Philip J. Havik & Suzanne Daveau (eds.) Orlando Ribeiro. Cadernos de Campo: Guiné 1947

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COLECÇÃO EXPERIÊNCIAS DE ÁFRICA SÉRIE ORLANDO RIBEIRO

Orlando Ribeiro – Cadernos de campo Guiné 1947

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ORLANDO RIBEIRO – CADERNOS DE CAMPO, GUINÉ 1947 Organização e estudos de Philip J. Havik e Suzanne Daveau Coordenação: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto Capa: António Pedro Na capa: Rapaz papel a levantar o muro de uma casa (Biombo) – foto de Orlando Ribeiro © Edições Húmus, Lda., 2010 Apartado 7097 4764-908 Ribeirão Telef. 252 301 382 Fax: 252 317 555 [email protected] Impressão: Papelmunde, SMG, Lda. – V. N. Famalicão 1.ª edição: Dezembro de 2010 Depósito legal: 311575/10 ISBN: 978-989-8139-39-9

Apoios:

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Philip J. Havik e Suzanne Daveau (Organização e estudos)

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Agradecimentos

Philip Havik e Suzanne Daveau ficam muito reconhecidos a todos os que os ajudaram na complexa preparação desta obra, destacando em particular tanto a primeira decifração do caderno de campo devida a Maria de Lourdes Ribeiro como a cuidadosa revisão dos nossos próprios textos por Maria Fernanda Alegria. Foi também esta última que realizou a digitalização prévia do caderno de campo, precioso elemento do Legado científico de Orlando Ribeiro ao Centro de Estudos Geográficos de Lisboa, hoje confiado por este à gestão do Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal, onde se encontra doravante conservado. Os nossos agradecimentos vão também para Fátima Lopes, responsável deste Arquivo, pela pronta cedência da digitalização definitiva do caderno. Mário Neves facilitou muito a utilização da Fototeca do Centro de Estudos Geográficos. Ruth Vieira efectuou a digitalização das fotografias e dos mapas n.os 2 a 5. José Peres passou a limpo o mapa n.o 1. Estamos também reconhecidos a Rui Magalhães da Húmus.

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Apresentação da Série Orlando Ribeiro

Nome grande da Geografia portuguesa, foi, sem dúvida, o maior geógrafo da sua geração. Vice-Presidente da União Geográfica Internacional, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde dirigiu por longas décadas o Departamento de Geografia, e fundador, em 1943, do Centro de Estudos Geográficos (CEG), Orlando Ribeiro deixou um espólio valioso, constituído pela sua biblioteca e pelas colecções, obras, fotos, filmes e documentos vários de que foi autor, dentre os quais se destacam os seus cadernos de campo, instrumento fundamental de trabalho e de registo. Percorrendo o país e o mundo, observando e registando o que via, num convívio permanente com os seus clássicos e com os seus contemporâneos, sempre, ao longo da vida, procurou conhecer mais e compreender melhor as terras e as gentes que os encontros e desencontros de uma vida rica e longa lhe proporcionaram. Observador perspicaz, conversador atento e académico aplicado, Orlando Ribeiro colocou sempre a si próprio as interrogações principais da Geografia. Por que razão estão aqui, e deste modo, com este aspecto, estas terras, estas águas e estas gentes? De que vivem estas pessoas, o que comem e o que vestem, como se organizam, o que produzem, o que vendem e o que trocam?… Tudo questões fundamentais da Geografia, da compreensão do Mundo e da cidadania, que a Geografia que é compreender é também aceitar e amar. Por todo o Portugal Continental, pelas Ilhas Atlânticas, pelos diversos pedaços do Império Colonial então já Ultramarino, pelo Brasil, Europa, África, Ásia e Américas, o seu amor à Geografia que o levou a toda a parte, conduziu-o ao entendimento de tantas paisagens e de tantas gentes… Numa feliz iniciativa do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, dirigido pela Prof.ª Elvira Mea, a que o Centro de Estudos Geográficos (CEG) desde logo se associou, e com o auxílio da Fundação Calouste Gulbenkian e o imprescindível apoio da Prof.ª Suzanne Daveau,

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companheira, colaboradora e testamentária de Orlando Ribeiro, dá-se agora a conhecer ao grande público e à comunidade dos geógrafos os seus cadernos de campo relativos às então colónias portuguesas em África. Este primeiro caderno, que trata da Guiné, então Portuguesa e hoje Bissau, é testemunho eloquente do modo como se fazia então a ciência, com limitados recursos tecnológicos mas com ilimitada capacidade intelectual de observar, comparar e perceber. Um caderno que evidencia, na sua simplicidade, a sede de saber, a visão do erudito e o trabalho esforçado do explorador, e que para o CEG é peça preciosa do património geográfico nacional. Oxalá que o público a quem esta edição se destina venha a apreciar tanto estes cadernos quanto nós, aqui no CEG, os apreciamos. Exemplo do trabalho científico rigoroso de Orlando Ribeiro, “homem grande da geografia”, como se diz na Guiné e referência incontornável da cultura e da ciência portuguesa, este primeiro caderno, para além de Geografia, contém também muita da História recente que os portugueses e os povos da Guiné por algum tempo trilharam em conjunto. Diogo de Abreu Director Científico do Centro de Estudos Geográficos de Lisboa

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Prefácio

Orlando Ribeiro é talvez o mais conhecido e célebre geógrafo português que contribuiu para o conhecimento da Geografia no Ultramar nos anos 1940. Impulsionou e permitiu ao mesmo tempo o desenvolvimento da pesquisa científica no domínio das ciências geográficas nas antigas colónias, no caso concreto da então Guiné Portuguesa. As obras de Orlando Ribeiro constituem a base da informação disponível sobre a geografia tanto física como humana desta região. A obra de Orlando Ribeiro Missão de Geografia à Guiné em 1947, editada a título póstumo, representa uma contribuição para o conhecimento da geografia dessa então colónia portuguesa. Apesar dos esforços realizados no período depois da independência, são poucas as investigações aprofundadas realizadas actualmente no domínio da ciência geográfica. O resultado da pesquisa das duas missões do autor desta obra na Guiné, nos anos 40 e 50 do século XX, continua pois a ser válido e poderá ser capitalizado para estudos posteriores. Os conhecimentos existentes na Guiné-Bissau no domínio da ciência geográfica tiveram, de facto, uma contribuição decisiva de Orlando Ribeiro. Ele esteve na base da preparação de muitas missões científicas no Ultramar e mais especificamente na Guiné portuguesa. Só para citar algumas: • • •

a missão geológica que mais tarde veio a culminar com a publicação do esboço da geologia da Guiné portuguesa; esboço de solos da Guiné portuguesa elaborado por Silva Teixeira em 1962; trata-se da única publicação científica na matéria até à data presente; mapas topográficos da Guiné Portuguesa publicados em 72 folhas nos anos 50, pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar. Estes constituem a obra de referência cartográfica na actualidade.

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Os três documentos acima citados são obras célebres a nível nacional, e na data presente estes materiais científicos carecem de actualização. Orlando Ribeiro, por outro lado, tentou compreender a inter-relação e a interdependência que existe entre o homem, a natureza e a sociedade, procurando conhecer alguns traços comuns em termos de povoamento, cultura e agricultura, assim como a grande diversidade e complexidade étnica. Hoje, o estudo da geografia ao mais alto nível, na Guiné-Bissau, está numa fase embrionária nas diferentes instituições do saber. A divulgação do volume das informações disponíveis na presente obra, que não são do conhecimento da camada intelectual e profissional do país, contribuirá para a valorização dos conhecimentos dos pesquisadores sobre a geografia do país. A geografia é considerada um instrumento de planificação e intervém na organização do território. Por exemplo, a iniciativa da Planificação Costeira, lançada nos fins dos anos 1980, teve uma contribuição importante para os conhecimentos adquiridos pelas diferentes missões geográficas à Guiné-Bissau. A base cartográfica que constitui a actual espinha dorsal do banco de dados no formato SIG (Sistema de Informação Geográfica) disponível no INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa) foi inspirada a partir dos mapas topográficos da Guiné elaborados pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar. Esta obra poderá, portanto, contribuir significativamente para a conservação da natureza e a gestão racional dos recursos naturais. A institucionalização de uma política de gestão da biodiversidade deve basear-se sobretudo no conhecimento do meio: aqui reside a importância maior desta obra sobre a geografia da Guiné-Bissau. Alfredo Simão da Silva Geógrafo e Director-Geral do IBAP – Guiné-Bissau (Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas)

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I. Estudos Orlando Ribeiro – A Missão de Geografia à Guiné em 1947 1. A organização da missão 2. O trabalho de campo

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1. A organização da missão

1.1 Contexto e génese da missão

A presente publicação pretende pôr à disposição de um público diversificado um documento com forte cariz pessoal, da autoria de Orlando Ribeiro (1911-1997), o geógrafo português que se tornará, pouco tempo depois, internacionalmente conhecido. As notas e os desenhos do caderno de campo aqui reproduzido, bem como as fotografias que o autor tirou durante as suas duas estadias na Guiné em 1947, inserem-se na sua vasta obra sobre Portugal e as antigas colónias (Amaral, 1984; García, 1998; www. orlando-ribeiro.info). As suas investigações nas ilhas de Cabo Verde, registadas na escrita e em imagens (Ribeiro, 1954), são provavelmente as referências mais conhecidas da sua obra ultramarina, que inclui também um relatório sobre Goa datado de 1956 (Ribeiro, 1999) e uma análise pormenorizada e comparativa da colonização de Angola (Ribeiro, 1981). Para apreciar a orientação dada às observações que o autor realizou na Guiné, interessa lembrar sucintamente o que foi a sua formação científica. Licenciado em Ciências Históricas e Geográficas pela Universidade de Lisboa (1932), lucrou sobretudo, nos anos seguintes, com o ensino extracurricular, recebido tanto do geólogo Ernest Fleury como do etnólogo José Leite de Vasconcelos. Depois de em 1936 se doutorar em ciências geográficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com uma tese sobre a Serra da Arrábida (A Arrábida. Esboço Geográfico), segue para

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Paris, onde (de 1936 a 1940) estagia como leitor de português, tornando-se discípulo de Emmanuel de Martonne, em geografia física, e de Albert Demangeon, em geografia humana. As bases principais da sua formação dizem assim respeito à geomorfologia e à vida rural, temas geográficos já então internacionalmente bem desenvolvidos e que Orlando Ribeiro aprofundará em Portugal. Ensinando primeiro na Universidade de Coimbra, é nomeado professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1943, onde, no mesmo ano, funda o Centro de Estudos Geográficos (CEG). Dois anos antes da sua missão na Guiné, publica um amplo estudo sobre a geografia de Portugal (Ribeiro, 1945) que já deixa antever algumas temáticas que perpassam a sua obra. O caderno agora publicado mostra que os temas preferidos de investigação foram o povoamento, a economia e os modos de vida rurais, aos quais muitas notas geomorfológicas e climáticas são subordinadas. No caso da geomorfologia, os dados disponíveis ainda eram muito escassos e, quanto à observação climática de campo, este ramo da geografia só será desenvolvido mais tarde. Além de ser um “geógrafo de campo (…) infelizmente uma raridade entre nós”, como ele próprio dirá no seu relatório (Ribeiro, 1950a: 12), e do seu gosto pela “natureza, a vida rural e longas caminhadas a pé” (Ribeiro, 2003: 147), o autor era muito mais que um geógrafo no sentido restrito do termo. A importância que sempre deu às relações com disciplinas próximas, como a agronomia, a etnologia ou a história, perpassa nestas notas, recheadas de referências cruzadas. A sua abordagem da geografia como uma “ciência de convergência” foi cedo influenciada pela convivência com Leite de Vasconcelos (1858-1941), cujo espólio científico albergou no Centro de Estudos Geográficos de Lisboa. O seu primeiro contacto com as colónias portuguesas data de 1935, quando, jovem doutorado, auxiliou Marcello Caetano na direcção cultural de um “Cruzeiro de Férias” de dois meses, organizado pelo Governo para levar um grupo de universitários a conhecer a Madeira e as Províncias Ultramarinas do Atlântico (Ribeiro, 2003: 75). Muito importantes para a sua formação foram também os quatros anos passados em Paris (1936-40), onde, além de ensinar literatura portuguesa na qualidade de leitor na Sorbonne, completou a sua formação de geógrafo

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perto dos maiores mestres do momento. Vale a pena lembrar que o ramo da geografia física então mais praticado era a geomorfologia, bem como a geografia rural no quadro da geografia humana, o que contribui para explicar os temas principais que as notas do caderno revelam. Os contactos e compromissos estabelecidos em Paris fizeram com que Orlando Ribeiro, enquanto esteve na Guiné, se encontrasse já empenhado na preparação do Congresso Internacional de Geografia, que decorreria em Lisboa em 1949. Este importante encontro, que foi um ponto de viragem para a Geografia em Portugal e também para a sua projecção no estrangeiro, permitiu-lhe reforçar a colaboração interdisciplinar em Portugal e estabelecer novos e múltiplos contactos internacionais. A Missão de Geografia na Guiné insere-se nas actividades promovidas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, fundada em 1936 e que a partir de 1951 se passará a chamar Junta de Investigações do Ultramar (Castelo, 1999: 325-326). Como explica no relatório aqui reproduzido, Orlando Ribeiro acabava então de solicitar uma missão de estudos a Cabo Verde, mas decidiu antes aproveitar, como faria outras vezes, a “oportunidade” então surgida de ir conhecer e estudar a Guiné. Com efeito, a segunda Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais (CIAO), a decorrer em Bissau, encontrava-se em preparação. Estas reuniões eram promovidas por Théodore Monod (1902-2000), o naturalista que fundara em 1938 o Institut Français d’Afrique Noire em Dacar (IFAN, chamado Institut Fondamental d’Afrique Noire a partir de 1966) e que tinha conseguido manter e desenvolver apesar dos trágicos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, organizando em Dacar, em 1945, a primeira CIAO. Ora, a “dignidade nacional” impunha que participassem portugueses “no reconhecimento científico de territórios que nos pertencem” (Ribeiro, 1950a: 6). Antes disso, já tinham decorrido na Guiné uma rápida viagem de reconhecimento de Mendes Correia (Correia, 1947) e uma primeira Missão de Geologia chefiada por Carrington da Costa (Costa, 1946a e b). Decidiu-se então juntar à segunda missão que este conhecido cientista e alto funcionário iria dirigir (Teixeira, 1962), uma Missão de Geografia que permitisse a Orlando Ribeiro “efectuar o rápido reconhecimento da colónia, apresentar

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alguns resultados preliminares” (Ribeiro, 1952: 9-25) e mostrar “que alguma coisa se estava fazendo” (Ribeiro, 1950a: 6-7). O reconhecimento geral da colónia seria assim feito em conjunto por Carrington da Costa, o seu jovem ajudante Décio Thadeu (Thadeu, 1950) e Orlando Ribeiro, para se aproveitar o melhor possível os recursos disponíveis. Mas não sem dificuldades, porque os lugares e os ritmos das suas investigações muito dificilmente se coadunavam, o que os obrigava a trabalhar separadamente uma parte do tempo. O essencial do que se sabe, hoje ainda, da geologia da Guiné resulta principalmente daquelas missões (Thadeu, 1950; Costa, 1950, 1951; Mota, 1954, 1: 7-18; ver também Mapa n.º 5). É preciso esclarecer que a designação adoptada pela Junta, quando foi fundada em 1936, se referia em primeiro lugar às “Missões Geográficas”. Contudo, não se tratava da geografia universitária praticada por Orlando Ribeiro, no quadro então associado das Faculdades de Ciências e de Letras, mas do levantamento cartográfico, efectuado sob a direcção dos chamados engenheiros geógrafos, formados em Matemática. Estes actuaram primeiro no quadro da Comissão de Cartografia que antecedeu a Junta, produzindo a “Carta da Colónia da Guiné”, na escala 1: 500 000, em 1933, um esboço pouco exacto, mas que era ainda a única base cartográfica disponível em 1947. No quadro da Junta, os membros da Missão Geo-Hidrográfica, criada em 1944 (Crespo, 1955), “durante cinco campanhas sucessivas, trabalharam principalmente em estabelecer o apoio geodésico da topografia e da hidrografia”, esquecendo, segundo escreverá Orlando Ribeiro, a “resolução rápida e eficaz do problema fundamental, que consiste em dotar a Guiné de um mapa que sirva ao mesmo tempo as necessidades do fomento e do reconhecimento científico” (Ribeiro, 1950b: 27). Por isso mesmo, as sucessivas missões de estudo ultramarino que Orlando Ribeiro irá organizar até aos anos 70, para ele ou para os seus colaboradores e colegas, chamar-se-ão Missões de Geografia Física e Humana, de modo a tornar clara a sua especificidade (Amaral, 1983). Uma agradável e talvez inesperada surpresa encontrou Orlando Ribeiro ao desembarcar na Guiné. Os estudos etnográficos estavam “em pleno florescimento, animados pelo entusiástico apoio de S. Ex.ª o Governador e a

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competência e dedicação do tenente Teixeira da Mota” (Ribeiro, 1950a: 11). Com efeito, a curta missão efectuada então por Orlando Ribeiro e que, por falta de tempo, ele nunca conseguirá repetir insere-se num período de excepcional desenvolvimento científico do território. O Comandante Sarmento Rodrigues (1899-1979) foi Governador da Guiné de 1945 a 1948 (Rodrigues, 1949) e, logo a seguir, Ministro do Ultramar. Contratou então, como eficaz ajudante-de-campo, o jovem tenente Avelino Teixeira da Mota (1920-1982), cuja actuação cultural foi decisiva, tanto pela sua obra pessoal de investigação (Mota, 1972), como pelo impulso que deu a uma plêiade de colaboradores locais. Criou em Bissau um Centro de Estudos (1945) e um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, publicação semestral de excelente nível e mantida de 1946 a 1973, e dirigiu também um Inquérito Etnográfico (Mota, 1946) que viria a ser a base de numerosas publicações (Valentim, 2005, 2007). A ajuda que Orlando Ribeiro encontrou, de maneira geral, perto dos administradores e chefes de posto deve muito sem dúvida ao entusiasmo geral que Teixeira da Mota tinha sabido inculcar. Foi, em particular, ajudado pelo administrador da circunscrição de Gabu, Carlos Costa, e pelo chefe de posto de Caió, Artur Meireles. A investigação que ia decorrendo sobre a Habitação Indígena, e que resultaria numa publicação no ano seguinte (Mota & Neves, 1948), serviu também de oportuno pano de fundo da missão. Esta recolha de dados permitiu uma perspectiva alargada sobre a construção das casas e a organização das moranças (conjunto de casas pertencentes à mesma linhagem; ver Glossário), no contexto da grande diversidade étnica da Guiné (ver Mapa n.º 2). Baseando-se nos dados recolhidos por este projecto pioneiro, e nos trabalhos feitos por Orlando Ribeiro no quadro da sua missão, Francisco Tenreiro, um jovem sociólogo formado pela Escola Superior Colonial e colaborador daquele, publicou um estudo sintético e complementar que mostra a rápida evolução dos conhecimentos sobre as “populações nativas” na Guiné naquela época (Tenreiro, 1950). Para este seu estudo baseou-se no Inquérito Etnográfico de 1946, promovido e dirigido por Avelino Teixeira da Mota, e no material recolhido por Orlando Ribeiro durante a sua missão, reproduzindo três desenhos do caderno de campo e 25 fotografias.

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O caderno tem, portanto, de situar-se no contexto dinâmico, imprimido pela investigação em curso. Os artigos elaborados por Orlando Ribeiro, a partir das notas agora publicadas, fazem parte integrante da investigação pioneira conduzida pelos que “estavam no terreno”. Contudo, quase todos os artigos do Boletim Cultural e as monografias foram escritos por administradores e chefes de posto, ao contrário de Orlando Ribeiro, que era um universitário e leccionava não apenas na Faculdade de Letras, mas também na Escola Superior Colonial e, ocasionalmente, no Instituto de MedicinaTropical. As missões da Junta, que se multiplicaram até ao começo da guerra colonial em 1963, permitiram portanto um fecundo contacto entre cientistas e administradores. A circunstância de ter sido obrigado a adiar a data da sua partida, devido tanto a atrasos administrativos (ver carta de Carrington da Costa de 17 de Novembro de 1946, a propósito das “verbas indispensáveis”, Legado O. Ribeiro, CEG), como a doença, fez com que Orlando Ribeiro chegasse apenas a Bissau em 10 de Março de 1947, ainda durante a estação seca (antes do período das chuvas, de Maio-Junho até Outubro), a menos favorável à observação dos trabalhos rurais. As suas deslocações pelo interior duraram até aos fins de Maio, quando a estação das chuvas já se aproximava. Neste curto espaço de tempo, viajou centenas de quilómetros pela rede de estradas de terra batida da Guiné (ver Mapa n.º 1), ficando, regra geral, de caminho, nas residências dos administradores ou chefes de posto. A curta estadia não lhe permitiu infelizmente visitar a parte sul da província (regiões de Quinara e Tombali), que tinha sido palco de grandes mudanças devido à migração balanta a partir dos anos vinte, a que se refere sumariamente no caderno (pp. 99-100), mas o autor chegaria até às solitárias colinas do Boé, no Leste. O caderno permite seguir as suas observações in loco, o que é raro, tendo em conta a época. Aliás, se as observações e experiências pessoais feitas no terreno se tornaram, hoje em dia, parte integrante das teses de doutoramento em antropologia, a sua publicação, noutras disciplinas como a geografia, não era regra, nem o é ainda hoje. É importante ponderar em que medida o caderno agora publicado reflecte as observações realizadas pelo autor durante esta curta missão. A

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preparação da sua edição deparou com várias dificuldades, que resultaram em parte das características do próprio material tratado. Com efeito, o autor teve raramente o cuidado de datar exactamente os seus apontamentos e de registar imediatamente as numerosas fotografias que foi recolhendo. Tornou-se portanto necessário reconstituir o melhor possível o desenrolar da investigação, com a ajuda de uma pequena agenda de bolso, de um caderninho de fazer as contas, também irregularmente preenchido (Legado O. Ribeiro, CEG), e de alguns apontamentos no mapa à escala de 1: 500 000 de 1933, utilizado no campo (Mapoteca do CEG). Quanto às fotografias conservadas na fototeca do CEG, verificou-se que a sua catalogação terá sido realizada por Raquel Soeiro de Brito, depois do Congresso de 1949. Deste atraso, resultou uma numeração relativa a rolos entretanto baralhados, o que torna bastante difícil a reconstituição da sua ordem original, tanto mais que poucas fotografias são acompanhadas de legendas. Por outro lado, numa viagem apressada e cansativa, o autor apenas tomou nota dos factos que lhe pareciam de maior importância, relativamente aos assuntos principais que tinha decidido a priori investigar e que eram mais difíceis de reconstituir de memória. É notável que não apareça no caderno quase nenhuma notação de paisagem, quer natural quer humanizada, com apenas duas excepções importantes: algumas notas geomorfológicas e as impressões colhidas durante as viagens de avião, em 7 e 17 de Dezembro de 1947. No primeiro caso, os apontamentos resultam de o estudo do relevo ter sido, visivelmente, um dos temas escolhidos à partida, mesmo que não considerado dos mais importantes. No segundo caso, as notas tiradas no avião testemunham o deslumbramento sentido por um geógrafo que, pela primeira vez na sua vida, descobre a Terra vista de cima. Mas não se encontram no caderno anotações sobre o clima, a cobertura vegetal, as cenas da vida diária nas tabancas ou nas cidades, com africanos ou europeus, tudo temas de tanto interesse para ele e aos quais dedicou algumas palavras no relatório publicado sobre a missão. Orlando Ribeiro contava, com certeza, com a sua excelente memória, ajudada pelas numerosas fotografias, para reconstituir as paisagens litorais, de fraco relevo, os palmares e os mangues acompanhando as rias, as savanas onduladas do planalto interior

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e as formas mais complexas do Boé pedregoso, nos longínquos contrafortes da serra do Futa-Djallon. As fotos ilustram também, de forma elaborada, o meio humano, as povoações ou tabancas, as residências familiares ou moranças e as zonas envolventes com as pequenas parcelas de terra cultivadas, os chamados quintais. Destes diversos aspectos da realidade geográfica, não apontados no caderno, encontrar-se-ão reflexos no relatório e nas outras publicações sobre a Guiné (ver Bibliografia). E ainda numa curiosa transcrição dactilografada de várias aulas que Orlando Ribeiro deu aos alunos do Instituto de Medicina Tropical, em 1950 e 1951 (Legado O. Ribeiro, CEG). Portanto, o caderno contém essencialmente – além de alguns cortes topográficos e geológicos, cuidadosamente levantados – plantas pormenorizadas de casas rurais e inquéritos realizados junto de camponeses ou colonos, sobre as suas actividades, recursos e modos de vida. As folhas comportam uma descrição do povoamento, da habitação, da lavoura, do pastoreio, do sustento das populações e, nos casos mais aprofundados, da divisão de trabalho em função da idade e do sexo. Das impressões recolhidas sobressai uma aproximação ao modelo dos fieldnotes introduzido pelo antropólogo Malinowski nas primeiras décadas de novecentos, mas de forma muito resumida ao contrário das notas daquele recheadas de observações detalhadas. Todos estes elementos formam parte de um puzzle – a que faltam peças – que inclui as conversas e entrevistas com a população, colonos, funcionários e nativos, “indígena e civilizado” (Ribeiro, 1950a: 9). No que diz respeito à observação da população no seu habitat, o autor confessa que “a época era má”, por ser na estação seca, quando muitos aldeãos saem das suas tabancas à procura de trabalho e rendimentos adicionais, enquanto aguardam a chuva para iniciar o cultivo das terras. Orlando Ribeiro faz questão de referir a população local, cuja hospitalidade – osprindadi, no crioulo da Guiné – elogia. Falando dos “amáveis informadores indígenas”, agradece a “compreensão que nem sempre se encontra na gente do povo da Metrópole”, por lhe terem mostrado “as suas casas” e descrito “os usos e costumes locais” (Ribeiro, 1950a: 10). Não hesita em sugerir que “um acampamento com vários brancos” tem as suas vantagens e desvantagens, por restringir a mobilidade no terreno (Ribeiro, 1950a: 9).

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E afirma que “para além da curiosidade científica há, no convívio com os indígenas, um aspecto humano que torna aprazível qualquer investigação deste tipo”. Estudando estes povos – o autor usa este termo em vez de “raça” ou “tribo” tão comuns na época –, fez levantamentos sumários junto dos papéis, balantas, felupes, manjacas, mancanhes, mandingas e fulas. O caderno permite conhecer alguns traços comuns em termos de povoamento, culturas e lavoura, e entender a grande diversidade e complexidade étnica. Notam-se as semelhanças entre o povoamento, a agricultura e a cultura dos povos do litoral, mas também as diferenças entre eles, na sua organização social e política. Notam-se os paralelos, por exemplo, no que diz respeito à sua islamização, mas sem perder de vista as diferenças marcantes na lavoura, nas técnicas usadas e nas suas próprias tradições históricas. Do nomadismo dos Fulas até à migração expansiva dos Balantas, o caderno regista muitas variações sobre um tema que mostra a importância do conceito de chão e das raízes ligando as comunidades à sua terra, à natureza e ao ambiente. O autor tinha perfeita consciência de ser ainda um “principiante” em relação à geografia africana, comparativamente a alguns colegas estrangeiros que tinham já adquirido mais experiência, como era sobretudo o caso de Jacques Richard-Molard (1913-1951), que percorreu o Futa-Djallon a pé em 1941-42 (Richard-Molard, 2007) e se tornou o adjunto de Théodore Monod no IFAN de Dacar (Blanchard, 1952). Mas, tal como a geologia e a geografia, a investigação sobre os povos da Guiné encontrava-se ainda numa fase inicial. O Inquérito Etnográfico de 1946 veio contribuir para o aprofundamento do conhecimento dos povos da região, sobre os quais, na altura da missão, muito pouco tinha sido publicado (Mota, 1947). Uma primeira tentativa ocorreu em 1935: o estudo Babel Negra, de Landerset Simões, funcionário administrativo; no ano seguinte surgiu um estudo preliminar sobre as tradições e costumes destes povos, baseado no Inquérito Etnográfico de 1934 (Viegas, 1936). As primeiras monografias sobre os Manjacos, os Bijagós e os Mandingas só foram publicadas pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP) no próprio ano da missão (Carreira, 1947a e b; Santos Lima, 1947); nessa época pouco existia ainda sobre Papéis, Mancanhes, Felupes, Balantas, Bijagós ou Fulas, além de algumas contribuições dispersas

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no Boletim Cultural (Moreira, 1947; Mendes, 1947). A monografia sobre os Fulas (Moreira, 1948), o primeiro estudo sobre a agricultura dos Balantas (Santo, 1949), sobre a etnografia dos Manjacos de Caió (Meireles, 1950) e sobre os Felupes de Suzana (Taborda, 1950) saíram posteriormente à missão. O censo demográfico de 1950, que será o primeiro a fornecer dados fiáveis, nem sequer estava ainda no terreno, o que explica que Orlando Ribeiro tenha tentado reunir alguns dados demográficos, baseado no censo das palhotas, num caderno anexo (caderno n.º 53, Legado O. Ribeiro, CEG). A publicação pelo tenente Teixeira da Mota da sua monografia enciclopédica sobre a Guiné, que se tornará uma obra-chave para o conhecimento do território e seus povos, ainda demoraria oito anos (Mota, 1954). Os trabalhos sintéticos de António Carreira, um administrador com um longo percurso na Guiné, constituíram uma actualização, posterior ao inquérito, da diversidade étnica da Guiné (Carreira, 1961a). As publicações de Orlando Ribeiro sobre a Guiné resumem-se ao relatório sobre a missão, aqui reproduzido (1950a), e a uma conferência apresentada na segunda CIAO (“Sur quelques traits géographiques de la Guinée Portugaise”, publicada em 1952), enquanto duas outras comunicações, “Sur les latérites de la Guinée Portugaise” e “Remarques sur les instruments de labour et les greniers à céréales chez les indigènes de la Guinée Portugaise”, ficaram inéditas. Acrescentam-se apenas uma pormenorizada proposta (Ribeiro, 1950b) sobre as desejáveis características do mapa da Província, então projectado na escala de 1: 100 000, um ensaio sobre o ordenamento do campo rural guineense (publicado em inglês em 1951 e em francês em 1953) e um curto capítulo sobre a Guiné no livro de Harrison Church, West Africa (1957). Orlando Ribeiro renunciou portanto a elaborar a “publicação final, que poderá intitular-se Geografia da Guiné Portuguesa”, que projectava em Outubro de 1947, quando escreveu o relatório destinado à Junta. Considerava indispensável, para isso, uma nova estadia de alguns meses na Guiné, o que nunca conseguiu realizar. Porém, a experiência então adquirida foi de grande importância para toda a sua obra subsequente. Assegurou-lhe um elemento comparativo, que enriqueceu tanto o seu ensino como as investigações realizadas nos decénios seguintes. Um

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nítido reflexo desta curta fase da sua vida de geógrafo andarilho, durante a qual estabeleceu um contacto directo com uma vida africana autêntica e diversificada, encontra-se, em particular, no último estudo de maior amplitude (Colonização de Angola, 1981), onde tentou transmitir a sua visão sobre o que terá sido a influência de Portugal na organização do mundo. Não se pode esquecer que duas publicações, mais directamente viradas para a aplicação, levantam importantes problemas relativamente à organização da investigação científica em Portugal. Seria do maior interesse verificar em que medida as reflexões e propostas pormenorizadas citadas acima, “acerca do mapa topográfico da Guiné”, influenciaram a edição e as características do esplêndido mapa da Guiné à escala de 1: 50 000, em 73 folhas, publicado durante os anos 50. Este mapa, de qualidade excepcional, foi devido, antes de tudo e sem a menor dúvida, a Teixeira da Mota, que conseguiu transformar um arrastado projecto numa realização efectiva e acabada. Mas o seu conteúdo, tematicamente muito rico e diversificado, segue de muito perto as recomendações feitas em 1950 pelo geógrafo. A primeira folha, publicada em 1952, é a de Bissau, a partir de uma cobertura aérea de 1949, enquanto as folhas mais periféricas datam de 1959 e utilizam fotografias aéreas de 1956, feitas no quadro da Missão Geo-Hidrográfica da Guiné (Crespo, 1955). Num colóquio sobre os problemas da investigação científica colonial, promovido em Dezembro de 1949 pela Junta, o autor não hesitou em afirmar desassombradamente que “uma contribuição portuguesa para o estudo das regiões tropicais” exigia “uma qualidade científica mais elevada”, para a qual o “convívio científico com os colegas estrangeiros” era “condição sine qua non” (Ribeiro, 1950c). Contrariando vozes correntes na época do Estado Novo, ele afirmou que as matrizes e a sistematização da investigação científica sobre o mundo tropical não tinham origem portuguesa. Considerando estas ideias como “flores de retórica” e “lugares-comuns”, destinados a esconder “o atraso nacional nestas matérias”, afirmou que um mesmo rigor, nos métodos e nos critérios, era de aplicar tanto na metrópole como nas colónias (Ribeiro, 1950c: 3-4). Insistiu na importância da formação dos docentes universitários, relativamente à temática colonial, e

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na necessidade de eles terem “experiência directa” das terras ultramarinas. Na sua opinião, o trabalho de campo era “o ponto de partida para tudo”. Enfatizou a importância da liberdade, da mobilidade e de um ambiente de trabalho flexível, adaptado às circunstâncias locais: “a investigação científica é essencialmente um trabalho desinteressado e livre.” Reclamando a “liberdade de estudo e pesquisa”, sublinhou que “o trabalho científico não se encomenda, ainda menos se decreta”, além de que “não pode haver, no ajustamento aos problemas coloniais, uma hierarquia de utilidade” (Ribeiro, 1950c: 11). Nota-se ainda, nesta sua contribuição, o desejo de simplificar os procedimentos burocráticos e de flexibilizar a gestão das missões. Propostas generosas e desembaraçadas, directamente nascidas da experiência vivida na Guiné, mas pelas quais teve de lutar toda a vida, para as tentar conseguir, para ele e para os que o rodeavam.

1.2 Os materiais da presente publicação

A presente edição constitui uma primeira tentativa de pôr à disposição do público o enorme manancial de informação contido nos 63 cadernos de campo, que se conservam no Legado científico de Orlando Ribeiro (Daveau, 2008: 123-138). O essencial da documentação que foi agora utilizada provém deste legado, que foi confiado pelo CEG à gestão da Biblioteca Nacional de Portugal, no quadro do seu “Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea”. Quanto à Biblioteca científica pessoal, com cerca de treze mil obras e cuidadosamente catalogada, encontra-se já acessível, num anexo da Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Além disso, o CEG conserva, nas suas ricas Mapoteca, Fototeca e Biblioteca, numerosos mapas, fotografias e publicações, que lhe foram dados por Orlando Ribeiro. Para facilitar o entendimento dos apontamentos contidos no caderno, a sua reprodução digitalizada e a cuidadosa transcrição, devida a Maria de Lourdes Ribeiro, é acompanhada de uma série de anexos. No rodapé da transcrição constam várias notas com esclarecimentos sobre os locais e áreas nela referidos. Um extenso glossário contém termos de carácter académico,

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histórico e linguístico referidos no caderno sobre a geografia, a geomorfologia, a agricultura, a pecuária, o povoamento, a administração colonial e o comércio na Guiné daquela época. São reproduzidas 54 fotos da colecção, escolhidas por terem uma relação mais imediata com o conteúdo do Caderno, embora o resto da colecção (326 fotos sobre a Guiné pertencem à Fototeca do CEG) contenha igualmente preciosa informação. Para além das 25 fotografias que foram publicadas no estudo de Tenreiro (1950), outras imagens foram entretanto reproduzidas no álbum Originalidade da Expansão Portuguesa, publicado em 1994 pelas Edições João Sá da Costa; mas a maior parte da magnífica colecção recolhida em 1947 espera ainda divulgação. Reproduz-se aqui também o relatório, escrito em Outubro de 1947 por Orlando Ribeiro e publicado em 1950, pela riqueza de informações que contém sobre as circunstâncias que rodearam a missão e pelo seu carácter cientificamente complementar do conteúdo do caderno de campo. Para perceber melhor as circunstâncias profissionais em que decorreram as duas viagens de Orlando Ribeiro à Guiné, talvez não seja inútil indicar que, entre a sua volta a Lisboa, em Junho, e a data em que entregou o relatório (30 de Outubro), ele consagrou o essencial do tempo não dedicado ao ensino à preparação do Congresso Internacional de Geografia que teve lugar em Lisboa em 1949 e cujas Actas foram publicadas em quatro volumes, em 1950-52. A seguir ao caderno de campo e a dois estudos de Orlando Ribeiro, incluímos na presente publicação uma série de anexos. O Glossário acima referido visa facilitar a leitura do caderno. A terminologia usada é, muitas vezes, retirada do crioulo da Guiné e das línguas étnicas, no que respeita as referências ao povoamento, aos materiais de construção das casas, aos terrenos de cultivo, às culturas, às alfaias, à alimentação, mas também às tradições, às relações de parentesco, às crenças e à história dos vários povos. Um Índice Toponímico facilita a procura dos locais referidos no caderno. O Mapa n.º 1 mostra estes locais e os percursos do autor, tal como foi possível reconstituí-los durante a preparação da edição. Quatro outros mapas, extraídos do livro de Silva Teixeira (1962), ilustram o que se chegou a saber da geologia, do relevo, da cobertura vegetal e da distribuição étnica da Guiné, em resultado do extraordinário surto de investigação promovido por Teixeira da Mota, a partir de 1945.

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1.3 O significado da missão

Apesar dos esforços feitos na era pós-independência na Guiné-Bissau, apadrinhados por projectos de cooperação e pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa; ver, por exemplo, Ocante da Silva, 2002; Indjai, 2002), bem como por alguns investigadores, nomeadamente geólogos (Alves, 2000; Alves e Azevedo, 2001), ainda existem muitas lacunas no que diz respeito ao estudo do meio ambiente e biodiversidade do país. Ao nível geológico, geomorfológico e pedológico os conhecimentos ainda se baseiam em grande parte na investigação feita nos anos 40 e 50 do século passado. Apesar de um resumo da investigação sobre as formações geológicas da Guiné ter sido publicado durante o período da guerra colonial (Teixeira, 1968), posteriormente a investigação nesta área limitou-se à prospecção de depósitos de bauxite, fosfatos e petróleo, ainda antes mas também depois de 1974. O próprio Teixeira da Mota sublinhou, enquanto deputado para a Guiné, dez anos após as missões de Geologia e de Geografia de 1946 e 1947, a importância do estudo das formações geológicas da Guiné no contexto da África Ocidental, tal como da sua pedologia, geografia e agricultura, para o desenvolvimento dos seus recursos (Mota, 1958 – Assembleia Nacional (AN), Diário das Sessões, 11-4-1958; 15-10-1958). Pouco antes tinham sido publicados os trabalhos da Missão Geo-Hidrográfica da Guiné (1946-55), tal como o importante censo agrícola feito pelo agrónomo Amílcar Cabral (1956) cujos dados foram actualizados em 1960 (CIAU, 1963) e depois da independência pelo governo da então Guiné-Bissau (Mora, 1989). O primeiro estudo integral sobre as condições e perspectivas para o desenvolvimento rural da Guiné surgiu nos fins dos anos 60 (Mendes, 1969). Apesar de o inquérito etnográfico de 1946 não ter sido repetido depois de 1974, a investigação antropológica avançou de forma parcial, com estudos sobre alguns grupos étnicos, sobretudo do litoral, como os Felupes, os Manjacos, os Mancanhes, os Papéis, os Balantas, os Bijagós e os Nalus. Por conseguinte, o período em que a missão de Orlando Ribeiro se realizou foi notável e profícuo no que diz respeito à investigação científica baseada em trabalho no terreno na Guiné. O facto de até 1945 pouco

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ter sido feito neste sentido foi largamente compensado pelos resultados de várias missões e inquéritos que rapidamente resultaram numa série de publicações sobre este território e a sua população. Os dados recolhidos apontam para um trabalho complementar realizado por um grande número de funcionários administrativos (na sua maioria formado pela antiga Escola Superior Colonial, que nos anos 50 se transformará no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos), e por académicos como Carrington da Costa, Mendes Correia e Orlando Ribeiro, vindos da metrópole, com o apoio da recém-criada Junta de Investigações Coloniais. Nas palavras do geógrafo, “não há dúvida que a preocupação africana domina a investigação científica colonial” num país que, na época, “possui 94,5% dos seus territórios na África” (Ribeiro, 1950c: 13-14). O seu interesse numa “geografia integral” (Ribeiro, 2003: 134) reunindo os aspectos naturais e humanos numa só disciplina é ilustrado pelo grande número de geógrafos, mas também etnólogos, sociólogos e historiadores que passaram pelo seu Centro em Lisboa. A sua missão para a Guiné era a primeira de um vasto conjunto de estudos realizados pelo próprio e pelos seus colaboradores num espaço lusófono, do Brasil a Timor. No caso da Guiné, visto no pano de fundo de “um largo horizonte das curiosidades tropicais” (Ribeiro, 1950c: 14), o caderno mostra o empenho e a ambição de Orlando Ribeiro no “alargamento dos horizontes científicos” no sentido de praticar uma “pesquisa interdisciplinar” in loco em terras africanas e começar “um género de investigações que há muito desejava poder realizar” (Ribeiro, 1950a: 22). A publicação deste caderno, o primeiro de uma série, cumpre o seu critério de que “os resultados científicos de qualquer missão se devem avaliar não pelos seus relatórios (…) mas pelas publicações” (Ribeiro, 1950a: 5). Como afirmou o autor no relatório de Setembro de 1947, a experiência guineense enriqueceu muito o ensino, longamente dispensado por Orlando Ribeiro e pelos seus colaboradores e alunos, evitando o prolongamento do tradicional amadorismo apenas baseado em bibliografia e informação indirecta.Tanto nos seus apontamentos de aulas, como nos seus livros subsequentes, o autor aflora repetidamente a experiência que ganhou a percorrer, em 1947, o chão dos povos guineenses, observando as “características da

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vida material, que mais se exprimem como marcas no solo que ocupam”. Ainda nos seus últimos escritos, como Destinos do Ultramar, de 1975, e A Colonização de Angola e o seu Fracasso, de 1981, perpassam a experiência guineense e a saudade que lhe ficaram dos seus contactos com a gente africana do campo, que lhe prestou tão boa informação. Se fosse possível hoje consultá-lo, certamente que ele gostaria que o presente livro fosse dedicado ao seu jovem amigo Talibé, o seu informador principal que também lhe serviu de intérprete, “tão inteligente e de grande finura humana, irmão do régulo de Gabu” (Ribeiro, 1981: 29).

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