Pierre Bourdieu: o sistema de ensino como instrumento de reprodução social

June 1, 2017 | Autor: G. Eidelwein Silv... | Categoria: Sociology of Education, Social reproduction, Reification, Educational system
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ARTIGO: “PIERRE BOURDIEU: O SISTEMA DE ENSINO COMO INSTRUMENTO DE REPRODUÇÂO SOCIAL” PUBLICADO EM: Educação e Cidadania, Vol.1, n.1. Porto Alegre: Faculdade Ritter dos Reis, 2006.

RESUMO. Este artigo remonta a linha argumentativa de Bourdieu, segundo a qual a boa performance na comunicação pedagógica pressupõe que o discente tenha o domínio prévio de um código lingüístico que só se pode adquirir no ambiente familiar. O sistema de ensino aparece, nesse contexto, como um mercado simbólico, no qual as famílias investem para reproduzirem seu ser social, garantindo assim sua posição (status) na estrutura de distribuição cultural. A reificação das relações de dominação, realizada pelo diploma escolar, tem a função simbólica de sublimar a arbitrariedade dessa relação, transmudando-a em relação impessoal (relação entre objetos), o que redunda na legitimação da ordem de distribuição estabelecida. PALAVRAS CHAVE. Sociologia da educação. Sistema de ensino. Reprodução Social. Reificação.

PIERRE BOURDIEU: O SISTEMA DE ENSINO COMO INSTRUMENTO DE REPRODUÇÂO SOCIAL ÁLVARO FILIPE OXLEY DA ROCHA1 GABRIEL EIDEILWEIN SILVEIRA2 RESUMO. Este artigo remonta a linha argumentativa de Bourdieu, segundo a qual a boa performance na comunicação pedagógica pressupõe que o discente tenha o domínio prévio de um código lingüístico que só se pode adquirir no ambiente familiar. O sistema de ensino aparece, nesse contexto, como um mercado simbólico, no qual as famílias investem para reproduzirem seu ser social, garantindo assim sua posição (status) na estrutura de distribuição cultural. A reificação das relações de dominação, realizada pelo diploma escolar, tem a função simbólica de sublimar a arbitrariedade dessa relação, transmudando-a em relação impessoal (relação entre objetos), o que redunda na legitimação da ordem de distribuição estabelecida. PALAVRAS CHAVE. Sociologia da educação. Sistema de ensino. Reprodução Social. Reificação.

“O sistema escolar age como o demônio de Maxwell: à custa do gasto de energia necessária para realizar a operação de triagem, ele mantém a ordem preexistente, isto é, a separação dos alunos dotados de quantidades desiguais de capital cultural”. BOURDIEU Este artigo tem por objetivo reconstruir sistematicamente os principais argumentos da teoria do sistema de ensino desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em A Reprodução. Antecipando os resultados da análise, se pode dizer que a principal função social3 do sistema de ensino, na ótica de Bourdieu, é a reprodução social, isto é, objetivamente, a reprodução da estrutura de distribuição de capitais (culturais sobretudo), processo pelo Artigo publicado na Revista Educação e Cidadania, Universidade Ritter dos Reis, 2006. Mestre em Ciência Política pela UFRGS e Doutor em Direito pela UFPR. 2 Graduando em Direito pela UNISINOS. 3 Num sentido objetivo, uma função social é um fim objetivamente perseguido por uma instituição ou por um processo social, o fim para o qual as coisas tendem, no mesmo sentido do argumento de Aristóteles segundo o qual “toda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda escolha, visam um bem qualquer” (ARISTÓTELES, 2001, p.17). Função social é a situação integradora que resulta do processo social, o que não supõe em absoluto que os agentes tenham a consciência de que sua ação tende para seu fim objetivo. “O mundo social está assim povoado de instituições que ninguém concebeu nem quis, cujos “responsáveis” aparentes (...) se surpreendem que elas possam existir como existem, tão bem adaptadas a fins nunca formulados expressamente pelos seus fundadores” (BOURDIEU, 2004c, p.92-93). Para dar conta da inconsciência e da causa social dessas ações objetivamente comprometidas com uma finalidade objetiva, Durkheim lançou mão do conceito de fato social, que consiste “em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõe” (DURKEIM, 2001, p.33). No entanto, ainda que se admita a causalidade social dos sistemas de disposições inconscientes (habitus), não é possível persistir sob o argumento da exterioridade dos modos de fazer instituídos. O mais correto é supor a incorporação do arbitrário social pelo agente. “Nessa lógica, a prática poderia ser definida como o resultado do aparecimento de um habitus, sinal incorporado de uma trajetória social (...)” (ORTIZ, 2003, p.38). 1

qual os agentes envolvidos estão intimamente interessados, ainda que não tenham a consciência subjetiva disto, e que implica concretamente na perpetuação de sua posição (status) social. Detalharemos ao longo da exposição o funcionamento dos mecanismos objetivos que tendem a produzir esse efeito reprodutor, necessidades sociais desconhecidas pelos agentes, mas incorporadas por eles sob a forma de habitus, e cuja eficácia depende desse desconhecimento, conforme veremos.

O trabalho pedagógico ordinário tem por finalidade a inculcação de certas maneiras de pensar, sentir e agir; e é realizado com eficácia tanto maior quanto mais os habitus adquiridos pelo discente em seu ambiente familiar originário, bem como nas situações pedagógicas anteriores, aproximarem-se dos habitus que se pretendem inculcar na escola. “O grau de produtividade específica de todo trabalho pedagógico diferente do trabalho pedagógico primário (trabalho pedagógico secundário) é função da distância que separa o habitus que ele tende inculcar (isto é, o arbitrário cultural imposto) do habitus que foi inculcado pelos trabalhos pedagógicos anteriores e, ao termo da regressão, pelo trabalho pedagógico primário (isto é, o arbitrário cultural originário)” (BOURDIEU, 1975, p.54).

O trabalho pedagógico de inculcação de certos tipos de habitus passa por um obstáculo comunicativo, a saber, o fato de a erudição escolar ser cifrada por um código complexo (como no caso da gramática), cuja decifração pressupõe o domínio prático desse código. Por isso, as performances escolares tendem a ser tanto melhores – com as mais completas e diretas incorporações dos habitus que se querem impor – quanto maior for a familiaridade do discente com o código pelo qual se cifra e se decifra a mensagem. “Um trabalho pedagógico secundário é por conseguinte tanto mais produtivo quanto, levado em conta o grau em que os destinatários da mensagem pedagógica possuam o código dessa mensagem, ele produz mais completamente as condições sociais da comunicação pela organização metódica de exercícios que visam assegurar a assimilação acelerada do código de transmissão e portanto a inculcação acelerada do habitus” (BOURDIEU, 1975, p.56).

É no seio da família que o arbitrário social se faz incorporar pela primeira

vez4, produzindo habitus primários mais ou menos familiarizados com o código da mensagem pedagógica posterior. Toda a biografia pessoal vai se estruturar, dentro do universo dos possíveis, a partir dessa experiência de inculcação familiar originária e da inculcação secundária na escola. O destino social (no caso do casamento ou da carreira), não será, por isso, totalmente aleatório: estruturar-se-á a partir dos habitus adquiridos numa família específica, sita numa posição (status) específica(o) na estrutura de distribuição, posição essa que corresponde a uma classe ou grupo social. “Assim, o habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares (em particular, da recepção e assimilação da mensagem propriamente pedagógica), o habitus transformado pela ação escolar, que é diversificada, por sua vez está no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (como recepção e a assimilação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural, ou experiências profissionais) e assim por diante, de reestruturação em reestruturação. As experiências (...) se integram na unidade de uma biografia sistemática que se organiza a partir de uma situação originária de classe, experimentada num tipo determinado de estrutura familiar” (ORTIZ, 2003, p.72).

Segue-se que, na classe dominante, o ambiente familiar é propício para a aquisição originária dos habitus decifradores que a escola exige, pois nela estão presentes as condições sociais da familiarização com a “cultura legítima” e com a “língua legítima”. A naturalidade do falar corretamente, por exemplo, advinda da familiaridade com a “língua correta”, pode aprimorada na escola, onde o domínio prático da língua é reforçado com um aprendizado teórico gramatical.

O desprendimento, vivido como não intencionalidade, é a marca registrada da burguesia consagrada (com sua cultura herdada) que se opõe à hipercorreção artificial da pequena burguesia (com sua cultura adquirida); e ambos os dois usos lingüísticos dominantes opõe-se ao uso vulgar 4

No complexo de Édipo, por exemplo, são as restrições que o pai representa para o filho, bem como o amor que o pai inspira nele, que possibilitam a formação do superego, que é o pai incorporado. “O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édito e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade, do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa” (FREUD, 1975, p.47). Ou seja, “a criança se identifica com seu pai (social) e adota, sem sequer precisar “fingir”, uma maneira de mexer a boca ao falar ou de mexer os ombros ao andar, que lhe parece constituir o ser social do adulto perfeito” (BOURDIEU, 2004c, p.88).

(desapossado culturalmente) das classes dominadas. Em uma palavra, a relação com a língua é um sinal distintivo de classe. “Tendo adquirido o uso dominante mediante uma familiarização precoce, a única capaz de transmitir a maneira de usar a língua que é o aspecto mais inimitável da performance legítima – tendo reforçado esse aprendizado prático por um aprendizado erudito organizado pela instituição escolar, visando a transformar o domínio prático em erudito e consciente de si, pretendendo estender o registro e assegurar a incorporação da norma erudita –, os membros da classe dominante são capazes de produzir, de maneira contínua e sem esforço aparente, a linguagem mais correta na sintaxe, na pronúncia e na dicção, o que fornece os sinais mais seguros da localização social” (ORTIZ, 2003, p.163).

Os discentes provindos de classes dominantes possuem o domínio do código que a escola exige (porque essas classes monopolizam a produção do código) de modo que a língua que se aprende no ambiente familiar dessas classes tende a ser muito mais muito próxima da regra gramatical que a língua que se aprende nas famílias pertencentes às classes dominadas. “Enfim, o uso dominante é o uso da classe dominante, que supõe a apropriação dos meios de aquisição cujo monopólio essa classe detém. A virtuosidade e a facilidade, ingredientes da imagem social da excelência lingüística, supõe que o domínio prático da língua (adquirível somente num universo familiar que mantém com a língua uma relação próxima da que a escola pede e inculca) é reforçado mas também transformado pela aprendizagem secundária que fornece os instrumentos (como a gramática) de um domínio reflexivo da linguagem” (ORTIZ, 2003, p.163).

A escola, nesse contexto, funciona como um mercado simbólico, no qual circula um tipo de capital simbólico muito especial, a saber, o “capital lingüístico”. A dominação econômica não se faz sentir aqui senão sob uma forma sublimada, através da dominação lingüística, na medida em que os discursos produzidos pelos discentes mais ricos em capital lingüístico – herdado na família – tende a ser muito melhor remunerado (com melhores notas e diplomas) que os discursos produzidos pelos desprovidos: “(...) no mercado lingüístico se exercem formas de dominação que têm uma lógica específica e, como em todo mercado de bens simbólicos, há formas de dominação específicas que não são absolutamente redutíveis à dominação estritamente econômica, nem em seu modo de exercício nem nos lucros que elas obtém” (BOURDIEU, 1983, p.100).

E a lógica do mercado lingüístico vai muito além do mercado escolar: nos

diversos campos (educação, política, jornalismo, arte, etc.) a competência lingüística é testada, de modo que as pessoas “autorizadas” têm muito mais probabilidades de tomar a palavra, de serem ouvidas e obedecidas 5 nas situações oficiais que as pessoas comuns. “As situações em que as relações de dominação lingüística se exercem, isto é, as situações oficiais (formal em inglês), são situações em que as relações realmente instituídas, as interações, se encontram perfeitamente de acordo com as leis objetivas do mercado (...). Quanto mais uma situação é oficial, mais a pessoa que terá acesso à palavra deve ser “autorizada”. Deve possuir títulos escolares, ter uma boa pronúncia, deve portanto ter nascido no lugar adequado. Quanto mais uma situação se aproxima do oficial, mais a sua lei de formação de preços são as leis gerais” (BOURDIEU, 1983, p.102-103).

O sistema de ensino funciona como um mercado lingüístico no qual os filhos dos ricos (herdeiros) têm chances muito maiores de receberem bons preços pelos seus discursos que os filhos dos desprovidos. O sucesso escolar prepara o sucesso nas carreiras profissionais e, portanto, há um grande interesse das famílias em investirem na educação dos filhos, não como estratégia de ascensão social6, mas simplesmente como um modo de assegurar sua posição (status) social. A “família visa se reproduzir biologicamente e sobretudo socialmente, isto é, reproduzir as propriedades que lhe permitem conservar sua posição, sua situação no universo social considerado” (BOURDIEU, 2004b, p.87). “A reprodução da estrutura de distribuição de capital cultural se dá na relação entre as estratégias das famílias e a lógica específica da instituição escolar. As famílias são corpos (corporate bodies) animados por uma espécie de conatus, no sentido de Spinoza, isto é, uma tendência a perpetuar seu ser social, com todos seus poderes e privilégios, que é a base das estratégias de reprodução, estratégias de fecundidade, estratégias matrimoniais, estratégias de herança, estratégias econômicas e, por fim, estratégias educativas. Elas investem tanto mais na educação escolar (...) quanto mais importante for seu capital cultural e quanto maior for o peso relativo de seu capital cultural em relação a seu capital econômico e, também, quanto menos eficazes forem as outras estratégias de reprodução (particularmente, as estratégias de herança 5

“A língua não é só um instrumento de comunicação ou conhecimento, mas de poder. Não procuramos somente ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeitados e reconhecidos. Daí a definição completa da competência como direito à palavra, à linguagem legítima como linguagem autorizada, de autoridade. A competência implica o poder de impor a recepção” (ORTIZ, 2003, p.148). 6 “Assim, para dar um exemplo extremo, tudo leva a pensar que os operários que, na França, praticamente não utilizavam o ensino secundário começaram a se tornar usuários a partir dos anos 60, de início com certeza por razões jurídicas, com a escolaridade obrigatória até os dezesseis anos, etc., mas também porque, para conservarem sua posição, para não caírem no subproletariado, era-lhes necessário possuir um mínimo de instrução” (BOURDIEU, 2004b, p.60).

que visam à transmissão direta do capital econômico...)” (BOURDIEU, 1996, p.35-36).

Uma das estratégias de reprodução mais importantes das famílias é sem dúvida a escolha da instituição escolar dos filhos, mesmo que uma tal escolha pretenda apenas legitimar uma posição já privilegiada na origem (como no caso do filho do advogado ou do médico que se habilita na mesma profissão do pai, sem jamais chegar a exercê-la).

Muitos

mercados

estão

legalmente

reservados

aos

profissionais

especializados (principalmente nas áreas da saúde e do Direito), embora muitas vezes, no caso da maioria das profissões técnicas (por exemplo, na área da informática ou do jornalismo), a exigência da escolaridade não se justifique realmente, porque a competência específica dessas profissões não pressupõe a competência escolar. Bourdieu percebeu que o sistema de ensino cumpre, nesses casos, a função de legitimação das posições sociais, sob a aparência de cumprir a função de habilitação técnica. “A familiaridade nos impede de ver tudo o que se esconde em atos na aparência puramente técnicos pela instituição escolar (...). Os exames ou os concursos justificam em razão de divisões que não necessariamente têm a racionalidade por princípio, e os títulos que sancionam seus resultados apresentam como garantia de competência técnica certificados de competência social, nisso muito próximos aos títulos de nobreza” (BOURDIEU, 1996, p.38).

Mais que habilitar técnicamente para o exercício das profissões exigidas no mercado econômico, o certificado escolar legitima a posição social ocupada, fazendo pensar que a posição superior é ocupada em função da competência técnica superior, quando na realidade trata-se apenas de certificar, tornando oficial e público, um estado da estrutura de distribuição que já existia na realidade no estado implícito. “Assim, pode-se dizer que um sistema de ensino seja tanto mais capaz de dissimular sua função social de legitimação das diferenças de classe sob sua função técnica de produção das qualificações quanto menos lhe é possível ignorar as exigências incomprimíveis do mercado de trabalho: sem dúvida as sociedades modernas conseguem cada vez mais obter da Escola que ela produza e garanta como tais cada vez mais indivíduos qualificados, isto é, cada vez mais bem adaptados às exigências da economia; mas essa restrição que a autonomia impõe ao sistema de ensino é sem dúvida mais

aparente do que real na medida em que a elevação do mínimo de qualificação técnica exigido pelo exercício das profissões não traz consigo ipso facto a redução do desvio entre a qualificação técnica que o exame garante e a qualidade social que ele outorga pelo que se poderia chamar seu efeito de certificação” (BOURDIEU, 1975, p.173).

“Sem entrar, aqui, em uma análise aprofundada, contentar-nos-emos em lembrar que os diplomas escolares são para o capital cultural o que a moeda é para o capital econômico” (BOURDIEU, 2004a, p.197-198), quer dizer, um certificado universalmente aceito, que é a garantia da provisão de fundos (respectivamente, competência incorporada no agente ou ouro depositado no Banco Central). Como um título de nobreza, os diplomas escolares atestam a provisão de fundos simbólicos, não se precisando fazer outra prova da propriedade que a simples exibição do título7. “Assim, os títulos de nobreza, bem como os títulos escolares, representam autênticos títulos de propriedade simbólica que dão direito às vantagens do reconhecimento (...). Um título como o título escolar é capital simbólico universalmente reconhecido e garantido, válido em todos os mercados. Enquanto definição oficial de uma identidade oficial, ele liberta seu detentor da luta simbólica de todos contra todos, impondo a perspectiva universalmente aprovada” (BOURDIEU, 2004b, p;163-164)8.

A objetivação da competência através do título (escolar ou de nobreza), documento que atesta a existência da competência, cria uma situação das coisas na qual as posições na estrutura de distribuição são previamente reservadas

para

as

pessoas

que

possuam

tais

ou

quais

títulos,

independentemente de quem sejam. O que importa para o direito é o título e não a pessoa: a posição está garantida para o título, para o seu titular abstrato, e não para essa ou aquela pessoa determinada. Assim, por exemplo, nas sociedades por ações – que são sociedade de capitais e não de pessoas – o direito ao voto na assembléia geral é garantido à ação, não importando quem seja o seu titular.

7

Essa qualidade do título legítimo de atestar por ele mesmo a existência do direito nele mencionado, possibilitando seu exercício, é o que os juristas cambiaristas chamam de cartularidade, princípio jurídico “segundo o qual o exercício dos direitos representados por um título de crédito pressupõe a sua posse. Somente quem exibe a cártula (...) pode pretender a satisfação de uma pretensão relativamente ao direito documentado pelo título” (COELHO, 2004, p.372). 8 “O diploma escolar, à semelhança da moeda, tem um valor convencional, formal, juridicamente garantido, portanto, livre das limitações locais (diferente do capital não certificado do ponto de vista escolar) e das flutuações temporais: o capital cultural que, de alguma forma, ele garante de uma vez por

“A objetivação operada pelo diploma e, mais geralmente, por todas as formas de poderes (credentials), no sentido de “prova escrita de qualificação que confere crédito ou autoridade”, é inseparável daquela que garante o direito ao definir posições permanentes independentes dos indivíduos biológicos reivindicados por elas e suscetíveis de serem ocupadas por agentes biológicos diferentes, embora intercambiáveis, em relação aos diplomas que deverão possuir” (BOURDIEU, 2004a, p.198-199).

A posse dos títulos garante o direito às posições na estrutura hierárquica, com todas as vantagens e remunerações guardadas para as diferentes posições, direito esse que se pode reivindicar com base no título. O sistema de ensino opera sua função social nesse processo, consagrando, no sentido religioso da expressão, os agentes que melhor responderem às suas exigências, através do ato da diplomação. Esses ciclos de consagração fazem com que a estrutura de distribuição funcione como uma ordem de distribuição permanente – como numa sociedade do tipo medieval, quero dizer, com divisões rigidamente estamentadas – ainda que tenhamos a ilusão de que a sociedade moderna esteja livre desses ciclos e desses estamentos. “A classificação escolar é sempre (...) uma ato de ordenação, no duplo sentido da palavra. Ela institui uma diferença social de estatuto, uma relação de ordem definitiva: os eleitos são marcados, por toda a vida, por sua pertinência (antigo aluno de...); eles são membros de uma ordem, no sentido medieval do termo, e de uma ordem nobiliárquica, conjunto nitidamente delimitado (pertence-se ou não a ela) de pessoas separadas dos comuns mortais por uma diferença de essência e, assim, legitimados para dominar. É nisso que a separação operada pela escola é também uma ordenação no sentido de consagração, de entronização em uma categoria sagrada, em uma nobreza” (BOURDIEU, 1996, p.38).

Os ciclos de consagração9 têm a função simbólica de sublimar, eufemizar, a verdade imanente ao fato de uma distribuição desigual, fazendo desconhecer a sua arbitrariedade ou, dito de outro modo, fazendo reconhecer a legitimidade da ordem: o desconhecimento da arbitrariedade de uma ordem é sempre a condição de sua legitimação. O poder simbólico10 consiste nesse potencial de todas não tem a necessidade de ser continuamente testado” (BOURDIEU, 2004a, p.198). 9 “Os ciclos de consagração, lugares de uma circulação circular de moeda falsa, nas quais se engendra a mais-valia simbólica, apresentam propriedades invariantes: obedecem sempre à lei fundamental que estabelece que o desconhecimento do arbitrário da imposição de valor – portanto, o reconhecimento da legitimidade – é tanto mais completo, quanto mais longo for o ciclo de consagração e quanto mais importante, por conseqüência, a energia social (suscetível de ser avaliada por tempo de trabalho ou de dinheiro) consumida na circulação” (BOURDIEU, 2004a, p.170). 10 “Para Freud, símbolo era, simplesmente, uma idéia na área consciente da psique (isto é, uma idéia de que a pessoa estava consciente) que tomava o lugar de um processo mental no inconsciente, sem que a pessoa se dê conta do deslocamento ou substituição” (CABRAL; NICK, 2003, p.295). Nesse mesmo

impor aos dominados a percepção da realidade construída socialmente como natural ou evidente, ocultando a violência simbólica dos atos de instituição dos quais resultou a estrutura, por exemplo, pelo fato de os certificados técnicos servirem mais para legitimar a posição (status) que realmente para atestar a competência técnica. “Por toda parte em que são observados, tais ciclos de consagração têm por função realizar a operação fundamental da alquimia social, transformar relações arbitrárias em relações legítimas, assim como diferenças de fato em distinções oficialmente reconhecidas. As relações duradouras de dominação legítima e dependência reconhecida encontram seu fundamento na circulação circular em que se engendra a mais-valia simbólica que é a legitimação do poder” (BOURDIEU, 2004a, p.211).

Assim como assim, Bourdieu entende que o sistema de ensino tende a reproduzir a si mesmo, para que possa realizar a tarefa propriamente pedagógica da inculcação; como tende a reproduzir também a estrutura de distribuição cultural, ao exigir dos discentes performances que pressupõe habitus familiarizados com a cultura dominante, premiando as boas performances com a consagração social que é concessão de títulos legitimados pelo reconhecimento social. “Todo sistema de ensino institucionalizado deve as características específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social)” (BOURDIEU, 1975, p.64).

Os mecanismos objetivos11 do sistema de ensino, cujos efeitos são muitas vezes indesejados e desconhecidos, contribuem para reproduzir as condições da perpetuação da dominação de classe; pois, sublimam 12 a sentido, Bourdieu define o poder simbólico pela inconsciência da realidade de seu exercício: “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2004c, p.07-08). 11 “Era preciso, no mínimo, esboçar esta análise da dupla eficácia dos mecanismos objetivos – que contribuem, não somente para a instauração de relações duradouras de dominação, mas também para a dissimulação de tais relações – para compreender inteiramente (...) as estratégias políticas de conservação características de formações sociais, cuja energia social acumulada está objetivada, de forma desigual, em mecanismos” (BOURDIEU, 2004a, p.201). 12 Em psicanálise se diz que um estímulo é subliminar quando ele é abaixo do limiar da percepção. “O termo é freqüentemente empregado em associação com a aquisição de um hábito de que a própria

arbitrariedade dessas relações pela reificação (operada, por exemplo, pelo diploma), o que parece justificar o tratamento desigual em função de uma competência técnica especializada, pretensão que não se justifica nem lógica nem moralmente, embora funcione na prática.

As estratégias de dominação tornam-se cada vez mais impessoais e em aparência desinteressadas, na medida que transcendem das relações pessoais e passam a integrar as impessoalíssimas relações institucionais, as quais só são possíveis na e pela crença compartilhada na realidade das instituições (como se não fossem constituída por pessoas) e dos capitais e credenciais que nelas se engendram. “Quanto mais a reprodução das relações de dominação estiver dependente de mecanismos objetivos, que servem aos dominantes sem que estes tenham necessidade de se servir de tais mecanismos, tanto mais indiretas – e, se podemos dizer, impessoais – serão as estratégias objetivamente orientadas em direção à reprodução: escolhendo a melhor aplicação para seu dinheiro ou o melhor estabelecimento secundário para o filho e evitando demonstrar liberalidade, cortesia ou gentileza à faxineira (ou a qualquer outro “subordinado”) é que o detentor de capital econômico ou cultural assegura a perpetuação da relação de dominação que o une objetivamente à sua faxineira e, até mesmo, aos descendentes desta” (BOURDIEU, 2004a, p.202)13.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2004a. _______________. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004b. _______________. O poder simbólico. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, aprendizagem não tem consciência. Por exemplo, a publicidade subliminar, utilizada em flashes rapidíssimos durante a projeção de estímulos principais no cinema e na TV” (CABRAL; NICK, 2003, p.302). 13 “Resulta daqui, entre outras conseqüências, que o capital simbólico se incorpora ao capital simbólico, não só porque a autonomia, real, do campo de produção simbólica não impede que ele permaneça dominado, no seu funcionamento, pelos constrangimento que dominam o campo social, mas também porque as relações de força objetivas tendem a reproduzir-se nas relações de força simbólicas, nas visões do mundo social que contribuem para garantir a permanência dessas relações de força” (BOURDIEU, 2004c, p.145).

2004c. _______________. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. _______________. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1975. CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário técnico de psicologia. 13.ed. São Paulo: PENSAMENTO-CULTRIX, 2003. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Vol.1. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2001. FREUD, Sigmund. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ORTIZ, Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d´Água, 2003.

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