Pierre Ansart e o lugar das paixões políticas

August 3, 2017 | Autor: Marion Brepohl | Categoria: Contemporary History, Political History, Historia Contemporánea, Historia Política
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Pierre Ansart - 1922 Professor Emérito da Université Paris VII Obras principais : Sociologie de Proudhon, Paris, Presses Universitaires de France, 1967 (traductions espagnole 71; italienne, 72; japonaise, 81); Marx et l’anarchisme, Essai sur les sociologies de Saint-Simon, Proudhon et Marx, Paris, P.U.F., 1969 (traductions italienne, 72; espagnole, 72; arabe, 75); Saint-Simon, Paris, P.U.F., 1969, Collection “Philosophes”; Sociologie de Saint-Simon, Paris, P.U.F., 1970 (traduction espagnole, 72); Naissance de l’anarchisme, esquisse d’une explication sociologique du proudhonisme, Paris, P.U.F., 1970 (traduction espagnole, 73); La societé, le sexe et la loi, en collaboration avec Me. A.-M Dourlen-Rollier, Costerman, 1971; Les Idéologies politiques, Paris, P.U.F., 1974 (traduction italienne, 76); P.-J Proudhon, Milano, La Pietra, Il filo rosso del movimento operaio, 1978; Idéologies, conflits et pouvoir, Paris, P.U.F., 1977 (traductions portuguaise, 78, espagnole, 83); Eléments d’Épistémologie pour une sociologie des affects politiques, Editions de l’Université Paris 7, 1980: La gestion des passions politiques, Lausanne, L’Age d’Homme, 1983 Proudhon, Textes et Débats, Paris, Le livre de poche, 1984; Les sociologies contemporaines, Editions du Seuil, 1990 (traductions espagnole, portugaise, coréenne, russe, 1990-97); Les cliniciens des passions politiques, Editions du Seuil, 1997; Connaissance du politique, 1997 “Quatre leçons de Philosophie sociale sur les Passions politiques” Févr. 2000. “L’idéologie, Effacement ou déni du concept?” Juin 2000. Les sentiments et le politique, 2007 Textos em português : ____ Hannah Arendt e o obscurantismo dos ódios públicos. In : DUARTE et all. A banalização da violência : da atualidade em Hannah Arendt. ____ Liberalismo e socialismo como nós coletivo. In :NAXARA, M. Figurações do outro ____ História e memória dos ressentimentos. Bresciani et all. Memória e ressentimentos ____. As humilhações políticas. In : MARSON, I. Et all. Sobre a humilhação Das identidades de ofício à identidade de classe. BRESCIANI et all. In : Razão e paixão na política ____. Por uma ciência social das paixões políticas. História : questões e debates ____. O fim dos amores públicos.História e perspectivas. UFU ____. Ideologia, conflito e poder

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O lugar das paixões políticas

Introdução 1. A linguagem e suas formas de internalização 1.2. os momentos quente e os momentos frios da política

2. O papel dos signos comoventes 2.1.

O lugar da produção, bem como dos produtores de bens comoventes;

2.2.

O conteúdo de suas mensagens;

2.3.

Os seus receptores.

3. Três dinâmicas: 3.1.

O fervor sectário

3.2. As comunidades utópicas 3.3. O grupo ideológico

4. O partido como aparelho afetivo: a paixão militante

Obra em espanhol: Los clinicos de las passions políticas

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Falar de Pierre Ansart é um pouco um auto–exame, um “colocar-me à prova para ver se aprendi corretamente suas lições”. Meus contatos com este historiador se iniciaram em 1994, num colóquio organizado em Paris, por Maria Stella Bresciani (UNICAMP) e Michelle Perrot (Universidade de Paris IV), e desde então, mantemos um diálogo tipicamente de professor e aluna. Ele lê alguns de meus trabalhos, escreve cartas expondo suas dúvidas e críticas, eu lhe faço inúmeras indagações, o que é para mim um privilégio e uma grande responsabilidade.

Hoje, escolhi um de seus primeiros livros sobre a questão das paixões na política, mas tive/tenho a sorte de acompanhar suas reflexões mais recentes, as quais, obviamente, mudaram com o tempo e com o seu compartilhar intelectual com tantas pessoas que lhe foram contemporâneas ou a quem ele orientou. Escolhi este livro porque já no período em que foi escrito, em 1983, ele ressalta a importância das paixões, num contexto em que ainda se falava do fim das ideologias, que seriam substituídas pelo estado técnico e racionalizado. Em fins dos anos 70, todavia, estávamos presenciando a primeira ressaca do Wellfarestate, ou do Estado Providência, como se chama na França. Momento em que a tecnoburocracia

acreditava ser possível acabar com os ímpetos

revolucionários, também com os ímpetos reacionários, com movimentos sociais radicais e com poderes exercitados de maneira carismática. Essa aposta, feita pelas elites no final da Segunda Guerra, como sabemos, implodiu. Primeiro, em 1968, quando o movimento estudantil pediu o impossível e a imaginação no poder. Mas implodiu de vez quando o Wellfarestate deu sinais de esgotamento. Neste contexto, intelectuais como Ansart se concentraram em estudar manifestações sociais que escapavam do pensamento organizado.

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No que se refere especificamente a Ansart, ele propõe um método para historiadores, para que estudem o papel das paixões e dos sentimentos na história. Mas, diferentemente de Mannhein, de Marx, de Weber, da Escola de Frankfurt e de Raoul Girardet, para quem os sentimentos, as paixões (como o ódio, a cólera, e outros) eclodem em momentos de intensa crise e de desnorteamento coletivo, como sintoma de anomia social, Ansart afirma, e aí o caráter inovador de seu trabalho, que a dicotomia razão e emoções é impossível1.

Sobre autores que o precederam, Ansart sinaliza, primeiramente, Wilhelm Reich, no livro intitulado Psicologia de massas e fascismo, advertindo contudo que o autor não teria criado uma teoria a este respeito; e, Max Weber, ao trabalhar com as três formas de dominação legítima (as três formas de dominação legítima), livro cujas idéias são de extremo valor para Ansart, mas que só leva em contas emoções quando se refere ao líder carismático, como se na burocracia e no patrimonialismo não se presenciassem também os sentimentos

Ele afirma que as emoções são acionadas, são gestadas e, por vezes gerenciadas e controladas, ao lado da razão. Quem dota as ações humanas como oriundas de um universo exclusivamente racional, são as ciências sociais, direta ou indiretamente, influenciadas pelo positivismo.

Segundo o autor, para desenvolver uma teoria da produção e do consumo das mensagens comoventes, é necessário que se examinem as trocas heterogêneas operadas pela sociedade: 1. O lugar da produção, bem como dos produtores de bens comoventes; 2. O conteúdo de suas mensagens; 1

Sobre autores que o precederam, Ansart sinaliza, primeiramente, Wilhelm Reich, no livro intitulado Psicologia de massas e fascismo, advertindo contudo que o autor não teria criado uma teoria a este respeito; e, Max Weber, ao trabalhar com as três formas de dominação legítima (as três formas de dominação legítima), livro cujas idéias são de extremo valor para Ansart, mas que só leva em contas emoções quando se refere ao líder carismático, como se na burocracia e no patrimonialismo não se presenciassem também os sentimentos.

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3. Os seus receptores. 4. ainda; as formas de internalização das mensagens

Ele adverte ainda para a importância da interdisciplinaridade; no caso específico, é preciso ancorar-se em disciplinas afins como a Ciência Política, a Sócio-linguística, a Semiótica2, a Psicologia Social3 e a Psicanálise4, esta última, também uma das formações do autor.

A propósito, sua metodologia está profundamente conectada aos resultados dos estudos de Psicanálise, levando em conta, principalmente, três textos de Freud, notadamente, aqueles que se debruçam sobre questões coletivas: Totem e Tabu, Mal estar da civilização e Psicologia de Massas e análise do eu. E, tendo em vista o que se praticava (ou se pratica) nas Ciências Sociais, ele inicia estabelecendo 5 condições fundamentais para o estudo dos sentimentos na política: 1. Não realizar dicotomias entre o subjetivo e o objetivo5; 2. Abandonar o preconceito de que as paixões só emergem em momentos de crise; 3. Evitar analisar as atitudes passionais como fanatismo 4. Desfazer-se da idéia de que as paixões sejam mais atinentes às classes populares, enquanto que as elites assumem posições eminentemente racionais; 5. De que as sociedades tradicionais ou, como denomina Simmel, as Gemeinschaften, sejam comunidades regidas por afetividades enquanto que as sociedades (Gesellschaften), por critérios de ordem do racional.

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Destas três, apreender a dinâmica dos conflitos Da psicologia social, as condições históricas de cada conflito 4 A maneira como os conflitos são interiorizados. 5 Isso ele se deixa orientar por Freud, pois para Freud, nada pode dissipar no homem suas contradições psíquicas, nem impedir completamente suas projeções mortíferas nas relações sociais. Enquanto que Marx, ao citar no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, sobre o camponês que aspira por um líder forte, ele mesmo, Marx, considera que no futuro tais sentimentos serão superados pela razão, em Freud, a razão não aplastra as emoções. 3

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Esses comentários fazem parte da Introdução. Os outros capítulos são temáticos, exemplos de como podem ser trabalhadas as paixões. No primeiro capítulo, Amar seu rei, ele desenvolve um estudo sobre o papel do passeio do rei à época da primeira modernidade: o rei não governava, apenas era amado, e deste amor, brotava a harmonia6.

Os reis taumaturgos – Marc Bloch

O interessante deste capítulo é o estudo dos efeitos simbólicos do poder, no qual se verifica a diferenciação entre o espaço sagrado e o espaço profano, a diferenciação do espaço profano e do poder (o poder, no alto, visível, majestoso, separado de outros espaços. Também os gestos: eles se constituem em regimes afetivos que variam conforme a cultura, as condições históricas, etc.

No segundo, a figura de um poder destruidor, Hitler, um governante que elege Tanatos como forma de dominação (a obediência pelo medo); e que suscita, na população, o ímpeto à auto destruição; em seguida, O partido político como aparelho afetivo – figura de um pai que emancipa; no quarto, o medo e a cólera nos movimentos sociais; depois, O fim das ideologias e o Fim dos amores públicos.

Destes capítulos, cada um deles, merecendo um estudo em si, eu cotejarei apenas alguns exemplos que expressem mais explicitamente as relações entre a política e a paixão. Por que? Porque nem mesmo Freud, que trabalhou tão intensamente com as emoções, levou em conta o poder; o poder e sua instabilidade; o poder e a necessidade ou desejo de ser mantido. 6

O interessante deste capítulo é o estudo dos efeitos simbólicos do poder, no qual se verifica a diferenciação entre o espaço sagrado e o espaço profano, a diferenciação do espaço profano e do poder (o poder, no alto, visível, majestoso, separado de outros espaços. Também os gestos: eles se constituem em regimes afetivos que variam conforme a cultura, as condições históricas, etc.

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A paixão mesma pelo poder. Sim, porquanto seja no Exército, seja no governo de Luis Bonaparte, seja quem ou onde seja, o poder tem sempre que realizar um esforço para manter-se e para preservar-se. E o faz a partir de um trabalho, nem sempre consciente, de produção e circulação de mensagens comoventes.

Mas não se trata de uma via de mão única: da parte do chefe, ele quer o poder pelo prazer de ser amado (Eros), a partir de uma estrutura narcísica ou, no outro extremo, o prazer na dominação (Tanatos). Neste segundo caso, o medo da morte é eclipsado pela sensação de onipotência. A pulsão de dominação constitui-se, pois, no prazer de retirar de si o instinto de morte para manifestalo num “corpo” martirizado. Da parte do que obedece, no limite, o medo ou a auto-vitimação ou a servidão voluntária, que se traduz pela ausência de responsabilidade ou pelo ganho de favores ou pelos dois.

E, além de um poder diretamente relacionado ao líder e com o conjunto de leis, há o poder que eu exerço sobre mim mesmo, no sentido de obedecer aos meus princípios, algo mais saliente nas democracias e bem menos evidentes nas ditaduras.

Para avaliar os signos comoventes – de um regime democrático, de um regime autoritário, de um movimento social, etc, há que se respeitar a linguagem do poder, que é sobremaneira simbólica. Primeiro, examinemos as palavras: aquelas mais facilmente internalizáveis, como por exemplo, palavras abstratas e imprecisas: socialismo, libertação, progresso, novo estado, nova época. Ou palavras que se associam ao corpo: o corpo social, a vida, a marcha para o progresso, e, mescladamente: marcha para o socialismo, vida econômica, defesa de interesses.

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Também palavras associadas a qualquer forma de combate: Façamos a campanha, os grupos entram em duelo,a guerra contra a carestia de vida, luta sem tréguas contra os poderosos, o confronto final. Numa sociedade cuja cultura política já tenha experimentado, há mais tempo, o convívio democrático, estão presentes palavras, imagens ou sujeitos designados no coletivo ou na terceira pessoa do plural, tais como A cidade decidiu, o Partido se insurge, A reação recua, Nós somos o povo.

Todos estes exemplos são metáforas que participam eficazmente na produção de signos comoventes, na dramatização dos conflitos. Outro encadeamento a um só tempo lógico e emocional pode ser ilustrado pelo seguinte esquema:

Exploração





Burguesia

Comunismo





Proletariado

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Corrupção -–--- privatização Políticas sociais ------- vai contra Trabalho

Além de palavras, de gestos, de imagens iconográficas, e quanto a esta última, temos de tomar um enorme cuidado, pois elas requerem uma metodologia própria, eu ainda gostaria de comentar algumas dinâmicas da gestão política. A primeira, O fervor sectário, mais comum em grupos menores, em movimentos que se iniciam de uma profunda angústia ou melancolia. Talvez nem seja necessariamente um grupo, mas um momento em que, em face de uma determinada conjuntura (contundente e de força, tais como a derrota, a revolta, o êxtase), um determinado grupo se renova (ou renova suas emoções) em forma de comunidade ou seitas, lugares particulares que comportam mecanismos largamente diferenciados da sociedade global. Destes grupos surgem ou podem surgir identidades com pretensões

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crescimento. Ansart cita como o exemplo o movimento feminista, as seitas religiosas, os partidos políticos dissidentes. A diversidade destes grupos é muito grande. Os bolcheviques, somente para ilustrar, eram poucos, mas a força de coesão, garantida até certo ponto pelo líder (Lenine)7, possibilitou que se dedicassem intensamente à sua causa, logrando a vitória. Por que esses grupos têm tanta força? 1. Pelo caráter maciço de investimentos em cada uma das pessoas8 2. Pelo conteúdo das mensagens 3. Os laços que se estabelecem entre os membros do grupo, que são semelhantes aos de uma família9 4. Sensação de proteção que o grupo dá às pessoas 5. Oposição radical entre o mundo exterior e o mundo interior10 7

Ansart sinaliza como possibilidade que é mais freqüente que surja um chefe político de um pequeno grupo do que de um grande grupo. 8 Realizado, principalmente pelo chefe 9 Muitas vezes, os membros se distanciam de sua própria família ou inclusive, mudam seus nomes

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Contudo, o grupo sectário é também uma ameaça à integridade da pessoa, pois ela tem de renunciar ao mundo exterior e participar de relações interindividuais, e não de relações inter-institucionais. E, por não haver uma instituição ou normas que os abriguem, o que dá coesão ao grupo são alguns comportamentos como o de denúncia contínua da sociedade ou de outros grupos; o caráter alarmista e ou paranóico com que informam os acontecimentos; a atitude de sigilo sobre as pretensões do grupo; o senso de missão ou o senso messiânico de que se reveste sua causa. E diferentemente dos grandes partidos ou das instituições, cada membro tem de aceitar a totalidade das idéias e sentimentos do grupo. Quando ocorre a defecção de alguém ou o dissenso, esta pessoa ou esta idéia são intensamente agredidas e surgem sintomas de desmembramento. Em síntese, o grupo sectário exige que todas as normas e comportamentos precedentes sejam abandonados. Não cabe aqui defender ou criticar, muito menos cair na esparrela de tratar o tema de maneira maniqueísta; não é um caso de certo ou errado, governantes e governados, esquerda ou direita. Para Ansart, sejam movimentos sociais, sejam pessoas das mais diversas classes sociais, seja com este ou aquele objetivo, esse período, esse momento de produção reflete a gestão mesma das paixões, de uma vida em comunidade.

O segundo momento a mencionar é o

do grupo ideológico, contexto

em que as pessoas se organizam para combater diretamente a ordem estabelecida, para salvar a sociedade, para encontrar um salvador universal. O grupo nega a autoridade do pai para se tornar, ele mesmo, pai de si mesmo. Aí, ele não se fecha ao mundo exterior, mas quer incorpora-lo, quer conquista-lo. Já

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Aparelhos são um exemplo deste comportamento

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a atitude ou sentimento utópico11 cria um ideal e quer se transformar no seu próprio ideal, mesmo que se restrinja a um pequeno espaço – é o protótipo do falanstério de Fourrier ou das comunidades hippies. Com isto, os utópicos instauram um narcisismo coletivo que assegura a cada um sentimento de segurança, que inibe as inseguranças do mundo exterior, e leva à euforia por ter encontrado um mundo sem violência, um reencontro com o mundo maternal.

Em todos esses momentos, fantasias de onipotência, de ortodoxia, de messianismo, de escatologia, de fé inabalável estão presentes. Apenas a derrota ou a sectariazação podem desvanecer tais emoções, às quais se sucederão outras.

Grupo utópico, como movimento hippie, por exemplo natcisista. mais movimento que se pauta no vínculo materno, recebe as pessoas

O militante e o poder

Feitas estas considerações sobre a resistência como instância de legitimação do poder, característica do mundo moderno, dedico-me agora a pensar as relações do militante com o poder. Para tanto, levo em conta a instituição dos partidos políticos, em especial, os partidos de esquerda. Segundo o historiador Pierre Ansart, o partido não é somente o locus da ideologia. É também um aparelho afetivo. É um “nós” fortalecido, que se coloca contra os outros, vistos como alvo de afetos negativos, motivadores de emoções

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Ansart chama a atenção para o fato de que não se pode dividir rigidamnente o grupo utópico do grupo ideológico, pois toda a ideologia comporta a utopia.

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violentas. A força de atração do partido não é apenas sua plataforma, é, em muitos casos, sua capacidade de agregar. Essa pertença é uma enorme compensação para quem convive, como é o caso do trabalhador urbano industrial, com diversos sentimentos de perda: sua propriedade, (o pequeno negócio, a terra, seu know-how), os vínculos familiares, o prestígio entre os seus. A literatura do século XIX nos dá conta de sua angústia em face ao desemprego, o medo da miséria, o horror à solidão, a humilhação do patronato.12 Por estas razões, a pertença a um partido responde a problemas afetivos vinculados à falta derivada da destruição dos vínculos tradicionais existentes no século XVIII. Contudo, embora os trabalhadores encontrem no partido “seus iguais”, há diferenças significativas nas funções que exercem no grupo, o que frequentemente, provoca tensões e conflitos, principalmente pela hierarquia ali instituída: o chefe, o chefe local, a diretoria, o orador, o intelectual, os deputados. A hierarquia suscita esperanças ambições, sonhos não ditos, rivalidades.13 Na base da pirâmide, encontra-se o militante: distribui panfletos e organiza a passeata, participa das greves como quem obedece à boa lei, sentindo que seus líderes seriam os melhores governantes. Obedecer aí não é sinônimo de ser dominado, mas de participação. Por isso a importância dos jornalistas, “poetas do partido”: suas palavras reforçam a identidade dos membros. Os panfletos são estetizados por eles e servem como força de persuasão afetiva tanto para o recém-ingresso como para o “velho” militante. Quanto ao chefe, ele não se deixa conduzir apenas pelo prazer de exercer poder, nem somente pela satisfação de ser reconhecido, mas por encarnar o ideal dos adeptos e de ser amado por isto (...) ele é objeto de reverência, mas carrega consigo um enorme senso de responsabilidade.14 Entre o chefe e o militante, diversas outras funções, mas a mais conflitiva é a do deputado que, conquanto obedeça ao chefe, sente-se e de fato se encontra 12

ANSART, P. La gestion des passions politiques. Lausanne: L ´âge d ´homme, 1983. p. 110-11 Idem, p. 117 14 Idem, P. 117 13

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numa função mais elevada. Sua atuação é vulnerável porque é nela que a eficácia das estratégias é posta à prova: de sua negociação depende a vitória ou a derrota. Dado o segredo e compromisso que quase toda negociação exige, o representante suscita a suspeição, pois parte de seu poder depende de realizar concessões. E não raro, trai o partido em nome dos fins que justificam os meios. Daí também sua tendência à mentira; as acusações de Trotsky a Stalin relativamente às suas intrigas e ambição, bem como os conluios para ocupar o lugar de Lenin,15 são exemplo daquilo que Hannah Arendt comentou sobre o homem de estado que fabrica uma sociedade cujo fim ele mesmo produziu. Ao proceder assim, a classe trabalhadora não se torna senão um instrumento que o déspota usa e abusa.16 Inflar o poder em nome de um fim tido como verdadeiro é talvez mais perigoso do que inflá-lo por vaidade. Estas são algumas razões pelas quais o militante não é convocado a falar, estando condenado às tarefas cotidianas do partido, a um trabalho que em parte, assemelha-se ao que ele faz na fábrica. Apesar de tudo ele é fiel à causa, principalmente nos momentos políticos mais contundentes. Nos momentos de monótona calmaria, seu entusiasmo arrefece. Mas, ele vê tudo aquilo como um sacrifício que faz para libertar-se, a si e a sua família, principalmente seus filhos. É uma verdade histórica, um futuro certo, sem erro. A liberdade depende ironicamente da obediência. Sobre esta estrutura afetiva, Ansart tece a seguinte consideração:

Ao final, já no que concerne a um partido unânime e sem dissenções ou falhas, perfilam-se as grandes linhas de um regime totalitário, pois o partido desperta os vínculos, amplia a

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Trotsky, L. O triunfo de Stalin, New York Times, 25/02/1929. http://www.marxists.org/portugues/trotsky/1929/02/25.htm 16 ARENDT, H. Denktagbuch. München: Piper Verlag, 2003. P. 80.

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euforia do amor político, mas acha no controle destas emoções uma fonte de poder de seus adeptos.17

Para concluir, importante salientar que Ansart não constrói um modelo, mas sim incorpora elementos da psicanálise para o entendimento dos conflitos sociais e de sua gestão política. Ele também não ignora a importância das idéias, dos intelectuais, mas pretende questionar que estes sejam exclusivamente racionais. Afinal, em nenhuma cultura, em nenhuma ação, em nenhum momento da experiência humana, os sujeitos falaram ou se aquietaram por uma deliberação que nada tivesse a ver com seus desejos, medos, ódios, amores, tudo isto, as paixões.

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ANSART, P. op. cit., p. 130.

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