateus, capítulo XVIII, versículo 18; e no Evangelho de João, capítulo XX, versículo 23. Vejamos as passagens bíblicas onde Cristo concede (ou parece conceder) aos Apóstolos o poder de perdoar ou reter os pecados:

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DP,II,IV,9,p.239: “Nunc vero consequenter restat ostendere, Christum ipsum non solus huius seculi principatum seu coactivum iudicium in hoc seculo recusasse, propter quod sic agendi apostolis et discipulis suius ac ipsorum successoribus dedit exemplum; verum eciam ipsum sermone docuisse ac exemplo monstrasse, cunctos tam sacerdotes quam non sacerdotes subesse debere realiter et personaliter coactivo iudicio principum huius seculi” (DP,II, XIV,9, p. 166 e 167).

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“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985, p. 1866).

“E verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, ibid., p.1873).

“Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes ser-lhes-ão retidos” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, id., p.2040).

Fundamentando-se nestas frases, o Sumo Pontífice arrogava-se a si próprio a plenitude do poder, uma vez que podia determinar se um príncipe (ou mesmo o imperador) era pecador e, desta forma, sujeito a ser, por intermédio do poder papal, deposto. Tal questão tem assim importância crucial na argumentação marsiliana, encaminhando-o de imediato a construir uma nova interpretação do “Poder das Chaves” que, radicalmente, o opunha à perspectiva papal. Neste sentido, Marsílio principia considerando que o objetivo do Cristo ao vir à terra foi o de dar testemunho da verdade e que esta verdade consiste em ensinar acerca do que se deve

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crer, fazer ou evitar tendo como fim a Salvação. Tal verdade, Cristo a ensinou com a palavra e mostrou com o exemplo. Finalmente, ela nos foi transmitida por escrito através do relato dos evangelistas e das pregações dos Apóstolos, de modo que, por meio de tais escritos, na ausência de Cristo e de seus Apóstolos, pudessem os homens ser guiados no que concerne ao caminho para alcançar a vida eterna. Ademais, reportando-se ao texto bíblico, Marsílio considera que esta foi exatamente a missão que Cristo confiou aos seus Apóstolos, ao enviá-los a todas as nações, a propagarem pelo batismo e pelo ensinamento da verdade, a fé cristã, como é dito nesta passagem do Evangelho de Mateus: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do meu Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, id., p.1895 e 1896).

Porém, segundo Marsílio, através da ministração do Batismo, que Cristo ordenou aos Apóstolos fazer, deu-lhes igualmente a competência para ministrarem os outros sacramentos que Ele instituiu para a salvação eterna, dentre eles, o da Penitência, mediante o qual se elimina a culpa atual, mortal ou venial, da alma, e pelo qual se restaura a graça de Deus, corrompida pelo pecado e, sem a qual, as ações humanas não seriam meritórias para a vida eterna. Os ministros deste e dos outros sacramentos são os padres, na condição de sucessores de Cristo, a quem, na pessoa de Pedro e dos demais Apóstolos, foi transmitido o “Poder das Chaves” ou o poder de ministrar o Sacramento da Penitência.

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Entretanto, Marsílio tem por princípio que apenas o próprio Cristo perdoa ou condena os pecadores. O sacerdote apenas informa à comunidade e aos fiéis, observando o ritual do Sacramento da Penitência, que seus pecados foram absolvidos ou retidos. Com efeito, recorrendo à autoridade de Pedro Lombardo (Liber Setentiarum) e de Ricardo de São Vítor (Tractatus de Potestate Ligandi atque Solvendi), Marsílio atesta que num pecador sinceramente arrependido, antes mesmo dele se confessar e de qualquer ação do padre, Deus faz três coisas na sua alma: a limpa do pecado, restaura nela a graça e a isenta do castigo eterno. Vejamos nas palavras de Marsílio: “Em seguida, esses autores afirmam que apenas Deus, faz algumas coisas nesse pecador sinceramente arrependido, isto é, contrito e com o propósito de se confessar, antes mesmo de ele fazer isso e de qualquer ação do padre. Tais coisas são: a eliminação da culpa, a restauração da graça e a remissão do castigo da punição eterna”60

Assim é Deus mesmo quem perdoa os pecados e restaura, no homem, a sua graça. Contudo, Deus exige antes, da parte do penitente, que ele tenha o propósito de confessar os seus pecados ao padre, havendo possibilidade para tanto. Com efeito, não é suficiente confessar os pecado somente a Deus se o pecador tiver a possibilidade de encontrar um padre. Somente se não a tiver é que basta que se confesse somente a Deus. O ofício do sacerdote é requerido no 60

DP,II,VI,6, p.275: “Et intendunt consequenter, quod in peccatore vere penitente, id est contrito et habente propositum confitendi, quedam ante confessionem et omnem sacerdotis accionem solus Deus operatur. Hec autem sunt: expulsio culpe, gracie reformatio et debiti eterne dampnacionis remissio” (DP, II,VI,6, p.202).

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tocante ao penitente para que, por seu intermédio, se mostre perante a Igreja a quem Deus absolveu ou reteve os pecados. Há ainda outra coisa que Deus obra no pecador através do ministério do padre, ou seja, a comutação temporal do castigo do Purgatório. O pecador, por seus pecados, deve sofrer castigo, ainda que tenha confessado suas faltas e seja um penitente exemplar. Para evitar o Purgatório deve fazer algumas obras de satisfação neste mundo como o jejum, a prece, a esmola, a peregrinação ou outros atos semelhantes. Neste aspecto, o padre exerce seu poder sobre o pecador, comuta efetivamente ao pecador os castigos devidos do Purgatório, mediante algumas reparações que ele deve fazer neste mundo e, em seguida, o reconcilia com a Igreja, ou seja, com os fiéis na comunhão, e ao fazer isto exerce igualmente seu poder, desde que o faça com discernimento. Marsílio conclui então que o Bispo de Roma ou qualquer outro padre não pode desligar os penitentes da culpa ou da pena, conforme os merecimentos deles, mas, ao contrário, “a culpa do pecador deveras penitente e o seu débito quanto à condenação eterna são redimidos apenas por Deus, sem a ação precedente ou simultânea do padre (....)”.61 Destarte, o sacerdote, segundo o ofício que exerce é designado por Marsílio como um juiz segundo a primeira acepção do termo, ou seja, aquele que possui a autoridade para ensinar e agir à semelhança do médico, mas não exerce nenhum poder coercitivo sobre ninguém.

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DP, II,VI,9, p.280: “(...) culpam et debitum eterne dampnacionis solus Deus peccatori vere penitenti remitit absque opere sacerdotis precedente vel interveniente simul (...)” (DP,II,VI,9, p.206).

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Conseqüente ao “Poder das Chaves”, passa então à análise da excomunhão, a quem ou a quais pessoas compete o poder de excomungar. No tocante a esta questão, Marsílio salienta que se deve requerer a palavra e a ação de um juiz, ou seja, aquele cuja função é citar em juízo e conduzir a instrução do processo. Este pode ser padre ou não, mas precisa ser estabelecido enquanto juiz pela totalidade de fiéis em um dado lugar. O exame do crime imputado, se for tão grave que por sua causa alguém deva ser ou não excomungado, deve ser feito por tal juiz, auxiliado por um grupo de padres ou, dentre eles, por um número determinado de peritos, conforme as leis existentes ou os costumes. A sentença final deve ser sempre proferida por um padre, uma vez que nesta circunstância se invoca o poder divino para neste mundo infligir ao criminoso um castigo que não poderia ser cominado através do poder humano, e igualmente porque o criminoso também é julgado quanto à punição a ser-lhe atribuída na outra vida, ficando privado dos sufrágios da Igreja, o que Deus estabeleceu que somente um padre o pode fazer. Mas o julgamento do acusado, no sentido de isentá-lo de qualquer suspeita, não pode ser realizado por um único sacerdote, seja um presbítero ou um bispo (mesmo um papa), nem sequer pela corporação clerical, mas, antes, compete somente a totalidade dos fiéis em um dado lugar. Vejamos nas palavras do Paduano:

“De fato, como o dissemos, o julgamento feito pela totalidade dos fiéis, ao qual sempre temos de recorrer, é mais seguro e está isento de qualquer suspeita, do que um outro efetuado apenas pelo arbítrio dum sacerdote ou só pela corporação dos mesmos,

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pois esse julgamento mais fácil e prontamente pode vir a ser desvirtuado por sentimentos de amor, de ódio ou até pelo próprio interesse” 62

Assim, como salienta Julio A Castello Dubra (2001, p.99), para Marsílio a excomunhão é uma pena que excede o âmbito da Lei Divina, uma vez que acarreta também conseqüências para a vida da civitas: mediante a excomunhão, não se aplica ao réu uma pena apenas com relação ao mundo futuro, mas ele é difamado publicamente e privado da convivência com os demais integrantes da comunidade civil. Um juízo incerto ou incorreto por parte de um sacerdote ou de um colégio particular pode assim acarretar graves conseqüências para a vida política. Com efeito, a preocupação de Marsílio é aqui fundamentalmente de caráter político. Ademais, tal preocupação, muito especialmente, reporta-se às disputas entre papas e imperadores. De fato, se fosse da competência de um presbítero ou de um bispo ou da corporação clerical excomungar alguém sem a aquiescência da totalidade dos fiéis, então resultaria disto que eles ou sua corporação poderiam despojar os reis e os príncipes de todos os seus reinos e principados. Com efeito, quando um príncipe é excomungado, a multidão que lhe está submissa é igualmente excomungada, se lhe quer permanecer fiel. E assim sendo, o poder do príncipe, não importa quem seja, seria destruído.

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DP,II, VI, 13, p.287: “Quoniam cercius et absque suspicione magis fit tale iudicium, ut diximus, quam per solam voluntatem unici sacerdotis aut ipsorum solius collegii, cuius aut quorum iudicium amore vel odio aut inspecto commodoproprio cicius perverteretur, quam universitatis fidelium, ad quam semper appellare contingit” (DP,II,VI,13, p.214).

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Na prática, diversos são os casos nos quais os papas, arrogando-se este direito, excomungaram imperadores. Mas Marsílio, ao negar-lhes o direito de proceder ao julgamento e, consequentemente, à decisão final de excomungar ou não determinado acusado, procura invalidar os casos históricos em que tais pretensas excomunhões ocorreram (muito especialmente, a excomunhão de Luís da Baviera por João XXII). Com efeito, nestes casos somente ao Concílio Geral, como reunião da totalidade dos fiéis da Cristandade (Christianitas), competia julgar e, se fosse o caso, excomungar um imperador, sendo os atos papais não só ilegítimos mas passíveis de censura por parte do próprio Concílio. Encerrando estas questões, pode-se determinar o que significa, na percepção marsiliana, o poder e a função que todos os sacerdotes (não somente o papa) possuem dentro da Igreja. Em seu sentido amplo, todos eles, presbíteros, bispos (inclusive o papa), devido ao Sacramento da Ordem (instituído por Deus e por Ele transmitido aos Apóstolos e seus sucessores) possuem uma graça e um poder idênticos a fim de poderem desempenhar sua função específica: informar aos pecadores se seus pecados foram ligados ou absolvidos; consagrar o pão e o vinho, transformando-os no corpo e no sangue de Cristo; instruir e aconselhar os fiéis através do anúncio da Boa-Nova para que estes se preparem, ainda nesse mundo, para a bem-aventurança eterna no outro. Em outras palavras, como salienta Walter Ullman (1983, p.200), para Marsílio a função do clero era a da medicina das almas e a mera administração dos sacramentos. Assim Marsílio, como observa Julio A. Castello Dubra (op. cit., p.96), trabalha com a distinção entre potestas ordinis (poder de ordem) e potestas iurisdictionis (poder de jurisdição)

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com a qual a potestas clavium (poder das chaves) concedida por Cristo a Pedro e sobre a qual o Papado baseava seu poder jurisdicional, é restringida, por Marsílio, apenas ao âmbito da potestas ordinis. O poder de “atar e desatar” se refere, na interpretação de Marsílio, a aptidão especial que tem o sacerdote na administração dos sacramentos da confissão e da eucaristia. Este aspecto do sacerdócio é o único ao qual ele reconhece uma origem sobrenatural, posto que consiste num caráter impresso na alma do sacerdote por Deus.63 Com efeito, como salienta Alfredo Sabetti (op. cit., p.118), o caráter sacral do sacerdócio, que Marsílio reconhece, trata-se de um poder intrínseco, essencial nas ordenações sacerdotais recebidas por parte do ministro da Igreja, e que é inseparável do seu próprio ministério. Este é o poder de ordem. Outra coisa bem diferente, prossegue Sabetti (ibid., p.118) é o poder de jurisdição, o julgamento extrínseco que deriva ao prelado do ato civil com o qual um padre individualmente se encontra destinado a exercer a tarefa sacerdotal em uma sociedade organizada, e através do qual se insere no contexto de uma hierarquia eclesiástica. Segundo Sabetti (id., p.119), para Marsílio onde esta distinção não se faz, onde não se tem em mente o caráter exclusivamente acidental das várias jurisdições eclesiásticas e das suas respectivas relações, onde não se põe uma rígida distinção entre o ministério sacerdotal no seu caráter sacral e a função civil que o próprio sacerdócio adquiriu, se arisca de confundir o sobrenatural com o mundano, o espiritual com o material, e assim constituir uma hierarquia

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O termo caráter vem do grego charaktêr, significando sinal gravado, impresso na alma. O mesmo que marca indelével.

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eclesiástica rígida na subordinação das suas partes e incidindo de forma preponderante sobre o corpo civil da sociedade. O terceiro bloco temático (capítulos VIII ao X) trata da lei civil ou humana (lex) e da Lei Divina como principal mecanismo de controle do comportamento humano, a fim de viver bem neste mundo e atingir a felicidade eterna no outro. Inicialmente atesta que todos os atos transitivos, ou seja, aqueles controlados pela mente que podem afetar a terceiros, devem ser regulados pela lei humana e o juiz (conforme a terceira acepção do termo), sejam eles praticados por leigos ou por clérigos:

“Por conseguinte, é a lei humana e o juiz, conforme a terceira acepção da palavra, que devem regular os atos humanos transitivos no tocante ao benefício ou prejuízo, direito ou injustiça em relação a uma pessoa distinta daquele que os pratica e todos os homens, clérigos e leigos, devem estar submissos a esta jurisdição coercitiva”.64

A diferença é que, em caso de violação desta lei, os clérigos devem ser punidos mais rigorosamente porque é mais grave a falta daquele que conhece mais profundamente os preceitos e tem por obrigação ensinar as virtudes. Observemos na seguinte passagem:

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DP,II,VIII,9, p. 303 e 304.: “Sic igitur humana lege ac iudice, qui tercie significacionis, regulari habent actus humani transeuntes in commodum vel incommodum, ius aut iniuriam alterius a faciente. Cui siquidem coactive iurisdiccioni subesse debent omnes seculares et clerici” (DP, II, VIII, 9, p.230).

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“Portanto, todos os presbíteros ou bispos que violarem a lei humana terão de ser punidos pelo príncipe devido ao seu delito, entretanto, não deverão sê-lo do mesmo modo que os leigos, mas ainda mais severamente, porque pecam mais grave e vergonhosamente, dado que tendo a obrigação de conhecer mais profundamente os preceitos acerca do que deve ser feito ou evitado, têm mais condições de estar bem informados e de fazer uma escolha melhor, e além disso, porque é mais abominável o pecado daquele que tem a obrigação de ensinar do que a falta cometida por quem está sendo ensinado. Destarte, o pecado cometido pelo padre, se comparado ao do leigo, se enquadra neste tipo de discriminação, de maneira que se ele peca mais gravemente, por isso merece com razão um castigo proporcionalmente maior”. 65

Assim, segundo Marsílio, qualquer sacerdote que transgride a lei humana deve ser julgado e punido pelo juiz humano, ou seja, pelo governante secular. A argumentação marsiliana que corrobora esta afirmação é analisada por Piero di Vona (op. cit., p.227) que salienta que para estabelecer este importante princípio de política religiosa, Marsílio se vale por duas vezes da analogia de proporcionalidade. Esta é usada, antes de mais nada, para transferir às ações jurídicas os princípios válidos para as ações físicas. É utilizando este instrumento especulativo que 65

DP,II,VIII,7, p.300: “Ergo per principem presbyteros seu episcopos omnes humane legis transgressores oportet arceri. Nec solum velut secularis ex transgressione debet plecti sacerdos seu alter templi minister, sed tanto amplius, quanto gravius et indecencius peccat, quoniam magis sciens et eligens, qui precepta fugiendorum et agendorum amplius nosse debet; et rursum, quoniam turpius peccatum est debentis docere quam doceri. Hoc autem sustinet presbyteri peccatum ad cum Qui non presbyteri. Peccat igitur gravius sacerdos, et eo amplius puniendus” (DP,II,VIII,7, p.226 e 227).

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Marsílio pode assimilar o transgressor da lei à matéria que é o objeto da ação física, e considerálo como a matéria própria e o objeto da ação do juiz. Por este meio, a ação jurídica e o juiz são, respectivamente, assimilados a ação física e ao agente físico. A analogia é aplicada, em segundo lugar, prossegue Di Vona (ibid., p.228), ao objeto da arte médica e ao objeto da ação jurídica onde Marsílio procura estabelecer o caráter essencial que tem, por parte do juiz, a figura do transgressor da lei com respeito à profissão exercida pelo transgressor (daí a punição aos clérigos transgressores dever ser mais pesada que a dos culpados laicos), a qual se torna assim acidental com respeito ao juiz e à ação jurídica. Depois destas conclusões, Marsílio passa a estudar a Lei Divina e, apoiando-se em fontes diversas, atesta que o único Juiz coercitivo sobre seus transgressores é Jesus Cristo. Aqui o padre também é juiz, mas, reafirmando o exposto no outro bloco, Marsílio salienta que ele o é somente segundo a primeira acepção do termo, ou seja, não detém qualquer poder coercitivo sobre os transgressores das regras evangélicas. Aborda então a inter-relação entre a Lei Divina e a lei humana e conclui que a lex pode e deve penalizar neste mundo os fautores de heresias, cismas e outros pecados, os quais irão ser castigados pelo detentor do poder coercitivo, já que estes delitos tem implicações sociais. Mas os pecadores serão julgados e condenados ou absolvidos por Cristo somente no outro mundo. Vejamos nas palavras do Paduano:

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“No entanto, a pessoa que transgride a Lei Divina, por exemplo, o herege, estando o delito de heresia igualmente proibido pela lei humana, é punido neste mundo enquanto transgressor da mesma, porque esta é a causa primeira ou exata de per si, pela qual alguém é punido com um castigo ou suplício neste mundo, pois, uma vez dada a causa, ocorre igualmente o efeito e, removida a causa, também cessa o efeito. A recíproca neste caso também é verdadeira: a pessoa que transgride a lei humana, cometendo algum pecado, será punida no outro mundo, na medida em que também violou a Lei Divina, mas não porque transgrediu a lei humana (...)”.66 De acordo com Walter Ullmann (op. cit, p.200), tal questão pode ser entendida enquanto a distinção que Marsílio estabelece entre pecado e crime. Na medida em que uma ofensa é somente um pecado, esta não tem conseqüências para a sociedade política e, desta forma, os cidadãos se mostram interessados pelo pecado apenas quando este constitui um crime. Também os sacerdotes podem definir uma doutrina como herética, mas esta tampouco afeta a civitas, a não ser que o governo a declare um crime. Em resumo, prossegue Ullmann (ibid., p.200) se se infringe a Lei Divina, não há autoridade terrestre que tenha jurisdição neste assunto, posto que apenas Cristo é juiz nestas matérias e, daí, o julgamento e a punição se dará apenas no outro mundo. 66

DP, II,X,7, p.323 e 324: “Sed peccans in legem divinam, hereticus scilicet, tali peccato eciam humana lege prohibito punitur (in hoc seculo), inquantum peccans in legem humanam. Est enim hec causa precisa seu per se prima, cur aliquis arcetur pena vel supplicio presentis seculi, quoniam posita ponitur effectus, et remova removetur. Sicut econverso, peccans in legem humanam peccato aliquo punietur in alio seculo, inquantum peccans in legem divinam, non inquantum peccans in legem humanam” (DP, II,X,7, p.250).

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Mas, conclui Ullmann (id., p.200)neste mundo mesmo, a lei humana (lex) pode impor penalizações por faltas à Lei Divina, sendo que, neste caso ela passa a ser assunto do legislador humano, e, desta forma, a Lei Divina deixa de ser divina para se converter em humana, ou, em outras palavras, o pecado se transforma num crime. A razão disto é que, segundo Marsílio, como nos ensina Jeaninne Quillet (1972, p.106), a Lei Divina e a humana (lex), todas as duas positivas e colocadas por escrito, uma consignada nas Escrituras, a outra instituída pelo homem, têm entre elas relações de absoluta compatibilidade. Tal compatibilidade explica-se pelo princípio marsiliano, estudado anteriormente neste próprio capítulo, de que em uma sociedade cristã perfeita a universitas civium e a universitas fidelium de certa forma coincidem. É por isto que Marsílio salienta que o próprio Cristo prescreveu, inclusive, uma ordem geral que as instruções contidas nas leis humanas fossem obedecidas, sob a pena dos seus transgressores incorrerem num castigo ou punição a ser-lhes infligido no outro mundo. Assim, como novamente observa Quillet (ibid., p.107), para Marsílio o Estado, identificado como um organismo que, dotado de tal poder coercitivo, tem por competência realizar na sociedade política a ordem e a paz, tão indispensáveis à manutenção de sua existência e de seu progresso, apresenta desta forma, e através da figura do seu governante, um poder praticamente absoluto. O quarto bloco temático (capítulos XI ao XIV) versa sobre a virtude da pobreza cristã. Para Marsílio, segundo Piero Di Vona (op. cit., p. 183), o estado de suprema pobreza é, em

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primeiro lugar um voto expresso do homem em estado de peregrinação neste mundo (homo viator). A causa do voto é o amor de Cristo. O ato, com o qual o voto se exprime, é um ato de espontânea renúncia. O objeto do voto, sobre o qual recai o ato de renúncia, é a posse e o uso legais de cada bem que podia vir a ser adquirido ou utilizado pelo peregrino na terra, tanto em próprio quanto em comum. A renúncia espontânea a este domínio implica na renúncia ao que constitui a essência jurídica do próprio domínio: o poder de reivindicar para si e de proibir aos outros a posse e o uso de coisas temporais (riquezas) perante a um juiz coercitivo. Esta suprema virtude, prossegue Di Vona (ibid., p.184), implica também o voto pelo qual, por amor a Cristo, o peregrino na terra deseja ser privado e ter falta, seja individualmente ou em comum, de cada posse ou uso das supracitadas coisas temporais que sejam supérfluos por qualidade e quantidade às necessidades do sustento cotidiano. Inclusive o peregrino não deve desejar possuir, sozinho ou juntamente com outros, os bens que poderiam lhe garantir a satisfação das necessidades futuras. Portanto, quem abraça a pobreza evangélica não renuncia ao domínio apenas dos bens temporais por restringir-se ao simples uso de fato destes mesmos bens, mas se empenha através do voto a limitar este mesmo uso às necessidades imediatas de alimentação e de vestuário. Assim, o peregrino deve fazer uso cotidiano do puramente necessário para o sustento de cada dia. O estado assim descrito é denominado por Marsílio summa paupertas. Quem deseja abraça-lo é por ele dito perfectus. Tal estado é, portanto, necessário à perfeição evangélica. Para Marsílio, Cristo e os Apóstolos viveram na mais extrema pobreza. A prova da mui excelsa pobreza de Cristo (e por conseqüência dos Apóstolos, já que eram imitadores de Cristo

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e, conjuntamente, com ele viveram durante sua caminhada neste mundo) baseia-se na premissa que o primeiro em cada coisa é o principal entre todos. Como Cristo foi o primeiro dos peregrinos a merecer a vida eterna, foi logicamente o mais perfeito e, portanto, viveu em estado de pobreza porque senão, segundo suas próprias palavras (Mc II, 15-16), não poderia alcançar o supremo merecimento. Também se Cristo não tivesse sido extremamente pobre, poderia ter existido ou vir a existir um outro peregrino mais perfeito em seu merecimento que Cristo, o que, evidentemente, não pode ser. Vejamos no texto do Defensor:

“Quem é o primeiro em cada coisa é o principal entre todos. Sob a Nova Lei, Cristo foi o primeiro dos peregrinos neste mundo a merecer a vida eterna. Logo, entre todos foi o mais perfeito. Portanto, igualmente observou este estado de pobreza no tocante aos bens temporais, uma vez que sem cumpri-lo, segundo a lei comum, é impossível alcançar o merecimento supremo. Ademais, se Ele não tivesse vivido essa espécie de pobreza, teria existido ou poderia existir um outro caminheiro que tivesse sido mais perfeito em seu merecimento do que cristo, de acordo com a lei comum, o que é uma impiedade pensar. De fato, o senhor declarou que o estado de pobreza era um requisito para a perfeição do mérito, ao dizer, na passagem anteriormente citada: Se queres ser perfeito, vende tudo o que tens e dá aos pobres [Mc II, 15-16]. Ele não acrescentou: os bens que tu tens em

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particular ou em comum, mas entendia essa ordem como universalmente válida, e ainda reforçou esta característica de significado universal, ao afirmar: Tudo simplesmente”.67

Destarte o papa João XXII ao afirmar que Cristo e os Apóstolos, individual e coletivamente, possuíram bens, proferiu uma grave heresia. Tal é a opinião de Marsílio e ele parece mesmo responder ao Sumo Pontífice, na passagem abaixo descrita, quando ressalva que, apesar de sua riqueza, ele pode até vir a ser salvo, mas certamente não pratica o estado de perfeição como fizeram Cristo e os Apóstolos:

“Portanto, que o Papa Romano ou qualquer outro bispo absolutamente não se engane, nem faça os outros se equivocarem através dos seus ensinamentos, pois, se procura conseguir bens temporais e se tornar o seu proprietário, talvez licitamente possa fazê-lo, vindo, apesar disso, a ser salvo, embora, deixando de praticar o estado da mui excelsa pobreza ou de perfeição, como o fizeram Cristo e seus Apóstolos” 68

67

DP,II,XIII,33, p.373 e 374: “Quoniam primum in unoquoque aliorum est maximum; Christus autem sub Nova Lege primus viatorum merencium vitam eternam fuit, ergo aliorum perfeccione maximus; ergo statum hunc ad temporalia observavit, cum absque ipso mereri maxime secundum communem legem impossibile sit.. Rursum, si hunc non observasset modum paupertatis, fuisset alter viator, esset vel esse posset Christo secundum communem legem perfeccior in merendo, quod nefas est credere. Hoc enim Christus ad perfeccionem meriti asseruit pertinere, cum dixit ubi supra: Si vis perfectus esse, omnia quecumque habes vende, et da pauperibus; nec adidit: proprium aut commune, sed hoc universaliter intellexit, propter quod eciam significatum universale gemi navit, dicens: Omnia quecumque” (DP,II,XIII,33, p.294 e 295). 68

DP,II, XIV,24, p.406: “Non igitur erret nec secum alios errare faciat Romanus papa vel alter episcopus, quoniam si temporalis possidere querit hiisque dominari, hoc licite fortasse potest, ecciam in statu salutis existens, non tamen summe pauper tatis seu perfeccionis instar Christi et apostolorum atatum observans” (DP, II, XIV,25, p.325).

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Assim a pobreza meritória de Cristo e dos Apóstolos é vista por Marsílio como um exemplo e um conselho que, ao menos, todos os ministros do Evangelho devem seguir. Mesmo porque a exteriorização da pobreza torna o ministro simultaneamente mais humilde perante os outros e dele afasta as glórias mundanas:

“Portanto, essa é a mui excelsa forma ou espécie de pobreza meritória que descrevemos antes. Seguindo-a, pode-se observar mais completa e seguramente todos os preceitos e conselhos meritórios de Cristo. Desta descrição resulta, primeiramente, que o perfeito, mediante o voto, deve renunciar à propriedade sobre os bens temporais, não apenas porque este é o conselho de Cristo, de acordo com o que demonstramos anteriormente, baseando-nos no capítulo XIV do Evangelho de Lucas, mas também porque essa pessoa, exteriorizando explicitamente sua pobreza, se torna mais humilde perante os outros e ainda se afasta mais das glórias mundanas (...)”.69

69

DP, II, XIII, 27, p. 369 e 370: “Sic igitur summus modus aut species meritorie paupertatis est, quem prius descripsimus, quoniam secundum ipsum possunt amplius et securius omnia Christi precepta et meritoria consilia observari. Ex Qua siquidem descripcione primum apparet, quod temporalia quantum ad dominium per votum expressum renunciare debet perfectus, tum quia Christi consilium est, ut ex Luce 14 pridem induximus, tum quia ex hoc suam paupertatem notificans se amplius in aliorum conspectu contemptibilem reddit et secularibus honoribus magis cedit (...) (DP,II, XIII,27, p. 290 e 291).

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Para Marsílio, portanto, o clero, independente de sua dignidade e posição (desde o papa ao mais humilde dos clérigos portanto) deve viver em extrema pobreza, com total renúncia, individual e em comum, ao direito de posse e uso de quaisquer bens; deve viver, por amor a Cristo, ao seu Evangelho e a seus irmãos, segundo o ensinamento e exemplo paulinos, de esmolas por parte dos fiéis, ou seja, estes últimos têm a obrigação, determinada esta pela própria Lei Divina, de assegurar o sustento e o vestuário àqueles que os evangelizam, conquanto o possam fazer. Vejamos estas duas passagens não seqüenciais do Defensor Pacis:

“Em primeiro lugar, afirmamos que os ministros do Evangelho, os bispos ou presbíteros, e ao mesmo tempo os demais clérigos, não importam sua dignidade e posição, devem se contenta apenas com o sustento quotidiano e com as roupas necessárias, se quiserem manter o estado de perfeição ou a mui excelsa pobreza”.70

“Portanto, os que recebem o Evangelho têm a obrigação, se o puderem, de fornecer àquele que lhes prega o alimento quotidiano e o vestuário. Os pregadores licitamente podem lhe solicitar isso como seu dever, conforme estabelece a Lei Divina, mas não sob a pressão de incorrerem num julgamento coercitivo neste mundo. Se

70

DP,II,XIV, 6, p.385: “(...) primum apponentes, quod ministri evangelii, presbyteri seu episcopi, cum reliquis inferioris ordinis, contentari debent alimento cotidiano et necessario tegumento, statum perfeccionis seu summam paupertatem custodire volentes (...)” (DP, II, XIV,6, p.305).

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aqueles a quem o Evangelho é pregado puderem fazê-lo, mas se recusarem dar-lhes tais coisas, estarão consequentemente a pecar contra a Lei Divina (...)”.71

Assim, para Marsílio era inconcebível, em uma sociedade perfeita, o clero, secular ou regular, possuir dinheiro, terras e outros bens móveis ou imóveis, ainda que os possa ter a fim de distribuí-los entre os necessitados ou executar outras obras pias. Corroborando esta tese, Marsílio atesta, uma vez mais evocando o paradigma apostólico (o que é quase uma constante ao longo da Secunda Dictio), que também a Igreja Primitiva viveu em extrema pobreza. Aliás, como estuda José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (1997, p.38), segundo Marsílio foi somente a partir da Pax Ecclesiae (313), ou seja, a partir de Constantino, que a Igreja, enquanto religio licita e privilegiada pelo Estado Romano, passou a receber muitos mais bens, tanto dos fiéis quanto do poder coercitivo. O que, inclusive, justifica o direito que tem o imperador e outros potentados seculares de lançarem mão destes bens em determinadas circunstâncias, como a defesa perante um inimigo externo. No quinto bloco temático (capítulos XV ao XIX), Marsílio novamente estuda o sacerdócio cristão sob o aspecto precípuo do Sacramento da Ordem. Inicialment e reporta-se a uma questão, já por duas vezes aludidas ao longo do Tratado (capítulo XV da Parte I e capítulo VIII da Parte II), mas só então (capítulo XV da Parte II) desenvolvida adequadamente: trata-se 71

DP,II, XIV,6, p. 385 e 386: “Debent ergo suscipientes evangelium victum cotidianum atque vestitum evangelizanti ministrare, si possint. Et hoc tamquam debitum ex lege divina potere possunt evangelizantes licite, quamvis non in iudicio coactivo presentis seculi, idque quibus evangelium ministratur, si possint exhibere, recusantes in legem divinam committunt (...)” (DP,II, XIV,6, p.305).

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da tese marsiliana de que é o legislador humano, por si mesmo ou por intermédio de um seu delegado, a causa eficiente do estabelecimento de todos os ofícios ou demais cargos que devem haver na cidade (civitas). Consequentemente, Marsílio atribui somente ao legislador cristão de uma comunidade, ou a quem ele delegar competência para tanto, o poder para a escolha e nomeação dos cargos eclesiásticos, desde uma paróquia até um bispado, uma vez que, conforme abordei no capítulo anterior, os clérigos são vistos como uma parte da civitas, a pars sacerdotalis e, desta forma, a função sacerdotal é apenas um dentre os ofícios da civitas. Tal consideração parece estar em desacordo com um outro princípio marsiliano, apontado na Prima Dictio (I,XIX,5) que atesta que o sacerdócio, ou ministério sacerdotal da Nova Lei, foi instituído primeiramente só por Cristo que, no entanto, renunciou a toda a espécie de governo secular e a toda propriedade sobre os bens temporais, como Marsílio demonstra nos capítulos IV, XIII e XIV da Secunda Dicitio. Em virtude do apontado no parágrafo anterior, e como Cristo não foi um legislador humano ou um príncipe, a quem de fato cabe a autoridade para instituir o sacerdócio, especialmente nas comunidades cristãs? O que Marsílio explica, estabelecendo uma distinção, segundo a qual, as causas dos ofícios que há na cidade, na medida em que são considerados como ações anímicas são de uma espécie, mas enquanto se constituem em grupos da cidade, estabelecidos para obter a suficiência decorrente de suas atividades, são de outra espécie. Isto vale de modo análogo tanto para o sacerdócio, como para os demais ofícios que há na cidade.

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Uma vez que o sacerdócio é uma determinada disposição da alma, que os doutores na Escritura Sagrada chamaram de caráter (a marca indelével já comentada), sua causa imediata, eficiente e essencial, ou o seu gerador principal é Deus. É ele quem imprime esta qualidade no espírito por meio da cooperação humana específica que, de certo modo, preparou o caminho para isto. Este ministério, na Nova Lei, se originou em Cristo. Mas como o sacerdócio é também um dos ofícios da civitas, a causa eficiente do seu estabelecimento é de fato o legislador humano, pois só a ele compete a escolha e nomeação de todos os cargos da cidade. A partir da solução desta aparente contradição, Marsílio identifica o mecanismo pelo qual se deu a sucessão do caráter sacerdotal de Cristo para seus sucessores imediatos, os Apóstolos, e para todos os outros sacerdotes:

“(...) Este ministério, na Nova Lei, se originou em Cristo. Com efeito, Jesus, verdadeiro Deus e homem, na condição de sacerdote exerceu o ministério que os padres seus sucessores pouco depois passaram a desempenhar, e enquanto Deus, Ele imprimiu esse caráter sacerdotal na alma das pessoas que instituiu como sacerdotes. Foi assim que, primeiramente instituiu os Apóstolos como seus sucessores imediatos, e depois todos os outros padres, mas através do ministério dos Apóstolos e da cooperação de todos que viessem a sucedê-lo nesta missão. De fato, quando os Apóstolos impuseram suas mãos sobre outras pessoas, e todos os padres igualmente fazem isso e proferem as palavras ou orações requeridas,

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Cristo, enquanto Deus, imprime esta disposição ou caráter sacerdotal nos que desejam recebê-lo dignamente”.72

É devido a este caráter sacerdotal que o padre adquire o poder de transubstanciação na Eucaristia, de ligar ou desligar os homens de seus pecados (evidentemente que no sentido de informar à Igreja que tais pecados foram absolvidos ou retidos por Deus) ou ainda ministrar os outros sacramentos eclesiásticos. Esta é a autoridade sacerdotal primária, designada por Marsílio como essencial. Poder que, entretanto, é possuído da mesma maneira por todos os sacerdotes. Com efeito, a eleição de um sacerdote para ser bispo de uma localidade, ato efetuado pelo ser humano, não acrescenta um mérito essencial, uma autoridade ou um poder sacerdotal maior a ninguém que tenha sido indicado por seu intermédio. Propicia-lhe, sim, apenas um certo poder no tocante à organização interna da casa ou templo de Deus, quer dizer, a capacidade para instituir e dirigir os outros padres, diáconos e demais ministros, do mesmo modo que o superior de um mosteiro exerce uma certa autoridade sobre os monges. Esta é uma autoridade secundária, designada por Marsílio como acidental. Mas este poder não é, absolutamente, coercitivo, salvo

72

DP, II, XV,2, p.408: “ (...) Cuius exordium in Nova Lege fuit a Christo; ipse enim qui verus Deus et verus homo fuit inquantum humanus sacerdos, ministerium exhibuit, quod subsequentes nunc exhibent sacerdotes; inquantum vero Deus, caracterem impressit in animas eorum, quos sacerdotes instituit; quo modo primum apostolos instituit, tamquam successores suos immediatos, sicque consequenter reliquos sacerdotes omens, perministerium tamem apostolorum et reliquorum sibi succedencium in hoc oficio. Nam apostolis aut reliquis sacerdotibus manum aliis imponentibus et debita verba seu oraciones ad hec proferentibus, Christus inquantum Deus hunc habitum seu caracterem sacerdotalem digne suscipere volentibus imprimit” ( DP,II, XV, 2, p.326).

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se a autoridade para exercer tal coerção tiver sido dada pelo legislador humano àquela pessoa eleita. Pedro também não recebeu imediatamente de Deus um poder maior que o dos outros Apóstolos, poder este que lhe assegurasse uma preeminência sobre eles, e muito menos qualquer jurisdição coercitiva. A única coisa que Marsílio admite é que São Pedro foi o primeiro em relação aos demais por causa de sua idade, ou talvez devido ao tempo que ele dedicou ao seu cargo, ou talvez em virtude da eleição efetuada pelos Apóstolos (muito embora isto não possa ser demonstrado pela Sagrada Escritura) que o reverenciavam exatamente pelos motivos citados. O motivo desta escolha foi o de que os Apóstolos necessitavam encontrar um chefe, como fazem os homens nas comunidades perfeitas, dado que a eleição de alguém para dirigi-la é o melhor procedimento para sua organização e para que, consequentemente, seus membros possam viver bem. Com efeito, Pedro jamais se arrogou a incumbência de resolver questões relativas à pregação do Evangelho envolvendo a doutrina. Estas questões, no entanto, eram solucionadas através de troca de idéias entre os Apóstolos e os outros fiéis mais sábios, e não pela decisão única dele ou de qualquer outro Apóstolo. Destarte, Marsílio por um lado enfatiza a igualdade entre presbíteros e bispos (sucessores dos Apóstolos), inclusive o papa (o sucessor de Pedro) e, por outro, nega que Pedro e, em sua pessoa, os seus sucessores, os Bispos de Roma, tenham recebido de Cristo um primado sobre os demais Apóstolos e sobre os sucessores deles. Vejamos nas suas palavras:

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“Por esse motivo é que o Bispo de Roma não possui maior autoridade sacerdotal essencial do que qualquer outro antístite, da mesma forma como São Pedro não a teve em relação aos outros Apóstolos. Na verdade, todos receberam a mesma autoridade de Cristo, numa proporção equivalente e de modo imediato (...)”.73

De fato, como salienta Alfredo Sabetti (op. cit., p.119), em Marsílio os sacerdotes, presbíteros, bispos e o papa são considerados idênticos no seu caráter e a diversidade hierárquica é reduzida a uma mera distinção de funções sem relação alguma como o caráter sagrado da ordem. Em outras palavras, segundo Marsílio a hierarquia que de fato existe entre os membros do clero é puramente humana, não foi Cristo quem a instituiu, e assim é totalmente estranha à sua missão exclusivamente espiritual. São Pedro também exerceu uma liderança entre os Apóstolos, mas esta concessão foi igualmente humana, tendo sido conferida através da escolha acima referida. De acordo com Julio A Castello Dubra (op. cit., p.97), a estratégia marsiliana em admitir que um sacerdote entre outros tenha certo poder para dirigir e mandar sobre os demais no que respeita a administração do templo e em tudo o que se relaciona ao culto, assim como na distribuição dos bens temporais em favor dos pobres, entre outros aspectos (o que, segundo 73

DP, II,XV, 7, p.414: “Unde non plus sacerdotalis auctoritatis essencialis habet Romanus episcopus quam alter sacerdos quilibet, sicut neque beatus Petrus amplius ex hac habuit ceteris apostolis. Omnes enim hanc eandem auctoritatem a Christo susceperunt equaliter et immediate (...)” (DP, II,XV, 7, p. 332).

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Dubra, corresponde em Marsílio a uma atribuição específica dos bispos), consiste em assimilar esta jurisdição a uma certa autoridade tal que possa implicar graus diversos de subordinação, mas que é totalmente desprovida de um conteúdo político ou coercitivo. Tal perspectiva, prossegue Dubra (ibid., p.97), se enquadra perfeitamente na idéia de economia de Aristóteles, ou seja, a administração da casa, a qual implica certa espécie de governo que é, entretanto, especificamente diferente do governo da pólis. Se apoia também na tradição do Império Bizantino dizendo que os bispos são “yocomi reverendi”, ou seja, administradores de uma casa, exatamente da casa de Deus, isto é, do templo. Neste ponto Marsílio, reafirmando uma questão essencial, salienta que esta hierarquia eclesiástica, que, como vimos, chama de instituição secundária ou acidental, deve assim, nas comunidades cristãs perfeitas, estar submetida a sua causa eficiente imediata, ou seja, à totalidade dos fiéis daquele lugar específico. Mas, uma vez que nessas comunidades há, de certa forma, coincidência entre a universitas fidelium e a universitas civium, a instituição secundária ou acidental encontra-se submetida ao legislador humano e, consequentemente, ao governante ou príncipe, aquele que por delegação representa a comunidade, simultaneamente de cristãos e de cidadãos, de um lugar determinado já que foi escolhido com esta finalidade. Somente ele, sem qualquer cooperação de uma ou mais dignidades clericais, pode nomear ou destituir seus membros ou recusar candidatos ou ainda coagir alguém a exercer determinado ofício. Observemos o que a respeito diz Marsílio na seguinte passagem:

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“Em seguida, queremos demonstrar que, posteriormente à Era Apostólica e à dos Padres que sucederam aos Apóstolos nesta missão, e principalmente nas comunidades cristãs já aperfeiçoadas, a causa eficiente imediata da instituição ou nomeação de seu dirigente (do principal, chamado bispo, aos inferiores denominados vigários) e igualmente de todos os outros clérigos de menor qualificação, reiteramos (queremos comprovar) que a sua causa eficiente imediata é ou deve ser a multidão global dos fiéis daquele lugar, através de sua eleição ou de sua vontade expressa, ou ainda mediante a escolha efetuada por aquela ou aquelas pessoas a quem ou às quais ela concedeu a faculdade para tanto”. Queremos provar também que é a esta mesma pessoa que licitamente compete recusar um candidato a esses ofícios, ou privá-lo do seu exercício ou coagir alguém a exercê-lo, se isso parecer útil.” 74 E logo a seguir:

“Queremos, a partir dessas premissas, efetivamente inferir que, nas comunidades cristãs já bem organizadas, compete somente ao legislador humano ou à multidão de fiéis

74

DP,II, XVII, 8, p.446: “Hiis consequenter ostendere volo, quod post tempus apostolorum et priorum patrum, sibi quasi prope succedencium in officio, et precipue communitatibus fidelium iam perfectis, huius institucionis seu determinacionins presidis sive maioris, quem vocant episcopum, sive minorum, quos curatos sacerdotes appellant, similiter et reliquorum minorum causa factiva immediata sit seu esse debeat universa eius loci fidelium multitudo per suam eleccionem seu voluntatem expressam, aut ille vel illi, cui vel quibus iam dicta multitudo harum institucionum auctoritatem concesserit; et quod eiusdem auctoritatis sit, unumquemque iam dictum officialem ab huius modi officiis licite amovere sive privare ac ad illius exercicium compellere, si expediens videatur” (DP, II, XVII, 8, p. 362).

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da província onde o ministro a ser indicado deverá agir, apresentar, eleger e nomear as pessoas para exercerem as ordens sacras, e ainda que não é permitido a nenhum bispo ou padre individualmente, nem apenas ao grupo clerical, sem a autorização do legislador humano ou do governante, por delegação de competência, cooperar na designação dessas pessoas para exercer tais ministérios (...)”.75

Entretanto, Marsílio admite também que seja conveniente um bispo e uma Igreja principais no âmbito interno da organização eclesiástica, mas desempenhando tão-somente uma tarefa de solicitude moral para com os demais sacerdotes e Igrejas, tal qual o fizeram outrora os membros da Igreja Romana devido à qualidade intelectual dos seus bispos e presbíteros, pelo fato de São Pedro e São Paulo terem nesta sede exercido seu episcopado e pela própria relevância e celebridade da Urbs:

“(...) Durante todo esse tempo nenhum bispo exerceu qualquer jurisdição coerciva sobre os demais. Porém, como os prelados de outras províncias não ousavam absolutamente se reunir em público para discutir tanto as questões relativas à Sagrada 75

DP, II,XVII,9, p.447 e 448: “Ex hiis amplius per necessitatem inferre volo, quod in communitatibus fidelium iam perfectis ad legislatorem humanum solummodo seu fidelem multitudinem eius loci, super quam intendere debet promovendus minister, pertineat eligere, determinare ac presentare personas promovendas ad ecclesiasticos ordines; et quod nemini sacerdoti vel episcopo singulariter neque ipsorum soli collegio cuiquam cooperati liceat ad huiusmodi suscipiendos ordines absque legislatoris humani vel ipsius auctoritate principantis licencia” (DP, II,XVII,9, p.363).

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escritura como aquelas concernentes à liturgia, então consultavam o bispo e a igreja sediados em Roma, devido ao número considerável de fiéis que ali residiam, julgando que talvez fossem mais experientes e respeitáveis, uma vez que o estudo das ciências, naquela época, estava centralizado em Roma Por isso, seus bispos e presbíteros eram mais cultos, e sua igreja possuía um número maior de tais pessoas ilustradas que as demais. Os fiéis que viviam na Urbe também eram mais respeitados. Ademais, conforme se aduz, São Pedro, o mais velho de todos os Apóstolos, mais perfeito por seus merecimentos e mais venerado, teria exercido o episcopado em Roma, tanto quanto São Paulo o exerceu, como o demonstramos no capítulo XVI [14-19] desta parte, por causa da relevância e da celebridade daquela cidade, mais importante do que as existentes nas outras províncias do mundo”.76 Com efeito, neste ponto do Defensor fica subtendido que, pelos motivos acima apontados, tal preeminência deve ser atribuída à Igreja de Roma, mas Marsílio só é relativamente explícito com relação a este ponto no capítulo XXII do bloco seguinte (o sexto). Vejamos o que ele aí declara:

76

DP, II, XVIII,5, p. 463 e 464: “(...) ita quod nemo episcoporum per omne tempus illud in alios episcopos coactivam iurisdiccionem exercuit; quamvis tamen aliarum provinciarum episcopi plures, in quibus dubitabant, tam de scriptura sacra, quam de ritu ecclesiastico, non audentes se publice congregare, consulerent episcopum et ecclesiam fidelium existentem Rome, propter maiorem ibidem forte fidelium multitudinem et magis periciorem, eo quod studia scienciarum omnium tunc multum Rome vigebant; unde ipsorum episcopi et sacerdotes periciores erant, et in talium numero plus ceteris abundabat ipsorum ecclesia. Erant eciam et reverenciores, tum quia beatus Petrus, apostolorum senior, meritis perfeccior et reverencior, ibidem tamquam episcopus sedisse legitur, et beatus Paulus similiter, de quo amplius constat, quemadmodum apparuit 16 huius; tum eciam propter Romane urbis principalitatem et famositatem ampliorem ad ceteras mundi provincias” (DP,II, XVIII, 5, p. 378 e 379).

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“Quanto ao lugar ou à província eclesiástica que deva ser preferida em relação às outras, julgamos que tem de ser aquela cujo grupo sacerdotal ou clerical possua no seu interior um número considerável de pessoas notáveis pelo seu testemunho de vida e por sua sabedoria teológica. Todavia, em que pesem as semelhanças e as poucas diferenças entre os prelados e lugares, o Bispo de Roma e sua Igreja, enquanto esse lugar for habitável, parecem ter merecido [e merecem] essa preferência por muitas razões [as já aludidas]” .77

Aceitar a existência de um “primado de honra” e admitir que ele pertença à Igreja romana, não significa, longe disto, concordar com os poderes e imunidades aos quais os papas se arrogam, ou seja, com um “primado de fato”. Com efeito, Marsílio apressa-se em sublinhar que esta preeminência não significa competência para interpretar e definir os significados pouco claros de passagens da Escritura ou para subjugar os outros membros do clero, ou indicar pessoas para exercer este ou aquele mister eclesiástico, ou ainda determinar sobre a liturgia ou qualquer outra das pretensas competências que o papa dizia possuir.

77

DP, II, XXII,8, p. 512 e513: “Cuius autem loci sive provincie ceteris ecclesia preferri debeat, dicendum eam, cuius sacerdotale sive clericorum collegium pluribus et ut plurimum honestioris vite ac lucidioris doctrine sacre viris habundat; quamvis ceteris paribus aut non multum distantibus Romanus episcopus aut ipsius ecclesia, quamdiu locus habitabilis extet, pluribus congruenciis videatur meruisse preferri (...)” (DP, II, XXII, 8, p.427) (os grifos são meus).

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A quem compete todas estas funções? A resposta está no sexto bloco temático (capítulos XIX ao XXII) na qual estuda a doutrina conciliar e, mais detidamente, as atribuições ou poderes do legislador cristão. Com relação às interpretações e definições dos significados das passagens pouco claras da Escritura, a competência pertence ao Concílio Geral (a reunião dos fiéis da Cristandade). Tal responsabilidade é atribuída ao Concílio por este ser, na opinião de Marsílio, o conselho que contemporaneamente representa por sucessão a congregação dos Apóstolos, dos anciãos e do conjunto dos fiéis, o que garante a presença do Espírito Santo durante as deliberações do Concílio. Tal consideração fica patente nesta passagem:

“Ora, como a congregação dos fiéis ou o Concílio representa verdadeiramente por sucessão, nos dias atuais, a congregação dos Apóstolos, dos anciãos e do conjunto dos fiéis, é verdade, e bem mais seguro, que, nas definições acerca dos significados duvidosos de passagens da Escritura, especialmente daquelas em que o erro levaria ao risco da condenação eterna, a graça do Espírito Santo, guia e reveladora, está presente durante as deliberações do Concílio Geral” .78 O pensamento marsiliano estabelece neste ponto, como observa Felice Battaglia (op. cit., p.85), uma nítida correlação entre universitas civium e universitas fidelium, entre autoridade

78

DP, II, XIX,2, p.470: “Cum igitur fidelium congregacio seu concilium generale persuccessionem vere representet congregacionem apostolorum et seniorum ac reliquorum tunc fidelium, in determinandis scripture sensibus dubiis, in quibus maxime periculum eterne dampnacionis induceret error, verisimile, quinimo certum est, deliberacioni universalis concilii spiritus sancti dirigentis et relevantis adesse virtutem” (DP, II, XIX,2, p.385).

236

pública e autoridade religiosa, entre lei humana e fé: a universitas civium é a fonte da autoridade pública e da lex; a universitas fidelium, congregada no Concílio, é a fonte da autoridade religiosa e decide sobre as controvérsias em matéria de fé. No que respeita à jurisdição coercitiva sobre os sacerdotes (e sobre os leigos) e a nomeação e aprovação da escolha de indivíduos para exercer um mister eclesiástico (ou qualquer outro ofício na cidade – civitas), Marsílio, agora recorrendo ao Código Isidoriano (havia-o anteriormente feito baseando sua argumentação na Escritura), rearfirma que tal atribuição compete somente ao legislador humano cristão de uma dada localidade. Observemos nas suas palavras:

“Embora estas proposições já tenham sido demonstradas no capítulo XV da Parte I, nos capítulos IV, V, IX e XVII desta Parte, onde comprovamos mediante nossa argumentação e ainda o confirmamos através da autoridade da Escritura que é da exclusiva alçada do legislador humano cristão, e não da competência de quaisquer presbíteros ou grupo de clérigos, enquanto tais, exercer indistintamente a jurisdição coercitiva sobre todos em geral, sacerdotes ou leigos, e nomear e aprovar a escolha de indivíduos para que exerçam os ofícios da cidade, queremos, entretanto, confirmá-las recorrendo a inúmeras passagens do mencionado Código Isidoriano, especialmente

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aquelas em que o mesmo cita os fatos que estão em consonância com a Lei Divina e a reta razão”.79

Com relação a todos os atos humanos concernentes à liturgia, Marsílio atribui competência, para regulá-los e ordená-los, tanto ao Concílio como ao legislador humano. Com relação ao estabelecimento do valor dos dízimos ou à sua cobrança, e com relação aos demais bens temporais eclesiásticos, à concessão de licenças de ensino, estas são atribuições do legislador cristão uma vez que estes procedimentos poderão ser benéficos ou prejudiciais à comunidade dos fiéis. Já a canonização e a veneração dos santos, sendo uma questão puramente de fé, é da competência exclusiva do Concílio Geral. O poder para distribuir bens temporais merece então uma atenção especial por parte de Marsílio. Com efeito, se ele for atribuído ao Bispo de Roma ou a um outro prelado ou, ainda a um único antístite com seu grupo de padres, tais bens poderão ser utilizados como barganha na disputa pelos favores dos poderosos do mundo, em prejuízo dos príncipes e dos povos, causando portanto dissensões e escândalos entre os cristãos. Portanto tal poder, à semelhança dos demais anteriormente analisados, deve ser licitamente retirado completamente das mãos do

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DP, II, XXI, 1, p.489: “Que quamvis demonstrata sint 15 prime, 4, 5 et 9 ac 17 huius, in quibus per demonstracionem ostensum est et auctoritate scripture certificatum amplius, iurisdicciones coactivas super omnes indifferenter sacerdotes et nonsacerdotes, personarum determinaciones et approbaciones, officiorum quoque instituciones omnium ad solius humani legislatoris fid elis auctoritatem, minime vero ad sacerdotis aut sacerdotalis collegii solius, inquantum huiusmodi, pertinere; volumus tamen nunc ea persuadere per iam dictum Ysidori codicem plerisque locis, maxime vero, in quibus ea que facta sunt legi divine ac recte racioni consona recitat” (DP,II, XXI,1, p.402 e 403).

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papa ou de qualquer outro prelado, não importa quem seja. Tal regulamentação deve ser estabelecida pelo Concílio Geral e pelo legislador humano. Passa então a estudar mais detalhadamente como devem se organizar os “mecanismos de poder” que parecem dar ao Concílio Geral e ao legislador humano a direção da Cristandade. Segundo Marsílio, todos os fiéis, leigos e clérigos, têm dever de participar de um Concílio Geral, uma vez ainda seguindo o exemplo da Igreja Primitiva. Mas é inútil e nocivo para a sociedade que isto ocorra, já que para muitos faltará competência e idoneidade para tal e, também, se assim o fosse, os outros ofícios indispensáveis ao “viver bem” não estariam sendo realizados. Daí, novamente, adotar um princípio de representação. Vimos, no capítulo anterior, que o princípio representativo aparece, na Primeira Parte, na sanção da lex, e aparece igualmente, ao longo das duas Partes, com relação à eleição do legislador humano. Pois bem, tal princípio também é utilizado para se determinar os participantes do Concílio Geral. Todos os fiéis participam do Concílio Geral mediante representação, ou seja, cada comunidade de fiéis, liderada por seus respectivos governantes ou príncipes, escolhe homens idôneos, sábios e prudentes para representá-los e lhes delega autoridade para deliberar e legislar sobre os assuntos mencionados. Suspeitando, entretanto, da competência intelectual dos clérigos de sua época, bem como de sua dignidade moral, Marsílio recomenda que tal escolha inclua leigos íntegros e sábios:

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“Por isso, face à ignorância desses padres, é bem melhor e muito oportuno, de acordo com a Lei Divina e a reta razão, que o Concílio Geral inclua entre seus participantes, leigos escolhidos, segundo a determinação do legislador cristão, bem versados nos conhecimentos sobre a Escritura, e que assim, por sua vida e costumes íntegros, atuem melhor do que tais bispos e padres, de modo que por sua participação, em concerto com outros ministros eclesiásticos, aí presentes, possam resolver satisfatoriamente todas as dúvidas no tocante à fé e às demais questões que tiverem sido suscitadas”.80

Felice Battaglia (op. cit., p. 87) salienta que Marsílio não especifica o processo de escolha dos membros do Concílio, ou seja, dos representantes da universitas fidelium. Pelo contrário, declara que isto varia de acordo com cada povo, segundo uma série de causas que não é possível enumerar, dependendo de elementos políticos, sociais e morais os mais variados. Na realidade, diferente do que observa Battaglia, Marsílio é bastante claro em atribuir tal poder ao imperador, e somente a ele. É também da competência do imperador convocar o Concílio Geral, promover sua reunião, efetivação e conclusão dos seus trabalhos, já que somente ele detém, por delegação de competência, um poder coercitivo legítimo sobre toda a sociedade cristã, incluindo o próprio clero, e é seu dever proteger a integridade e a unidade da fé, a 80

DP,II,XX,14, p.487: “Propter quod in horum defectum nonsacerdotes approbatos fideles, iuxta fidelis legislatoris determinacionem, scripture sacre doctos sufficienter, vita et moribus eciam talibus episcopis et sacerdotibus prepollentes, perutile, quinimo necessarium, legi divine ac recte racioni consonum est tali concilio interesse, ipsorumque deliberacione cum reliquis dubia circa fidem et quesita cetera diffiniri” (DP,II, XX, 14, p.401 e 402).

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uniformidade do ritual litúrgico e a disciplina do grupamento social. É igualmente de sua competência dar um caráter legal às decisões conciliares como um todo e, inclusive, as relativas à condenação das heresias e dos hereges e à excomunhão das pessoas. E, inclusive, a ele compete constranger pela força todo aquele que, uma vez convocado, não quiser tomar parte no Concílio ou nele não executar as tarefas necessárias e, ainda, punir os transgressores das decisões conciliares. Nas próprias palavras do Paduano:

“Queremos agora demonstrar que compete ao legislador humano cristão, acima do qual não há nenhuma outra autoridade, ou a quem ele delegar o poder [quer dizer, o imperador] de convocar um Concílio Geral, o direito de escolher as pessoas idôneas para dele participarem, de promover a sua reunião, efetivação e conclusão de seus trabalhos, segundo a forma de praxe. Além disso, tem o direito de licitamente coagir pela força, de acordo com as leis Divina e humana, não só padres e leigos, clérigos ou não, que se recusarem a tomar parte dele e a executar as tarefas necessárias e úteis antes referidas, bem como punir os que não cumprirem os decretos e ordens promulgados pelo sobredito Concílio”.81

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DP,II,XXI,1, p.488 e 489: “Nunc autem ostendere volo, ad solius humani legislatoris fidelis superiore carentis auctoritatem pertinere, aut eius vel eorum, cui vel quibus per iam dictum legislatorem potestas hec commissa fuerit, generale concilium convocare, personas ad hoc idoneas determinare, ipsumque congregarei, celebrari et secundum formam debitam facere consummari, rebelles quoque ad conveniendum et iam dicta necessária et utilia faciendum, determinatorum quoque ac ordinatorum in dicto concilium transgressores tam sacerdotes quam nonsacerdotes, clericos aut nonclericos, licite secundum divinam et humanam legem per coactivam arcere potenciam.” (DP,II,XXI,1,p.402). O grifo e meu.

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Marsílio reconhece ao imperador inclusive o direito de estabelecer a forma e o modo de se proceder com relação à eleição do papa:

“Compete, pois, ao legislador humano ou ao príncipe [no caso, evidentemente ao imperador] através de sua autoridade, não apenas sancionar decretos coercivos sobre a observância das decisões do Concílio, mas ainda estabelecer a forma e o modo de se proceder à sucessão na Sé Apostólica ou à eleição do Pontífice Romano”.82

De acordo com Marcel Pacaut (op. cit., p.170), Marsílio institui uma reductio ad unum em favor do Estado. Revirando a argumentação hierocrática, Marsílio salienta que é este, por intermédio de sua legislação, quem reconhece sobre um determinado território a especificidade da Igreja, ou seja, do conjunto formado pelos fiéis, e admite, se ele assim deseja, uma certa autonomia aos sacerdotes para que possam cumprir seu ministério. É evidente, entretanto, que este “Estado” de que fala Pacaut, o Estado Monárquico, longe de corresponder a um determinado território geográfico, nesta Europa do século XIV onde os reinos não contavam ainda com fronteiras completamente definidas e as persistências feudais

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DP, II, XXI, 5, p.492: “Nec solum de observandis hiis, que per concilium diffinita fuerant, coactivum ferre decretum ad humanum legislatorem seu ipsius auctoritate principantem pertinet, verum eciam formam et modum Romanam sedem apostolicam ordinandi seu Romanum eligendi pontificem statuere” (DP, II, XXI, 5, p. 406 e 407) . O grifo e meu.

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eram bastante significativas, toma corpo fundamentalmente através do conjunto dos súditos do rei, o legislador humano marsiliano que ao governante delegou seu poder. Tal perspectiva, transferida para o âmbito da Cristandade (Christianitas), confere o poder supremo somente ao imperador, o vicarius Christi, eleito simultaneamente por Deus e pela Igreja (o conjunto formado por todos os fiéis), para sabiamente governar o reino terrestre ou cidade (civitas). No último capítulo deste bloco, Marsílio, retomando a questão do primado, procura analisar mais detidamente em que sentido a Igreja e o Bispo de Roma são a cabeça e a liderança dos demais prelados e Igrejas e , por conseguinte, as atribuições do papa num Concílio Geral. Inicialmente atesta que, segundo a Sagrada Escritura, o único caput da Igreja é o próprio Cristo. Com efeito, como salienta Yves Congar (op. cit., p. 289), um dos grandes argumentos dos hierocratas era a necessidade de assegurar a unidade. Mas Marsílio, que se apressa em assegurar a unidade da sociedade humana pelo poder do imperador, rejeita uma unidade eclesial assegurada por um primado papal: a unidade da Igreja é assegurada pela unidade da fé baseada nas Escrituras e mantida graças ao Concílio Geral convocado pelo imperador. Entretanto, o primado pode ser estabelecido, pela autoridade do Concílio Geral ou do imperador, desde que de acordo com os demais bispos e Igrejas, fundamentalmente em duas situações específicas. A primeira destas situações é a hipótese de surgir uma dúvida relativa a fé, sendo que neste caso é preciso convocar um Concílio Geral. Efetivamente, deve então o papa, após uma

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deliberação prévia, comunicar o problema à maior autoridade da Cristandade, ao imperador, o qual, através dum preceito coercitivo, ordenará a convocação do referido Concílio. A partir de então, o Bispo de Roma se encontrará totalmente subordinado a este Concílio, ainda que tenha nele tarefas especiais, entre outras, ocupar o lugar de honra ou o assento principal, propor as questões a serem debatidas, atribuir os lugares a seus participantes, secretariar os trabalhos. Assim, como estuda Jeaninne Quillet (op. cit., p. 107), em Marsílio o Estado deve ser encarnado pela figura do imperador, o Império deve reencontrar o sentido de sua missão providencial, tal como Carlos Magno a concebia e a plenitude da potência deve ser extirpada das mãos dos papas. A estes devem ser conferidas as funções de administrador da Igreja de Roma e de expert no Concílio, em companhia da major et senior pars do corpo dos sacerdotes, consultados em razão de sua competência particular neste domínio, mas consultando igualmente os outros fiéis, escolhidos entre os mais sábios e prudentes. Em todo caso, o primado também é requisitado quando é preciso estabelecer uma arbitragem sobre Igrejas e bispos não subordinados entre si e nos casos de conflitos espirituais propriamente ditos (ou seja, conforme o segundo e terceiro significados da palavra “espiritual” definidos no capítulo II da Segunda Parte da obra). Mas neste caso, o papa deverá julgar em consonância com a parte preponderante ou a maioria do grupo clerical que lhe foi atribuída pelo imperador e, em caso de um julgamento maldoso ou negligente segundo a opinião manifesta e quase unânime do conjunto total das Igrejas, a parte prejudicada poderá recorrer ao imperador, sendo que o culpado poderá vir a ser

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castigado apropriadamente, ou ainda, se o problema assim o exigir, poderá ser convocado um Concílio Geral. O sétimo bloco temático (capítulos XXIII ao XXVI) vai analisar detalhadamente a pretensão dos papas de ter o direito de possuir e exercer a plenitudo potestatis a qual, segundo eles, lhes foi conferida na pessoa de São Pedro. Para Marsílio, isto simplesmente nasce de uma interpretação distorcida das palavras da Escritura no que respeita ao magistério eclesiástico, ao ritual litúrgico, à nomeação dos dignitários da Igreja, à distribuição das esmolas ofertadas pelos fiéis na realização de obras pias; bem como sobre os fiéis em geral, e em particular sobre o Império Romano. Com relação a este último aspecto, ou seja, da preeminência que pretendem ter os papas sobre o Império, Marsílio é especialmente crítico e deveras mordaz, alertando sobre os ardis em que se baseiam os argumentos da Santa Sé:

“Se bem que os bispos de Roma tenham o propósito, a respeito do qual já nos referimos, de concretamente prejudicar de todas as maneiras o citado Príncipe, contudo mantêm suas pretensões repletas de ardis, ao dizer que, se agem assim, é para defender os direitos da Esposa de Cristo, quer dizer, a Igreja, mas tal piedade sofística é digna de zombaria, pois essa Esposa não se constitui nem nos bens temporais nem na ambição pelos mesmos, e tampouco no desejo de possuir a jurisdição ou o poder governamental.

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Aliás, Cristo não se dedicou a isso, mas, ao contrário, a recusou como algo estranho à sua missão (...)”.83 Vai então negar determinantemente o direito, proclamado pelos papas, de intervir na designação do Rei dos Romanos. Ora, não é pelo fato de o Príncipe, respeitosa, devota e espontaneamente comunicar ao papa sua eleição e lhe pedir sua benção e a intercessão junto a Deus, que o Bispo de Roma possui o direito de impedir que ocorra a eleição imperial, pois, sendo assim, o ofício dos eleitores seria inútil, uma vez que, por seu intermédio, o escolhido como imperador não deve ser designado como tal, antes que venha a ser confirmada pela vontade do papa. Além do mais, tais intervenções servem apenas para entravar continuamente a escolha e retardar a ascensão do imperador ao cargo e dignidade que são suas por direito. Neste ponto do Defensor, Marsílio, muito antes portanto de se refugiar em Munique se tornando um “ideólogo de corte”, apresenta-se, francamente, como um partidário da causa de Luís da Baviera, o que atesta plenamente sua precoce vinculação com a defesa imperial e, muito particularmente, com as perspectivas do Bávaro. Aproveita igualmente para reiterar que apenas aos príncipes germânicos cabe eleger o Rei dos Romanos e o papa não tem o menor direito de exercer sua arbitragem nesta eleição. Vejamos nas suas palavras:

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DP, II, XXVI,2, p.574: “Quod, quamvis ea quam diximus intencione patenter obicem ponant undecumque principi supradicto, id tamn dolose pretendentes se facere aiunt, ut sponse Christi, ecclesie videlicet, iura defendant, quamquam sophis tica pietas hec derisibilis sit; quoniam temporalia vel eorum cupiditas iurisdiccionis aut ambicio principatus sponsa Christi non est neque hanc Christus sibi matrimonio copulavit, sed tamquam alienam repudiavit expresse (...)” (DP,II,XXVI, 2, p.488).

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“’E por isso que, baseado nessas teses falsas, um indivíduo, designado por Papa Romano, o mais recente de todos [João XXII], tendo ingressado no caminho do erro e da iniquidade, coíbe com todo seu zelo e esforço e proíbe a ascensão à posse tranqüila da mais alta dignidade imperial o ilustre Luís, duque da Baviera, eleito Rei dos Romanos. Por isso, Luís, dos Duques da Baviera, se opõe com todo direito, por meio de suas palavras e atitudes, às pretensões daquele mencionado bispo. Ora, se bem que esse príncipe até agora ainda não tenha sido confirmado ou aprovado mediantes palavras ou documentos da lavra desse bispo, conquanto ninguém precisa de tal confirmação, como, aliás, acima o demonstramos de modo claro, desde o momento que sua eleição foi realizada e anunciada pelos eleitores, ele se intitulou e ainda agora se denomina permanentemente, porque de verdade foi e é Rei dos Romanos, e está a exercer em todos os aspectos seus direitos imperiais e régios, o que aliás tem legalmente a obrigação de fazer e desfruta de competência para tanto”.84

As conseqüências negativas do exercício desse pseudodireito se fazem sentir sobre toda a Cristandade. Para Marsílio, a plenitudo potestatis dos papas é, efetivamente, o Grande Mal, a

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DP, II,XXVI,11, p.582: “Ex dictis itaque supposicionibus falsis viam eroris et iniquitatis ingrediens, iam omnium novissime modernus quidam vocatus papa Romanus totis suis studiis et nisibus impedit et prohibet incliti Ludovici, ex Bavarie ducibus Romanorum regis assumpti, processum ad possessionem quietam apicis imperatorie dignitatis. Interimit enim, et merito, dictus Ludovicus tam verbo quam facto supposiciones episcopi supradici. Nam quamvis nondum per ilius verba vel scripta confirmatus aut approbatus extiterit, sicut, veluti pridem evidenter ostendimus, nec indiget confirmari, ab eleccionis de se facte et publicate per electores tempore citra se regem Romanorum continuo, sicut secundum veritatem fuit et est, scribi ac nominari fecit et facit, imperialia quoque sive regalia queque, quod eciam de iure tenetur et potest, in omnibus administrat” (DP,II, XXVI,11, p.497 e 498). O grifo e meu.

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causa oculta desintegradora da paz social e que, além do mais, intervém negativamente na Salvação. Pois, para satisfazer sua cobiça e sede de poder, os papas procuram aniquilar a fidelidade que unem os súditos aos seus príncipes, desestabilizando os governos e, consequentemente, impedindo o “viver bem” na cidade (civitas); além do que, aniquilam as almas daqueles que por ela se deixam seduzir :

“Ademais, acreditar no bispo de Roma ou num outro bispo qualquer e lhe obedecer, que ensina e divulga tais idéias, outra coisa não é senão permitir que a base de qualquer governo venha a ser desestabilizada e sejam dissolvidos o esteio e o fundamento de toda vida civil e de todo o reino ou cidade. Na verdade, julgamos que tal base e esteio desse tipo sejam o juramento e a fidelidade mútuos que unem os príncipes e os súditos. Ora, a fidelidade, como diz Cícero no tratado Sobre os deveres, livro I (capítulos VII e XXIII) é o fundamento de toda justiça. O bispo de Roma, empenhando-se em destruir a fidelidade que deve existir entre os súditos e os príncipes, não tenciona outra coisa senão obter para si o poder e destruir a seu talante a autoridade de todos os governos e reduzi-los dessa maneira à servidão, e ainda perturbar a paz e a tranqüilidade dos que vivem nas comunidades civis, e consequentemente privá-los duma vida com suficiência neste mundo, enfim, conforme já

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dissemos, conduzir em definitivo à aniquilação de suas almas os que assim têm pensado e se comportado”. 85 Neste e nos dois parágrafos seguintes, Quentin Skinner (1996, p. 42) nos dá uma visão, simultaneamente precisa e resumida, da contestação marsiliana da plenitudo potestatis papalis. Após negar o poder coercitivo do clero e identificar a Igreja com a Congregatio Fidelium, Marsílio passa ao ataque da plenitudo potestatis. Ele inicia isolando seus cinco elementos principais: a pretensão a dar a “definição dos significados” das Escrituras; a convocar Concílios da Igreja; a excomungar ou lançar interditos sobre qualquer “governante ou unidade política”; a designar os ocupantes de “todos os ofícios da Igreja no mundo” e, finalmente, a de decidir sobre as características que definem a fé da ortodoxia cristã. Passa então a atacar estes pontos-chaves por duas vias distintas. Primeiro, opõe-se ao conceito de monarquia pontifícia, defendendo a doutrina do conciliarismo. Com efeito, a determinação das questões duvidosas nas Escrituras, a autoridade de excomungar qualquer governante e as regulações sobre o ritual cristão e outros tópicos de fé são questões sobre as quais apenas o Concílio Geral pode legislar. O que é evidente nas Escrituras e

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DP,II, XXVI,13, p. 587 e 588: “Hec rursum docenti seu predicanti Romano aut alteri cuivis episcopo credere vel obtemperare, nil aliud est quam omnium principatuum radicem succidi sinere, vinculum et nexum cuiuscumque civilitatis et regni dissolvi. Non enim radicem et nexum huiusmodi arbitror alium, nisi mutuum iuramentum et fidem subditorum et principum. Hec enim, fides scilicet, ut inquit Tullius, De Officiis, libro primo, omnis est fundamentum iusticie; quam inter principantes et subditos solvere nitens nil minus sibi querere temptat, quam pro sui libito principancium omnium potestatem evertere poss et hinc eos in suam redigere servitutem. Est hoc eciam civiliter vivencium omnium pacem seu tranquilitatem turbare, ac inde presentis seculi sufficienti vita privare, demumque, ut iam diximus, sic animo dispositos finaliter perducere ad eternam perniciem animarum” (DP, II, XXVI, 13, p. 503 e 504).

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manifesto pelas tradições da Igreja Primitiva que mostram que somente os bispos romanos de uma época ulterior passaram a assumir uma autoridade maior ordenando que fossem observados decretos ou ordenações dirigidas à Igreja Universal. A segunda via de contestação da supremacia papal foi estabelecida elevando a uma dimensão jamais vista os direitos das autoridades seculares sobre a Igreja. Dessa forma qualquer poder coercitivo necessário para regular a vida cristã deve, de direito, ser exercido apenas pelo fiel legislador humano, ou seja, o conjunto formado pelos cidadãos da civitas. Este, no entanto, elege o governante ou príncipe e a ele delega seu poder. Desta forma, apenas o governante ou príncipe tem o direito de fazer nomeações de sacerdotes e outras ordens sacras; apenas ele pode, aqui na figura do imperador, convocar ou ordenar um Concílio Geral e ordenar que sejam observados seus decretos e decisões e, agora na pessoa de todos os governantes ou príncipes, punir os transgressores. Como previamente havia atestado que todos os outros aspectos da plenitudo potestatis competem ao Concílio Geral da Igreja, esta elevação do imperador a uma posição de controle sobre o próprio Concílio tem o efeito de finalmente libertar as autoridades seculares inteiramente da influência eclesiástica. E, para além disto, o que de fato se observa é a transferência da plenitudo potestatis do Papado para o imperador. No último bloco temático (capítulos XXVII ao XXX), Marsílio, num perfeito método escolástico de ensino, dedica-se a responder às mais prováveis objeções que poderiam vir a ser formuladas contra suas teses relativas à igualdade sacerdotal sob o essencial aspecto do

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Sacramento da Ordem; à negação da teoria da plenitudo potestatis e também à refutação dos argumentos racionais alegados como fundamentos para aquela teoria. A Terceira Parte do Defensor Pacis, composta somente por três capítulos, visa recapitular os principais objetivos e conclusões das duas primeiras partes, destacar e reafirmar determinados pontos-chaves e, por fim, retoma o tema-título, ou seja, a paz. Procura então explicar, neste último capítulo, as razões da escollha do título: O Defensor da Paz, enumera quais são os temas centrais da obra e indica o público destinatário do Tratado: “Este tratado se chamará Defensor da Paz, porque nele são abordadas e explicadas as principais causas pelas quais a paz civil ou a tranqüilidade ocorre e se mantém, e igualmente aquelas outras mediante as quais a discórdia, o seu oposto, surge, mas é impedida de prosperar, e igualmente suprimida. Na verdade, este livro explicita em que consiste a autoridade, quais são as causas de todo o governo coercitivo, das Leis Divina e humana, da concordância entre ambas, quais são as regras para os atos humanos, e em qual medida conveniente, desde que não impedida, consiste a paz ou tranqüilidade civil. Ademais, por intermédio deste livro, tanto o príncipe como os súditos podem saber quais são os primeiros elementos de toda e qualquer cidade, e o que é preciso fazer para conservar a paz e a própria liberdade.” 86

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DP,III,III, p.700: Vocabitur autem tractatus iste Defensor Pacis, quoniam in ipso tractantur et explicantur precipue cause quibus conservatur et extat civilis pax sive tranquilitas et hee eciam propter quas opposita lis ori tur, prohibetur et tollitur. Per ipsum enim scitur auctoritas, causa et concordância divinarum et humanarum legum et coactivi

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O conjunto das perspectivas marsilianas, ou seja, a conceituação puramente natural para as idéia de pax, de civitas e de lex (na Prima Dictio do Defensor Pacis ), igualmente seu princípio de submeter completamente o domínio religioso ao controle do poder político (na Secunda Dictio), correspondem, em seu conjunto, a uma ruptura com a tradição teológica do pensamento medieval. Esta no fundo é a grande originalidade do pensamento marsiliano, pois ele foi o primeiro pensador cristão que separou completamente a Filosofia da Teologia. Entretanto, apesar de apresentar respostas novas para os problemas de seu tempo, sua visão de mundo era própria de um medieval. De acordo com Maria Cristina Seixas Vilani (2000, p.54), embora sua tese fosse contrária à dos canonistas conservadores, os princípios que as sustentavam eram os mesmos: ele não negou o conceito de Cristandade e nem o de plenitudo potestatis que reivindicou para o imperador. Como pudemos observar, para Marsílio, a Comunidade Cristã deveria ser dirigida por um príncipe cristão com plenitude de poder, ao mesmo tempo mandatário do povo e ministro de Deus sobre a terra. No Defensor Minor, Marsílio, alicerçando-se fundamentalmente no Defensor Pacis, mas também no Novo Testamento e nos escritos de alguns Padres da Igreja, nomeadamente Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São João Crisóstomo e São Bernardo, entre outros, retoma as cuiuslibet principatus, que regule sunt actuum humanorum, in quorum convenienti mensura non impedita pax seu tranquilitas civilis consistit.

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principais teses eclesiológicas apresentadas no Defensor Pacis, analisando-as e justificando seus pontos de vista. José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (1991, p.29), estudando o texto do Defensor Minor, salienta que nele as teses apresentadas visavam, de um lado, a esclarecer o que Marsílio pensava realmente acerca do Novo Testamento e do que se pode inferir do mesmo, como única fonte da Revelação e da Lei Divina, da confissão e da comutação das penas, do Concílio Geral e da heresia, e, por outro lado, tem como propósito desmantelar a teoria da plenitudo potestatis papalis na esfera espiritual e seus desdobramentos no âmbito secular. A obra apresenta-se dividida em duas partes. Nos doze capítulos iniciais, Marsílio dirige suas críticas ao “Poder das Chaves”, ao poder petrino e suas conseqüências no tocante à condenação dos hereges, à excomunhão, à concessão das indulgências e à dispensa de promessas e votos feitos a Deus. Já os capítulos XIII-XVI tem como temática o casamento na religião cristã, com o intuito de, por um lado, retirá-lo do controle clerical e, por outro, subordinar sua determinação inteiramente ao governante ou príncipe. Trataremos melhor esta questão no próximo Capítulo, dedicado ao conceito imperial marsiliano. No entanto, no Defensor Minor não é desenvolvida nenhuma tese realmente nova, seja política, seja eclesiológica. Marsílio dedica-se sim, meticulosamente, em reiterar e comprovar suas opiniões manifestas no Defensor Pacis, fundamentalmente a respeito do Novo Testamento Amplius per ipsum comprehendere potest tam principans quam subiectum que sunt elementa prima civilitatis cuiuslibet, quid observare oporteat propter conservacionem pacis et proprie libertatis (...) (DP,III,III,p. 611 e 612).

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como fonte exclusiva da Revelação, da infabilidade do Concílio Geral e da negação do poder papal até mesmo na esfera espiritual, questionando a legitimidade do “Poder das Chaves”. Aliás, o próprio Marsílio, no encerramento da obra, reconhece que, no Defensor Minor, teses e provas são retomadas e explicadas através do Defensor Pacis, sendo portanto deduções e conclusões decorrentes da “Obra Maior”. Vejamos o que diz:

“Aliás, todas as nossas teses e suas provas apresentadas neste tratado foram quase sempre retomadas e explicadas a partir do Defensor da Paz Maior, sendo, pois, deduções e conclusões necessariamente decorrentes do mesmo, por isso esta obra e agora em diante se chamará Defensor Menor. Louvor a Deus”.87 Mas muito apesar de não haver teses novas, Marsílio, no Defensor Minor, procura afirmar, com muito maior intensidade do que no Defensor Pacis, a supremacia do poder imperial. Duas questões são então fundamentais. A primeira diz respeito ao território sobre o qual deveria o poder imperial se estender. No Defensor Pacis, embora Marsílio jamais o fale claramente, fica subentendido que tal supremacia se limitava à Cristandade. No Defensor Minor, o Paduano claramente vai estender o poder imperial a todo o gênero humano, cristãos e infiéis. A segunda questão, trata da função legislativa do imperador. No Defensor Pacis, Marsílio nega totalmente que o governante ou príncipe, independente de sua dignidade e poder, fosse

87

DM,XVI,4,p.110: “De quibus omnibus suppositis vel probatis, rememorate et etiam explicata sunt plura in hoc tractatu ex Maior Pacis Defensore , per necessitatem tam sequentia quam deducta, propter quod Defensor Minor deinceps vocabitur tractatus iste. Amen Laus Deo” (DM,XVI,4,p.310).

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responsável por fazer as leis. Estas eram atribuição de conselhos formados por homens sábios e dignos, representativos dos cidadãos das civitates. No Defensor Minor, tal princípio, ao menos com relação ao poder imperial, é redefinido. Marsílio passa a conferir ao imperador, que ele chama de supremus legislatur fidelis, a competência de fazer as leis que importam a toda à Humanitas. Estas duas questões, no entanto, uma vez que se referem diretamente ao poder imperial, também serão melhor estudadas no capítulo seguinte.

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O CONCEITO DE IMPÉRIO EM MARSÍLIO DE PÁDUA

A historiografia, bem como os estudos de Filosofia Política e os realizados no campo do Direito, sobre o pensamento de Marsílio de Pádua, normalmente dividem a sua produção em dois momentos distintos. O período que vai até a redação do Defensor Pacis, escrita na época em que Marsílio lecionava na Universidade de Paris (junho de 1324 é normalmente considerada a data final da redação do Tratado) e o período das chamadas Obras Menores o Defensor Minor, o Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus e o Tractatus de Translatione Imperii que datam do período, após 1326, quando Marsílio, refugiado sob proteção do imperador Luís da Baviera, tornou-se um intelectual de corte. Estes estudos, geralmente, consideram que o Defensor Pacis tomou quase que exclusivamente o partido das cidades do Regnum Italicum na sua luta política e ideológica contra o Papado, não havendo aí portanto princípios imperiais. Segundo eles, somente após ter se refugiado na corte imperial foi que Marsílio assumiu o partido imperial (especificamente o de Luís no seu confronto com o papa João XXII e seus sucessores no trono de São Pedro). Acreditamos, entretanto, que o pensamento marsiliano desenvolvido no Defensor Pacis já se encontrava intimamente ligado a uma justificativa ideológica da instituição imperial, entendida esta no âmbito das perspectivas da chamada “ideologia fredericiana”, ou seja, conforme visto em capítulos anteriores, aquela desenvolvida durante os séculos XII e XIII, quando estava à cabeça do Império a dinastia dos Hohenstaufen. Inicialmente, recordaremos os principais aspectos, vistos no Capítulo 1 (p.11 a 80), que integram o

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princípio imperial dos Hohenstaufen. Em seguida, analisaremos onde eles reaparecem, sob a pena marsiliana, no Defensor Pacis, no De Translatione Imperii e no Defensor Minor, ressaltando se os mesmos foram de alguma forma redefinidos. Conforme já foi apontado, na Baixa Idade Média três noções se conjugavam para configurar a dignidade imperial: a eleição divina, o mito carolíngio e o mito romano. Em outras palavras, o imperador era o escolhido do Todo-Poderoso, a quem era dado diretamente por Deus um poder único de remota origem mágica (felicitas, königsheil) que o colocava acima de todos os outros soberanos como guia único do povo de Deus. Mas a lembrança dos triunfos carolíngios e do prestígio da figura imperial de Carlos Magno formava, com efeito, o segundo pilar da idéia medieval de Império e implicava imediatamente o terceiro. O Sacro Império Romano-Germânico era visto, através da via do Império Carolíngio, como a seqüência no tempo do próprio Império Romano. Acreditavase, pois, numa continuidade quase absoluta da Antigüidade Clássica à Baixa Idade Média, efetivada em decorrência de duas translações do Império: a passagem dos romanos aos carolíngios (prima translatio imperii) e a dos carolíngios aos saxônios (secunda translatio imperii). Foi baseado fundamentalmente nestas três noções que os Hohenstaufen, nos séculos XII e XIII, forjaram, em sua forma acabada, os princípios ideológicos do Império Medieval. Reagindo de forma vigorosa contra a ascendência progressiva do Papado, desde o século XI, sobre os assuntos políticos, Frederico Barbaruiva, na dieta de Roncaglia (1158), declarava ser o imperador, como detentor de um poder supremo que lhe advinha diretamente do Alto, o verdadeiro dominus mundi. A escolha pelos príncipes eleitores, os intérpretes da vontade divina, já lhe assegurava o total dos poderes e prerrogativas da

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dignidade imperial, sendo a aprovação papal uma mera formalidade proveniente de tradição. Inclusive sua decisão pela canonização de Carlos Magno está revestida de uma significação bastante clara. Pretendia, com efeito, demonstrar que, tal como era no Império Carolíngio, no Sacro Império, sua continuidade no tempo, a pessoa imperial deveria reunir todos os aspectos religiosos e políticos do poder. Em outras palavras, Barbaruiva defendia, não apenas a independência do Império diante do Papado, mas a subordinação de ambos os domínios a sua supremacia única. Barbaruiva defendia igualmente, derivada de sua supremacia e como uma herança dos Césares, o poder de legislador supremo da Cristandade e, de fato, ele fez inserir leis suas no Código de Justiniano. Com seu neto, Frederico II, a doutrina fredericiana foi marcada, conforme vimos, por um profundo espiritualismo e um integral jurisdicismo. O imperador era visto como a lex animata in terris. Isto significava precisamente que o imperador, ainda que não fosse a fonte do Direito, que, logicamente, encontrava-se em Deus, era o guardião, defensor e executor das leis. Em outras palavras, ele era o responsável por fazer, sob a inspiração divina, as leis que importavam a toda a Cristandade, e igualmente por zelar que as mesmas fossem cumpridas, e punir os transgressores. Para Frederico II o imperador era também o herdeiro direto de César e Augusto, tanto quanto de Carlos Magno e dos Otónidas. Estas diversas autoridades permitiam-lhe, não somente subtrair o Estado à dominação da Igreja, mas reformar a própria Igreja, reconduzir seus ministros ao estado original de pobreza e de submissão à autoridade política, conforme a sua leitura do ensinamento paulino.

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Desta forma, em Frederico II, de forma bem mais clara quem em seu avô, a perspectiva, romana e carolíngia, de controle de toda a Cristandade (clérigos e leigos) por parte do imperador passava por um princípio de Reforma da Igreja. Podemos assim caracterizar os principais argumentos que, em seu conjunto, formam a base da idéia imperial dos Hohenstaufen, a saber: a) A direta derivação de Deus do poder imperial, sendo os príncipes eleitores os verdadeiros intérpretes da vontade divina; b) A particular visão “histórica” do Sacro Império como a efetivação da translatio Imperii (ou melhor, das duas translações do Império). Era, pois, entendido como a continuação no tempo do Império Romano por mediação do Império Carolíngio ou, em outras palavras, trata-se da tese da “descendência” romana e carolíngia do poder imperial teutônico; c) A função legislativa, jurisdicional e coercitiva do imperador, isto é, o fato da figura imperial, uma vez que encarnava a própria Lei Divina, ser a responsável pela feitura, a guarda, a defesa e a execução das leis; d) A perspectiva de uma Reforma da Igreja, guiada pelo próprio imperador, no sentido de reconduzí- la a um estado de pobreza e submissão à autoridade política; e) Finalmente, a idéia que o imperador é o dominus mundi e que, portanto, deve ser a cabeça de toda a Cristandade, clérigos e leigos conjuntamente, necessita pois submeter totalmente a autoridade religiosa a si. Com relação a este último argumento é preciso salientar, entretanto, que a idéia de dominus mundi não caracteriza a pretensão de um poder político direto sobre todo o território da Cristhianitas. Como também vimos no Capítulo 1, a perspectiva do Sacro Império era assegurar um poder efetivo sobre os três grandes reinos que formavam seus domínios e, uma vez que o imperador era visto como o grande ordenador universal, um poder jurisdicional sobre o co njunto da Cristandade.

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Analisando agora os argumentos imperiais marsilianos, iniciaremos pela Prima Dictio do Defensor Pacis. A própria redefinição, com princípios puramente naturais, que Marsílio realiza a partir dos tradicionais conceitos de pax, de civitas e de lex, elemento central de sua teoria política e, portanto, do estudo da Prima Dictio, atende ao seu princípio imperial. Para poder caracterizar o imperador, enquanto guardião da lex e mantenedor da pax, como o grande ordenador da civitas dos cristãos (a Christianitas) - ordenador de todas suas partes e de todas as funções sociais, Marsílio precisava, previamente, expor em que sentido concebia estes três conceitos-chaves e, particularmente, despojá- los de seu sentido sacral e transmundano, o que favorecia muito os argumentos hierocráticos. Analisamos meticulosamente esta redefinição no Capítulo 3 (p.128 a 193). Faltou, entretanto, estudar um outro aspecto desenvolvido nesta Prima Dictio, também de enorme relevância para o desenvolvimento do conceito imperial marsiliano, que é sua visão a respeito do governo perfeito. O que faremos agora, acompanhando todos os passos de sua reflexão. Inicialmente, Marsílio caracteriza os diversos tipos de governo. Partindo de Aristóteles e nele fundamentando toda a sua argumentação, identifica duas espécies de governos ou de principados: um temperado, o outro corrompido. No primeiro, o príncipe governa para o bem comum, de acordo com a vontade dos súditos; o segundo, é aquele que não possui esta característica. Ambos, segundo Marsílio, dividem-se em três espécies. O temperado em monarquia régia, aristocracia e república. O corrompido em monarquia tirânica, oligarquia e democracia. Vejamos como o Paduano entendia cada uma destas seis espécies de governo. A monarquia régia é um governo temperado, no qual o governante é um só e governa

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para o bem comum de acordo com a vontade ou o consenso dos súditos. Ao contrário, a tirania é um governo corrompido, cujo governante é um só, mas exerce o poder em seu próprio benefício, não levando em conta a vontade dos súditos. A aristocracia é um governo temperado no qual governam somente os notáveis, no entanto, para o bem comum, de acordo com a vontade dos súditos e seu consenso. A oligarquia, seu oposto, é um governo corrompido, na qual governam alguns ricos ou poderosos, tendo em conta apenas o seu próprio interesse e em desacordo com a vontade dos súditos. A república é uma espécie de governo temperado na qual todo cidadão pode participar de algum modo das atividades governamentais ou do conselho, conforme sua posição, capacidade ou condição. Visa assim o bem comum e está de acordo com a vontade ou o consenso dos cidadãos. A democracia, seu oposto, é um governo no qual o vulgo ou a multidão dos pobres determina o regime e governa sozinha, e consequentemente não respeitando a vontade ou não tendo o consenso dos outros cidadãos, e desconsiderando o bem comum. Fica então patente que, para Marsílio, os requisitos fundamentais para o governo perfeito são a preocupação com o bem comum e uma ação governamental de acordo com a vontade ou o consenso dos súditos, que são características das formas temperadas de governo. Mas qual dentre as três espécies de governos temperados, a monarquia régia, a aristocracia e a república, pode ser considerada por Marsílio a melhor? É exatamente no sentido de caracterizar qual dentre as três espécies de governo merece ser chamada de perfeita, que o Paduano aborda algumas questões fundamentais. Quase todas dizem respeito, direta ou indiretamente, à lei civil ou humana, chamada lex.

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Para Marsílio, todos os governantes devem exercer seu cargo de acordo com a lei e não além do que ela determina. Duas são as razões apontadas por Marsílio no sentido de corroborar esta observância: a isenção do julgamento dos príncipes de falhas eventuais e a redução do risco do governante enfrentar sedições. Vejamos o texto do Defensor:

“Devemos inicialmente considerar o seguinte; governar de acordo com a lei isenta o julgamento dos príncipes de falhas eventuais que poderão ocorrer face à ignorância ou a um mau sentimento. Ora, os governantes regulados em seus atos e perante os súditos correrão menos riscos de enfrentar sedições, de maneira que seu governo não será perturbado”.88

Apesar destas duas justificativas, parece contraditório que Marsílio, querendo, conforme vimos no capítulo anterior, dotar seu imperador de um poder praticamente supremo, venha, já quase no começo de sua argumentação, a limitar o poder principesco através da obediência às leis. Precisamos, pois, estudar melhor esta questão crucial. Com o renascimento do direito romano, no século XII, vindo a ser glosado fundamentalmente o Código de Justiniano,89 valorizou-se alguns princípios que permitiram

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DP, I,XI,5, p.125: “(...) Hoc autem sic primum videre est, quoniam secundum legem principari ipsorum iudicia preservat a defectu, contingente propter ignoranciam et affeccionem perversam. Unde in seipsis et ad cives subditos regulati, minus paciuntur sediciones et per consequens suorum principatuum soluciones (...) ( DP, I,XI,5, p.58 e 59). 89 Vimos no Capítulo 1 que, sob o Império Romano, o poder imperial como um todo e, muito particularmente, aquele que caracterizava o imperador enquanto lex animata in terris (a autoridade de fazer as leis que regiam o Império) se expressava na realidade, como atesta o próprio Direito Romano, somente enquanto uma concessão do povo de Roma ao seu Príncipe. Entretanto, certas declarações, como determinadas passagens do

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a alguns teóricos exigir, para o príncipe, um poder sem limites. A partir da proposição retirada do direito romano, “quum omnia principis esse intelligantur” (já que tudo pertence ao príncipe), o jurista Martinus, aproximadamente em 1150, atribuía ao imperador a posse efetiva de todos os bens e o poder de dispor, segundo suas conveniências, de todos os direitos dos particulares. Mesmo os reis, na afirmação de sua autonomia e de sua supremacia sobre seu reino, reivindicaram em seus domínios estes mesmos direitos. Com efeito, os dois aforismos romanos mais freqüentemente empregados eram: “princeps legibus solutus est ”(“o príncipe não está submetido às leis”), e “quod principi placuit legis habet vigorem ” (“o que o príncipe decidiu tem força de lei”). Em virtude de tudo isto, desde o século XII, os pensadores diretamente ligados às cortes principescas concluíram que o rei estava acima da Lei e que suas decisões, quaisquer que fossem, tinham força de lei. Mas, no século XII mesmo, João de Salisbury em seu Policraticus se indignava com tais proposições e, até o final da Idade Média, foram muito raros os que as sustentaram. Com efeito, a maioria dos teóricos da Segunda Idade Média pretendiam fixar os limites do poder dos príncipes. Assim as idéias romanas de legibus solutus e quod principi placuit eram normalmente lidas no sent ido que o príncipe era levado a observar a Lei, não por qualquer sanção judiciária exterior, mas simplesmente por sua boa vontade e seu senso inato de justiça. O rei, portanto, estava submetido à Lei, ou antes, às leis, e devia respeitar todas elas, a lei natural como a Lei Divina, e também a lei civil ou humana de seu reino, onde se encontram consignados os costumes e os privilégios de seus súditos. Assim em

Digesto de Ulpiano, podiam ser facilmente interpretadas no sentido do reconhecimento de um poder absoluto do imperador. E inclusive próprio Justiniano, no seu conhecido Código, permaneceu no equívoco, exprimindo este ponto de vista e assim legando-o à Idade Média.

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nossa opinião, a perspectiva marsiliana se enquadra perfeitamente nesta visão geral. Mas também, conforme estudamos no Capítulo 3, para Marsílio a lei civil ou humana (a lex) deve derivar do consenso dos cidadãos ou da sua parte preponderante. É também o consenso dos cidadãos ou da sua parte preponderante que deve ratificar, interpretar e suprimir as leis. Estudamos igualmente no Capítulo 3 que, desta forma, cabe ao governante, não uma atividade legislativa, mas zelar para que as leis sejam cumpridas e punir os transgressores. É justamente a partir do capítulo XII da Prima Dictio que Marsílio aborda estas teses, justificando suas premissas. Inicialmente, o Paduano define, seguindo os preceitos aristotélicos, o que é cidadão, conceituando-o positiva e antiteticamente. Trata-se de fato de um conceito-chave, pois determina quais são os indivíduos, no conjunto da civitas, que de fato detém o poder público, estando encarregados de fazer as leis e escolher o príncipe. Com efeito, Aristóteles, na Politica, livro III, capítulo I, 1275b-1276a, definia cidadão como aquele que possui o direito de administrar a justiça e exercer funções públicas, participar da função judicial ou da deliberativa, ou seja, de exercer a política. Vejamos esta passagem da Política:

“Um cidadão integral pode ser definido por nada mais nem nada menos que pelo direito de administrar jus tiça e exercer funções públicas (...) (...) o que é um cidadão passa a ser claro (...); afirmamos agora que é aquele que tem o direito de participar da função deliberativa ou da judicial da comunidade na qual ele tem este direito. E esta comunidade (uma cidade) é uma multidão suficientemente numerosa para assegurar uma vida independente na mesma.

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(ARISTÓTELES, 1997, p. 78 e 79).

No livro I, capítulo V, 1260 a-b, ele excluía desta categoria mulheres, escravos e crianças. Uma vez que os mesmos não possuíam, ainda que em graus diversos, a plenitude do logos (a parte racional da alma), não tinham capacidade deliberativa e, assim, não podiam participar do governo da pólis (eram comandados e não comandantes). Retornemos à Política:

“Isto nos leva imediatamente de volta à natureza da alma: nesta, há por natureza uma parte que comanda e uma parte que é comandada, às quais atribuímos qualidades diferentes, ou seja, a qualidade do racional e a do irracional. (...) o mesmo princípio se aplica aos outros casos de comandante e comandado. Logo, há por natureza várias classes de comandantes e comandados, pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo, o macho comanda a fêmea e o homem comanda a criança. Todos possuem as diferentes partes da alma, mas possuem-nas diferentemente, pois o escravo não possui de forma alguma a faculdade de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas sem autoridade plena, e a criança a tem, posto que ainda em formação” (ARISTÓTELES, ibid., p. 32 e 33).

Marsílio, por sua vez, numa leitura rigorosamente fiel ao preceito aristotélico, por um lado definiu cidadão enquanto aquele que participa do governo ou da função deliberativa ou da judicativa na organização da civitas e, por outro, excluiu da cidadania crianças, escravos, mulheres e estrangeiros, ou seja, todos aqueles que não podem possuir tais funções.

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Restringiu portanto a idéia de cidadão a todos os adultos natos do sexo masculino.

“De acordo com o ensinamento de Aristóteles contido no livro III da Política, capítulos 1°,3°, e 7° [ARISTÓTELES, Politica, livro III, capítulo I e livro I, capítulo V] considero cidadão aquela pessoa que, na comunidade civil, participa do governo ou da função deliberativa ou da judicativa, conforme seu posto. Por conseguinte, esta definição exclui de tal conceito as crianças, os escravos, os estrangeiros, as mulheres, cada um, porém, de forma distinta. De fato, os filhos menores dos cidadãos também o são mais potencialmente, devido a não possuírem idade suficiente para sê- lo em ato”.90

Em seguida, Marsílio define a parte preponderante da civitas, a que chama valentior pars. Trata-se de outro conceito-chave, uma vez que determinava o corpo representativo dos cidadãos. Nesta segunda conceituação, o Paduano não parece, entretanto, ser totalmente claro. Voltemos ao Defensor:

“Quanto à parte preponderante, deve-se entendê- la de conformidade com o costume louvável das sociedades políticas, ou determiná-la segundo a opinião de Aristóteles expressa na Política, livro VI, capítulo 2°(Aristóteles, Política, VII, 90

DP, I, XII,4, p.131: Civem autem dico, secundum Aristotelem 3° Politice, capitulis 1°, 3° e 7°, eum qui participat in communitate civili, principatu aut consiliativo vel iudicativo secundum gradum suum. Per quam siquidem descripcionem separantur a civibus pueri, servi, advene ac mulieres, licet secundum diversum. Pueri namque civum cives sunt in propinqua potencia, propter solum etatis defectum” (DP,I,XII,4, p.64). (O grifo é meu. Com efeito, em nossa opinião, a definição positiva de cidadão encontra-se em Aristóteles no livro III, capítulo I, e a antitética no livro I, capítulo V, da Política).

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capítulos 3° e 4°) [ARISTÓTELES, Politica, livro IV, capítulo III] ”.91

Com relação ao texto da Política, observamos que Aristóteles, embora não utilize o termo parte preponderante, deixa entender que concebia uma oitava parte da pólis, ou seja, aquela formada pelos servidores públicos e pelos administradores da cidade, ou, mais exatamente, “a classe deliberativa e a dos juizes entrelitigantes” (ARISTÓTELES, id., p.128). Esta parte é identificada por Aristóteles como o governo da pólis. Com efeito, apesar da idéia de parte preponderante ser em Marsílio a representação dos cidadãos que deverá escolher o governante e não o próprio governante, é muito provável que haja correspondência entre o conceito aristotélico (oitava parte da pólis) e o marsiliano (parte preponderante). Com efeito, ambos os conceitos dizem respeito ao governo da cidade. A diferença fica por conta do fato da sociedade políade da Atenas do século IV a C. ser muito diferente daquela da Europa Ocidental de princípios do século XIV. Aristóteles tinha como modelo uma sociedade democrática, fundada em princípios isonômicos, e Marsílio baseava sua argumentação no modelo monárquico que, segundo sua visão, precisava ser representativo para poder gozar de legitimidade verdadeira. Mas ainda que pos samos estabelecer a associação entre os princípios aristotélico e marsiliano, isto não é suficiente para a perfeita compreensão da definição, supracitada, de parte preponderante, pois, afinal, o que seria exatamente “o costume louvável das 91

DP,I,XII,4, p.131: “(...)Valenciorem vero civium partem oportet attendere secundum policiarum consuetudinem honestam, vel hanc determinare secundum sentenciam Aristotelis 6° Politice, capitulo 2°” (DP,I,XII,4, p. 64 e 65). A indicação entre parêntesis, “Aristóteles, Política, VII, capítulos 3° e 4°”, é do tradutor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza. O grifo é meu. Com efeito, não concordamos nem com Marsílio nem com seu tradutor. Em nossa opinião, Aristóteles só é um pouco mais claro com relação a essa questão no livro IV, capítulo III da Política.

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sociedades políticas”? Ainda que neste trecho da Prima Dictio Marsílio seja de fato bastante impreciso, outras passagens do próprio Defensor podem explicitar-nos sua perspectiva. A que, por exemplo, se encontra na DP,I,XIII,8 (já citada no Capítulo 3), associa a idéia de parte preponderante ao conjunto dos mais prudentes e experimentados dentre os cidadãos. Assim o princípio marsiliano de valentior pars (parte preponderante) coincide, de certa forma, com a idéia, então corrente, de senior pars (o grupo dos anciãos). Tal visão justificava-se pela associação quase imediata que existia entre a idade e a sabedoria. Mas, especialmente em Marsílio, ela ligava -se também ao “mito das origens”: observando que era o grupo dos anciãos que na Igreja Primitiva se responsabilizava pela tomada das decisões que importavam a toda a comunidade dos crentes, Marsílio propunha que, em sua própria época, eles formassem a representatividade desta mesma comunidade, na confecção das leis e na escolha do governante. Estabelecidas estas definições, Marsílio procura, definitivamente, justificar as teses de que a autoridade humana para legislar e para escolher o governante compete exclusivamente ao conjunto dos cidadãos ou à sua parte preponderante. Inicialmente trata da “função legislativa” da universitas civium, justificando-a mediante diversos pontos que, por fim, se resumem num único e grande argumento: evitar o arbítrio individual ou de grupo, o que poderia levar a leis iníquas, geradas segundo o interesse de uns poucos e não o geral. Observemos nas suas palavras:

“O que está escrito adiante é praticamente um resumo e a essência das teses

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precedentes: ou a autoridade dos cidadãos para legislar compete somente ao conjunto dos cidadãos, de acordo com o que dissemos, ou apenas a um, ou a alguns poucos homens. Ora, isto não pode ser da competência exclusiva de uma só pessoa, face aos motivos já apresentados no capítulo XI desta parte da obra e ao argumento proposto no início deste capítulo. Tal pessoa, levada pela ignorância ou pela malícia, ou por ambas, poderia estatuir uma lei iníqua, tendo em mente apenas seu próprio interesse ao invés do comum, de modo que ela seria tirânica. Por motivo semelhante, não compete a um número pequeno de cidadãos legislar, pois igualmente poderiam estar promulgando leis iníquas como na situação anterior, leis essas que visassem somente o interesse de uns poucos indivíduos e não o geral, conforme acontece nas oligarquias. Portanto, a competência para legislar cabe ao conjunto dos cidadãos ou à parte preponderante, justamente por causa das razões contrárias aos casos expostos anteriormente. Ora, como todos os cidadãos devem equanimemente ser regulados pelas leis, e ninguém conscientemente deseja se prejudicar nem sofrer injustiças, eles ou sua maior parte querem que haja leis que correspondem ao interesse comum”. 92

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DP,I,XII,8, p.134 e 135: “Rursum et est hec quasi abbreviacio et summa priorum demosntracionum: aut legumlacionis auctoritas ad solam civium universitatem pertinet, ut diximus, vel ad hominem unicum aut ad pauciores. Non ad solum unum, propter ea que dicta sunt in 11° huius et in prima demonstracione, quam in hoc adduximus; posset enim propter ignoranciam vel maliciam aut utrumque legem pravam ferre, inspiciendo scilicet magis proprium conferens quam commune, und tyrampnica foret. Propter eandem vero causam non pertinet hoc ad pauciores; possent enim peccare in ferendo legem, ut prius, ad quorundam, scilicet paucorum, et non commune xonferens, quemadmodum videre est in oligarchiis. Pertinet hoc igitur ad civium universitatem aut eius partem valenciorem, de quibus est altera et opposita racio. Quia enim lege debent omnes cives mensuari secundum proporcionem debitam, et nemo sibi scienter nocet aut vult iniustum, ideoque volunt omnes aut plurimi legem convenientem communi civium conferenti” (DP,I,XII,8 , p. 68 e 69).

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Uma vez comprovado que compete somente ao conjunto dos cidadãos ou à parte preponderante a competência para legislar, Marsílio preocupa-se, no capítulo XIV da Prima Dictio, em demonstrar a quem cabe não só a autoridade para escolher o governante, mas também e, consequentemente, para instituir os demais grupos sociais ou ofícios da civitas, ou seja, em demonstrar quem é a causa eficiente do governo da mesma. Inicialmente, traça um perfil do futuro governante ideal. Este deve possuir duas qualidades intrínsecas e relacionadas: a prudência e a virtude moral. A prudência é necessária para guiar sua inteligência na ação de governar, tornando-o perfeitamente apto a exercer seu cargo que consiste em julgar acerca da utilidade das coisas e do cumprimento da justiça no interior da cidade. A outra qualidade, a virtude moral, ou seja, a bondade moral, a virtude e especialmente a justiça, é o meio pelo qual o sentimento do príncipe se mantém reto. Mas, além das sobreditas qualidades, o futuro governante deve possuir igualmente um devotamento especial ou amor para com a sociedade civil e os cidadãos, de maneira que a bondade e a solicitude de suas ações promovam o bem comum e o de cada indivíduo. É necessário ainda que o príncipe, a par destes hábitos ou disposições, disponha de um organismo extrínseco, isto é, dum certo número de soldados, por meios dos quais faça cumprir as suas sentenças civis, empregando assim a força coercitiva contra os rebeldes ou desobedientes. A caracterização que Marsílio faz do príncipe ideal, entretanto, não pode ser considerada como original. De fato, ela era tradicional nos meios políticos da Europa Ocidental durante o Período Tardo-Medieval como salienta Bernard Guenée. Segundo ele (1981, p.114 a 116), o bom príncipe se conhecia na medida em que fazia reinar a paz, e ele

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o fazia praticando a justiça. Para por em prática a paz e a justiça, o príncipe precisava ter três qualidades que se encontram também em Deus: potentia, sapientia e bonitas (a fortaleza, a sabedoria e a bondade). Através de sua fortaleza, de sua força ou de seu poder, potentia ou potestas, o rei impõe a todos a justiça. Mas como o cúmulo do Direito é também o cúmulo da injustiça, por sua bondade, sua caridade, sua clemência e sua misericórdia, o príncipe adapta a justiça às misérias e às fraquezas humanas. Mas a força e a bondade são, definitivamente, apenas auxiliares dessa virtude real por excelência que é a sabedoria. Mas para Marsílio, tais virtudes (a prudência, a virtude moral e, de modo particular, a justiça), apesar de necessárias a um príncipe ideal, são insuficientes se a este faltar a autoridade para exercer o poder. Tal autoridade para o Paduano somente pode derivar do conjunto dos cidadãos ou de sua parte preponderante. Com efeito, a estes compete não somente engendrar a forma, isto é, a lei por meio do qual todos os atos civis devem ser regulados, mas também é de sua alçada determinar o sujeito ou a matéria desta forma, quer dizer, escolher o príncipe, a quem cabe ordenar, segundo aquela forma, as ações civis dos seres humanos. A partir de tais considerações, duas outras questões cruciais são estudadas por Marsílio. Primeiro, analisa a causa suficiente que estabelece ou determina os demais grupos ou ofícios existentes na cidade e, depois, estabelece que a forma eletiva, por oposição a hereditária, é a desenvolvida por um governo que pode ser qualificado de perfeito. Com relação ao primeiro aspecto, a causa eficiente primária é o legislador. A secundária, ao contrário, executora ou instrumental, é o príncipe, graças à autoridade que ele recebeu do legislador, de acordo com a forma, isto é, a lei, mediante a qual, deve

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sempre, na medida do possível, regular e dirigir as ações civis. Assim, para Marsílio, ainda que caiba ao legislador, na condição de causa primária ou imediata indicar as pessoas que têm de exercer este ou aquele ofício na cidade, no entanto, é o governante que executa sua indicação e se for preciso, veta não só esta medida, mais ainda quaisquer outras disposições legais. O papel do governante é aqui justificado por Marsílio por intermédio de duas vias distintas mas complementares que, em última medida, legitimam também a forma representativa de governo. A primeira diz respeito a idéia da organização perfeita das diversas partes da civitas (já estudada no Capítulo 3). Para evitar uma ocupação inútil e, simultaneamente, a negligência de outras atividades indispensáveis, determina Marsílio que a atividade governamental deve pertencer a um só ou a um número reduzido (provavelmente tendo em mente tanto feudos e reinos, governados respectivamente por feudatários ou monarcas, quanto as comunas italianas, governadas por conselhos político-administrativos e jurídicos). A segunda, corresponde ao próprio sentido segundo o qual Marsílio compreendia a representatividade, ou seja, o príncipe, uma vez escolhido pela vontade da coletividade, guarda, em suas ações, a marca desta vontade. Em outras palavras, suas decisões, enquanto representante da comunidade dos cidadãos, corresponde às decisões da própria universitas civium. Vejamos nas palavras de Marsílio:

“(...) E, para tanto, é suficiente apenas um ou um reduzido número de governantes, ao passo que, se toda a comunidade se envolver com o ofício governamental, além de estar inutilmente ocupada, negligenciaria as demais tarefas

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indispensáveis à comunidade. Na verdade, quando os príncipes tomam determinadas medidas, toda a coletividade o faz também, porque eles as tomaram com a aquiescência e a determinação legal estabelecida pela comunidade. Assim, os governantes sendo em número pequeno ou mesmo apenas uma pessoa, pode-se executar mais facilmente as disposições legais”.93

Após estas considerações, Marsílio, no capítulo XVI da Prima Dictio, trata especificamente das formas hereditária e eletiva de governo. Tomando a defesa da segunda, reporta inicialmente a tese, já desenvolvida em capítulos anteriores do Defensor e por nós estudada acima, que afirma que a escolha pelo legislador humano normalmente conduz ao bem comum almejado pelos cidadãos, já que propicia um governante mais capaz, assinalado pela marca indelével que ele guarda da vontade consensual dos cidadãos. A fim de demonstrar que o mesmo não ocorre nas formas hereditárias, Marsílio recorre simplesmente ao método indutivo propondo, sem naturalmente realizar, uma análise da história individual de cada reino cujos governantes foram indicados desta forma. A opção pela forma eletiva por Marsílio não implica, entretanto, na impossibilidade da constituição de dinastias. Com efeito, a forma eletiva em oposição à hereditária permite ademais a opção de se manter uma mesma linhagem no poder ou se mudar de linhagem. No 93

DP,I,XV,4, p.154 e 155: “(...) quoniam in hoc sufficit unus aut pauci principantes, in quo frustra occuparetur universa communitas, que eciam ab aliis operibus necessariis turbaretur. Nam et hoc facientibus hiis, id facit communitas universa, quoniam secundum communitatis determinacionem, legalem scilicet, id faciunt principantes, Qui eciam pauci aut unicus existentes legalia facilius execuntur”. (DP,I,XV,4 , p. 87).

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caso de uma linhagem virtuosa e prudente, os cidadãos poderão designar, por meio de indicação, o sucessor ou herdeiro do antigo governante. Mas se tais qualidades não estiveram presentes, uma nova escolha, que recaia sobre alguém que preencha tais requisitos, será necessária. Vejamos no texto do Defensor Pacis :

“Assim, os cidadãos poderão vir a designar por meio de indicação o herdeiro e sucessor do antigo monarca, desde que seja virtuoso e prudente, mas, caso tenha se revelado carente de tais qualidades, uma nova escolha possibilitará que se dê atenção à alguém que preencha tais requisitos. A monarquia com direito à sucessão hereditária não oferece contrariamente essa oportunidade”. 94

Por fim, no sentido de corroborar a sua defesa da forma eletiva, Marsílio atesta que a perspectiva vista acima, ou seja, a possibilidade da escolha recair sobre o herdeiro e sucessor do príncipe, é um fator a mais no sentido de fazer com que ele seja mais diligente a proteger as pessoas e os bens da civitas. Tal ambição o faz também ser mais zeloso na educação de seus herdeiros. Faz igualmente com que estes, atentos à escolha futura, igualmente por seus méritos pessoais e pela obediência que devotam ao seu pai, sejam mais diligentes na aquisição das virtudes necessárias ao bom príncipe e no cumprimento de suas obrigações. Voltemos às palavras do Paduano:

94

DP,I,XVI,12, p.168: “(...) Eundem enim heredem et successorem monarche prioris potest civilis multitudo per eleccionem assumere, si fuerit studiosus et prudens; qui si non sic dispositus extiterit, studiosum et prudentem alium nova dabit eleccio, qualem tamen successio generis dare non potuit”(DP,I,XVI,12, p.100 e101).

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“Além disso, o monarca reinant e, tendo em vista a nova escolha do futuro rei, será muito mais diligente ao proteger as pessoas e os bens da sociedade civil, primeiramente devido à sua virtude, pois devemos supô-lo virtuoso pelo fato de ter sido escolhido como tal, em segundo lugar, pelo fato de temer que se façam representações contra ele, e em terceiro lugar, por ainda vir a ser merecedor de uma nova indicação na pessoa de seu filho. Ele igualmente zelará com enorme solicitude pela educação de seus herdeiros, e eles, atentos à nova escolha futura, também se empenharão firmemente não só em adquirir as sobreditas virtudes mas também em cumprir com suas obrigações. Logo, com toda probabilidade, tornar-se-ão idênticos a seu pai em virtude, e tanto por causa dos seus méritos pessoais como da obediência habitual que lhe devotam, serão conduzidos ao poder mediante uma nova indicação, nele permanecendo enquanto agirem assim”.95

Assim, resumidamente, o governante perfeito devia possuir determinadas qualidades, a saber: a prudência, a virtude moral e, principalmente, a justiça. Ele devia também ter um devotamento especial ou amor para com a sociedade civil e os cidadãos, de maneira que a bondade e a solicitude de suas ações promovam o bem comum e o de cada indivíduo.

95

DP, I, XVI,13, p. 168 e 169: “Rursum, propter futuri monarche novam eleccionem redditur presens amplius diligens ad communem personarum et rerum civilem custodiam: propter virtutem siquidem primum, quoniam ex eleccione hunc talem supponimus; deinde vero metu correpcionis per futurum monarcham; et rursum, ut mereatur ipse pro successoribus eleccionem futuram. Quos eciam propterea disciplinatos et studiosos effici magis curabit, ipsique hoc attendentes ad virtutes et ipsorum opera intendent ampliori conatu. Unde verisimile, parenti similes effectos, virtute ac propter illius meritum et eidem ex consuetudine obedienciam prestitam, per eleccionem novam, quamdiu tales successerint, ad principatum assumi” (DP, I, XVI,13, p.101).

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Sua própria autoridade e, simultaneamente, a garantia de que as supracitadas qualidades fossem por ele praticadas e legadas aos seus herdeiros, deveriam provir da vontade consensual do conjunto dos cidadãos ou de sua parte preponderante ou, em outras palavras, o monarca se encontrava legitimado pelo processo da eleição. Assim, para Marsílio o governo perfeito era a monarquia régia eletiva. Finalmente, desde que devidamente possuidor das sobreditas qualidades, o príncipe é visto por Marsílio como o sujeito ou a matéria das leis humana s. Isto é, ele deve governar em obediência às leis, sendo delas o juiz e a polícia. Nisto, ele encontra inclusive uma nova legitimidade, uma vez que as leis também devem resultar do consenso dos cidadãos ou da sua parte preponderante. Isto significa que, com respeito a quem deve estabelecer ou determinar os demais grupos ou ofícios existentes na cidade, regular e dirigir as ações civis, por em prática as disposições legais, isto é, efetivamente governar, Marsílio estabelece uma distinção central. Com efeito, com relação a todas estas funções que, efetivamente, correspondem ao próprio governo da civitas, a causa eficiente primária, ou seja, legislativa, deve pertencer aos cidadãos ou à sua parte preponderante, e a secundária, isto é, executora ou instrumental, ao príncipe. Em outras palavras, é somente por intermédio da autoridade que recebeu do legislador que o príncipe pode governar. Com tais teses, Marsílio, em nossa opinião, quer determinar uma regra geral, aplicável a qualquer civitas e seu governante, mas simultaneamente aludir ao caso específico da Cristandade e do imperador. Com elas, dois aspectos fundamentais do conceito imperial marsiliano encontram-se já determinados.

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O sacro imperador, uma vez escolhido pelos príncipes eleitores, a verdadeira representação eleitoral dos cidadãos da Cristandade (a valentior pars da Cristhianitas nesta função), assume legitimamente a totalidade de seus poderes enquanto príncipe e imperador. O que, efetivamente, eqüivale a dizer que a aceitação papal não acrescenta nada de essencial à dignidade imperial. Com efeito, este era, como estudamos, um dos pontos fundamentais defendidos pelos Hohenstaufen. Mas, com relação à questão da lex, algumas diferenças entre Marsílio e os Hohenstaufen podem ser apontadas. De fato, para Marsílio a lex era inteiramente natural, representando tão-somente a vontade consensual dos cidadãos. O sacro imperador não é o responsável, no conjunto da Christianitas, pela confecção das leis. Tal responsabilidade cabe a conselhos legislativos formados por homens sábios e experientes, representativos do conjunto total dos cidadãos da Cristandade nesta função. O sacro imperador, efetivamente, enquanto lex animata in terris, governa os cristãos do Ocidente por meio das leis, devendo zelar para que elas sejam cumpridas e devendo punir os transgressores, sendo portanto seu juiz e polícia Já a idéia que tinham os sacro imperadores a respeito da lei humana era que esta era elaborada sob a direta inspiração divina e que, portanto, somente Deus era a fonte do direito. O imperador, enquanto lex animata in terris, quer dizer, a própria encarnação da Lei Divina, era dotado, além das funções de juiz e de polícia, de uma capacidade legislativa suprema. Tal poder encontra-se embasado fundamentalmente no direito romano, muito especialmente no Código de Justiniano . De acordo com Jean Schillinger (2002, p.55), o direito romano, ainda que não tivesse sido jamais esquecido, conheceu um renascimento espetacular no século XII, notadamente

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graças aos juristas da universidade de Bolonha. O direito romano, cujas fontes essenciais eram as grandes compilações realizadas sob a ordem do imperador Justiniano, exaltavam a idéia imperial e o poder do imperador, e os juristas bolonheses, naturalmente, se aliaram às perspectivas dos imperadores de sua época, que reclamavam a herança dos Césares. Foi sob o reinado de Frederico Barbaruiva (1152-1190) que o papel novo do imperador, fundamentado no direito romano, apareceu com mais clareza. O direito romano, prossegue Schillinger (ibid., p.55), apresentava o Império sob os traços que ele tinha no fim da Antigüidade: um Império único e universal. Disto resultam duas questões fundamentais. De um lado, a universalidade do Império devia corresponder à universalidade do seu direito, ao qual estava teoricamente submetido o conjunto dos povos. De outra, a revalorização no século XII deste direito imperial permitia colocar em evidência a perpetuação do Império desde a época dos Césares. Frederico Barbaruiva afirmou claramente esta continuidade: ele orde nou aos juristas bolonheses de inscrever suas leis no corpus iuris, em seguida a dos seus “divinos predecessores”, entre os quais figuravam Constantino, Teodósio e Justiniano. O direito romano, conclui Schillinger (id., p.55), permitia de determinar as prerrogativas do imperador. Seu poder devia ser exercido de maneira absoluta, de acordo com a lex regia que enunciava a afirmação famosa que “o que agrada ao Príncipe tem poder de lei”. O imperador aparecia em seu papel de legislador supremo, possuindo a competência de interpretar ou de modificar as leis editadas por seus predecessores. Havia, entretanto, grande distinção entre o discurso universalista do Sacro Império e sua prática política, de fato bem mais modesta. O próprio Jean Schillinger (id., p.55) salienta que, a respeito da questão da preeminência dos imperadores sobre os reis da

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Cristandade, muito a despeito da afirmação do sacro imperador enquanto “mestre do mundo”, grandemente veiculada, não houve nenhuma tentativa séria por parte dos Hohenstaufen de contestar a autonomia dos reinos europeus; ao contrário, eles se preocuparam sobretudo em atrair os poderes soberanos do Ocidente para a sua causa. Outra questão fundamental defendida pelos Hohenstaufen era a direta derivação divina do poder imperial. A argumentação marsiliana parece também negar esta tese ao atribuir à vontade consensual do conjunto total dos cidadãos da Christianitas a escolha do imperador. Mas Marsílio, absolutamente, não rompe com a perspectiva, paulina e agostiniana, de que não exis te nenhum poder além do de Deus. Atesta mesmo que todo o governante e, inclusive, o imperador recebeu seu poder diretamente do Alto. Assim, como abordamos no Capítulo 3, o poder imperial encontra-se na realidade duplamente fundamentado: no consenso dos cidadãos da Christianitas e na vontade divina. E, no final das contas, não há de fato contradição entre a perspectiva da direta derivação de Deus do poder principesco (e, inclusive, do poder imperial) e o fato da escolha do príncipe dever ser efetuada através da vontade consensual dos seus súditos (no caso do imperador, de todos os cidadãos da Cristandade). Na realidade, os dois princípios são complementares e o são, numa perspectiva compartilhada por quase todos os teóricos do período Tardo-Medieval, no sentido, apontado por Bernard Guenée (op. cit., p.128), em que a origem do poder principesco é divina porque é Deus quem inspira os súditos e, assim, estes são o instrumento de Deus quando escolhe um príncipe (vox populi, vox Dei). Parece, com efeito, ser este o ponto de vista marsiliano. E aliás esta era a visão dos Hohenstaufen . Na realidade, segundo P. G. Stein (1993, p.46), mesmo as passagens da compilação de Justiniano que tratam diretamente da

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localização do poder, não exprimiam uma idéia clara a este respeito: certos textos atribuíam um poder ilimitado ao imperador, outros sugeriam que o poder residia, em definitivo, no povo. Mas a codificação se apresentava como um todo único, no interior do qual se encontravam, dispersos entre os diversos títulos consa grados ao direito privado, numerosas expressões que, tomadas fora do contexto, podiam ser utilizadas em discussões sobre questões políticas. E, na realidade, o corpus iuris de Justiniano era um imenso código muito variado, onde se podia extrair princípios e máximas de toda sorte. Os Hohenstaufen, estando à cabeça de uma monarquia eletiva, ou seja, não legitimada pelo sangue (como, por exemplo, era a monarquia hereditária francesa), trataram então de resguardar a legitimidade do seu poder baseando-o numa determinada concessão popular. Observamos assim, no Capítulo 1, que dizer, segundo a percepção Hohenstaufen, que o poder imperial provém diretamente de Deus, não significa dizer que não haja nisto a mediação dos romanos mas, antes, que o poder imperial não é uma concessão dos papas. Com efeito, como também estudamos no Capítulo 1, um dos principais pontos da proposta hierocrática era defender a tese de que o poder imperial era um poder derivado, isto é, que os papas receberam tal poder de Deus e o entregaram ao imperador somente por ser a eles ilícito se imiscuir em questões de sangue. Entre os Hohenstaufen, a origem do poder imperial é diretamente divina porque, tal como na visão geral apontada acima por Bernard Guenée, é o próprio Deus quem escolhe o imperador, utilizando-se para tanto dos romanos como seu instrumento. Tal escolha, no entanto, não se faz diretamente, mas através do colégio dos príncipes eleitores (o legítimo representante dos romanos), sendo este, desta forma, o verdadeiro intérprete da vontade divina.

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Com efeito, como afirma Guenée (op. cit., p. 128 e 129), no conjunto dos teóricos dos séculos XII, XIII e dos do período Tardo-Medieval, enquanto a visão dos teólogos não deixava margens de dúvida, a dos juristas permitia duas interpretações diferentes. Segundo os teólogos, pura e simplesmente Deus confiou a autoridade e o poder aos súditos para que eles as transmitissem a um príncipe. De acordo com os juristas, a transferência da autoridade e do poder dos governados aos governantes foi historicamente realizada na célebre Lex Regia (Digesto,I,I,4 e Institutas,I,2,6). Entretanto, o texto da lei não deixa explicitado se esta translatio Imperii foi definitiva ou provisória.96 Com efeito, abria-se então duas possibilidades. Se foi definitiva, a autoridade e o poder se transmitiam de príncipe a príncipe, de dinastia a dinastia; a supremacia dos governados, teoricamente reconhecida, ficava sem efeitos práticos. Mas se foi apenas provisória, a verdadeira supremacia pertencia aos governados, aos quais incumbia a iniciativa de escolher um novo príncipe a cada vacância do trono ou incapacidade do monarca. Marsílio aceita logicamente a segunda destas duas perspectivas. Para ele, efetivamente, a autoridade e o poder do governante ou príncipe foi transmitido, em caráter definitivo, por Deus aos cristãos e estes, por sua vez, efetuam uma secunda translatio a cada novo príncipe que sobe ao trono. O Hohenstaufen, evidentemente, também partilham, simplesmente por ser o Sacro Império uma monarquia eletiva, desta convicção. A distinção que pode então ser estabelecida entre Marsílio e os Hohenstaufen é que, como comentamos acima, para Marsílio, qualquer príncipe (e inclusive o imperador) 96

O texto da Lex Regia , encontrado no Digesto,I,I,4, e nas Institutas,I,2,6, é o seguinte: “Quod principi placuit legis habet vigorem: uspote cum lege regia, quae de imperio ejus lata est, populus ei es in e um omne suum imperium et potestatem conferant. Apud GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV. Os Estados. São Paulo: EdUSP, 1981, p.128.

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governa segundo a lei, sendo esta um princípio puramente natural que, redigido pela valentior pars, representa assim o consenso dos cidadãos da civitas; para os Hohenstaufen, no entanto, a lei (evidente que aquela que, tendo um caráter geral, importa para todo o Império), feita sob inspiração divina, é, como também vimos acima, função do imperador. É ele que, através da redação das leis, representa a vontade inspirada dos romanos. Tal questão liga-se imediatamente a uma outra: a da limitação do poder dos príncipes Ainda que entre os Hohenstaufen o poder do príncipe (e mesmo o do imperador) não seja de fato ilimitado; em Marsílio tal limitação encontra uma expressão muito mais clara. Nele, efetivamente, o poder do governante deve estar de certa forma limitado tanto pela obediência às leis quanto pela própria comunidade da civitas, ou seja, por governar segundo às leis e pela responsabilidade que o príncipe tem para com aqueles que o escolheram e a ele delegaram seus poderes. Tal perspectiva, válida para uma cidade, feudo ou reino, igualmente o é para o Sacro Império. O poder imperial é também de alguma maneira restringido, tanto pela obediência à Lei Divina e a uma lei geral do Império (lex), ou seja, tanto pela justiça, quanto pelo fato do imperador reinar, não em proveito próprio, com o intuito apenas de satisfazer sua majestade e interesses pessoais, mas em favor da paz e do bem comum de seus súditos, isto é, da Cristandade (Christianitas). Com efeito, segundo Marsílio, três eram os objetivos que todo e qualquer príncipe (e, inclusive, o imperador) não poderia deixar de satisfazer para que ele e seu reino pudessem ser considerados perfeitos: justiça, paz e bem comum. A razão fundamental que levou Marsílio a limitar o poder do príncipe foi o medo de que um governante, desrespeitando as leis, viesse a se tornar injusto e cruel para com seus

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súditos. Para o Paduano, se isto viesse a ocorrer, o príncipe deveria ser julgado e punido, de acordo com a lei, por intermédio do legislador humano, ou seja, o corpo de cidadãos. O legislador humano devia também, como medida preventiva, durante o período de julgamento, afastar o príncipe de seu cargo. Vejamos o que diz o texto do Defensor Pacis :

“Mas considerando-se que o príncipe é um ser humano, dotado de inteligência e vontade, e como tal poderá receber outras formas, por exemplo, uma opinião falsa ou sentir um desejo mau ou até ambos, por meio dos quais possa vir a atuar em desacordo com o que determina a lei, torna -se, por conseguinte, passível de vir a ser igualmente julgado e controlado de acordo com a mesma., por aquela pessoa que dispõe de autoridade para fazer isso. Caso contrário, todo governo se transformaria num despotismo, os cidadãos seriam reduzidos à condição de escravos e não obteriam a vida suficiente. Tudo isso deve ser evitado a qualquer preço, conforme o dissemos nos capítulos V e XV desta Parte. Portanto, cabe ao legislador ou àquelas pessoas indicadas por ele, segundo comprovamos nos capítulos XII e XV desta Parte, o mister de julgar o príncipe delinqüente, face aos seus deméritos ou à violação da lei, e ordenar a execução de qualquer medida punitiva contra ele. É oportuno ainda que a pessoa ou as pessoas incumbidas de julgar o delito cometido pelo príncipe, durante o tempo que for necessário, o afastem de seu cargo, a fim de que, na hipótese de haver muitos governantes, não sobrevenha consecutivamente uma revolta, um cisma e uma guerra intestina causadora de grandes males à comunidade. Ademais, o príncipe não está sendo corrigido

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enquanto tal, mas na condição de transgressor da lei.”97

A perspectiva de punição do tirano era também compartilhada por praticamente todos na Europa Ocidental dos séculos XIV e XV. Bernard Guenée (ibid., p. 131 e 132) salienta que autores muito diferentes como Guilherme de Ockham, João Buridan, João Gerson, Zabarella. Jacques Almain e, inclusive, Marsílio de Pádua, admitiam e recomendavam, após Santo Tomás de Aquino (século XIII), a deposição do príncipe incapaz ou tirânico. Todos igualmente admitiam que a deposição do mau príncipe só podia ser realizada por aquele que outrora lhe delegou seus poderes, ou seja, pelos seus súditos. Mas, sublinha Guenée (id., p.132), ainda que a teoria admitisse a deposição do tirano, salvo exceção, o estado das instituições não permitia que ela se tornasse um episódio regular da vida política. Mesmo que os súditos tivessem o propósito determinado de depor o seu príncipe, salvo exceções, não dispunham dos meios legais para isto. Com efeito, a monarquia medieval era limitada por princípios, mas não era controlada por instituições. Jean Dunbabin (1985, p.468) salienta que, de fato, a denúncia de um comportamento tirânico era algo bastante diferente da condenação de um príncipe como

97

DP,I,XVIII,3,p.191: “Verum quia principans homo existens habet intellectum et appetitum, potentes recipere formas alias, ut falsam extimacionem aut perversum desiderium vel utrumque, secundum quas contingit ipsum agere contraria eorum, que lege determinata sunt, propterea secundum has acciones redditur principans mensurabilis ab alio habente auctoritatem mensurandi seu regulandi ipsum secundum legem aut eius acciones legem transgressas; alioquin despoticus fieret quilibet principatus, et civium vita servilis et insufficiens: quod est inconveniens fugiendum, ut ex determinatis a nobis apparuit 5° et 11° huius. Debet autem iudicium, preceptum et execucio cuiuscumque correpcionis principantis iuxta demeritum seu transgressionem fieri per legislatorem, vel per aliquem aut aliquos legislatoris auctoritate statutos ad hoc, ut demonstratum est 12° et 15° huius. Convenit eciam pro tempore aliquo, corrigendi principantis officium suspendere ad illum maxime aut illos, qui de ipsius transgressione debuerint iudicare, ne propter tunc pluralitatem principatus contingeret in communitate scisma, concitacio et pugna, et quoniam non corrigitur in quantum principans, sed tamquam subditus transgressor legis” (DP,I,XVIII,3, p.122 e 123).

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tirano e, ainda mais, da proposição de uma sanção contra ele. O próprio Dunbabin (ibid., p.469) acrescenta que na realidade a principal maneira usada no Período Tardo-Medieval no sentido de abordar a questão da incapacidade do príncipe foi a defesa da monarquia eletiva. Com efeito, todos os que trataram a questão de um ponto de vista filosófico salientaram que o princípio eletivo era o que podia mais facilmente permitir a subida ao poder de um homem com as qualidades exigidas para a função. Vimos que Marsílio, ainda que não abra mão do direito que tem o legislador de depor um príncipe despótico, também se havia filiado ao princípio eletivo. Vimos igualmente que ele o justificava também, talvez principalmente, por ser a forma mais eficaz que tinham os cidadãos de exercer seu controle sobre o príncipe. Assim é possível supor que Marsílio, ainda que não abrisse mão de suas convicções, procurou, diríamos, adaptar-se à realidade. Atestando que, na prática, os príncipes, mesmo que visivelmente despóticos, não eram censurados ou depostos, Marsílio procurou antes assegurar, pelos mecanismos reguladores do princípio eletivo, a escolha de bons príncipes, justos e digno s. Falta, no entanto, abordar o terceiro pilar utilizado por Marsílio (e pelos Hohenstaufen) para a legitimação do poder imperial: a idéia da translatio Imperii. Tal perspectiva, ainda que apontada no Defensor Pacis, encontra seu desenvolvimento em outra obra marsiliana: o Tractatus de Translatione Imperii. De fato, a opção por abordar mais detalhadamente esta questão em uma obra específica foi claramente exposta por Marsílio quase no final do Defensor Pacis. Reparem em suas palavras:

283

“(...) Quanto ao que está escrito no capítulo VII de certos textos designados por decretais, intitulado Sobre o juramento, e numa carta de alguém que se diz papa, dirigida ao ínclito Luís, duque da Baviera, eleito Rei dos Romanos, que o Império Romano foi transferido dos gregos para os germânicos na pessoa de Carlos Magno, pela Sé Apostólica ou pelo Papa Romano, sozinho, ou com seu colégio de presbíteros, de modo razoável ou de conformidade com a Justiça, deixemos essa hipótese de lado por agora, pois num outro tratado iremos discutir a respeito dessa transferência, e como de fato ela aconteceu”. 98

Foi,

com

efeito,

somente

no

Tractatus

de

Translatione

Imperii

que,

paradigmaticamente preocupado com as origens e utilizando-se de um discurso que privilegiava a continuidade, o Paduano legitimou o Sacro Império enquanto o descendente direto de Roma pela mediação do Império Carolíngio. Colette Jeudy e Jeaninne Quillet, as tradutoras para a língua francesa do De Translatione Imperii marsiliano, salientam mesmo que o tema do opúsculo é a autonomia e a independência do Império. Para elas (1979, p.24), Marsílio tenta em seu opúsculo se desembaraçar de toda e qualquer refutação a esta convicção inserindo a translatio em um contexto novo, chamado pelas autoras de historiográfico e histórico. Era preciso assegurar a

98

DP,II,XXX,7,p.684: “Quod autem scribitur in 7° quarundam narracionum, quas decretales appellant, De Iureiurando et in epistola quadam (vocati) pape Romani ad inclitum Ludovicum ex Bavarie ducibus Romanorum regem assumptum, per sedem apostolicam sive Romanum papam, vel solum aut cum suorum collegio clericorum, Romanum imperium a Grecis ad Germanos in persona Magni Karoli fuisse translatum (racionabiliter sive iuste), supponatur ad presens; de hac enim translacione, quantum de facto processerit, dicturi sumus in altero quodam ab hoc tractatu seorsum” (DP,II,XXX,7, p.599 e 600).

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continuidade entre a Roma pagã e a Roma cristã para justificar a legitimidade do Império Romano de Luís da Baviera; era preciso também libertá- lo da tutela pontifícia. No dossier da defesa e da exaltação do Império, de sua imed iata origem divina, de sua universalidade e de sua independência, o De Translatione Imperii constitui, na visão de Jeudy e Quillet (ibid., p.24), uma peça mestre, e seu propósito é simultaneamente teórico, em sua interpretação da história, e político, porque defende, de uma vez por todas, a ideologia imperial. José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza, em seu importante artigo intitulado Scientia Historica e Philosophia Politica no Tratado sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua (1998, p.653), acrescenta que a obra, enquanto opúsculo político ou de Filosofia Política, visava não só assegurar a legitimidade histórica do Sacro Império Romano-Germânico, mas também a sua autonomia política face às pretensões hierocráticas do Papado e, ainda, o direito dos príncipes eleitores de elegerem o rei da Germânia e o imperador, sem que houvesse necessidade da confirmação do papa. Esta “Obra Menor” marsiliana, segundo Felice Battaglia (1995, p.196 e 197), não é de fato um trabalho original, mas uma redefinição em sentido laico e imperial de uma obra do mesmo título de Landolfo Colonna realizada em sentido pontifício. Redefinição quase literal, na qual bem poucas frases são mudadas e a estrutura original permanece a mesma. Battaglia salienta (ibid., p.197) que o pequeno tratado não é nada além de uma breve história do Império desde a fundação de Roma até a época do autor. Segundo José Antônio de C. R. de Souza (op. cit., p.649), Marsílio, com efeito, ao escrever o Tratado não foi nem um pouco original e seguiu quase ad litteram o texto de Landolfo. Mas salienta que o Paduano serviu-se igualmente de outras fontes, todas textos

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“históricos” redigidos por clérigos como Martinho Polonês (século XIII), Aimon de Fleury, Ricardo de Cluny e Sicardo de Cremona (séculos XIII e XIV). Ressalta (ibid., p.649) que Marsílio também se baseou, em muitas passagens, quase ipsis litteris, em um opúsculo, escrito por volta de 1300, intitulado Tractatus de Origine ac Translatione et Status Romani Imperii, atribuído ao famoso discípulo de Santo Tomás, Ptolomeu de Lucca (1236-1326/7). Porém, segundo o próprio José Antônio de Camargo R. de Souza (id., p. 648), a grande motivação da obra foi de fato sua intenção, aliás expressa textualmente pelo próprio Marsílio, de refutar a tese de Landolfo Colona, em seu opúsculo Tractatus de Translatione Imperii a Grecis ad Latinos (possivelmente escrita entre 1317-1324), cujo principal objetivo consistiu em demonstrar que a translatio Imperii foi efetuada pela autoridade pontifícia e que por conseguinte o poder imperial encontra-se submetido na dependência desta autoridade. Colette Jeudy e Jeaninne Quillet (op. cit., p.344) acrescentam que, a par do seu objetivo principal (o supracitado), Marsílio tinha em mente confrontar os dados históricos segundo a norma da razão e do direito, segundo o método de crítica histórica já exposto no Defensor Pacis, mas só então empregado de uma maneira mais sistemática. José Antônio de Camargo R. de Souza não concorda, absolutamente, com esta última observação das tradutoras do opúsculo. Segundo ele (op. cit., p. 650 e 651), tais confrontações estão simplesmente ausentes no texto. Falta mesmo, afirma, uma crítica textual da parte de Marsílio, ao menos no que concerne aos fatos históricos importantes para os temas que ele pretendia descaracterizar nas obras de seus adversários. Ele simplesmente os aceitou como verdadeiros, parecendo mesmo acreditar que se baseavam em fontes fidedignas. Tal fato, aponta o autor (ibid, p.651), acabou por fazer Marsílio

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incorrer em graves erros no que se refere à cronologia histórica e por apresentar algumas vezes dados contraditórios. A obra, composta de doze capítulos, divide-se em duas partes. Nos seis primeiros capítulos, Marsílio inicialmente descreve e analisa os fatores que contribuíram para que os romanos tivessem construído um glorioso Império, tendo apresentado, para isto, razões como a valentia, a disciplina, a organização, o treinamento militar, as alianças militares com povos vizinhos, o respeito às leis e à justiça, entre outros. Em seguida, apresenta os motivos, religiosos e políticos, que conduziram o referido Império, já sediado em Constantinopla, à ruína. Entre estes, merecem destaque a adesão dos gregos às heresias, a forma tirânica de governo de muitos imperadores, a imperícia militar frente à expansão islâmica, as rixas entre gregos e latinos, a ambição de domínio por parte do Papado. Nos seis capítulos restantes, que de fato nos interessam mais de perto, Marsílio dedica-se a, por um lado, relativizar o papel do Papado na coroação imperial e, por outro, a ressaltar que carolíngios e saxônios chegaram à dignidade imperial por seus méritos pessoais, com especial destaque ao seu devotamento pela ortodoxia e pelos dirigentes da Igreja Romana, protegendo-os, guardando o seu patrimônio, sempre que eram solicitados, e ampliando-o, por causa de sua magnanimidade. Foi com efeito, pensa Marsílio, como por uma espécie de recompensa por estes favores que alguns bispos romanos concederam, primeiramente a Carlos Magno e depois a Oton I, o direito de escolher os dignitários eclesiásticos para todos os bispados e arcebispados, inclusive, para o romano. Vejamos como, segundo o texto do De Translatione Imperii, as concessões realizadas, por exemplo, pelo papa Adriano I a Carlos Magno, são vistas por Marsílio como recompensas pela doação dos ducados de Espoleto e Benevento.

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Notar igualmente com que radicalidade o referido papa tratava a questão, a ponto mesmo de lançar anátemas e confiscar os bens de todos os eclesiásticos que não respeitassem a designação do Patrício Carlos:

“Então o mencionado pontífice Adriano seduzido por aqueles benefícios temporais ofertados pelo referido príncipe, reuniu um Concílio em Roma, em que compareceram 153 bispos e abades, e durante o mesmo, juntamente com eles, conferiu ao glorioso príncipe Carlos o direito e o poder de eleger o sumo pontífice e de colocar em ordem a Sé Apostólica; concedeu-lhe também a dignidade de Patrício, cujo título, outrora, quase eqüivalia a ser considerado como pai do príncipe. Além disso, ele decretou que os bispos e os arcebispos de cada província eclesiástica deviam receber a investidura de Carlos, e a fim de ninguém viesse a consagrar um bispo, caso não tivesse sido investido e nomeado pelo rei, amaldiçoou com o anátema todos aqueles que procedessem contra aquelas determinações, e a menos que voltassem atrás, ordenou, ainda, que todos os bens dos recalcitrantes fossem confiscados”. 99

99

DTI,VIII, p.713: “Tunc dictus pontifex Adrianus beneficiis temporalibus dicti principis allectus episcoporum et abbatum Romae concilium congregavit; ibique cum universa synodo, glorioso principi Karolo iuset potestatem tribuit eligendi Romanum pontificem et sedem apostolicam ordinandi, dignitatem quoque patritiatus eidem concessit, qui olim quasi pater principis videbatur. Insuper episcopos et archiepiscopos, per singulas provincias, ab eo investituram accipere diffinivit. Et ut nisi a rege laudaretur et investiretur episcopus, a nemine consacretur omnesque contra praedicta facientes anathemate maledixit et nisi resipiscerent, bona eorum publicari mandavit. Quorum nullam concedendi aut faciendi auctoritatem habuit pontifex supradictus, aut alter episcopus vel clericus, nisi demum fortasse de ordinatione Romani populi atque mandato” (DTI,VIII, p. 410 e 412). Obs.:. Todas as citações do De Translatione Imperii apresentadas nesta Tese foram retiradas da tradução em língua portuguesa de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza: MARSÍLIO DE PÁDUA. De Translatione Imperii. Tradução de José Antônio Camargo Rodrigues de Souza. Apêndice I do Artigo: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia

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Parece-nos que tal passagem demonstra claramente a entrega a Carlos, tornado Patrício, do direito, não só de intervenção, mas de pleno controle sobre toda a Igreja Romana. Tal perspectiva pode ser evidenciada simplesmente pela vastidão dos direitos concedidos por Adriano a Carlos, a saber: o direito de eleger o Sumo Pontífice, de colocar em ordem a Sé Apostólica, de conceder a investidura a todos os bispos e arcebispo de cada província eclesiástica. Tal passagem, ainda que esta tese não tenha sido então desenvolvida pelo Paduano (ele só o fez explicitamente na Secunda Dictio do Defensor Pacis), já denota sua perspectiva de total subordinação da toda a hierarquia eclesiástica ao poder imperial e, muito especialmente aos soberanos germânicos do Sacro Império. Com efeito, se assim o foi na época de Carlos Magno, também devia sê-lo na de Luís da Baviera, uma vez que, mediante a perspectiva geral do tratado, o segundo era legitimamente o sucessor do primeiro. Sem dúvida que, entretanto, a prova cabal de reconhecimento pontifício aos favores de Carlos Magno e Oton I encontra-se na sua coroação imperial pelas mãos dos papas Leão III e João XII. Mas este gesto para Marsílio era puramente simbólico, desprovido de qualquer caráter institutivo. Sem dúvida que o Paduano procura ressaltar sempre, ao lado da coroação em si, a aclamatio e a adoratio dos romanos. Mas para ele a própria coroação imperial, ainda que fosse realizada por um gesto papal, era na realidade uma concessão divina: era Deus quem coroava o imperador pelas mãos do papa. Politica no Tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas. Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, setembro 1998, p.643 -655. Os respectivos textos latinos foram retirados da edição crítica bilingüe de Colette Jeudy e Jeaninne Quillet, a mesma utilizada por José Antônio de C. R. de Souza: MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Texte Établi, Traduit et Annoté par Colette Jeudy et Jeaninne Quillet. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979, p. 371-433.

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A passagem do De Translatione Imperii que narra a coroação de Carlos Magno deixa bastante claro todas estas considerações. Ademais, pelo trecho em que Marsílio declara que o papa Leão havia “preestabelecido cerimonialmente todas as coisas necessárias a tamanha solenidade”, fica aludido o conhecimento por parte de todos (e logicamente também por Carlos) de cada passo da referida solenidade e, inclusive, do próprio ato de coroação. Marsílio, em nossa opinião, dá então a entender que toda a cerimônia e, fundamentalmente a coroação papal, fora realizada sob autorização do carolíngio. Vejamos nas palavras do Paduano:

“Neste mesmo dia sacratíssimo do nascimento de Cristo, durante a missa celebrada no altar consagrado ao Bem-aventurado Pedro, quando o gloriosíssimo rei Carlos erguia-se, após ter orado com devoção, o papa, Leão tendo preestabelecido cerimonialmente todas essas coisas necessárias a tamanha solenidade, colocou a coroa imperial sobre a sua cabeça e ele foi aclamado por todo o povo romano: a Carlos Augusto, magno e pacífico imperador, coroado por Deus, que lhe sejam asseguradas do céu vida e vitória. Todas as histórias narram esta coroação imperial efetuada pelo papa Leão e a aclamação, com os louvores imperiais, feita pelo povo. Mas, em seguida às mesmas, conforme o antigo ritual de entronização dos príncipes, Carlos foi adorado por todos, e tendo renunciado ao título de Patrício, foi aclamado Imperador Augusto pelos presentes”. 100

100

DTI,IX,p:715 e 716:

290

Tal passagem demonstra bem o princípio, já por nós estudado neste Capítulo, defendido por Marsílio e pelos Hohenstaufen, da derivação direta de Deus do poder imperial. Este fica claramente expresso no fato de ser Deus quem, pelas mãos dos papas, coroava o imperador. Efetivamente, para Marsílio, o rex francorum et longobardorum (rei dos francos e lombardos), possuidor portanto da coroa dos francos e da coroa de ferro dos lombardos, foi então, sob seu conhecimento e consentimento, por intermédio da vontade divina expressa pelo gesto papal e simbolicamente representada pela adição de uma terceira coroa (a imperial), tornado rex romanorum (rei dos romanos). Ou, em outras palavras, tal cerimônia marcou a “transferência do Império dos gregos (quer dizer, dos romanos) aos francos”. Com efeito, reportando ao que estudamos no Capítulo 1, tal como nos meios carolíngios à época da coroação de Carlos, e habitualmente com os Hohenstaufen, Marsílio defendia a perspectiva de restauratio et translatio Imperii. Vejamos nas suas palavras:

“O predito Carlos governou o Império Romano durante quatorze anos (...) em “Ipsa siquidem celeberrima Nativitatis Christi die, cum rex Karolus gloriosissimus in missa ante confessionem beati Petri surgebat ab oratione devote, Leo papa sollemniter praeordinatis quibuslibet ad tantam sollemnitatem necessariis, coronam imperialem capiti eius imposuit, et a cuncto Romano populo acclamatum est : Karolo Augusto, a Deo coronato, magno et pacifico imperatori, vita et victoria de caelo subministretur. Hanc siquidem coronationem per Leonem papam et imperialium laudum acclamationem per populum, omens historiae ponunt. Post praedicta vero, more antiquorum principum, fuit ab omnibus universaliter adoratus et ablato Patricii nomine, Imperator Augustus est ab omnibus appellatus”(DTI,IX,p.420). Obs: Sabemos perfeitamente que a palavra populus na Idade Média representava antes a aristocracia e não exatamente o conjunto dos súditos do governante, ou seja, o que hoje em dia chamaríamos de povo. Mas em se tratando de um texto marsiliano, por tudo o que já estudamos, o sentido da palavra populus só pode corresponder ao conjunto dos cidadãos. Os únicos que, pelo ato de aclamação e pela adoração, podiam legitimar a coroação imperial de Carlos Magno. Assim concordamos com a tradução em língua portuguesa de “povo romano”, de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza.

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seguida à coroação imperial, desde aquele ano, todos os anais, todas as gestas e histórias que fazem menção a seu respeito, sem que haja qualquer discordância entre os relatos, o chamam de Imperador Augusto. (...) A mencionada transferência do Império dos gregos [quer dizer, dos romanos] para os francos durou sete gerações, quer dizer, prolongou-se durante o reinado de sete imperadores, permanecendo mais de cento e três anos com eles”.101

Com relação a Oton I, Marsílio procura demonstrar as semelhanças e as diferenças entre o fato histórico que corresponde à sua coroação e o que correspondeu à de Carlos Magno. Caracteriza igualmente de forma enfática que tal coroação representou a secunda translatio Imperii, agora dos francos ou gauleses para os germânicos. Observemos nas suas palavras:

“Então, Leão VIII foi estabelecido pastor da Igreja de Roma, o qual, seduzido pelos benefícios concedidos à mesma pelo predito Oton, tanto porque ele a livrara de Berengário que a perseguia, realizou um sínodo, tendo reunido o clero e o povo romano, os quais, o constituíram imperador, sem que antes tivesse havido uma

101

DTI,IX,p.716: “Rexit autem praedictus Karolus Romanum Imperium 14 annis (...), post dictam imperialem coronam, ipsum Imperatorem Augustum, omens anales, omnia gesta omnesque historiae, facientes mentionem de ipso, sine aliqua varietate describunt. (...) Duravit autem imperii praescripta translatio facta Graecis in Francos, per septem generationes, videlicet per septem imperatores, annis centum et tribus et amplius apud Francos”(DTI,IX, p.422). (O grifo é meu).

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eleição, a qual [para tanto] foi instituída, quarenta anos mais tarde. Assim foi feita a translação do Império dos francos ou gauleses para os germânicos. Otão I, mediante esse procedimento, obteve pacificamente o Império. Também o possuíram sucessivamente, sem que tivesse havido nenhuma oposição, seu filho [Otão II] e seu neto [Otão III]”.102

Em nossa opinião, a principal semelhança entre os dois fatos históricos salientada por Marsílio é o fato de ter havido, em ambos os momentos, um ato de aclamação por parte do “povo romano”. Tal aspecto está em perfeito consonância com sua perspectiva, demonstrada na Prima Dictio do Defensor Pacis, conforme vimos acima, que é por intermédio do consenso dos cidadãos que se deve proceder à eleição do governante. Uma vez que, no caso das coroações de Carlos e Oton, quem os aclamava eram os cidadãos de Roma, tal ato significava a própria eleição do rei da Urbs. Como pelo mito romano (elemento importante do imaginário imperial desde os carolíngios), quem controla a Urbs domina todo o Orbis, a aclamação representa, efetivamente, a instituição em sentido lato do rei dos romanos, ou seja, do imperador. Um fato novo ocorreu, após a morte de Oton III sem o mesmo ter deixado filhos, com a instituição em 1004 de um colégio eleitoral dos príncipes germânicos (segundo Marsílio,

102

DTI,X, p.717: “Et factus est tunc Ecclesiae Romanae pastor octavus Leo qui allectus beneficio Ecclesiae Romanae per praedictum Ottonem collato, tum de Berengario, qui vexabat eamdem, tum de reformatione dicta Ecclesiae, ut praemittitur, facta per ipsum, easdem dignitates Ottoni concessit, quas Karolo contulerat Adrianus; factaque synodo et clero ac populo congregatis, insuper ipsum imperatorem constituerunt, nulla electione praecedente, quae post annos 40 fuit instituta sicque facta fuit Imperii translatio de Francis seu Gallicis in Germanos. Habuit siquidem hic Otto primus ex ordinatione praemissa pacifice Imperium. Habuerunt etiam Imperium successive, sine contra dictione, filius atque nepos” (DTI,X,p.426).

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baseado nas gestas dos germânicos), o que, como salienta o Paduano, marca a passagem, na determinação do imperador, de um direito hereditário para um eletivo. Ou seja, deste momento em diante, segundo a percepção marsiliana, seria a virtude e não mais a sucessão, para o bom estado da Igreja de Deus e do povo cristão, que determinaria quem deveria possuir a dignidade imperial. Vejamos nas suas palavras:

“Ora, os três últimos preditos imperadores [Oton I, Oton II e Oton III] obtiveram sucessivamente o Império como se fosse quase um direito hereditário. Todavia, para o bom estado da Igreja de Deus e do povo cristão, foi útil e prudentemente ordenado que um poder tão excelso não mais fosse atribuído a alguém por força do direito de sucessão hereditária, mas sim, mediante a virtude, e que se procedesse a uma eleição, a fim de que o mais digno viesse a possuir o título para governar o Império”.103

Analisando os três grandes momentos, identificados por Marsílio, na história do Império: a coroação de Carlos Magno que expressou a translação do poder imperial dos romanos aos francos; a coroação de Oton I que expressou a translação do poder imperial dos francos aos germânicos e; por fim, a instituição do colégio eleitoral dos príncipes, podemos estabelecer duas conclusões. Inicialmente, verificamos que o Paduano procura estabelecer uma visível 103

DTI,XI,p.718: “Quia enim praedicti tres Ottones successive quasi haereditario iure obtinuerunt Imperium, fuit pro bono statu Ecclesiae Dei et populi christiani provide ac utiliter ordinatum, ut tantae potestatis fastigium, quae non ebetur

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continuidade entre os dois primeiros momentos, o que, na nossa opinião, tem o objetivo de legitimar o Sacro Império por este ser, mais que o único e verdadeiro descendente do poder romano, mas a própria seqüência no tempo do Império Romano pela via do Império Carolíngio. Ou seja, a mesma visão que dele tinham os Hohenstaufen. O último momento surge também como a consagração de todo o processo, o elemento que se destinava a assegurar definitivamente a legitimidade do Império, pois, pela eleição, a virtude passa a prevalecer sobre a simples hereditariedade, servindo então, através dos tempos, de garantia para a dignidade imperial. Com relação ao papel do papa na designação imperial, mantido mesmo após a instituição do supradito colégio, Marsílio dá a entender, numa observação aparentemente menosprezadora em certo sentido, que a coroação é por ele realizada simplesmente porque tal fato se tornou tradicional:

“Em seguida, à época de Gregório V, foi instituída a eleição do Imperador Romano, a ser efetuada pelos sete mencionados príncipes da Alemanha, os quais desde então, até aos nossos dias, elegem o Imperador, que deve ser coroado pelo bispo romano, embora, não haja motivo algum que justifique a necessidade desta coroação ser efetuada por ele”.104

sanguini sed virtuti, non per viam successionis sed electionis procederet, ut dignissimus habeatur ad dignitatem Imperii gubernandam” (DTI,XI,p.428). 104 DTI,XII,p.718: “Et postmodum tempore Gregorii quinti, electionem Imperatoris Romani septem principibus Alamanniae praedictis fuisse concessam, Qui usque ad moderna tempora Imperatorem eligunt ad sollemnitatem, non quidem propter necessitatem aliquam, per Romanum episcopum coronandum (...)” (DTI,XII,p.430 e 432).

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Fechando todas estas questões, relativas à legitimidade do poder imperial, faremos uma análise em conjunto dos argumentos marsilianos expressos na Prima Dictio do Defensor Pacis e no De Translatione Imperii. Segundo Marsílio, o poder imperial vem diretamente de Deus, igualmente exprime o consenso dos cidadãos romanos. Ou, em outras palavras, são os cidadãos romanos o instrumento pelo qual Deus confere ao imperador o seu poder. Tal poder foi legado desde Roma até ao Sacro Império por meio de duas translações, chegando assim legitimamente às mãos de Carlos Magno e, posteriormente, às de Oton I. Enquanto não havia sido instituído o colégio dos príncipes eleitores, era o povo de Roma, pela sua especial dignidade, quem, representando a Cristandade, expressava o consenso através do ato de aclamatio (ou mesmo através da adoratio). A partir desta instituição, entretanto, tal colégio passa ser o representante e, portanto, o legítimo porta-voz da escolha dos romanos, quer dizer da Christianitas. A vontade divina, estando logicamente por detrás da escolha consensual da Cristandade, é expressa com exatidão pela eleição do colégio dos príncipes eleitores. Em outras palavras, tal como pensavam os Hohenstaufen, para Marsílio os príncipes eleitores eram os verdadeiros intérpretes da vontade divina. Assim fica determinada a supremacia absoluta do referido colégio. É somente a ele que cabe, como representante dos cidadãos da Cristandade e como intérprete da vontade divina, a legítima escolha do imperador. Finalmente, também no que concerne à cerimônia de coroação, a opinião de Marsílio e a dos Hohenstaufen coincidem. Esta era executada pelo bispo romano simplesmente por ser assim tradicional, sendo simplesmente uma espécie de ato ritual, que nada acrescentava

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de constitutivo à autoridade imperial. Encerando esta análise do De Translatione Imperii, resta falar de um tema que, normalmente, gera grandes discussões, o da importância histórica das obras de Marsílio de Pádua e, sobretudo, a do referido opúsculo. Com relação a esta questão, Collete Jeudy e Jeaninne Quillet (op. cit., p.341) salientam que é a partir de uma determinada crônica, citada abundantemente no Defensor Pacis,105 ainda que não literalmente, mas interpretando-a, em geral negativamente, que Marsílio evoca notadamente o modelo que constitui a Igreja Primitiva, ponto de referência fundamental para o Paduano que lhe opõe constantemente o estado da Igreja em sua época, assim como outros temas. Para as duas (ibid., p.341), o recurso à história em Marsílio tem como finalidade sempre descobrir a origem e a evolução das situações históricas. Outro aspecto apontado por Jeudy e Quillet (id., p.344) é que Marsílio parece ter sido sensível aos sonhos messiânicos da Idade Média que anunciavam a vitória final do Império. Em especial, parece ter aderido aos meios gibelinos que, desde o século XIII, anunciavam um imperador, designado sob o nome mítico de Fredericus Orientalis, que estenderia seu poder até aos confins da terra, depois de ter humilhado o Papado e os clérigos simoníacos. Desta visão histórica, ou mais exatamente mítica dos tempos, a figura de Luís da Baviera no Defensor Pacis é um exemp lo especial: ele aparecia como uma espécie de “salvador temporal” da humanidade, que Deus escolheu por sua graça e a quem conferiu o poder supremo, ou seja, a encarnação própria do mito gibelino. Já o De Translatione Imperii, prossegue Jeudy e Quillet, (id., p.345), por sua própria 105

MARTIN DE TROPPAU. Chronicon Summorum Pontificum Imperatorumque, M.G.H., S.S. XXII, p.377-475.

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estrutura, participa desta mesma visão mítica da história. A obra apresenta duas partes, a primeira consagrada a história de Roma e do Império Romano, a segunda consagrada a translatio propriamente dita, onde o tema central é o da continuidade da Roma pagã ao Império do século XIV. Como a cidade de Roma pode, no seu desenvolvimento histórico, se transformar no Império Universal, seguidamente romano, cristão e germânico: é o que Marsílio se propõe a elucidar nesta obra. Para tanto, adota a ordem cronológica de retorno as origens, onde a obsessão do modelo original serve de apoio à ficção de uma narrativa que mistura inextricavelmente a hagiografia, a didática, o simbólico e o protesto contra a depravação do presente. José Antônio de C. R. de Souza tem uma perspectiva completamente diferente. Ele (op. cit., p.652 e 653) acredita que o De Translatione Imperii enquanto contribuição historiográfica, abandona, por um lado, o providencialismo divino e, por outro, atribui a fatores puramente humanos a explicação do processo histórico. Quer dizer, a história da humanidade em Marsílio resulta apenas da ação dos homens, bons ou maus, plenos de virtudes ou de vícios. Em resumo, a grande inovação marsiliana, segundo este autor (ibid., p.653), seria uma certa dessacralização da história, o que implicaria, de acordo com o mesmo (id., p.653), numa análise interpretativa dos fatos históricos que só veio a se tornar corrente na Idade Contemporânea. Em nossa opinião, Marsílio de Pádua, com relação ao tema da importância histórica de sua obra, segue simplesmente a tradição dos cronistas medievais, onde mito e realidade se confundem num todo que se pretende harmonioso. O elemento norteador de toda a argumentação é exatamente o “mito das origens”, a busca do passado ideal colocado no

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começo do processo histórico, a degradação do presente e a esperança de um futuro redentor. Assim concordamos com Jeudy e Quillet e não aceitamos de modo algum a visão, em nossa opinião anacrônica e teleológica, de José Antônio de C. R. de Souza. Com efeito, parece que este autor se deixou levar pela ótica geral dos estudos marsilianos que tinge a sua obra de um colorido moderno ou, no caso de José Antônio Souza, como textualmente admite, contemporâneo mesmo. O fato do tema da translatio ser apresentado por Marsílio através de argumentos racionais, o que de fato é verdade, não implica numa dessacralização da história, mas simplesmente de nisto seguir o método, igualmente racional, de seu grande mestre, Aristóteles, por exemplo na Política, método que também é empregado nos argumentos históricos do Defensor Pacis, relativos à origem da civitas e da Igreja Primitiva. O providencilismo também não se encontra ausente, muito ao contrário. É nossa opinião que Marsílio acreditava que toda a história do Império, desde a Roma pagã até ao Sacro Império do princípio do século XIV e, especialmente, as duas translações e o surgimento do colégio dos príncipes eleitores, seguiam plenamente o plano de Deus. Acreditava que o grande objetivo da Providência nesta evolução histórica era que os homens, no fim do processo, viessem a obter a vida suficiente neste mundo, disposição necessária para poderem atingir a vida eterna. Acreditava igualmente que era Luís da Baviera quem, submetendo o Papado e estendendo seu poder sobre toda a terra, levaria o Império a sua culminância, o que também estava de acordo com o plano divino. Já analisamos meticulosamente, no Capítulo 4 (p.194 a 252), os oito blocos temáticos que compõem a Secunda Dictio do Defensor Pacis, ou seja, os argumentos

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eclesiológicos de Marsílio no seu desmonte da plenitudo potestatis papalis . Cabe agora apenas salientar os princípios imperiais que foram então desenvolvidos. Com efeito, no estudo da Prima Dictio e do De Translatione Imperii pudemos demonstrar como o pensamento de Marsílio, ainda que fazendo uso de uma especulação própria, encontra-se em consonância com os três primeiros itens que compõem a lista de argumentos que, na nossa visão, caracterizam a “ideologia fredericiana”. Faltou, entretanto, comprovar a concordância marsiliana com relação aos dois últimos itens da lista, ou seja, a visão de reforma da Igreja guiada pelo imperador e a total subordinação da autoridade religiosa ao poder político imperial. É justamente o que faremos agora, através da análise da Secunda Dictio. Primeiro estudaremos o princípio marsiliano de Reforma da Igreja. Para tanto, inicialmente devemos recordar um conceito essencial da eclesiologia marsiliana. Como estudamos no Capítulo 4, Marsílio entendia a Igreja como a Congregatio Fidelium. Portanto, reformar a Igreja era, para ele, reformar a comunidade dos cristãos do Ocidente, desta grande cidade (civitas) que era a própria Cristandade (Christianitas). Mas como Marsílio, como também estudamos no Capítulo 4, admitia que o clero, pelo próprio caráter sacerdotal e também pela autoridade acidental, tinha um determinado papel na condução dos fiéis rumo à Salvação e na própria organização da Igreja, ele concebia a reforma no sentido que, aliás se tornou paradigmático após a “Reforma Gregoriana”, enquanto, segundo a concepção de Francisco José Silva Gomes (1997, p.48 a 59), uma reforma na e da Igreja. A entendia portanto como a reforma dos costumes dos cristãos (clérigos e leigos conjuntamente) e das instituições, sendo a segunda dimensão entendida como pré-condição indispensável da primeira.

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Era preciso, portanto, reformar a instituição eclesiástica para que ela, uma vez reconduzida ao exemplo e aos ensinamentos de Jesus Cristo, pudesse lutar contra os pecados e ví cios dos “eclesiásticos”,106 conduzindo-os também a uma conversatio no seguimento de Cristo. Segundo Marsílio, dois eram os grandes males que contaminavam o corpo sacerdotal. O luxo e a riqueza crescente do mesmo e a perspectiva das autoridades sacerdotais em tutelar os poderes políticos. Tais males eram, ao nível da direção da Cristandade, representados respectivamente pela opulência da corte papal e as tentativas do Papado em subordinar os imperadores. Marsílio, muito especialmente, se referia à vida faustosa da corte avinhonesa e aos abusos praticados pelo papa João XXII contra o imperador Luís da Baviera. Defendia, assim, para se poder atender ao exemplo e à palavra de Cristo, a mui excelsa pobreza de todos os sacerdotes e a sua inteira recusa ao governo secular. Vejamos nas palavras de Marsílio:

“Quanto ao bispo de Roma e seus sucessores nesta Sé, bem como aos demais padres, diáconos e ministros espirituais, a quem nos dirigimos, não como a inimigos, invocando o julgamento divino sobre minha alma e meu corpo, mas como pais e irmãos em Cristo, que se esforcem por imitar o Senhor e os Apóstolos, renunciando completamente ao governo secular e à possessão dos bens temporais. Já demonstramos e dissemos claramente a todos, em perfeita consonância com os ensinamentos de Cristo e de seus Apóstolos, que são pecadores e estamos tentando 106

Como visto no Capítulo 4, tal termo era utilizado por Marsílio para caracterizar os membros da Congregatio Fidelium, ou seja, todos os cristãos, sejam clérigos ou sejam leigos.

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reconduzi-los à verdade, ao harmonizar os textos divinos e humanos, para que temam, principalmente o bispo de Roma, que parece estar mais distante, esta indignação do Deus todo-poderoso e dos Apóstolos Pedro e Paulo, com cuja frase costuma freqüentemente ameaçar as outras pessoas”.107

Mas, para além da simples recusa ao governo secular, o que de fato Marsílio pretendia era a obediência, também dos clérigos, às leis humanas e aos príncipes. Ainda que tal questão apareça diversas vezes no Defensor Pacis, ela apresenta-se lapidarmente nesta passagem do Defensor Minor, justificando tal obediência como uma prescrição da própria Lei Divina:

“Com efeito a Lei Divina prescreve a obediê ncia aos príncipes e às leis humanas quando não estejam em contradição a Lei Divina, conforme demonstramos anteriormente de acordo com o testemunho que Cristo e os Apóstolos nos legaram”.108

107

DP,II,XXVI,19,p.599: “(...) Qui vero Romanus episcopus cum sibi successoribus in sede predicta omnesque reliqui sacerdotes atque diaconi et spirituales ministri, ad quos sermones hii sunt, non tamquam inimicos, testem invoco Deum in animam et corpus meum, sed pocius patres et fratres in Christo, studeant imitari Christum et apostolos, seculares principatus et temporalium dominia simpliciter abdicando. Eos enim peccantes coram omnibus iuxta doctrinam Christi et apostoli argui et increpavi palam et ad veritatis callem, preco veritatis existens, per divinarum et humanarum scripturarum concordiam temptavi reducere, ut cavere possint, maxime Romanus episcopus, qui amplius deviasse videtur, eam indignacionem omnipotentis Dei et apostolorum Petri et Pauli, quam ipse singulariter ceteris persepe comminatur” (DP,II,XXVI,19, p. 516). 108 DM,VIII,3,p.62: “(...) Nam lex divina praecipit obedire principibus et humanis legibus non contrariis legi divinae, sicut per Christum et apostolos ostensum est prius (...)” (DM,VIII,3,p.220).

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Para poder determinar entretanto a quem compete reconduzir os sacerdotes à imitação de Cristo, para que estes, uma vez reformados, possam cumprir adequadamente sua missão de cura animarum, Marsílio traça novas considerações. Inicialmente desenvolve seu princípio conciliarista. O Concílio Geral, ou seja, a reunião representativa de todos os fiéis, é visto como o único que tem competência para indicar e destituir um bispo ou estabelecer uma Igreja metropolitana à frente das outras ou ainda privá - la de tal preeminência:

“É da competência exclusiva do Concílio Geral dos cristãos indicar um bispo ou estabelecer uma igreja metropolitana à frente das outras, e depô- lo ou privá- lo dum cargo desse tipo (...)”.109

O Concílio Geral é o único que pode definir os significados controversos da Lei Divina e todas as demais questões de fé:

“Definir os significados controversos da Lei Divina, especialmente aqueles designados por Artigos da Fé cristã e os demais itens em que é preciso acreditar, enquanto necessários para a salvação, é da competência exclusiva do Concílio Geral dos fiéis ou cabe à sua totalidade ou à sua parte preponderante o direito de o determinar. Nenhuma pessoa particular, pouco importa sua condição, e nenhuma

109

DP,III,II,32, p. 697: “Episcopum aut ecclesiam aliquam metropolitanam simpliciter omnium statuere atque privare seu deponere ab huiusmodi officio, ad solum generale concilium fidelium omnium pertinere (...)” (DP,III,II,32, p.609).

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corporação singular tem autoridade para fazer tal determinação (...)”. 110

Somente o Concílio Geral pode definir jejuns e interditos alimentares, proibir os trabalhos resultantes das artes mecânicas e o ensino das disciplinas que a Lei Divina não proíbe exercer quotidianamente:

“Os jejuns e as proibições relativas a comer determinados alimentos devem ser estabelecidos exclusivamente pela autoridade do Concílio Geral dos cristãos ou pela autoridade do legislador cristão. Os trabalhos resultantes das artes mecânicas e o ensinos das disciplinas que a Lei Divina não proíbe exercer quotidianamente podem ser proibidas apenas pelo Concílio Geral ou pelo legislador e só ele ou o príncipe, por delegação de competência, pode coagir à observância dessas proibições através dum castigo ou suplício temporal (...)”.111

Apenas o Concílio Geral pode decidir e ordenar acerca das canonizações ou do culto de santos, decidir e ordenar sobre a proibição do matrimônio dos clérigos e em tudo o que concerne ao culto e, finalmente, a competência para dispensar no tocante a estes assuntos: 110

DP,III,II,2, p. 691: “Legis divine dubias diffinire sentencias, in hiis presertim, qui Christiane fidei vocantur articuli, reliquisque credendis de necessitate salutis, solum generale concilium fidelium aut illius valenciorem multitudinem sive partem determinare debere, nullumque aliud parciale collegium aut personam singularem cuiuscumque condicionis existat, iam dicte determinacionis auctoritatem habere. Huius autem certitudo habetur (...)” (DP, III,II,2, p. 603 e 604). 111 DP,III,II,34,p.697: “Ieiunia et aliquorum ciborum prohibiciones solius generalis concilii fidelium (seu fidelis legislatoris) auctoritate fieri debere. Opera quoque mechanicarum arcium ac dotrinas disciplinarum, que lege divina nulla dierum exerceri prohibita fuerint, solum predictum concilium (seu legislatorem) predictum interdicere posse; ad observacionem quoque talium arcere pena vel supplicio temporali solum legislatorem fidelem aut eius auctoritate principantem (...)” (DP, III,II,34, p.609).

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“Apenas o Concílio Geral tem competência para decidir e para ordenar acerca das canonizações ou do culto de alguém como santo (...). Só o Concílio Geral dos cristãos pode decidir e ordenar se convém proibir aos bispos ou presbíteros e aos outros ministros do altar contrair matrimônio e igualmente decidir a respeito de tudo o que concerne à celebração do culto. É também apenas da sua alçada, ou a quem ele delegar esse mister, a competência para dispensar no tocante a esses assuntos (...)”112

É somente o Concílio Geral quem pode também proibir e coagir com um castigo ou pena, segundo a Lei Divina. Estando, entretanto, fora de sua competência dispensar alguém de observar preceitos e proibições da Lei Divina. Com efeito, esta atribuição pertence exclusivamente a Deus:

“Nenhum ser humano pode dispensar alguém de observar os preceitos e proibições divinos contidos na lei Evangélica. No entanto, proibir no âmbito do que ela permite, coagindo alguém mediante um castigo ou pena a ser cominada neste e no outro mundo, só o podem fazer o Concílio Geral ou o Legis lador Humano cristão, e nenhuma outra corporação singular ou pessoa particular de qualquer

112

DP,III,II,35 e 36 , p.697 e 698: “Canonizari aut tamquam sanctum adorari quempiam, per solum generale concilium statui et ordinari debere (...) Episcopis aut presbyteris aliisque templorum ministris si uxores interdicere convenit, reliqua quoque circa ecclesiasticum ritum, per generale solum fidelium concilium id statui et ordinari, ac eum solum collegium aut personam in hoc cum predictis dispensare posse, cui data fuerit eius auctoritas per concilium supradictum (...)” (DP,III,II, 35 e 36 , p.609 e 610).

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condição que seja (...)”. 113

Podemos dizer que, num sentido geral, Marsílio atribui ao Concílio Geral, e somente a ele, a suprema competência para, no conjunto tota l da Cristandade, legislar e ordenar a respeito dos assuntos espirituais. Retira assim, completamente, do arbítrio do papa ou do conjunto dos bispos, ou de qualquer outro corpo exclusivamente clerical por mais digno que seja, o poder de tomar decisões dogmáticas ou doutrinais e qualquer medida coercitiva relativas às mesmas. Com efeito, tais questões competem exclusivamente à totalidade dos fiéis, clérigos e leigos conjuntamente, cuja única representação legítima é o Concílio Geral. J.A.Watt (1985, p.397) salienta que em Marsílio o corpo formado por todos os cidadãos (universitas civium) assumia um sentido novo enquanto o corpo formado por todos os fiéis (universitas fidelium). Tal perspectiva, no âmbito da Cristandade, se exprimia através do Concílio Geral dos crentes (Generale Concilium Credentium). Segundo Watt (ibid., p.397), a teoria conciliarista marsiliana se articulava em três momentos. A primeira dizia respeito à natureza das comunidades: apenas a própria comunidade, atuando como um único corpo, pod ia assegurar uma proteção adequada contra usurpações de poder, (por exemplo, na tomada de decisões), efetuada isoladamente por uma de suas partes, suscetível, pela sua própria natureza limitada, de errar por ignorância ou malícia, por cupidez ou ambição, ou por qualquer outra paixão viciosa. Em outras palavras, é apenas a própria comunidade que se pode proteger dela mesma. 113

DP,III,II,5, p.692: “In divinis seu evangelice legis preceptis aut prohibits neminem mortalem dispensare posse, permissa vero prohibere, obligando ad culpam aut penam pro statu presentis seculi vel venturi, solum posse generale

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Marsílio, prossegue Watt (id., p.397), via na Igreja Primitiva a expressão mais perfeita deste axioma. Os Apóstolos (que eram todos iguais entre si) resolviam seus problemas pela deliberação entre eles mesmos. De uma maneira particular, os Atos dos Apóstolos demonstram o caráter comunitário do governo da Igreja. É este o modelo que o Concílio Geral, atuando enquanto universitas fidelium, devia se esforçar por imitar: a assembléia dos fiéis ou o Concílio Geral representa verdadeiramente, por sucessão, a assembléia dos Apóstolos, dos anciãos e de outros crentes da Igreja Primitiva. O terceiro momento do raciocínio, conclui Watt (id., p.398), propunha novamente o paralelo que existia entre a universitas civium e a universitas fidelium. Tanto em uma como em outra, uma ligação devia ser estabelecida entre a comunidade e o dirigente: tal qual os súditos se associam ao seu príncipe, o Concílio Geral devia estar associado àquele que detém autoridade para o convocar e para, através de sua jurisdição coercitiva, colocar suas decisões em vigor. Em outras palavras, recorrendo uma vez mais ao exemplo da Igreja Primitiva, tanto aos Atos dos Apóstolos quanto ao Codex de Isidoro (Pseudo-Isidoro), Marsílio salienta o papel diretivo do imperador romano sobre os Concílios Gerais da Antigüidade. Isto, segundo Marsílio, não é menos válido no século XIV do que era na época dos Concílios de Nicéia, de Constantinopla, de Êfeso e de Caledônia. Luís da Baviera devia ser considerado como Constantino redivivus, como um novo Teodósio. Watt (id., p.398) atesta mesmo que Marsílio desenvolveu uma lógica cesaropapista diretamente e conscientemente oposta à lógica hierocrática da bula Unam Sanctam. Se, segundo Marsílio, cabia ao Concílio a autoridade espiritual na Cristandade; a concilium aut fidelem legislatorem humanum, nullumque aliud parciale collegium vel singularem personam cuiuscumque condicionis existat (...)” (DP,III,II,5 , p.604).

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quem cabia o poder político? Este, como pormenorizadamente estudamos no Capítulo 4, pertencia somente ao governante ou príncipe. Este, o legítimo repr esentante da totalidade dos cidadãos, por isto mesmo o verdadeiro ordenador da civitas, ordenador de todas suas partes e de todas as funções sociais, é o único que possui, desta forma, a jurisdição coerciva, real e pessoal, sobre cada pessoa singular de qualquer condição e igualmente sobre as corporações de clérigos e leigos. Vejamos nas palavras de Marsílio:

“Só o governante, através da autoridade do legislador, possui a jurisdição coerciva, real e pessoal, sobre cada pessoa singular, pouco importa sua condição e igualmente sobre as corporações de clérigos e leigos (...)”.114

Como o governante ou príncipe é, no âmbito temporal, o único detentor do poder coercitivo (vimos que o Concílio Geral também detém um certo poder coercitivo, mas no âmbito espiritual), ele é o responsável pelo cuidado da lei humana (a lex). Ele é assim o único que, por um lado, pode conceder dispensas relativas ao seu cumprimento e, por outro, pode julgar coercitivamente, atribuir as penalidades e infligir suplícios pessoais e reais aos hereges e demais criminosos segundo a mesma lei. Voltemos às palavras de Marsílio, em dois momentos distintos do Defensor Pacis:

“No âmbito das leis humanas, só o legislador ou uma outra pessoa mediante

114

DP,III,II,15,p.693:

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sua autorização [normalmente o governante ou príncipe] podem conceder dispensas no tocante ao seu cumprimento (...)”.115

“É da competência exclusiva do governante, de acordo com a determinação do legislador humano, julgar coercitivamente os hereges e demais criminosos e a todos os que foram condenados a punições ou castigos temporais, requerer que lhes sejam atribuídas as penalidades devidas e infligir-lhes os suplícios pessoais e reais (...)”.116

Como o clero é uma das partes integrantes da civitas, a pars sacerdotalis como estudamos no Capítulo 3, sua ordenação é também atribuição exclusiva do governante ou príncipe. Desta forma compete somente a ele determinar o número de igrejas e a quantidade de sacerdotes, igualmente distribuir os cargos eclesiásticos ou retirar um dignitário de seu cargo, constranger sacerdotes, devidamente alimentados e vestidos, a celebrar os ofícios e ministrar os sacramentos, ou ainda fazer uso total ou parcial dos bens eclesiásticos para os interesses comuns ou a defesa da comunidade. Só ele pode, inclusive, dispor de todos os bens temporais que foram destinados às causas pias e às obras de caridade. Voltemos ao Defensor, em três passagens distintas: “Super omnem singularem personam mortalem cuiuscumque condicionis existat, atque colegium laicorum aut clericorum, auctoritate legislatoris solummodo principantem iurisdiccionem, tam realem quam personalem, coactivam habere (...)” (DP,III,II,15, p. 608 e 609). 115 DP,III,II,8, p.692: “In humanis legibus solum legislatorem vel illius auctoritate alterum dispensare posse (...)” (DP,III,II,8, p.605). (O grifo e meu). 116 DP,III,II,30, p.696:

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“É da competência exclusiva do príncipe, de acordo com as leis, determinar o número das igrejas ou templos que deve existir e a quantidade de padres, diáconos e de outros ministros que hão de exercer o ministério eclesiástico (...) Os cargos eclesiásticos separáveis podem e devem ser atribuídos ou retirados de alguém, apenas com a autorização exclusiva do legislador cristão [quer di zer, do príncipe]. O mesmo princípio se aplica também aos demais benefícios e às outras coisas estabelecidas no tocante às obras pias (...)”117

“Desde que sejam atendidas as necessidades materiais dos padres, e dos demais ministros do Evangelho e dos pobres indigentes, e do que é imprescindível para a celebração do culto divino, o legislador [que dizer, o príncipe] pode licitamente, e de acordo com a Lei Divina, utilizar total ou parcialmente os bens eclesiásticos para os interesses públicos ou comuns e para a defesa da comunidade (...) Conforme a determinação do legislador e a vontade do doador ou dum outorgante de outro tipo, é da competência exclusiva do governante dispor de todos os bens temporais que foram destinados às causas pias e às obras de caridade, por exemplo, aqueles legados em testamento por alguém, ao ir para além- mar lutar

“Hereticos omnesque delinquentes et arcendos pena vel supplicio temporal iudicare iu dicio coactivo, penasque personales infligere ac reales exigere, ipsasque applicare, ad solius principantis auctoritatem pertinet secundum determinacionem legislatoris humani (...)” (DP,III,II,30, p.608). 117 DP,III,II,22 e 23, p.695: “Numerum ecclesiarum sive templorum ac in ipsis ministrare debencium sacerdotum, diaconorum et reliquorum officialitum, ad solum principantem secundum leges fidelium pertinet mensurare (...) “Ecclesiastica officia separabilia solius fidelis legislatoris auctoritate debere conferri et similiter auferri posse, sic quoque beneficia et propter pias causas reliqua constituta (...)” (DP,III,II,22 e 23 , p.607). (O grifo é meu).

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contra os infiéis, ou aqueles destinados ao resgate dos cativos aprisionados pelos mesmos, ou ainda aqueles outros destinados ao sustento dos pobres indigentes ou às finalidades semelhantes (...)”.118

“O legislador cristão ou o príncipe, por sua delegação de competência, numa província que lhe está subordinada, pode obrigar os bispos e demais ministros do Evangelho, que estejam suficientemente providos com alimento e vestuário, a celebrar os ofícios divinos e a ministrar os sacramentos da Igreja (...)”.119

Praticamente em todos os campos da organização política da civitas evidencia-se a supremacia do governante. Só ele pode conceder dispensa de algo a um grupo qualquer, religioso ou não, tanto quanto aprová-lo e instituí- lo. Também é de sua alçada exclusiva conferir a licença para ensinar ou exercer publicamente uma arte ou disciplina. Inclusive somente ele pode legitimar os nascidos de uma união ou matrimônio ilegítimo, a fim de que tenham o direito à sucessão hereditária, e a receber outros benefícios e a exercer ofícios civis e ou eclesiásticos. Mas, conforme já estudamos no Capítulo 4, ainda que o governante o príncipe não 118

DP,III,II,27 e 28, p.695 e 696: “Ecclesiasticis temporalibus, expleta sacerdotum et aliorum evangelii ministrorum, et hiis que ad cultum divinum pertinent, ac impotentum pauperum necessitate, licite ac secundum legem divinam pro communibus seu publicis utilitatibus aut defensionibus uti posse legislatorem simpliciter et in parte. Cuncta temporalia que ad pias causas seu misericordie opera statuta sunt, ut que testamentis legantur proultramarino ad resistendum infidelibus, aut procaptivorum ab ipsis redempcione vel pauperum impotentum sustentacione, ceterisque similibus, ad solum principantem secundum legisla toris determinacionem ac legantis vel aliter largientis intencionem disponere pertinet” (DP,III,II,27 e 28, p.608). (O grifo é meu). 119 DP,III,II,40,p.698: “Legislatorem fidelem aut eius auctoritate principantem in subiecta sibi provincia compellere posse tam episcopos quam reliquos evangelicos ministros, quibus de sufficiencia victus et tegmenti provisum est ad divina officia celebranda et sacramenta ecclesiastica ministranda (...)” (DP,III,II,40, p.610 e 611).

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tenha um poder direto no âmbito espiritual, ele acaba controlando os assuntos espirituais por uma via indireta, ou seja, pela sua posição de liderança sobre os concílios. Com efeito, compete apenas a ele, usando o poder coercitivo que somente ele detém, convocar os concílios, tornar válidas suas decisões e constranger os infratores das mesmas. Vejamos nas palavras de Marsílio:

“Compete apenas ao legislador cristão ou ao príncipe, por delegação de competência, nas comunidades cristãs, convocar, usando o poder coercitivo, um Concílio Geral ou parcial de bispos ou presbíteros e dos demais fiéis. Se porventura o Concílio for congregado de uma outra maneira, suas decisões não têm força ou valor, e ninguém está obrigado a cumpri- las, sob a pena de incorrer em delito e punição espiritual ou temporal (...)”.120

Reportando todas estas questões ao âmbito da direção da Cristandade, vemos que o imperador detém um poder absoluto no temporal, poder este que se exerce diretamente sobre a enorme civitas que é a própria Cristhianitas. No que tange à autoridade espiritual, ela pertence somente ao Concílio Geral mas, indiretamente, também ao imperador que é quem o convoca e dirige. Concordamos, pois, com a opinião, já citada, de J. A. Watt, segundo a qual Marsílio acreditava que os sacro imperadores haviam herdado dos

120

DP,III,II,33,p.697: “Generale concilium aut parciale sacerdotum et episcoporum ac reliquorum fidelium per coactivam protestatem congregare, ad fidelem legislatorem aut eius auctoritate principantem in communitatibus fidelium tantummodo pertinere, nec in aliter congregato determinata vim aut robur habere, ad observacionem quoque neminem obligare temporali aut spirituali pena vel culpa (...)” (DP,III,II,33,p.609).

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imperadores romanos o controle também dos assuntos espirituais e que tal herança tinha como elemento determinador o papel diretivo, tanto de romanos quanto de germânicos, sobre o Concilio Geral da Cristandade Assim, para o Paduano, o imperador é, em última análise, o supremo governante dos dois domínios, a única cabeça da Cristandade. Desta forma, ainda que Marsílio jamais o tenha dito explicitamente, já que o imperador é, no final das contas, o governante da Igreja, logicamente é a ele quem cabe o papel de conduzir sua Reforma. Fica portanto definitivamente comprovado a semelhança entre as posições marsiliana e “fredericiana” com relação a este penúltimo argumento de nossa lista, ou seja, a convicção de que a Igreja precisava ser reformada, que esta reforma passava pela recondução ao estado primitivo de pobreza e submissão à autoridade política, e que a Reforma da Igreja devia ser conduzida pelo poder imperial. Antes de passarmos ao último argumento, o que trata mais diretamente da supracitada subordinação que, levada ao extremo, efetivamente submetia inteiramente a autoridade religiosa ao poder político, no caso o Papado e toda a hierarquia eclesiástica ao imperador, iremos, entretanto, incluir ainda algumas considerações. Aldo Cecchini (1942, p.11) salienta que o Papado e o Império exprimiam uma antítese que devia compor-se e resolver-se em uma síntese unitária, exprimindo dois princípios contrapostos que não podiam anular-se, mas deviam harmonizar-se numa concórdia. A grande questão era de fato como compor a antítese na síntese, como coordenar as ações das duas partes da respublica Christiana, distintas mas coexistentes, contrapostas mas organicamente coligadas e necessariamente integradas segundo o princípio da ordinatio pluralitatis ad unum. Esta foi com efeito, salienta Cecchini (ibid., p,11), o problema de que se ocuparam pensadores de correntes diversas durante os séculos da Idade

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Média. Com efeito, uma das grandes preocupações da maioria dos pensadores medievais foi a de uma Cristandade dividida por duas obediências, o que ficava explícito na famosa frase: “duas cabeças, quase um monstro”. Daí terem sido tomadas medidas distintas no sentido de se resguardar a unidade. Os hierocratas defendiam simplesmente a subordinação do temporal ao espiritual, resguardando assim a unidade pela única cabeça do Sumo Pontífice. Já entre os antihierocratas surgiram duas correntes. Uma delas, por alguns autores chamada de dualista, acreditava em dois poderes distintos mas coordenados, governando, cada um em seu domínio, a Cristandade. A unidade seria resguardada exatamente pela não confusão dos domínios, evitando-se assim as disputas, guerras e dissenssões geradas quando um dos poderes se imiscui no domínio do outro. Tal foi a posição de João Quidort e Dante Alighieri. A outra corrente procurava, como a hierocrática, submeter a Cristandade a uma única cabeça, mas, diferentemente dos canonistas e teólogos ligados ao poder papal, pretendia submetê-la ao poder político. Esta foi, com relação ao poder real, a perspectiva dos pensadores ligados às cortes dos príncipes como, por exemplo, os teóricos e legistas de Felipe, o Belo. Mas uma submissão total do espiritual ao político só surgiu mesmo com Marsílio de Pádua. Somente ele afirmava que o imperador, a única cabeça da Cristandade, detinha um poder coercitivo absoluto tanto ao espiritual quanto ao temporal. Com efeito, J. A.Watt (op. cit., p.396) salienta que, em Marsílio, se encontrava superada a lógica (chamada de dualista também por este autor), que aparecia em outros teóricos como, por exemplo, em Dante Alighieri, de poderes coordenados, combinados de

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maneira a respeitar a autonomia do poder espiritual e a lhe conceder uma certa superioridade. Todo o propósito do Defensor Pacis, prossegue Watt (ibid., p.396), era assegurar que o clero se equivocava com relação ao seu legítimo soberano, que este era somente o governante ou príncipe (na Cristandade, o imperador), aquele que, em virtude da autoridade do legislador (todo o corpo de cidadãos), tinha jurisdição sobre todos os bispos, os padres e o clero por inteiro, e, finalmente, que assim deveria ser para que a sociedade não fosse destruída pela existência de uma multiplicidade desordenada de governantes. Segundo Maria Cristina Seixas Vilani (2000, p.53), a concepção organicista, própria da Idade Média, a qual Marsílio nunca abandonou, direcionou a sua doutrina na defesa da unidade do corpo político e o fez postular a plenitude do poder para quem deveria ser a cabeça deste corpo: o imperador. No Defensor Pacis, a sociedade é vista como um corpo composto de várias partes, cabendo a cada uma delas a responsabilidade de tarefas específicas, de modo que o bom desempenho de cada uma garanta a estabilidade do todo. Pois bem, ao chefe do governo, ao príncipe, cabe providenciar para que todos cumpram suas funções próprias, em prol do bem comum. Todos os assuntos que dizem respeito à vida social, inclusive os morais e religiosos, devem situar-se dentro da esfera de controle da civitas. O poder público para Marsílio deve ser monopolizado porque a dispersão do poder cria uma situação simplesmente insustentável para qualquer sociedade política. Esta conclusão o levou a colocar o poder religioso inteiramente submetido ao poder político. Assim, fechando esta questão: para Marsílio somente o gove rnante tem jurisdição coercitiva sobre qualquer pessoa de qualquer condição, seja leigo ou clérigo. Assim se dá no interior de um feudo, de uma comuna ou reino, onde impera a autoridade do legislador

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local, ou seja, a do conjunto total de seus cidadãos e, da mesma forma, do governante já que o mesmo foi incumbido, por eleição, a representar tal conjunto. Da mesma forma ocorre na Cristandade. Marsílio, como amplamente estudado nos Capítulos 3 e 4, considerava que a principal causa da intranqüilidade reinante na Europa derivava das interferências da Igreja nos assuntos da política e acreditava que somente afastando o papa destes assuntos seria restaurada a pax. O conflito se perpetuaria enquanto duas cabeças com poderes soberanos persistissem na luta pelo poder. Por isto, era necessário que houvesse apenas um poder a quem todos estivessem subordinados: o do imperador. O imperador, a quem Marsílio chama Minister Dei (Ministro de Deus) e, aludindo aos antigos césares e a Frederico II Hohenstaufen , a lex animata in terris (o guardião das leis) é, assim, a cabeça que comanda, num governo unificado e indivisível (normalmente associado à idéia de governo perfeito), o corpo formado pela Cristandade (Christianitas). Fica portanto comprovado a opção marsiliana também pelo último dos argumentos da lista por nós apontada, que caracteriza o princípio imperial Hohenstaufen, ou seja, a total subordinação de ambos os domínios, o espiritual e o temporal, à supremacia única do imperador. Como estudamos no capítulo anterior, o Defensor Minor, como obra fundamentada basicamente no Defensor Pacis, não traz nenhuma consideração realmente nova que viesse a alterar fundamentalmente os princípios políticos e eclesiológicos marsilianos. Collete Jeudy e Jeaninne Quillet (op. cit., p.168) observam mesmo que no Defensor Minor se encontra o mesmo conjunto de teses eclesiológicas já desenvolvidos no Defensor Pacis. De 1324 a 1340, o pensamento marsiliano precisou-se, fortaleceu-se em função das

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necessidades da polêmica mas, fundamentalmente, ele responde de maneira coerente ao objetivo principal precisado no exórdio do Defensor Pacis: destruir até nos fundamentos a doutrina da plenitudo potestatis papalis. Toda a discussão elaborada no Defensor Minor tem por tema, pensam Jeudy e Quillet (ibid., p.168), o problema da autoridade espiritual: ela não possui dois poderes, onde um é subordinado ao outro; o detentor do poder coercitivo, ou seja, do poder verdadeiro, detém o pleno exercício deste poder tanto ao temporal quanto ao espiritual. Nada o impede, quer dizer, o clero e seu chefe, o papa de Roma, de exercer as prerrogativas que são suas por direito. O único poder que deve se exercer em todos os domínios, civil, político, religioso cabe ao supremo príncipe, ao legislator humanus fidelis superio re carens , ao imperador. Mas, apesar de Marsílio não ter constituído no Defensor Minor princípios políticos e eclesiológicos realmente novos, precisamos fazer ainda, com relação ao tema do conceito imperial, algumas abordagens complementares. Inicialmente com relação à primeira parte deste opúsculo, ou seja, os doze capítulos iniciais. Uma primeira questão que julgamos importante diz respeito à visão marsiliana a respeito das Cruzadas, ou melhor, reporta-se a algumas considerações, por ele observadas, à propósito das Cruzadas. Para Marsílio, não há nada nas Sagradas Escrituras que justifique um não cristão dever ser compelido a abraçar a fé romana, assim a “viagem ultramarina” só é meritória se tem a intenção de constranger os infiéis a obedecer, de alguma forma, ao imperador, a fim de que possa vir a ser estabelecida a paz entre todos os homens que vivem em sociedade. Vejamos nas palavras do Paduano:

“De acordo com o que foi dito mais acima, afirmo que não se pode

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comprovar pela Escritura Sagrada que um não cristão deve ser compelido a abraçar a fé católica. Demonstramos isso através do texto bíblico e das palavras dos santos nos capítulos 4, 5 e 9 da 2a parte do Defensor da Paz. Disso resulta que, se a Cruzada se realiza ou é organizada para combater os infiéis e obrigá-los a abraçar a fé cristã, a mesma não é absolutamente meritória. Mas se tal viagem ultramarina era realizada para obrigar os infiéis a obedecer ao príncipe ou ao povo romano em matéria e preceitos civis e para reivindicar tributos adequados, como estão juridicamente obrigados a pagá- los, semelhante viagem, conforme julgamos, deveria ser considerada meritória, porque visaria restabelecer a paz e a tranqüilidade entre todos os homens que vivem em sociedade”.121

Esta passagem apresenta com efeito considerações bastante importantes. Em nossa opinião, responde a uma indagação fundamental a respeito dos limites territoriais sobre os quais deveriam, exatamente, na percepção marsiliana, se estender a supremacia imperial. Com efeito, Marsílio jamais havia sido tão claro a este respeito. Mostra igualmente uma nova discordância entre os Hohenstaufen e Marsílio, sendo o princípio marsiliano ainda mais abrangente que o dos teutônicos. Não podemos esquecer que, no plano dos fatos, os sacro imperadores governavam, 121

DM,VII,3,p.59: “Et dico secundum praemissa nobis prius, quod secundum Scripturam sacram probari non potest aliquem infidelem ad fidem Christianam confitendum cogi debere, quemadmodum etiam ostensum est t apparet per eandem Scripturam et dicta sanctorum 4,5 et 9 secundae, Ex quo sequitur, quod si ultramarinus nequaquam meritorius videretur. Sed si fieret talis transitus ultramarinus pro cogendis infidelibus ad obediendum principi et populo Romano in praeceptis civilibus, et tributis debitis exhibendis, quemadmodum de iure tenentur, talis transitus, ut puto, meritorius esset censendus, quoniam ad pacem et tranquillitatem omnium civiliter viventium ordinatus” (DM,VII,3,p.214 e 216).

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no conjunto da Christianitas, somente três reinos, o Reino da Germânia, o Reino da Itália e o Reino da Borgonha-Provença. Devemos igualmente nos lembrar que, conforme estudamos no Capítulo 1 e, anteriormente, neste próprio capítulo, o princípio imperial medieval, que tem na “ideologia fredericiana” a sua forma acabada, defendia, por um lado, um controle rígido somente sobre as possessões colocadas sobre sua suserania direta e, por outro lado, o título de dominus mundi referia-se fundamentalmente a uma perspectiva de caráter jurisdicional, fundamentada no fato de ser o imperador o grande ordenador universal. Marsílio nesta passagem deixa nitidamente entender que a supremacia imperial deveria se estender sobre todos os homens que vivem em sociedade, cristãos e infiéis. Isto significa precisamente que ela deveria se estender a todo o gênero humano, pois, pelo princípio aristotélico do zoon politikon, só os homens vivendo socialmente podem ser considerados efetivamente humanos. Deixa também entender que tal supremacia era um poder efetivo, pois, em caso contrário, como poderia o rei dos romanos os constranger a obedecer em matéria e preceitos civis ou reivindicar tributos aos quais estão todos juridicamente obrigados a pagar. Também o poder do dominus mundi, visto em Marsílio de uma forma efetiva, encontra-se vinculada ao objetivo primeiro de toda a sua argumentação. Ele é justificado pela obtenção da pax. A Cruzada, enquanto uma expedição puramente de combate aos infiéis visando sua “catolicização” (adesão à fé romana) era, para Marsílio, a guerra pela guerra e, portanto, de todo ilegítima. Ela só poderia se justificar enquanto uma guerra pela paz. Somente no sentido de estender o poder imperial ao conjunto total dos homens,

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poderia a Cruzada cumprir sua função enquanto instrumento promotor da paz e isto por duas razões. Para que todo o gênero humano pudesse viver em paz era preciso que houvesse uma lex do mundo inteiro e um único governo sobre a Terra. Pois, todos os homens, ainda que separados por suas religiões, seriam regulados por uma única norma civil e congregados na obediência a uma única cabeça. No Defensor Pacis, Marsílio jamais indica claramente sobre qual território deveria o poder supremo do imperador se estender. Seu discurso sugere, no entanto, que este deveria se limitar à Cristandade (Christianitas), ou seja, à Europa Ocidental. Com efeito, toda a argumentação diz respeito, direta ou indiretamente, as disputas entre o papa e o imperador, ou seja, a questões que se restringiam ao mundo cristão do Ocidente. Entretanto, no Defensor Pacis mesmo, igualmente no De Translatione Imperii, já aparecia, nas entrelinhas digamos, uma idéia providencialista com a qual o que o Sacro Império estava destinado a conduzir todo o gênero humano a uma existência perfeita, a chamada vida suficiente, précondição da própria salvação eterna. A passagem seguinte do último capítulo do Defensor Pacis atesta bem que dois são os fins e a culminação, não somente dos cristãos, mas dos seres humanos, quer dizer de todas as pessoas que vivem na cidade (civitas):

“De fato, se essas verdades [o conjunto das teses desenvolvidas no Defensor Pacis] forem não apenas bem compreendidas mas ainda bem retidas na memória, conservadas e observadas diligentemente, o reino e qualquer outra comunidade civil temperada serão salvaguardados em seu ser pacífico e tranqüilo, de modo que, graças às mesmas, então, as pessoas que vivem na cidade conseguirão obter a suficiência da vida neste mundo. Caso contrário, ignorando-as,

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seguramente ficarão privadas da suficiência e igualmente estarão mal dispostas para atingir a vida eterna. Portanto, estes são os dois fins e a culminação das aspirações dos seres humanos, com vista à sua realização neste e no outro mundo, sobre os quais discorremos em nossas explanações precedentes, como sendo algo de per si evidente a todos os homens”. 122

Poder-se-ía objetar que a passagem acima não se refere explicitamente ao Sacro Império. Mas, considerando-se que o governo perfeito, destinado a satisfazer plenamente as necessidades mundanas do homem, é a monarquia eletiva e que esta, contemporaneamente a Marsílio, correspondia ao Sacro Império; considerando-se também que, por toda a evolução descrita no De Translatione Imperii, o Sacro Império era a forma última e, portanto, a mais desenvolvida de Império, já que em Marsílio (tal qual Aristóteles) prevalece o princípio de evolução linear, podemos atestar que era de fato o poder germânico que fora escolhido por Deus para, restaurando ou mesmo superando a grandeza de Roma, estender sobre todo o gênero humano a vida suficiente e, a partir desta, conduzílo à própria Salvação. Mas há ainda no Defensor Minor uma outra questão, de fato também já colocada no Defensor Pacis, mas que ganha agora uma elaboração completamente nova, a do supremo 122

DP,III,III,p.701: “Hiis enim comprehensis memoriterque retentis et diligenter custoditis sive servantis, salvatibur regnum et quevis altera quecumque temperata civilis communitas in esse pacifico seu tranquillo; per quod viventes civiliter adipiscuntur, et sine ipso de necessitate privantur sufficiencia vite mundane, ad eternam quoque beatitudinem prave disponuntur. Quas tamen velut fines et optima desideratorum humanorum, secundum diversum tamen et alterum seculum, in prioribus sermonibus, tamquam omnibus per se manifestum, suscepimus (...)” (DP,III,III,p.612 e 613). (O grifo é meu).

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legislador humano. Marsílio vai inicialmente caracterizá- lo como o imperador romano. Para tanto, o Paduano trabalha com um processo de duas transferências sucessivas de poder: primeiro, do conjunto de todos os homens ou sua parte mais releva nte ao povo romano e, depois, deste último ao seu Príncipe. Assim somente o soberano de Roma detém um poder legislativo sobre o conjunto de suas províncias, ou seja, extensivo a Ocidente e a Oriente até ao Ecúmeno, isto é, aos confins da Terra. Vejamos nas palavras de Marsílio:

“Assim, com referência ao primeiro quesito, examinando-o afirmamos que o supremo legislador humano, desde a época de Cristo, e talvez mesmo há algum tempo antes, até hoje foi, é e deve ser o conjunto de todos os homens ou sua parte mais relevante em cada uma das regiões e províncias, os quais têm de estar subordinados aos preceitos coercitivos da lei. Considerando que este poder ou autoridade foi transferido pelo conjunto das províncias ou sua parte mais relevante ao povo romano, por causa de seu enorme valor, o mesmo sempre possui e detém o poder de legislar para todas as províncias do mundo; e considerando, ainda, que o povo romano transferiu igualmente esse poder ao seu Príncipe, é preciso reiterar semelhantemente que este detém o poder de legislar”.123

123

DM,XII,1,p.81: “De primo quidem igitur iam propositorum inquisitionem aggredientes dicamus, quod supremus legislator humanus praesertim a tempore Christi usque in praesens tempus, et ante fortassis per aliqua tempora, fuit et est et esse debet universitatis hominum, Qui coactivis legis praeceptis subesse debent, aut ipsorum valentior pars, in singulis regionibus atque provinciis. Et quoniam haec potestas sive auctoritas per universitatem provinciarum, aut ipsorum valentiorem partem, translata fuit in Romanum populum, propter excedentem

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Mas Marsílio acrescenta que o poder ou autoridade legislativa extensivo a todo o gênero humano vigora e continuará vigorando até que a concessão seja revogada. Ou seja, o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, como continuação no tempo do Império Romano, herdou tal poder. Também ele o conservará até que o conjunto das províncias (por si próprias ou por intermédio de seus síndicos) e ainda o povo romano, reunido segundo a forma requerida, cassar tal concessão. Retornando ao texto do Defensor Minor:

“(...) Por conseguinte, tal autoridade ou poder de legislar vigora e continuará vigorando razoavelmente enquanto o conjunto das províncias não revogar tal concessão feita ao povo romano e este não fizer a mesma coisa em relação ao seu Príncipe. Entendemos que esses poderes são corretamente revogados ou poderão dê -lo, quando o conjunto das províncias, por si próprias ou através dos seus síndicos, e ainda o povo romano ou sua parte mais relevante, se reunirem da forma requerida e deliberarem por tomar aquela medida (...)”124

A grande mudança que verificamos com relação ao texto do Defensor Pacis diz virtutem ipsius, Romanus populus auctoritatem habuit et habet ferendi legis super universas mundi provincias, et si populus hic auctoritatem leges ferendi in suum principem transtulit, dicendum similiter ipsorum principem habere huiusmodi potestatem, (...)” (DM,XII,1,p.254). 124 DM,XII,1,p.81: “(...) quorum siquidem auctoritas seu potes tas leges ferendi (scilicet Romani populi et principis sui) tam diu durare debet et duratura est rationabiliter, quamdiu ab eisdem per universitatem provinciarum a Romano populo vel per Romanum populum ab eius principe fuerint revocatae. Et intendimus debite revocatas aut revocandas esse tales potestates, cum provinciarum universitas per se vel per syndicos vel Romanus populus debite fuerint congregati, et talem deliberationem de revocando fecerint, aut eorum valentior pars, (...)” (DM,XII,1,p.254).

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respeito à função legislativa do sacro imperador. No Defensor Pacis, devemos recordar, o sacro imperador, uma vez que era escolhido pelo consenso da Christianitas, era visto como o protetor da lex, sendo portanto seu juiz e polícia. A atribuição de fazer as leis cabia, entretanto, a valentior pars, ou seja, ao conjunto dos homens sábios e experimentados, representativo dos cidadãos na Cristandade. No Defensor Minor, o sacro imperador, sem perder, com relação à lex, as outras atribuições, ou seja, a de juiz e polícia, ganha uma função adicional, a de legislador, ou seja, efetivamente, cabe a ele fazer as leis. Salientamos que, entretanto, a nova atribuição, como as primeiras, resulta também de uma concessão dos cidadãos ao seu príncipe (desde a Roma pagã até ao Império no século XIV), ou seja, o imperador também legisla enquanto representante da universitas civium. Assim, ao restituir ao sacro imperador a função legislativa, Marsílio reaproxima-se, com relação a esta questão crucial, do princípio imperial dos Hohenstaufen. Tal qual afirmava Frederico I e, numa forma mais elaborada, Frederico II, o imperador marsiliano no Defensor Minor era, enquanto “lei viva sobre a terra”, a própria incarnação da Lei Divina e, portanto, cabia a ele fazer as leis do Império, igualmente zelar para que elas fossem cumpridas e punir os transgressores. A distinção que se mantém entre Marsílio e os Hohenstaufen diz respeito a natureza da lex. Para os segundos, a lei humana é feita pelos imperadores sob a inspiração divina e, para Marsílio, o fato do imperador ser a incarnação da própria lei divina significa dizer que ele incarna a Justiça. Que ele, enquanto o representante dos cidadãos romanos, guarda em si a própria justiça divina, conferida por Deus ao povo de Roma e por ele transferida ao imperador. Mas o ato de fazer as leis, atribuição exclusiva do imperador, é puramente racional, uma vez que a lex também o é. Correlacionando os dois momentos do texto do Defensor Minor por nós estudados,

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verificamos que este último grupo de considerações, o que diz respeito à função legislativa do imperador, acaba por justificar plenamente o que estudamos nos parágrafos anteriores, legitimando a supremacia do sacro imperador sobre todos os povos do mundo como uma herança recebida dos imperadores romanos. Tal supremacia tem portanto um elemento fulcral, ou seja, o poder ou autoridade de legislar sobre todo o gênero humano, de estabelecer uma lex mundial, ou seja, de impor uma única norma na ordenação da Humanitas, uma vez que tal ordenação é, em última análise, a grande função do poder imperial. Uma questão que, entretanto, poderia ser apontada contra a tese marsiliana é que tal poder não foi de fato uma concessão dos demais povos ao povo romano, mas uma imposição deste último, bem como do seu príncipe, como resultado de um processo de conquistas violentas. Ao que Marsílio retruca, uma vez mais utilizando-se do argumento que é o objetivo principal de toda sua filosofia política e eclesiologia, ou seja, a pax. Salienta que, ainda que Roma se tenha utilizado da força contra alguns povos que viviam de forma injusta e “bárbara”, a submissão do conjunto das províncias não se deu pela violência, mas pela aceitação do regime benevolente dos romanos e por uma escolha espontânea daqueles que, para viver pacífica e tranqüilamente, se colocaram sob a proteção do povo romano e de seu príncipe. Vejamos o que textualmente Marsílio aponta:

“Contudo, ta l fato não impede que algumas pessoas afirmem que a dominação romana, tanto do povo quanto do seu príncipe, se originou e foi estabelecida pela violência em razão de o povo romano, muitas vezes, haver

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utilizado a força contra alguns povos maus que queriam viver de modo injusto e bárbaro. Todavia, ele não submeteu o conjunto das províncias ou suas partes mais relevantes graças à violência. Pelo contrário, um bom número das províncias, constatando a benevolência do regime dos romanos, em razão de sua utilidade evidente, e querendo viver tranqüila e pacificamente, escolheu espontaneamente sujeitar-se ao povo romano e ao seu Príncipe e se colocar sob a proteção dos mesmos”. 125

Piero di Vona (1974, p.235) traça algumas considerações sobre o princípio filosófico que, segundo ele, fundamenta a perspectiva marsiliana de construção uma unidade mundial. Para di Vona, trata-se da idéia aristotélica da analogia entis (a analogia do ente). Todos os entes constituem um mundo único porque cada ente é naturalmente inclinado para o primeiro ente, e depende do primeiro ente. A unidade numérica do primeiro ente fundou a unidade do mundo por fundar a analogia do ente. Vejamos então a argumentação construída por Di Vona (op. cit., p.235) no sentido de caracterizar esta analogia. Todos os entes constituem, no ato lógico da predicação, um mundo uno porque constituem uma pluralitas quorundam dicta unum. Esta pluralidade, sempre no ato da predicação lógica, é dita una quia est ad unum et propter unum, ou seja, é dita una na predicação com relação ao primeiro ente por causa do primeiro ente. 125

DM,XII,3,p.82 e 83: “(...) Nec obstat, quod quidam dicunt, quod Romanum dominium tam populi quam eius principis violentum fuerit et ex violentia ortum habuerit. Nam quamvis Romanus populus aliquos malignos iniuriose et barbarice vivere volentes quandoque coegerit, non tamen universas provincias aut earum valentiores partes per violentiam subdiderit. Quinimmo plures provinciae considerantes bonitatem regiminis Romanorum, tranquile atque pacifice vivere volentes, propter earum evidentem utilitatem, elegerunt se sponte subiicere atque custodiri per Romanum populum et ipsius principem supradictos (...)” (DM,XII,3, p.256 e 258).

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Concluindo, a pluralidade física dos entes se revela una mediante o ato predicativo que a considerou em relação de dependência ao primeiro ente. Os entes, plurais segundo a natureza física, tornam-se o uno por analogia e em virtude do ato lógico da predicação que os colocam em relação a Deus. Se a unidade se encontra no primeiro ente, ou seja, se encontra em Deus, ela igualmente se encontra no imperador. Em Marsílio, o imperador é exatamente, mais que a designação a ele dada na Antigüidade cristã, de vicarius Christi, efetivamente o vicarius Dei. Sendo o representante de Deus sobre a terra, ele possui um poder de fato absoluto sobre todos os homens, sejam cristãos ou não, sejam clérigos ou leigos, e sobre todas as suas corporações, tendo a função de ordená- los, baseado numa lei do mundo inteiro, da qual é simultaneamente o legislador, o juiz e o poder coercitivo, a fim de conduzi- los à vida suficiente e à Salvação. Tal poder foi a ele confiado, desde a Roma pagã, pelos cidadãos romanos. Estes o possuíam, não originariamente, mas porque o receberam de Deus. Assim o poder imperial vem do Alto para os cidadãos de Roma que o transferem, cumprindo a vontade divina, ao imperador. Tais considerações significam dizer que, ainda que o imperador seja o representante terreno de Deus e, por isto, dotado de um poder supremo sobre todos os homens, ele deve governar em função destes mesmos homens, a fim de, longe de satisfazer suas próprias ambições, promover o bem comum da Humanitas. A segunda parte do Defensor Minor, ou seja, os capítulos XIII ao XVI, que tratam do matrimônio na sociedade cristã, e cujo texto é bastante semelhante ao de um outro opúsculo marsiliano, o Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus conforme

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comentamos no Capítulo 3, importa para a determinação do objeto desta Tese, ou seja, o conceito imperial de Marsílio de Pádua, apenas no sentido de ser um exemplo prático da jurisdição imperial. Marsílio defende aqui o princípio que o casamento é um ato peculiar da espécie humana, dependendo apenas de um consentimento mútuo entre os noivos que assim se comprometem a viver juntos até a morte e, que pelo ato sexual, simultaneamente acalmam seus desejos carnais e perpetuam, através de sua prole, a própria espécie humana. Ou nas próprias palavras de Marsílio:

“Na verdade, o casamento propriamente considerado é a união livre, não imposta, do macho e da fêmea, celebrada entre os membros da espécie humana com o consentimento expresso de ambos, manifesto através de palavras ou gestos que indicam tão decisão tomada livremente, e realizado numa idade adequada. Reiteramos que o casamento é um ato a partir do consentimento mútuo que obriga os dois cônjuges a viver juntos e a se doar corporalmente, através do ato sexual, quando um deles for devidamente solicitado pelo outro a fazer isso, com vista à geração da prole e a acalmar os desejos carnais, e tal união deverá durar sem interrupção enquanto viverem”.126

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DM,XIII,2,p.86 e 87: “(...)Nam matrimonium in sua significatione propria dicitur de combinatione masculi cum femella in humana specie facta, per utriusque consensum expressum per verba vel indicia de praesenti spontanea, non coactum, et in aetate determinata, consensu inquam obligante utrumque coniugum ad simul convivendum et se corporaliter exhibendum ad carnalem copulam propter prolis generationem, libidinem extinguedam, cum super hoc fuerit alter ab altero debite requisitus, quamdiu vixerint continuo duraturum (...)” (DM,XIII,2,p.264).

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Trata-se assim de uma ação que antecede a instituição da própria religião cristã e, desta forma, não é algo essencialmente espiritual ainda tenha sido transformado em Sacramento pela Igreja. Sua regulamentação cabe apenas ao governante ou príncipe, aquele que, graças ao poder coercitivo que recebeu, simultaneamente de Deus e do conjunto dos cidadãos ou de sua parte mais relevante, é o único regulador de todas as atividades sociais. Com efeito, segundo Marsílio, competia ao governante não só dissolver um casamento, mas também conceder uma dispensa ou liberação de consangüinidade, de modo que os noivos, mesmos sendo parentes, pudessem vir a se casar, uma vez que esta concessão, ainda que fosse contrária à Lei Mosaica ou Antiga, também não era proibida pela Lei de Cristo expressa no Evangelho (a que de fato deve ser seguida pelos cristãos), já que esta não impedia, em nenhum grau de afinidade, e especialmente entre primos e primas, o realizamento de um casamento lícito. Vejamos o texto do Defensor Minor em duas passagens, muito embora não seqüenciais:

“Quanto à nós, diremos que, segundo a Lei Mosaica ou Antiga, foram estabelecidos ou propostos alguns graus de consangüinidade impedindo a realização de um matrimônio lícito, mas os cristãos de modo algum têm a obrigação de observá- los, considerando principalmente que tais proibições não fazem parte da Lei de Cristo (...) Ora, segundo a Lei Cristã nenhum grau de afinidade, particularmente o que há entre irmãos e irmãs (leia -se entre primos e primas), proíbe a realização de um casamento lícito. Daí Agostinho no Livro XV, capítulo XVI da Cidade de Deus,

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tratando dos referidos graus de afinidade, afirma que a Lei Divina não veta parentes consangüíneos contraírem um matrimônio lícito e que a lei humana até aquela ocasião ainda não o havia proibido”. 127

“Tudo o que dissemos mostra claramente a toda pessoa corrompida pela maldade ou pela ignorância ou ainda pelas duas, que a autoridade para dispensar e liberar de um impedimento de consangüinidade as pessoas afins que desejam se casar compete exclusivamente ao legislador humano ou àquele que governa, através de sua autoridade, e de forma alguma a um presbítero ou bispo, ainda que seja o de Roma, chamado papa, em conjunto ou individualmente, porque não são juntos ou isoladamente o legislador humano, ao menos enquanto se constituem numa parte da comunidade civil”. 128

Tal perspectiva se enquadrava perfeitamente nas ambições político-dinásticas de Luís da Baviera. 127

DM,XVI,2,p.107: “Nos autem dicamus, quod secundum legem antiquam sive Mosaicam enuntiati sunt sive statuti gradus quidam consaguinitatis matrimonium licite fieri prohibentis, ad quorum siquidem observationem minime tenuntur Christi fideles, praesertim cum talia in lege Christi prohibita non existant (...) Secundum autem legem Christianam nullus gradus affinitatis sanguinis praesertim intersorores et fratres matrimonium aliquod fieri licite prohibet. Unde Augustinus 15 libri de Civitate Dei capitulo 16, de talibus affinitatis sanguinis gradibus tractans, inquit, quod hoc videlicet matrimonium licit um fieri inter affines consanguineos, nec lex divina prohibuit et nondum prohibuerat lex humana (...)” (DM,XVI,2, p.304 e 306). 128 DM,XVI,4,p.109: “Ex his igitur omnibus iam praedictis manifeste apparet cuilibet, non corrupto ignorantia, malitia vel utris que, auctoritatem dispensandi atque tollendi a matrimonio impedimentum inter personas et a personis sanguinis affinitate coniunctis, ad auctoritatem solius legislatoris humani vel eius auctoritate principantis tantummodo pertinere, nequaquam vero ad presbuterum sive episcopum quemquam, etiam Romanum papam vocatum, communiter aut divisim, cum humani legislatores non sint inquantum huiusmodi communiter aut divisim, nisi fortassis secundum quod pars civilis communitatis existunt. (...)” (DM,XVI,4,p.310).

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Estudamos, no Capítulo 3, que seu filho Luís, marquês de Brandeburgo, pretendia se casar com Margarida Maultasch, duquesa do Tirol, mas o papa, Bento XII, não o permitiu por três razões: pelo conflito aberto com o Império, pelo fato dela já ser casada e ter fugido de seu marido (João Henrique de Morávia, filho do rei da Boêmia) e por haver um impedimento de consangüinidade, já que os dois eram primos. Vimos que, para Marsílio, por um lado o papa não tinha qualquer competência nestes assuntos e, por outro, somente o governante ou príncipe podia neste caso intervir. Mais a qual dentre os príncipes da Cristandade se deveria recorrer? Logicamente, uma vez que o casamento em questão envolvia duas casas reais e, através dele, selava -se uma importante aliança política no seio da Cristandade, ele era de competência exclusiva do supremo príncipe, o imperador. Ele, no gozo de sua autoridade e poder, poderia perfeitamente dissolver o casamento de Margarida Maultasch com João Henrique de Morávia e dispensar do impedimento de consangüinidade seu filho e a referida duquesa, legitimando assim a união dos dois príncipes. Podia pois, enfim, desde que com base na lei humana (a lex) e respeitando igualmente a Lei Divina, fazendo uso do seu poder coercitivo supremo, determinar tudo o que fosse preciso a fim de garantir a perfeita ordenação, não somente da cidade (civitas) cristã (a Christianitas), mas de toda a sociedade humana (a Humanitas), a fim de garantir a vida suficiente e a paz (pax) por toda a terra. A conclusão do Defensor Minor tem então uma importância crucial. Nele, Marsílio declara, sob a autoridade da própria Lei Divina (entre outras), simultaneamente a exata dimensão do poder imperial e quão tem sido arbitrária e usurpadora a atuação dos papas no âmbito temporal. Com efeito, para Marsílio, por um lado legislar ou decretar leis coercivas

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neste mundo ou julgar as pessoas de acordo com as mesmas, impondo -lhes fazer ou não fazer alguma coisa, e concretamente punindo-as se for o caso, são atribuições proibidas a todo e qualquer ministro espiritual individual ou coletivamente e, por outro, esta só podem ser sancionadas pelo supremo príncipe. Vejamos, ainda uma vez, nas palavras de Marsílio:

“Ora, segundo o que permite ou determina a Lei Divina, legislar ou decretar leis coercivas neste mundo ou julgar as pessoas de conformidade com as mesmas, impondo- lhes aqui na terra fazer ou não fazer algo, decreto esse acompanhado de uma punição real e concreta, não compete à autoridade de um só bispo ou presbítero ou de outro ministro espiritual qualquer, ou apenas de sua corporação considerada individual ou separadamente, antes pelo contrário, tais coisas lhes foram proibidas através de um conselho ou preceito. A autoridade para sancioná -las compete ao conjunto dos cidadãos ou ao supremo Príncipe, denominado Imperador dos romanos. Comprovam nossa tese argumentos humanos raciona is fundamentados na verdade, a Sagrada Escritura ou Lei Divina Cristã, os comentários dos santos ao seu texto, bem como as histórias e as crônicas fidedignas (...)”.129

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DM,XVI,4,p.109 e 110: “Quod autem leges in hoc saeculo quasquam coactivas condere sive ferre, vel secundum ipsas coactivum iudicium exercere per poenam siquidem realem aut personalem, arcendo quemquam in hoc saeculo ad aliquid agendum vel omittendum, ad nullius solius episcopi sive presbyteri aut alterius spiritualis ministri, vel ipsorum solius collegiii communiter vel divisim, auctoritatem sive potestatem pertineat secundum legem divinam, seu eius concessione sive praecepto, sed eisdem potius interdicta sint, consilio vel praecepto, et quod factorum auctoritas et coactiva potestas sit universitatis civium, aut supremi principis Romanorum imperatoris vocati, per veras rationes humanas et per sacram Scripturam sive legem divinam Christianam, ac dicta sanctorum exponentium ipsam, nec non per chronicas et approbatas historias (...)” (DM,XVI,4 ,p.310).

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O PENSAMENTO MARSILIANO NO CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO TARDO -MEDIEVAL

O capítulo em questão trata da posteridade da obra marsiliana, fundamentalmente ao longo dos séculos XIV e XV. Veremos inicialmente as objeções hierocráticas de Agostino Trionfo e, especia lmente, de Álvaro Pais. Em seguida, teceremos algumas interrelações entre Dante Alighieiri e Marsílio de Pádua. Trataremos igualmente do belicoso diálogo do último com Guilherme de Ockham, procurando discorrer acerca dos pontos de dissonância entre os dois. Por fim, ressaltaremos a influência da obra marsiliana no contexto do “Grande Cisma da Cristandade” e no da “Crise Conciliarista”. Após a divulgação do Defensor Pacis e sua contestação pela Licet Iuxta Doctrinam, a posteridade da obra apresentou dois ca minhos distintos. As proposições distorcidas da Bula consagraram oficialmente a imagem negativa de Marsílio, a ponto de, em seguida, muitos escritores eclesiásticos terem refutado aqueles erros aludindo exclusivamente ao documento pontifício, sem examinar diretamente a própria obra marsiliana. Efeito contrário encontramos na literatura antihierocrática, para cujos autores, até o final da primeira metade do século XVII, o Defensor Pacis consistiu não apenas num precioso acervo de argumentos e citações, mas também num modelo de soluções radicais para as recorrentes controvérsias acerca das relações entre o poder civil e a autoridade religiosa e, no âmbito interno da Igreja, entre os poderes do papa e do Concílio Geral.

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Dentre os teólogos que, a serviço do Papado, contestaram a obra marsiliana (como também a de Guilherme de Ockham) dois nomes se destacaram: Agostino Trionfo e Álvaro Pais. O dominicano Agostino Trionfo não pode ser considerado exatamente um pensador original. Sua principal obra, a Summa de Potestate Ecclesiastica (1324-28), retoma em seu conjunto as idéias de Egídio Romano: o papa, vicarius Christi e caput da Igreja, detém total poder no domínio espiritual e suprema jurisdição no domínio temporal, exercida diretamente e em permanência. Ele, entretanto, já concebia a Igreja como um corpo social, o Populus Christianus, submetido todavia à potestas iurisdictiones vel administrationis do papa. Também o papa não era o chefe do domínio temporal. Mas, como o temporal e seus fins terrestres estão subordinados ao fim sobrenatural último, o papa, enquanto guardião deste, detém de fato total jurisdição também sobre o domínio temporal. Álvaro Pais foi um franciscano de formação agostiniana. Sua obra é mais extensa e sólida, pelo menos em aparência, que a de Agostino Trionfo. É o autor do De Statu et Planctu Ecclesiae, uma enorme história eclesiástica redigida em três datas diferentes, a saber: 1332, 1335 e 1340, e do Speculum Regum (1341-1344). Segundo Marcel Pacaut (1989, p.153), Álvaro Pais sublinha que é exatamente porque o papa recebeu sua autoridade diretamente de Deus que ela é ilimitada. Acrescenta, com alguma originalidade, prossegue Pacaut (ibid., p.153), que a Igreja não é apenas uma associação estabelecida sobre necessidades espirituais, mas que é igualmente uma sociedade visível, uma civitas, com seus chefes, hierarquia, suas gentes, seus bens e suas leis, o que bem atesta sua materialidade. Com efeito, a Igreja é a única “cidade” no interior da qual coexistem os diferentes ofícios políticos. Em outras palavras, para Pais, conclui

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Pacaut (id., p.153), uma vez que o Estado (o domínio político em suas diversas formas: Império, reinos, feudos, comunas) está na Igreja, a caput dela, o governante das almas, o papa, não pode ser excluído da suserania também dos corpos. Segundo João Morais Barbosa (1992, p.39) era de fato as relações entre o príncipe e o papa que constituíam o problema fulcral do pensamento político de Álvaro Pais. A origem do poder é tratada por Pais com base no Omnis Potestas a Deo de São Paulo e na célebre carta do papa Gelásio I, lidos ao sabor de sua formação agostiniana e de suas perspectivas hierocráticas. A partir destas fontes, desenvolve inicialmente a tese da superioridade da auctoritas dos papas em relação à potestas dos imperadores e demais governantes políticos, sendo o “poder” visto de uma forma fundamentalmente pessimista. Em segundo lugar, prossegue Barbosa (ibid., p. 39 a 45), a maior dignidade moral do Papado é convertida por Pais numa superioridade jurídica. Neste ponto, seu discurso encaminha-se sobretudo numa tentativa de articular assimetricamente a autoridade do papa com o poder do imperador. Com efeito, Álvaro Pais não admitia uma sociedade una regida por dois príncipes. Assim, em consonância com todos os autores hierocráticos de seu tempo, repetia freqüentemente: “um corpo com duas cabeças é uma espécie de monstro” (quasi monstrum). Destarte, o Império é visto como uma entidade espiritual no sentido que ele é, na sua concepção originária, uma criatura da Igreja, cons tituída como instância ancilar de uma finalidade sobrenatural. Em Pais, o imperador surge como filho, defensor e advogado da Igreja. Não mais apenas sob uma perspectiva “ministerial”, mas efetivamente como colaborador, braço armado do papa nas questões temporais, regidas por uma finalidade sobrenatural última.

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Em resumo, conclui Barbosa (id., p.45), segundo Pais a autoridade do papa superava e dirigia o poder do imperador, pois a noção de um Imperium Universale (Império Universal) ou se integrava nas coordenadas hierocráticas mediante a sua própria integração na auctoritas papal e a conseqüente afirmação de que competia a Igreja conferir universalidade ao poder imperial, ou não dispunha sequer de possibilidades teóricas de sustentação na sua universalidade e sua preeminência relativamente aos reinos e demais entidades políticas particulares. De acordo com Mário Santiago de Carvalho (2001, p.21), Álvaro Pais fala de um poder “régio” espiritual (papa) e de um poder, igualmente “régio”, temporal (imperador). Mas, baseado no sentido neoplatônico da superioridade do espiritual sobre o temporal, Pais entendia que não estamos na presença de dois poderes mas de um poder ordenado. Era na lex divinitatis que residia a essência da tese alvariana da plenitudo potestatis segundo a qual o papa, sendo embora o ápice dos dois poderes, confiava o exercício da componente material (o gládio de sangue como símbolo da coação material) ao príncipe secular, dada a ilegitimidade do que é superior e uno se imiscuir no que é inferior e múltiplo. Competia igualmente aos poderes constituídos a satisfação das necessidades materiais inferiores às necessidades espirituais, como a razão natural o patenteava. Mário Carvalho concorda com João Barbosa (ibid., p.22) ao afirmar que, para Álvaro Pais, a plenitudo potestatis era uma plenitude de poder espiritual, mas que assumia em si o temporal também, não enquanto realidade distinta do espiritual, mas enquanto realidade reduzida ao espiritual na sua fonte suprema. Em outras palavras, conclui Mário Carvalho (id., p.22), não havia autonomia legítima do tempo e do temporal sem a sua redução à unidade superior que o papa encarnava na sua lídima expressão eclesiástica.

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A passagem seguinte do Speculum Regum deixa bastante clara a concepção do Galego com relação à obediência que os poderes políticos devem aos poderes eclesiásticos e, especialmente, ao papa. Dada a grande superioridade do poder espiritual em relação ao poder terreno, o imperador (como todos os demais poderes políticos) é filho (e, por conseqüência, defensor e advogado). Em outras palavras, significa de fato que o Império (como todas as outras unidades temporais) se encontra na Igreja estando, destarte, submisso ao seu caput “como a um pai espiritual” (“sicut patri spirituali”):

“(...) Ao sumo sacerdote, isto é, ao papa, que é, em toda a civilização cristã, o principal vigário de Deus (...), e o sumo sacerdote (...), e também aos outros bispos, todo o rei católico deve obediência como a pai espiritual (...). Assim o determinaram os decretos de S. Pedro, S. Clemente, e todos os santos. E, porque também qualquer imperador é filho, defensor e advogado da Igreja, e não seu senhor e chefe, deve submeter e não antepor as suas execuções aos chefes eclesiásticos. O príncipe cristão costuma obedecer aos decretos da Igreja, e não opor-lhe o seu poder. É de costume submeterem-se aos bispos, e não julgarem de suas cabeças. A autoridade eclesiástica é mais elevada do que a real (Sublimior est auctoritas ecclesiastica quam regalis). E é tanta a diferença entre o oiro e o chumbo, como a que medeia entre o poder espiritual e o poder terreno. Os reis humildes e devotos têm o dever de sujeitar as suas cabeças aos joelhos dos sacerdotes, aos quais beijando suplicantemente as mãos rogam que os defendam com suas orações (...)” (ÁLVARO PAIS, 1955 , p. 35 a 37).

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De fato, tal pensamento constitui-se numa crítica radical à proposta política e eclesiológica de Marsílio. O Paduano considera que a Igreja é uma Congregatio Fidelium e sua hierarquia, desprovida de qualq uer poder coercitivo, é tão-somente uma parte da civitas, estando portanto sujeita ao poder do governante. O que, ao nível da Christianitas, significa dizer que todos os bispos e, entre eles, o bispo de Roma (que, de fato, é apenas um líder entre iguais e, ainda assim, só moralmente falando) se encontram subordinados ao imperador. Álvaro Pais, revirando a perspectiva marsiliana, por um lado considera, defendendo a tese monárquica, que a Igreja é sim um corpo hierarquizado comandado pela autorictas de sua cabeça, pelo papa e, por outro que, uma vez que o poder espiritual assume em si o temporal, é o Império (como também todas as unidades políticas menores) que se acha integrado na Igreja e, em conseqüência, o imperador (tanto quanto todos os outros governantes temporais) deve submeter-se ao comando da sua caput. Mas Marsílio de Pádua foi também duramente contestado no âmbito da própria antihierocracia, em especial por Guilherme de Ockham. Com efeito, o pensamento marsiliano representou, no contexto da primeira metade do século XIV, um dos três caminhos diferentes com que a antihierocracia de cunho imperial procurou, por um lado contestar a plenitudo potestatis papalis e, por outro, responder aos anseios políticos do Sacro Império Romano-Germânico. Os outros dois caminhos são o de Dante Alighieri e o de Guilherme de Ockham. Não podemos esquecer também da via desenvolvida pelos “legistas” de Felipe, o Belo, mas esta, logicamente, está vinculada à afirmação da autonomia e, mesmo, da supremacia do poder real capetíngio.

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Minha dissertação de Mestrado versou sobre o pensamento político de Dante Alighieri.130 Sendo este pensamento portador de um conteúdo antihierocrático de grande força inovadora como expus então, e estando ele igualmente associado à realidade política da Europa Ocidental e, mais especificamente, da Península Itálica da primeira metade do século XIV, as comparações entre Dante e Marsílio são de fato inevitáveis. Com efeito, existem pontos de aproximação entre o pensamento marsiliano (Defensor Pacis) e o dantesco (De Monarchia), mas muito mais são os pontos de afastamento. Sérgio Strefling salienta, em sua Tese de Doutorado (2000, p.103 a 111), uma grande analogia e duas dissonâncias fundamentais. Vejamos sua argumentação nos três parágrafos seguintes. A analogia diz respeito a questão da paz (pax). Esta é entendida enquanto a tranqüilidade que garante a vida feliz dos cidadãos, e é realmente a paixão comum que aproxima o objetivo de Dante com o de Marsílio. O segundo aspecto apontado por Strefling é a liberdade. Neste ponto, enquanto Dante é um grande defensor da liberdade, visto como dom supremo dado ao homem por Deus e garantido somente pelo regime monárquico, assegurado pela condução última do imperador, Marsílio absolutamente não trata da liberdade do homem. Ressalta apenas a paz necessária à civitas. Por fim, Strefling sublinha que enquanto o Florentino desenvolve um princípio de distinção de poderes, o Paduano defende um poder único, o do “Estado”, onde o clero é

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TÔRRES, Moisés Romanazzi. O Pensamento Político de Dante Alighieri: Uma Interpretação Histórica. 1998. Dissertação (Mestrado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói.

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tão-somente um departamento deste. Assim, Dante reconhecia a dignidade da Sé Apostólica, na qual Marsílio não via senão uma convenção humana. É exatamente com relação a este último aspecto, com o qual concordamos plenamente, que gostaríamos de nos alongar. O pensamento dantesco, na composição da sua teoria das duas vias, parte da visão aristotélico-tomista que o homem, entre todos os entes, guarda, por ser um composto de corpo e alma, a singularidade de ser o meio entre os corruptíveis e os incorruptíveis. Ora, como todo meio participa da natureza dos extremos e como toda natureza está ordenada a um fim último, Dante conclui que o homem necessariamente tem uma e outra natureza e assim está ordenado a dois fins. Vejamos o que ele diz no De Monarchia:

“(...) lembremo-nos de que só o homem, entre todos os entes, detém o meio das coisas corruptíveis e incorruptíveis (...) Com efeito, se se considera o homem segundo uma ou outra parte essencial, isto é a alma e o corpo, assim é ele corruptível ou incorruptível (...). Se então o homem é o me io entre os corruptíveis e os incorruptíveis, como todo meio participa da natureza dos extremos, necessário é que o homem tenha uma e outra natureza. E como toda natureza está ordenada a um fim último resulta que o homem exista para um duplo fim. Só, entre todos os entes, ele é, a um tempo, corruptível e incorruptível; só, entre todos os entes, ele está ordenado a dois fins, de que um lhe pertence enquanto ser corruptível, e outro enquanto ser incorruptível” (DANTE ALIGHIERI, s/d, p.210).

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Mas, conforme estudamos no Capítulo 2 (p.81 a 127), ao lado da via celeste, a via terrestre era também identificada por Dante como uma felicidade última. Esta consistia no exercício da própria virtude, cujo guia último era o imperador. Ela era dotada de uma sacralidade plena sendo, de fato, uma beatitude, a “beatitude desta vida” conforme Dante a chamou. O Florentino, porém, como comentamos, era um pensador fundamentalmente de linha tomista. Marsílio, ao contrário, ao invés de considerar o pensamento peripatético sob a ótica da síntese de Santo Tomás, fez uma releitura de Aristóteles e, em especial, da Politica. Foi em virtude desta releitura que o Paduano desenvolveu sua teoria política e, muito especialmente, sua concepção de civitas. Com efeito, considerava uma felicidade última na terra, mas esta, absolutamente, não era uma beatitude. Como estudamos no Capítulo 3 (p. 128 a 193), a civitas marsiliana, a sociedade perfeita, “palco” das realizações últimas da vida terrestre, era inteira e completamente natural. Dante também considerava, ao lado da via terrestre (o Império), a via celeste (o Papado), vista como um outro universalismo e uma outra ordenação ao Uno. O papa era, como vimos no Capítulo 2, aquele que, no âmbito espiritual, guiaria a humanidade e a conduziria à salvação, à “beatitude eterna”, ao paraíso celeste. O imperador e o papa eram portanto poderes soberanos em suas próprias vias, não devendo um se imiscuir nos domínios do outro. Era justamente através da unidade na via temporal e do equilíbrio dado pela distinção entre esta e a via espiritual, que se poderia alcançar a paz em seu sentido pleno, ou seja, reproduzir na terra a harmonia e perfeição do Céu. Quanto a Marsílio, que nem sequer admitia o primado de fato da Igreja de Roma, considerava, conforme vimos, que o poder soberano do imperador devia se estender tanto

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ao espiritual quanto ao temporal. Ao espiritual, pela sua posição de controle sobre o Concílio Geral. Ao temporal, pelo poder coercitivo que detinha sobre toda a Cristandade (Christianitas), identificada esta como a cidade (civitas) dos cristãos, uma vez que era o único ordenador de todas as suas partes, incluindo o sacerdócio, e o regulador de todas as atividades sociais. A paz, vista de uma forma puramente natural, simplesmente como a ausência de conflito na “cidade dos cristãos” (de fato a principal preocupação marsiliana), seria assim garantida não por uma distinção de vias, a política e a espiritual, mas pela condução única tanto das questões políticas como das espirituais pelo verdadeiro vicarius Christi, o imperador. Assim discordamos profundamente da ótica geral dos estudos dantescos e marsilianos (sejam historiográficos ou não) que promovem uma clivagem profunda entre Dante e Marsílio, identificando o primeiro como um típico gibelino, arraigado portanto à defesa imperial e o segundo como sendo fundamentalmente um teórico da defesa das liberdades das comunas do centro-norte da Península Itálica. Ao contrário, é a perspectiva marsiliana, como podemos perceber, que não permite ao Papado um camp o significativo de atuação sob o ponto de vista administrativo e jurisdicional e o subordina inteiramente ao imperador, se apresentando assim muito mais próxima da concepção política do Sacro Império Romano-Germânico do que a dantesca. Demonstramos, no capítulo anterior, o quanto estreita (apesar das diferenças apontadas) é a aproximação entre o pensamento político e eclesiológico marsiliano e as perspectivas imperiais desenvolvidas pelos Hohenstaufen nos séculos XII e XIII. Como pudemos observar, as teses dantescas e as marsilianas são, em muitos aspectos, divergentes e os dois autores, no final das contas, construiram conceitos diversos

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sobre o imperador e o poder imperial. Devido à repercussão que o De Monarchia e a Commedia tiveram nas cortes gibelinas do centro- norte italiano na década seguinte à morte do Florentino, é bastante provável que Marsílio tivesse conhecimento dos princípios de Dante. Portanto é de estranhar que em nenhuma de suas obras Marsílio faça referência, expressa ou veladamente, à Dant e ou a qualquer um dos seus princípios. Isto talvez se explique por duas razões diferentes. Por um lado porque o alvo central dos ataques marsilianos era o Papado e seus teóricos, e não outros pensadores antihierocráticos. Por outro, porque a proposta dantesca era então muito mais rejeitada do que aceita, mesmo entre os aliados do Sacro Império, não havendo necessidade, portanto, de se desenvolver uma argumentação especificamente contra ela. Entretanto, com Guilherme de Ockham, concorrente de Marsílio na corte do Bávaro, a questão foi bem outra. Com efeito, Ockham e Marsílio travaram um diálogo belicoso. A questão deu-se em 1340, quando Ockham concluiu e divulgou a terceira parte do seu Dialogus no qual criticava as teses do Paduano, em especial com relação à negação marsiliana do poder jurisdicional do papa e dos bispos. Em 1341, Marsílio, no Defensor Minor, dá a sua réplica às críticas de Guilherme. A polêmica entre os dois só não prosseguiu porque provavelmente o imperador veio a necessitar da mútua colaboração de ambos. Mas, no tratado intitulado Sobre o Poder dos Imperadores e dos Papas, o último opúsculo autêntico de caráter político do Venerabilis Inceptor, escrito após a morte de Marsílio, provavelmente entre novembro de 1346 e abril de 1347, Ockham retoma, ainda com mais vigor, as críticas ao Paduano. As desavenças entre os dois também relacionaram-se às circunstâncias da redação de outra obra ockhamista, a Consulta sobre uma Questão Matrimonial. Em virtude da negativa papal em aceitar o casamento do filho de Luís da Baviera com Margarida Maultasch,

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Marsílio de Pádua e Guilherme Ockham foram convidados pelo imperador a apresentar uma solução para o problema. O Franciscano escreveu assim o opúsculo Consulta sobre uma Questão Matrimonial e o Paduano, o Tratactus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus. O imperador fundamentou parcialmente sua defesa nas teses de Ockham, mas acolheu a Forma Dispensatoris (Na Forma de Dispensação) do impedimento de consangüinidade, e a Forma Divortii Matrimoniabilis (Na Forma das Separações Matrimoniais) preparados por Marsílio. No entanto, para podermos compreender melhor os pontos de desunião entre Ockham e Marsílio é preciso observar alguns aspectos da tradição filosófica oxfordiana em sua contestação à escolástica parisiense e, muito especialmente, devemos estudar os princípios políticos fundamentais que norteavam a concepção antihierocrática ockhamista. O primeiro, e talvez mais importante, dos aspectos da evolução da escolástica foi possivelmente a separação entre a razão e a fé. Com Duns Scot e Guilherme de Ockham, a teologia voltou-se para o maior problema da escolástica: o equilíbrio entre a razão e a fé. Foi Duns Scot o primeiro a pretender separar a razão dos assuntos da fé, pois a liberdade de Deus é tal que escapa à razão humana. A liberdade divina, tornada centro da teologia, estava definitivamente fora do alcance da razão. Tal ponto do vista foi levado adiante por um franciscano, estudante e professor em Oxford, Guilherme de Ockham. Ao lado de seus importantes opúsculos “políticos”, sua principal obra teológica foi realmente o Dialogus (1339-41). Ele, de fato, prosseguiu a obra scotista e completou o divórcio entre o conhecimento prático e o teórico, aplicando as conseqüências da doutrina scotista às relações entre o homem e Deus. Atinge-se a verdade mediante duas formas de abordagens inteiramente diversas: a prova não diz respeito senão ao que se pode assegurar

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pela existência; tudo o mais é questão de especulação, não implicando certeza alguma, mas, no máximo, probabilidades. O domínio do experimentum era portanto um campo firme, enquanto o da razão era fundamentalmente incerto. A lógica ockhamista não conduzia necessariamente ao ceticismo, mas a aplicação de seus princípios à teologia, realizada fundamentalmente pelos seus seguidores, desembocou no ceticismo. De fato, em Ockham mesmo, no âmbito do conhecimento teórico, as certezas são asseguradas pela fé. Outro ponto de conflito entre o pensamento inglês e a escolástica parisiense, em particular com a obra de Santo Tomás de Aquino, encontrava-se na teoria da essência. Para o tomismo as essências constituíam universais que tornavam inteligíveis os seres particulares. Duns Scot contrapunha-se a esta tese afirmando que o universal e o individual estavam contidos conjuntamente na essência. As essências não seriam, portanto, apenas universais mas também individuais. A mais inovadora contribuição filosófica de Duns Scot, foi portanto o seu conceito de haeceidade (do latim, haecceitas).131 Em Guilherme de Ockham, tal questão é tratada de uma forma radical. De fato, ele retirou dos universais toda e qualquer realidade ontológica. Afirmava que os universais não tinham realidade objetiva, existindo apenas no intelecto humano e como algo produzido por ele; não tinham realidade nas coisas individuais e nem sequer na mente divina. Os universais eram, portanto, apenas palavras (em latim, nomen, daí a expressão 131

O fundamento de cada indivíduo, com relação à essência, não é dado por uma imperfeição resultante da forma distanciada desta, mas por algo positivo que se ajusta à essência, como sua determinação última. A consistência qualitativa do indivíduo é tal que a cada um corresponde uma idéia divina. Esta determinação última da essência é conhecida por haeceidade (derivada do latim, haecceitas, ele próprio), pela qual se costuma sintetizar a doutrina escotista da individualização. Na filosofia escolástica, a haeceidade era aquilo que permitia a um indivíduo ser ele mesmo, distinto de todos ou outros. Sinônimo de eceidade e de ipseidade, poderíamos traduzir estes termos por individualidade. Tal princípio foi retomado pelos existencialistas por referência ao Dasein heideggeriano: a haeceidade passou a designar o fato de ser-aí (no mundo).

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“nominalismo” para a teoria de Ockham). Sendo somente signos, serviam para designar um conjunto de semelhanças ou identidade de caracteres, extraído das coisas individuais pelo intelecto humano. Mas não se deve supor que o pensamento de Ockham foi uma seqüência natural do de Duns Scot. De fato, como salienta Etienne Gilson (1995, p.800), seu esforço mais interessante foi o que ele dirigiu contra o realismo de Scot. A unidade do universal, segundo Scot, era a de um grupo, baseada ao mesmo tempo na coletividade e em cada um dos indivíduos que a constituíam. Ockham não aceitava em absoluto esse compromisso; a seu ver, só havia unidade numérica do indivíduo. O que só possuía uma unidade inferior à unidade numérica, não podia ter nenhuma espécie de unidade. Não tendo unidade verdadeira, eram os universais, pois, igualmente desprovidos de realidade. Com efeito, foi baseado em sua concepção lógica e em sua teoria dos universais que Ockham desenvolveu toda sua doutrina política. Uma das grandes conseqüências do “nominalismo” foi o abismo que ele causou entre o saber racional (dos seres individuais, concretos, encontr ados na natureza) e o campo do pensamento religioso. A fé não podia encontrar qualquer apoio na razão, pois se tratava de caminhos divergentes. Desta forma, o poder espiritual e o temporal deviam igualmente se distinguir radicalmente. De fato, o que ocorria no campo do pensamento lógico e teológico tinha repercussão imediata na “teoria política” ockhamista. Assim, por um caminho diverso e uma reflexão completamente distinta, Ockham, tal como Dante, chegou a uma distinção de vias, a do papa e a do imperador. Vejamos como ele concebia os dois poderes.

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Segundo Ockham, como afirma Marcel Pacaut (op. cit., p 173)., o papa havia, desde vários séculos, exercido um poder temporal que ele jamais recebera e ao qual ele não tinha nenhum direito. Pois, como observa Pacaut (ibid., p.173), para Ockham, o papa exercia apenas a jurisdição de Pedro, não a de Cristo. Ora, o poder transmitido por Jesus a Pedro é limitado, mesmo o espiritual, o qual deve ser concebido como um serviço e como um ministério. O papel do Sumo Pontífice que é, em princípio, o de orientar os fiéis a chegar a alcançar a Salvação, não lhe dá a faculdade de se ocupar dos direitos e liberdades da ordem temporal que, aliás, existiam antes do surgimento do Cristianismo, preexistiam no Império pagão e foram herdados pelos cristãos. Mas, prossegue Pacaut analisando o pensamento de Ockham (id., p.174), o papa possui igualmente uma jurisdição limitada no plano religioso, uma vez que a Igreja é a reunião de todos os batizados, uma comunidade de fiéis e não unicamente de clérigos (Congregatio Fidelium). Assim, a verdadeira autoridade dentro da Igreja pertence à assembléia de todos os fiéis (Concílio), o que reduz a hierarquia a um simples organismo administrativo. Na realidade, segundo Marcel Pacaut (id., p.174) , para Ockham, na Igreja, cada crente tem uma certa competência, mesmo porque cada um obtém a Salvação por sua própria fé e não graças aos prelados. Mas se, por um lado, Ockham procura limitar o poder pontifício, por outro ele exalta o poder imperial. Pacaut (id., p.174) afirma que o Império para Ockham deve ser independente da Igreja. O imperador é, dentro da ordem política, o mais eminente de todos os soberanos. Seu poder está fundado sobre costumes, direitos e franquias que lhe são tradicionalmente reconhecidos. Todo o mundo, em suas ações e relações humanas, deve

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estar a ele submetido, inclusive todo o clero e o próprio papa. A hierarquia eclesiástica exerce seu ofício apenas no domínio espiritual. Neste domínio, os imperadores e reis lhe estão lhe sub metidos, mas somente a título pessoal. Seus atos públicos não se enquadram nesta submissão desde que não se opunham aos bons costumes e à regra evangélica. Mas se os governantes temporais não os respeitam, podem ser submetidos a sanções religiosas. Ockham retoma assim, como salienta Pacaut (id., p. 175), a argumentação ratione peccati, matizando-a porém. Com efeito, como o papa também pode ser herético ou praticar atos indignos do seu cargo, Ockham, conclui Pacaut (id., p.176), trabalha com relações recíprocas: o imperador, que participa da designação do papa, é também seu juiz em caso de necessidade. Com relação ao seu debate com Marsílio em particular, analisamos primeiramente a questão relativa ao poder jurisdicional do papa e dos bispos. Efetivamente, para Guilherme de Ockham, como afirma José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (1999 (1), p.167), os papas e demais eclesiásticos “regularmente” recebem de Cristo um poder para servir aos fiéis neste mundo, de modo que tenham todas as condições de vir a obter a Salvação. Tal poder “ocasionalmente” permite-lhes agir no mundo, quando por negligência, omissão, incompetência ou outra falta, os que possuem a autoridade secular não exercem corretamente o poder que lhes compete, na condição de responsáveis pelo bem comum de seus súditos. Ockham, salienta José Antônio Souza (ibid., p.167), de fato considera, aludindo claramente a Marsílio, que estão completamente enganados aqueles que negam que papas e bispos receberam tal poder que, precipuamente, está ligado à esfera espiritual e, só casualmente, à temporal.

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Tal perspectiva encontra sua forma acabada no opúsculo Sobre o Poder dos Imperadores e dos Papas, escrito com a preocupação central de mostrar que os papas de Avignon estavam a transgredir ou a extrapolar os antigos limites estabelecidos para a sua atuação na Igreja e no mundo, violando, desta forma, os direitos dos fiéis em geral, clérigos e leigos, especialmente o dos poderes seculares e, em especial, os do imperador. Para tanto, delimitou precisamente o âmbito específico de atuação ao qual se estendia o principado apostólico ou, em outras palavras, o que pensava a respeito da verdadeira plenitude do poder (plenitudo potestatis) que o papa detinha. Ou seja, fazer, regularmente no âmbito espiritual e, em caso de negligência da autoridade política, no âmbito temporal, tudo o que fosse indispensável para que os fiéis alcançassem a Salvação. Atesta igualmente que os demais bispos, identificados como subordinados do papa, têm localmente os mesmos direitos e devem mesmo ser atendidos com solicitude pelo papa em tudo que for necessário ao cumprimento desta competência. Vejamos nas suas próprias palavras:

“Mas alguém, ainda, poderá perguntar qual é especificamente o âmbito de atuação ao qual se estende o principado apostólico. Respondo a tal indagação, dizendo que, segundo atestam as determinações dos cânones, é da competência do papa, e de todos os bispos em geral, fazer tudo aquilo que é próprio e indispensável aos cristãos, no tocante á ‘leitura da Escritura, á pregação da palavra de Deus’, à organização do culto divino, e tudo aquilo que é necessário e próprio dos cristãos, a fim de que possam vir a alcançar a salvação eterna; e tais coisas não há entre os fiéis. Por outro lado, como o pontífice romano, particular e principalmente, não pode fazer por si mesmo tudo isso em todos os

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lugares da terra, deve útil e prudentemente prover a maneira pela qual elas sejam bem-executadas pelos eus subordinados, nunca excedendo a justa medida. Essa é a ‘solicitude’ que o papa deve ter ‘para com todas as igrejas’, de maneira que é da sua competência fazer tais coisas regularmente, porque são enumeradas entre as coisas espirituais. Em caso, porém, de necessidade ou de utilidade, que pode ser equivalente a necessidade, poderá, então, e deverá se envolver com os negócios temporais, quando faltarem todos os outros a quem competia cuidar disso, suprindo a condenável e perigosa negligência deles. Essa é, pois, a plenitude do poder, mediante a qual o sumo pontífice se destaca e se projeta em relação às demais pessoas, e graças à qual, pode, regular ou ocasionalmente, fazer tudo o que julgar necessário para o governo dos fiéis” (GUILHERME DE OCKHAM, 1999, p. 193 e 194).

Tais perspectivas confrontam completamente com os princípios fundamentais do pensamento eclesiológio de Marsílio. Ockham faculta ao papa (e, localmente, a todos os bispos ou, mesmo, a todos os sacerdotes) um campo regular de atuação no domínio espiritual e, mesmo, a possibilidade de intervenção ocasional no domínio temporal. Tal intervenção é legítima desde que vise ao objetivo último que é a razão de ser do seu primado (ou do seu sacerdócio, no caso da atuação local com relação aos bispos e demais sacerdotes), a saber: conduzir os homens à Salvação. Com efeito, sua grande preocupação era denunciar o Papado Avinhonês como tendo transgredido tais direitos.

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Vimos, nos Capítulos 4 (p.194 a 252) e 5 (p.253 a 331) que, ao contrário, o Paduano, por um lado considera a hierarquia eclesiástica como sendo, no âmbito da “Congregação dos Fiéis” ou Igreja, apenas uma instituição “secundária” ou “acidental” e, no âmbito da civitas, tão-somente uma de suas partes (a pars sacerdotalis). Ele, por outro lado, submete totalmente esta hierarquia, incluindo o papa e todos os outros bispos, ao comando único do imperador. É ao imperador que, portanto, cabe guiar os homens tanto na satisfação de suas necessidades terrestres que integram o “bem viver” quanto nas espirituais que os conduzem à Salvação. Com relação ao segundo aspecto, a questão do casamento do filho do imperador com Margarida Maultasch, Guilherme de Ockham, em seu opúsculo Consulta sobre uma Questão Matrimonial, defende a tese, como afirma José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (1999 (2), p.148), de que Luís IV, sucessor dos imperadores romanos, pagãos e cristãos, herdou todos os direitos que eles possuíam, uma vez que a religião cristã, após ter sido instituída por Cristo, não suprimiu os direitos de que eles gozavam. Como entre estes direitos constava o de julgar os problemas relacionados com o casamento, ele é parte integrante dessa grande herança. Com efeito, para Ockham, prossegue José Antônio Souza (ibid., p.148), o casamento é uma instituição natural e social e, ainda que o Cristianismo o tenha tornado um sacramento, isto não alterou a sua essência. Como também, conclui José Antônio Souza a análise do pensamento de Ockham (id., p.148), não há nada na lei natural ou no Novo Testamento, aos quais cabe ao imperador sempre respeitar, que vete o casamento entre parentes, o imperador pode de fato, ocasionalmente, face às circunstâncias de interesse político, intervir na esfera espiritual para dispensar duas pessoas que desejam casar e se

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vêem impedidas por haver impedimento de consangüinidade, cuja dispensa só pode ocorrer mediante uma autorização eclesiástica. Nesta questão, apesar de ter de fato ocorrido desavenças, motivadas sobretudo pela disputa pela preferência imperial na escolha de um ou de outro opúsculo e, num âmbito mais geral, pela posição de principal teórico da corte do Bávaro, as perspectivas ockhamistas e as marsilianas, como pudemos observar, se aproximam bastante. A grande diferença era que, para Marsílio, a dispensa do impedimento de consangüinidade por parte do imperador não constituía uma intervenção na esfera espiritual. Já que o casamento era em essência uma instituição puramente natural e social (fato também admitido por Ockham, como vimos), sua regulamentação estava incluída na esfera de ação política do imperador. Mas o pensamento marsiliano, conforme apontado, além de ser usado com freqüência pelos defensores da autonomia do poder político ao longo dos séculos XIV e XV, teve grande influência na chamada doutrina conciliarista do século XV. Com relação à utilização dos princípios marsilianos por parte dos defensores da autonomia do poder político, podemos atestar, ao menos, como estuda Jeaninne Quillet (1977, p.7 e 51 a 60), a relação entre o pensamento marsiliano e o escrito chamado Somnium Viridiari, de 1376, que, dois anos mais tarde, foi traduzido para o francês (Le Songe du Vergier). Trata-se de uma obra de compilação, solicitada pelo próprio rei da França, Carlos V, na qual, segundo atesta Quillet (ibid., p. 60), no Livro I, a Secunda Dictio do Defensor Pacis, está amplamente utilizada com o intento de combater as pretensões exorbitantes do poder eclesiástico.

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Meio século depois da composição do Defensor Pacis notou-se de fato uma forte presença desta obra em contextos diferentes mas igualmente significativos. Uma tradução anônima francesa da mesma já devia circular, há algum tempo, e igualmente ser conhecida em Florença, dado que em 1363 acabou sendo traduzida para o volgare florentino, com os propósitos de confutar o primado papal e de reivindicar os direitos do poder secular. A tradução francesa perdeu-se. Todavia, é indiscutível que circulava nos meios acadêmicos. Tanto foi assim que, em 1375, o papa Gregório XI lamentou o fato, perante membros da Faculdade de Teologia de Paris que estiveram na Cúria avinhonesa. Em seguida, os dirigentes da Faculdade abriram contra ela um processo que, no entanto, não produziu nenhum resultado concreto. A presença, na segunda metade do século XIV, da principal obra marsiliana em Paris e Florença, dois centros políticos e intelectuais de primeira envergadura no conjunto do Ocidente, por si só já atesta sua permanência e divulgação. Mas, sendo Paris e Florença cidades difusoras de cultura letrada, é possível mesmo supor ao menos uma divulgação do Defensor Pacis em grande parte, respectivamente, do reino da França e no norte da Península Itálica, o que tornou possível o acesso à mesma por parte dos ideólogos que, a partir do final do século XIV, formularam as bases da “doutrina conciliarista”. Devemos, entretanto, compreender adequadamente os processos históricos que culminaram nestas formulações. Os papas que sucederam Clemente VI no trono de Avignon, Inocêncio VI, Urbano V e Gregório XI, estavam, como os anteriores, ligados ao poder capetíngio, mas, devido ao enfraquecimento do poder teutônico, não tiveram mais que se envolver em questões com o Império. Porém, quando o Papado retornou a Roma, encontrou-se envolvido em

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acontecimentos de uma tal ordem que colocaram gravemente em perigo a Respublica Christiana e aboliram para sempre as reivindicações hierocráticas. Com a morte precoce de Gregório XI, um acordo dos cardeais no conclave permitiu eleger um italiano, o arcebispo de Bari, Bartolomeu Prignano, entronizado e coroado com o nome de Urbano VI. Mas este revelou-se um papa extremamente autoritário, lançando taxas sobre os cardeais, insultando e mandando torturar os recalcitrantes. Em conseqüência, os cardeais franceses partiram em bloco para Avignon, seguidos logo depois pelos italianos. Elegeram por unanimidade o cardeal Roberto de Genebra que tomou o nome de Cle mente VII e também este seguiu para Avignon. Porém, Urbano VI recusou-se terminantemente a aceitar a decisão do novo conclave e continuou, de Roma, dirigindo a Igreja Universal. Estava assim instaurado o episódio que ficou conhecido na história da Igreja medieval como o Grande Cisma da Cristandade. A Europa Ocidental dividiu-se então, em função da geografia ou das oportunidades políticas, em duas grandes obediências: os “clementinos” se opunham aos “urbanistas”. A morte dos dois papas deu origem a novas eleições em cada um dos lados: Bonifácio IX, em Roma (1389) e Bento XIII, em Avignon (1394). Os dois papas então se excomungaram mutuamente e lançaram bulas de cruzada um contra o outro. Tal situação criava graves problemas espirituais e políticos. É nesta época que, para salvaguardar a unidade dos cristãos, se compõe uma missa para este fim. Também, mediante o caos reinante, os poderes políticos intervinham mais facilmente na vida de suas Igrejas. Assim, em 1409, os cardeais dos dois partidos pensaram poder resolver o problema através da convocação de um Concílio em Pisa. Os dois papas de então foram depostos e foi designado um novo, Alexandre V. O resultado, entretanto, não foi o esperado, a

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Cristandade passou a ter três papas, já que Bento XIII e Gregório XII se recusaram a abdicar. O imperador Sigismundo impôs então a João XXIII, sucessor de Alexandre V, a convocação de um novo Concílo em Constância, Concílio que durou quatro anos (14141418). João XXIII temendo ser julgado fugiu do Concílio. Pelo decreto Sacrosancta (6 de abril de 1415), a assembléia afirmava a superioridade do Concílio sobre toda a Igreja, incluindo o papa. Foi só em 1417 que a abdicação de João XXIII e de Gregório XX, bem como a deposição de Bento XIIII, permitiram a eleição de Martinho V, pondo fim ao Cisma. O Concílio tinha igualmente como objetivo uma reforma geral da Igreja. Não houve mais que veleidades a este respeito, mas ficou decidido a reunião de concílios periódicos reformadores. No decorrer do Cisma, desenvolveu-se a tese conciliarista. Com a convivência por tantos anos de dois, de três papas, com o objetivo de salvaguardar a unidade do orbis Christianus defendeu-se a tese que os homens tendem para a unidade se esta é obtida pela Ecclesia, em detrimento do papa. É a ela, e não a ele, que é preciso se aderir para se ser salvo. Ao se tomar consciência que, apesar da ausência de um papa totalmente reconhecido, a Igreja permanecia intacta, exprimiu-se uma eclesiologia que valorizava a Ecclesia Universalis, única infalível, sob a chefia, não de um papa-bispo universal, mas do próprio Cristo. O primeiro a desenvolver uma argumentação neste sentido foi Conrado de Gelnhausen. Em sua Epistola Condordiae (1380), como afirmam David Knowles e Dimitri Obolensky (1973, p.448), pedia a reunião de um Concílio Geral, baseado no princípio que a Igreja Universal é superior ao papa e aos cardeais, e na premissa de que “o que a todos se refere deve ser tratado por todos”. À lei que atribuía somente ao papa o dirieto de convocar

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o Concílio, Conrado opunha o princípio de que a necessidade não conhece leis, e que o Cisma era um caso não previsto pelos legisladores do direito canônico. Depois de Conrado, surge o nome de Henrique de Langenstein com sua Epistola Pacis (1381), na qual, como dizem Knowles e Obolensky (ibid., p.449), o autor defende o direito que tem a Igreja de se desembaraçar de um papa mal escolhido ou prejudicial. A idéia conciliarista triunfa entre 1407-15. Concilium universalem Ecclesiam repraesentans : é o Concílio que representa a Igreja Universal. Os teólogos ligados ao Concílio de Constança deram os retoques finais a esta concepção. Dietrich de Niem, Pierre d’Ailly e Jean Gerson, entre outros, apesar de grandes diferenças entre eles, procuraram limitar o poder do papa. Este, ainda que permaneça a parte mais alta da Igreja, deve ter seu poder, para evitar abusos, controlado pela própria Igreja, quer dizer, pelo Concílio. Uma vez que a parte mais alta é ainda só uma parte, que não esgota nem contrabalança o todo, o Concílio pode mesmo, na plenitude de seu poder, depor um papa herético ou pernicioso. De acordo com Francis Rapp (1980, p.75), os conciliaristas do início do século XV procuraram precisar a noção de autoridade e nisto distinguiram a potestas habitualis da potestas actualis. A primeira era indissociável do ser que a possuía. Ela pertencia somente a Congregatio Fidelium. O papa era detentor apenas da segunda. Como esta dependia da função que ele ocupava ou, em outras palavras, dependia do fato de ele ser o atual ocupante do trono de São Pedro, ela poderia perfeitamente lhe ser retirada, se fosse o caso, mediante o poder do conselho representativo da Congregatio, o Concílio Geral. Como observa Yves Congar (1970, p.307), eles assinalaram os limites do exercício normal do poder dos papas, a saber: o Sumo Pontífice não podia tocar no direito divino, no direito natural, no status generalis ecclesiae. Não contentes de afirmar a autoridade

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puramente formal do papa, prossegue Congar (ibid., p.307), eles precisaram suas condições políticas e morais (aequitas , honestas, utilitas, exclusão do escândalo). Ademais, conclui Congar (id., p.307), eles, longe de aceitarem o governo monárquico dos hierocratas, afirmam que os papas devem respeitar os cânones dos Concílios. Com o sucesso destas teses, os papas passaram, ainda que momentaneamente, a ficar submetidos às diretrizes e à correção do Concílios. A vitória conciliarista, entretanto, não foi duradoura. Mais exatamente, ela instaurou o período que na história da Igreja ficou conhecida como o da Crise Conciliar. Segundo o calendário previsto, Martinho V convocou um Concílio a ser realizado em Pavia, em 1423. Depois convocou o de Basiléia, em 1431 Este último reuniu poucos bispos, mas muitos eclesiásticos de todas as ordens e universitários, incluindo alguns leigos. A reforma estava na ordem do dia. É verdade que, para muitos, ela consistia essencialmente na diminuição de impostos. A maioria do Concílio declarou sua oposição ao papa, particularmente no que se referia à escolha de um lugar de encontro com os representantes da Igreja grega com vistas à reunificação. Em setembro de 1437, Eugênio IV decidiu transferir o concílio de Basiléia para Ferrara e, depois, para Florença. Os partidários do papa deixaram pois Basiléia. Aqueles que permanecera m, cerca de dez bispos e trezentos clérigos, depuseram Eugênio IV em junho de 1439, elegendo como papa o duque da Sabóia, Amadeu VIII, que tomou o nome de Félix V. Este cisma, entretanto, acabou não trazendo qualquer resultado e, em Basiléia, o Concílio acabou se esgotando e sendo mesmo ridicularizado. O Concílio transferido para Florença apresentou, ao menos na aparência, melhores resultados. O basileus de Constantinopla, desesperado com o avanço dos turcos otomanos,

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desejava a ajuda militar do Ocidente, mas esta última pressupunha uma unidade religiosa. O Concílio de Florença atendeu a este objetivo. Chegou mesmo a ser assinado um decreto de União em 5 de julho de 1439. Contudo a união não se realizou de fato, devido à oposição de alguns orientais como o bispo Marcos de Éfeso, mas sobretudo pelo fato de que, realmente, os ocidentais em geral não se interessavam pelo destino de Constantinopla. A queda de Bizâncio, em 1453, interrompeu definitivamente as relações entre Oriente e Ocidente, entre as duas Igrejas. A Crise Conciliar terminou pela vitória do Papado. Félix V, que nunca tivera muitos partidários, abdicou em 1449. A partir de então, a autoridade monárquica do bispo de Roma voltou a se recompor. Esta crise, entretanto, serviu ao menos para fazer desaparecer das penas dos canonistas e teólogos, de uma forma definitiva, as pretensões hierocráticas do Papado. Mas nem por isto os grandes problemas da Igreja haviam sido resolvidos. A tão desejada reforma não havia progredido. Fortalecidos pela recuperação de sua autoridade, os papas podiam ter se encarregado dela. Mas, tragados pelo turbilhão da política italiana e com o Renascimento, preocuparam-se sobretudo em resolver problemas políticos e cobrir Roma com edifícios prestigiosos. De acordo com Yves Congar (id., p. 314 e 315), Conrad de Gelnhausen, Henri de Langenstein e Dietrich de Niem foram influenciados pelo conceito multitudinista de Igreja de Guilherme de Ockham, mas também sofreram influência de Marsílio; enquanto Jean Gerson e Pierre d’Ailly eram homens da Igreja, “responsáveis e moderados” como nos diz Congar (id., p.315). Segundo Gregorio Piaia (1977, p.46), o debate acerca do conciliarismo, aberto com o Cisma, marcou um novo capítulo nos rumos do Defensor Pacis, decorrentes da relevância

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que as teorias conciliaristas assumiram no pensamento eclesiológico-político e jurídico daquele momento, e porque foram retomados alguns dos temas abordados por Marsílio, mais propriamente de natureza filosófico-política, até então relativamente descurados. Piaia (ibid., p.46) ressalta sobretudo um conhecido passo do De Schismate (escrito na primeira década do século XV) de Francisco Zabarella, no qual o canonista paduano estabelece um interessante paralelo entre as instituições civis, reguladas através de princípios filosóficospolíticos, e as instituições religiosas com o Direito Canônico. Piaia (id., p.46) salienta que Zabarella, em sua argumentação sobre a “soberania popular”, procura destacar a correspondência que há entre a congregatio civium e a congregatio hominum totius orbis, ou seja, entre a dimensão da civitas e aquela do Imperium entendido idealmente, e ainda, entre a universalidade civil (com sua valentior pars) e a universalidade eclesiástica (com sua potior pars de derivação canonística). Este sistema de correspondência, que confirma o uso das teses conciliaristas sustentadas por Zabarella, é, conclui Piaia (id., p.46), bastante estranho à versão latina da Política, referindo-se antes à própria estrutura do Defensor Pacis, com sua simetria de princípios e de soluções entre a Prima e a Secunda Dictiones, entre o discurso filosófico-político e o discurso eclesiológico.

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CONCLUSÃO

Como comentamos no Capítulo 4 (p.194 a 252), parece ser consenso entre os autores caracterizar o pensamento marsiliano, ao menos em sua obra principal, o Defensor Pacis, como um libelo da luta política e ideológica das comunas do centro-norte italiano contra as ingerências papais em seus domínios. Estes mesmos autores também pretendem estabelecer uma separação fundamental entre Dante Alighieri e Marsílio de Pádua, entre o De Monarchia e o Defensor Pacis. Acreditam que, por um lado, Dante e o De Monarchia se encontram ligados à defesa do Império Universal e, por outro, Marsílio e, mais especialmente o Defensor Pacis, tomam fundamentalmente o partido da causa citadina, não havendo portanto, ao menos nesta obra, uma postura ligada à causa imperial. Vejamos, como exemplo, a opinião de dois destes autores. Inicialmente, a de Jacques Le Goff:

“(...) o que distingue Ockham e, sobretudo, Marcílio de Pádua da tradição gibelina é que eles não aspiram mais, decididamente, a reunir em um único Estado laico imperial toda a humanidade, e nem mesmo toda a Cristandade. Tudo opõe, e nesse aspecto especialmente, Marcílio de Pádua a Dante, para quem o imperador deveria ser, ao contrário, o restaurador da unidade fundamental. A política escolástica procurava estender a todos os homens a cidade de Aristóteles transformada em cidade cristã. A política de Marcílio admite a diversidade de nações e de Estados” (1989, p.110).

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Vejamos então o que nos diz Quentin Skinner:

“Não há dúvida, porém, de que do ponto de vista das repúblicas lombardas e toscanas, ciosas que eram de suas liberdades, a proposta de Dante dificilmente haverá parecido ser uma solução muito tentadora para suas dificuldades. Se a sugestão de Dante lhes fornecia um meio de denegar o direito do papa a intervir em seus negócios, era às custas de uma vez mais impor- lhes a marca de vassalos do Santo Império romano. Ficava óbvio, então, que aquilo de que elas mais necessitavam era uma forma de argumentação política capaz de defender sua liberdade contra a Igreja, mas que não acarretasse o risco de cedê- la a outra potência (...) A resposta a essa questão foi formulada pela primeira vez em Pádua, a república líder da Lombardia, pouco depois que o fracasso da expedição imperial de 1310-13 descartou a espécie de solução que Dante havia apostado. O essencial dessa solução deve-se a Marsílio de Pádua (...) no célebre tratado O defensor da paz, por ele concluído em 1324 (...)” (1996, p.40).

Comentando as observações de Jacques Le Goff e Quentin Skinner, observamos que a primeira parece nascer de uma leitura equivocada da obra de Dante e, em especial, do De Monarchia onde, em nossa opinião, o Florentino, absolutamente, não deixa de reconhecer a diversidade política da Europa Ocidental no início do século XIV, apenas reclama um poder superior ao dos reis, condes, castelões, conselhos de cidades, que seria assim o grande ordenador universal. Equívocos como este são de fato bastante comuns em grande parte dos medievalistas franceses, arraigados aos estudos sobre o caso francês tomado

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como um modelo que pode ser estendido ao conjunto do Ocidente. Com relação a Skinner, nossa contestação se encaminha no sentido de rejeitar a tese de que Marsílio e o Defensor Pacis não defendem a submissão das cidades ao imperador, pois o último era para Marsílio, num sentido ainda mais amplo e profundo do que para Dante, o grande ordenador universal, ordenador político e de todas as atividades sociais. Com efeito, a razão da pequena repercussão da argumentação dantesca foi devido a ela não apresentar, ao contrário da marsiliana, uma eclesiologia, ou seja, uma proposta efetiva de combate aos argumentos ideológicos eclesiásticos. Pensamos efetivamente que tanto Dante (De Monarchia) quanto Marsílio (já no Defensor Pacis, igualmente nas chamadas “Obras Menores”) procuram defender as perspectivas imperiais do Sacro Império. A comparação entre as teses imperiais dos dois autores foi analisada no Capítulo 6 (p. 333 a 359). Verificamos naquela ocasião que a perspectiva marsiliana se encontra muito mais próxima do pensamento da corte imperial Hohenstaufen, desenvolvido durante os séculos XII e XIII, do que a dantesca: enquanto Dante defendia a existência de duas vias autônomas na direção da Cristandade (Christianitas), Marsílio defendia a inteira subordinação da autoridade espiritual ao poder político, ou seja, exatamente o que pretendia a dinastia dos Hohenstaufen . Como analisamos no Capítulo 3 (p.128 a 193), Marsílio de Pádua, na Prima Dictio do Defensor Pacis, desenvolveu, a partir de uma releitura da obra aristotélica (especialmente da Política), sua teoria política redefinindo os conceitos de civitas, de pax e de lex em princípios puramente naturais. A partir desta redefinição, na Secunda Dictio do Defensor Pacis, o Paduano desenvolveu seus argumentos eclesiológicos, por nós analisados no

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Capítulo 4 (p.194 a 252), no sentido de desmontar a plenitudo potestatis dos papas ou, mais exatamente, revertê- la em proveito do sacro imperador romano-germânico. Com efeito, na Secunda Dictio, duas questões são fundamentais: o princípio conciliarista marsiliano e sua proposta de total subordinação do domínio espiritual ao poder político. Marsílio, por um lado, caracteriza o Concílio Geral como a representação legítima da Igreja, ou seja, do conjunto dos fiéis, clérigos e leigos, e atribui- lhe a suprema competência para, na totalidade da Cristandade, legislar e ordenar a respeito dos assuntos espirituais, sejam dogmáticos ou disciplinares, retirando-os assim, completamente, do arbítrio do papa ou do conjunto dos bispos, ou de qualquer outro corpo exclusivamente clerical por mais digno que seja. Em resumo, no modo de ver do Paduano, cabia ao Concílio Geral a autoridade espiritual suprema na Cristandade. Por outro lado, para Marsílio o poder político pertencia somente ao governante ou príncipe. Este, o legítimo representante da totalidade dos cidadãos, por isto mesmo o verdadeiro ordenador da civitas, ordenador de todas suas partes e de todas as funções sociais, é o único que possui, desta forma, a jurisdição coercitiva, real e pessoal, sobre cada pessoa singular de qualquer condição, seja clérigo ou leigo, e igualmente sobre todas as suas corporações. Mas ainda que o governante ou príncipe não tenha um poder direto no âmbito espiritual, ele acaba controlando os assuntos espirituais por uma via indireta, ou seja, pela sua posição de liderança sobre os concílios. Com efeito, compete apenas a ele, usando o poder coercitivo que somente ele detém, convocar os concílios, tornar válidas suas decisões e constranger os infratores das mesmas.

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Reportando-se ao âmbito da direção da Cristandade, vemos que o imperador detém um poder absoluto no temporal, poder este que se exerce diretamente sobre a ampla civitas que é a própria Cristhianitas. No que tange à autoridade espiritual, ela pertence somente ao Concílio Geral mas, indiretamente, também ao imperador que é quem o convoca e dirige. Para Marsílio, efetivamente, os sacro imperadores haviam herdado dos imperadores romanos cristãos o controle também dos assuntos espirituais e tal herança tinha como elemento determinador o papel diretivo, tanto de romanos quanto de germânicos, sobre o Concilio Geral da Cristandade. Assim, para o Paduano, o imperador é, em última análise, o supremo governante dos dois domínios, a única cabeça da Cristandade. Desta forma, ainda que Marsílio jamais o tenha dito explicitamente, já que o imperador é, no final das contas, o governante da Igreja, logicamente é a ele quem cabe o papel de conduzir sua Reforma (considerada necessária e urgente por Marsílio), reconduzindo-a ao estado primitivo de pobreza e submissão à autoridade política. Os dois principais aspectos da sua “Obra Menor” intitulada Tractatus de Translatione Imperii são: a) a legitimação do poder imperial romano-germânico como descendente do Império Romano pela mediação do Império Carolíngio; b) reclamar a total independência do Sacro Império Romano-Germânico com relação ao Papado. Efetivamente, o poder imperial, de origem divina, foi legado desde Roma até ao Sacro Império por meio de duas translações do império (imperium), chegando assim legitimamente às mãos de Carlos Magno e, posteriormente, às de Oton I. Para Marsílio, enquanto não havia sido instituído o colégio dos príncipes eleitores, era o povo de Roma, pela sua especial dignidade, quem, representando a Cristandade, expressava o consenso que traduzia a vontade divina sob uma forma inteligível, isto é,

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através do ato de aclamatio (ou mesmo através da adoratio). A partir desta instituição, entretanto, tal colégio passa ser o representante e, portanto, o legítimo porta-voz da escolha dos romanos, quer dizer da Christianitas, ou seja, o verdadeiro intérprete da vontade divina. Finalmente, Marsílio tem a intenção, no De Translatione Imperii, de caracterizar o ato de coroação dos imperadores pelos papas como não tendo qualquer função institutiva. Tal coroação era executada pelo bispo romano simplesmente por ser assim tradicional, reduzida simplesmente a uma espécie de ato ritual. Tal concepção tem como finalidade última defender que, por um lado, o sacro imperador, uma vez escolhido pelos príncipes eleitores, assume legitimamente a totalidade de seus poderes enquanto príncipe e imperador e, por outro lado, equivale a dizer que a aceitação papal não acrescenta nada de essencial ou de constitutivo à dignidade imperial. Mas a legitimação do poder imperial também se encontra relacionada, no pensamento de Marsílio, à sua idéia de governo perfeito, desenvolvido na Prima Dictio do Defensor Pacis. O governante perfeito devia possuir determinadas qualidades, a saber: a prudência, a virtude moral e, principalmente, a justiça. Ele devia também ter um devotamento especial ou amor para com a sociedade civil e os cidadãos, de maneira que a bondade e a solicitude de suas ações viessem a promover o bem comum e o de cada indivíduo. A garantia de que as supracitadas qualidades fossem praticadas pelo governante e legadas aos seus herdeiros provinha, segundo a percepção marsiliana, da vontade consensual do conjunto dos cidadãos ou de sua parte preponderante ou, em outras palavras, o monarca se encontrava legitimado pelo processo da eleição. Assim, para Marsílio o governo perfeito era a monarquia régia eletiva. Tal

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perspectiva tinha um caráter geral mas, simultaneamente, se relacionava diretament e ao Sacro Império Romano-Germânico e, de forma especial, ao reinado de Luís da Baviera. Com efeito, Marsílio concebia a história do Império sob um ponto de vista fundamentalmente providencial. Toda esta história, desde a Roma pagã até ao Sacro Império do princípio do século XIV e, especialmente, as duas translações do império (imperium) e o surgimento do colégio dos príncipes eleitores, seguiam plenamente o plano de Deus. Acreditava que o grande objetivo da Providência nesta evolução histórica era de que os homens, no fim do processo, viessem a obter a vida suficiente neste mundo, disposição necessária para poderem atingir a vida eterna. Acreditava igualmente que era Luís da Baviera quem, submetendo o Papado e, estendendo seu poder sobre toda a terra, segundo uma perspectiva que aparece de forma evidente apenas no Defensor Minor, levaria o Império a sua culminância, o que também estava plenamente de acordo com o plano divino. O Defensor Minor, ainda que se mantenha fiel aos princípios políticos e eclesiológicos desenvolvidos no Defensor Pacis, apresenta, conforme abordamos no Capítulo 5 (p.253 a 332), duas diferenças fundamentais. Tais diferenças talvez possam ser explicadas por uma distinção precípua existente entre as duas obras. Em nossa opinião, a “Obra Maior”, composta enquanto Marsílio lecionava na Universidade de Paris, tinha um caráter fundamentalmente teórico e intelectual, ao passo que, no Defensor Minor, Marsílio, então refugiado na corte imperial em Munique, foi chamado, em virtude das circunstânc ias da querela entre Luís da Baviera e Bento XII, a dar respostas diretas a situações concretas, tendo assim um caráter mais prático.

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A primeira destas diferenças diz respeito aos limites territoriais sobre os quais deviam, exatamente, se estender a supremacia imperial. No Defensor Pacis, embora tal questão não seja diretamente analisada, Marsílio deixa entender que tais limites equivalem aos da Cristandade, (Christianitas), ou seja, à Europa Ocidental. Segundo o texto do Defensor Minor, no entanto, os mesmos são alargados para atingir todos os homens que vivem em sociedade, cristãos e infiéis, quer dizer sobre todo o gênero humano. Ë importante também salientar que, para Marsílio, tal supremacia correspondia a um poder efetivo, isto é, como dito acima, a jurisdição coercitiva, real e pessoal, sobre cada pessoa singular de qualquer condição, seja clérigo ou leigo, e igualmente sobre todas as suas corporações. A segunda diferença que verificamos, no Defensor Minor, com relação ao texto do Defensor Pacis, diz respeito à função legislativa do sacro imperador. No Defensor Pacis, o sacro imperador, uma vez que era escolhido pelo consenso da Christianitas, era visto como o protetor da lex, sendo portanto seu juiz e polícia. A atribuição de fazer as leis cabia, entretanto, a valentior pars, ou seja, ao conjunto dos homens sábios e experimentados, representativo dos cidadãos da enorme civitas que formava a Cristandade (Christianitas). No Defensor Minor, o sacro imperador, sem perder, com relação à lex, as outras atribuições, ou seja, a de juiz e a de polícia, ganha uma função adicional, a de legislador, isto é, cabe a ele fazer as leis, evidente que as leges generales, a saber, as que importam a todo o Império, sendo o imperador, desta forma, o supremo legislador da Humanitas. Salientamos que, entretanto, esta nova atribuição, bem como as primeiras, resulta igualmente de uma concessão dos cidadãos ao seu Príncipe (desde a Roma pagã até ao Império no século XIV), ou seja, o imperador também legisla apenas enquanto

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representante da universitas civium. Acrescentamos que, em Marsílio, o ato de fazer as leis do Império, atribuição específica do imperador, não ocorre por uma inspiração divina e, inclusive, o fato do imperador ser a incarnação da própria Lei Divina significa apenas dizer que ele incarna a Justiça. Para Marsílio o imperador, efetivamente, enquanto o representante dos cidadãos romanos, guarda em si a própria justiça divina, conferida por Deus ao povo de Roma e por ele transferida ao imperador. Mas o ato de fazer as leis é atividade puramente racional, uma vez que a própria lex também o é. Mas para entendermos melhor a concepção marsiliana da função legislativa do sacro imperador é preciso, no entanto, recordar algumas questões. Vimos no Capítulo 1 (p.11 a 80) que, no Império Romano, a função legislativa do imperador como o vicarius Christi, vista enquanto uma delegação de poder do povo de Roma ao seu Príncipe, era limitada por ter de respeitar o direito tradicional e dele se afastar somente em caso de necessidade patente, sendo necessária a aprovação dos cidadãos romanos por toda e qualquer mudança significativa. As leis imperiais tinham de fato um caráter sagrado. Mas, longe de expressarem a vontade do imperador a título puramente pessoal, representavam, na forma de um consenso, a vontade popular promulgada pelo imperador. Como a vontade consensual dos cidadãos romanos provinha de uma inspiração divina, havia coincidência entre esta e a própria vontade divina. Destarte, podemos dizer, em resumo, que as constituições imperiais eram “leis sagradas” uma vez que nelas se expressava a vontade inspirada dos cidadãos romanos. Vimos também nesse mesmo Capítulo 1 que, no entanto, certas declarações de juristas romanos, como a de Ulpiano no Digesto,1,3,31 e 1,4,1, podiam ser facilmente interpretadas no sentido do reconhecimento de um poder absoluto do imperador e que o

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próprio Justiniano, em seu Código, permaneceu no equívoco, exprimindo este ponto de vista e legando-o à Idade Média. O que explica a concepção dos Hohenstaufen, defendendo que o poder do sacro imperador, porque provém diretamente de Deus, é pleníssimo, tanto no domínio político quanto no religioso, e expressa-se principalmente por sua autoridade de fazer, sob inspiração divina, as leis que regem a Cristandade (Christianitas). Tal visão, no entanto, como analisamos nos Capítulos 1 e 5, não excluí a concessão popular. No sentido mais geral, o do poder imperial como um todo, assim como os imperadores antigos haviam fundado seu direito soberano sobre uma determinada concessão popular, também o imperador medieval não prescindia da antiga norma: a lex regia de imperio era a fonte do poder público. Com efeito, dizer, segundo a percepção dos Hohenstaufen, que o poder imperial provém diretamente de Deus, não significa dizer que não haja nisto a mediação dos romanos, mas antes que o poder imperial não é uma concessão dos papas. A origem do poder imperial é diretamente divina porque é Deus quem inspira os romanos e, assim, estes são o instrumento de Deus quando escolhem o imperador. Apenas tal escolha não se faz diretamente, mas através do colégio representativo dos príncipes eleitores. Mas também, no sentido mais restrito da função legislativa do imperador, tal poder é igualmente uma concessão dos cidadãos da Cristandade (Christianitas) ao seu Príncipe. Para os Hohenstaufen , as leges generales, feitas sob inspiração divina, são função do imperador na medida em que cabe a ele, como ordenador universal, representar, através da sua redação, a vontade inspirada dos romanos. Marsílio desta forma, no Defensor Pacis, a respeito da questão do poder legislativo do sacro imperador, se afasta da concepção imperial dos Hohenstaufen . Já no Defensor Minor,

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Marsílio se reaproxima bastante da “ideologia fredericiana”, resguardando no entanto sua visão puramente racional da lex. Com efeito, defendemos uma grande aproximação entre a perspectiva imperial dos Hohenstaufen e a visão marsiliana de Império, o que não quer dizer, no entanto, uma absoluta igualdade de propostas. O pensamento marsiliano, como pudemos observar ao longo da Tese e, muito particularmente no Capítulo 5 (o que trata, especificamente, do conceito de Império do Paduano), concorda em linhas gerais com os argumentos imperiais dos Hohenstaufen . Dois pontos parecem ser, no entanto, os pontos de dissonância. Um destes, já analisado acima, refere-se ao poder legislativo do sacro imperador. O outro diz respeito aos limites territoriais sobre os quais o poder imperial efetivo devia se estender. Com efeito, enquanto para os Hohenstaufen, muito a despeito do seu discurso universalista, a idéia de dominus mundi era fundamentalmente de caráter jurisdicional; em Marsílio, ao contrário, ela implicava num poder efetivo, de controle coercitivo e administração sobre bens e pessoas. Pudemos então, ao longo da Tese, desenvolver os princípios políticos e eclesiológicos marsilianos nos detendo, especialmente, em seu conceito de Império. Tais princípios, adequadamente equacionados, puderam então, por um lado romper com as perspectivas daqueles que fazem do Paduano um precursor da Modernidade e, por outro lado, determinar sua verdadeira contribuição para o conjunto do pensamento escolástico e medieval. A análise do conceito de Império, por sua vez, demonstrou, ao contrário da visão geral dos estudos marsilianos, que o Paduano, desde a época em que era mestre na Universidade de Paris, foi fundamentalmente um defensor do Sacro Império RomanoGermânico em sua luta política e ideológica contra a hierocracia, tendo uma perspectiva

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muito aproximada da desenvolvida pelos Hohenstaufen. Acreditamos então ter contribuído decisivamente, em nossa reavaliação, para uma melhor compreensão do pensamento deste autor, tão importante para diversos campos do conhecimento como a Filosofia, a História e o Direito, e que tem sido, no entanto, tão inadequadamente estudado.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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