Pierre-Joseph Proudhon: críticas ao Estado e propostas de transformação social

September 26, 2017 | Autor: Fabrício Monteiro | Categoria: Anarchism, Pierre-Joseph Proudhon, Anarquismo
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Texto publicado e formatado em MATEUS, J.; ATAIDES, M. A destruição do Leviatã: críticas anarquistas ao Estado. São Paulo: Faísca, 2014. p. 25-60 PIERRE-JOSEPH PROUDHON: CRÍTICAS AO ESTADO E PROPOSTAS DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL1 Fabrício Pinto Monteiro∗ É muito comum encontrarmos em obras de referência, verbetes de enciclopédias ou livros didáticos a concessão do epíteto “pai do anarquismo” ao francês Pierre-Joseph Proudhon (18091865). Este é um bom ponto de partida para a reflexão sobre a história, o pensamento e as propostas políticas anarquistas: há que se desconfiar de afirmações tão diretas e seguras, não? Ou, pelo menos, é parte do bom senso ponderar sobre seus sentidos. Primeiro, pode-se ter a impressão de um fundador heroico, quase lendário, de um movimento político que se estenderia linearmente daquela primeira metade do século XIX– quando da publicação do primeiro livro a mencionar a anarquia como organização política positiva, O que é a propriedade?,em 1840 – até hoje, mais de 170 anos depois. Naquela obra, de fato Proudhon não fala em “anarquismo”, mas em “anarquia”. A organização de um “movimento anarquista” seria gradativa, com uma história repleta de percalços, influências diversas, lutas e experimentações – e talvez melhor visível apenas a partir da década de 1870, após a expulsão de Mikhail Bakunin e James Guillaume da Associação Internacional dos Trabalhadores.2 Além do mais, o problema das incessantes transformações e multiplicidades de significados (ou não seria um problema?) de noções políticas como democracia, poder, representação etc. parece ter ainda mais meandros ao tratarmos do anarquismo. Mesmo se nos restringirmos a um único autor e/ou revolucionário, como, por exemplo, Pierre-Joseph Proudhon, é preciso ter em mente a historicidade de seus escritos, discursos e ações. É nesse sentido que eu gostaria de deixar claro ao Para a composição deste capítulo, foram utilizadas muitas das reflexões realizadas coletivamente durante o primeiro módulo do “Curso Livre de Anarquismo”, realizado pelo Coletivo Mundo Ácrata em Uberlândia, MG, entre 2010 e 2011. Nesse sentido, agradeço a Thiago Lemos Silva, Munís Pedro Alves, Marcelo Antônio da Silva eRenner de Almeida Mariano, além de todos os outros participantes na ocasião.  Possui graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia, especialização em Psicopedagogia pela Faculdade Católica de Uberlândia e mestrado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é doutorando na mesma instituição e professor da educação básica na rede municipal de Uberlândia, MG. Autor do livro O Niilismo Social: Anarquistas e Terroristas no Século XIX (São Paulo: Annablume, 2010). 2 BERTHIER, R. Prefácio. p. 11-23. In: SAMIS, A. Negras Tormentas: o federalismo, o internacionalismo e a Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011. p. 12. Tentei discutir as transformações das propostas políticas de Bakunin, fortemente influenciado por Proudhon no início, antes e depois de sua participação na Internacional em MONTEIRO, F. A construção da “teoria” social como construção de relações sociais: o materialismo histórico de Mikhail Bakunin. Revista História & Perspectivas. Uberlândia, n° 48, jan-jul, 2013. (prelo). Mais detalhes sobre a concepção de Estado do revolucionário russo no próximo capítulo desta obra. 1

leitor os objetivos deste capítulo e seus limites: nossa principal preocupação é discutir a concepção de Estado para Proudhon, mas pelo caráter um tanto quanto “didático” do texto, talvez seja dada uma coerência e homogeneidade àquela noção que não reflita suas reais ambiguidades e dinâmica, presentes se nos detivéssemos aos detalhes dos embates enfrentados e respondidos pelo filósofo francês ao longo de sua intensa vida política e sua vasta produção escrita. Ressalva feita, iniciemos pela célebre “declaração fundadora” da anarquia, como compreensão política positiva, feita por Proudhon: Que forma de governo vamos preferir? – Eh! podeis pergunta-lo, responde, sem dúvida, algum dos meus leitores mais novos; sois republicano – Republicano sim; mas essa palavra nada precisa. Res publica, é a coisa pública; ora quem quer que queira a coisa pública, sob qualquer forma de governo que seja, pode dizer-se republicano. Os reis também são republicanos. – Pois bem! sois democrata? – Não. – Quê! sereis monárquico? – Não. Constitucionalista? – Deus me livre. – Sois então aristocrata? – Absolutamente nada. – Quereis um governo misto? – Ainda menos. – Então que sois? – Sou anarquista3.

A grande lista de sistemas de governo desfilada por Proudhon ante seu interlocutor imaginário – sendo todos eles rejeitados em detrimento da anarquia – não é citada fortuitamente em seu livro, já mencionado, O que é a propriedade?. A sociedade francesa da época, anos de 1840, vivia um momento de intensa efervescência política e indefinição dos rumos a serem tomados para uma nova (ou tentativa de manutenção da antiga) organização social. Monarquia absoluta? Monarquia constitucional? República democrática? Ou ainda, um governo misto? Eram todas possibilidades em aberto frente às quais Proudhon posicionou-se de forma clara e contundente: nenhum desses governos trará justiça ou igualdade. Desde a queda de Napoleão Bonaparte em 1815, as lutas sociais na França eram incessantes, ou, em uma imagem mais bela, manifestavam-se como grandes vagalhões, entremeados por ondas menores de agitação social.4 A restauração monárquica que se seguiu, com Luis XVIII e, principalmente, com seu sucessor Carlos X, demonstrou que não seria seguido o modelo inglês, de um rei enfraquecido e servo de uma Constituição escrita por parlamentares, representantes do “povo”. Novas barricadas se sucederam em Paris, revoltas em Lyon, conflitos internos entre aristocratas e liberais acompanharam a coroação, em 1830, de Luis Filipe, o “rei burguês” 5. Proudhon classificaria posteriormente o governo que se manteve entre 1830 e 1848 (quando novos embates levariam à renúncia daquele rei, a instauração de um governo provisório republicano e uma

PROUDHON, P. O que é a propriedade? [ou Pesquisas sobre o princípio do Direito e do Governo]. Lisboa: Estampa, 1997 [1840]. p. 234-235. 4 Vamos nos restringir aqui à França, mas lembrando que diversas regiões da Europa e Américas viviam também momentos de importantes mudanças políticas. 5 Para as transformações do período, ver SAMIS, A. Negras Tormentas: o federalismo, o internacionalismo e a Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011. 3

assembleia constituinte, que nosso “pai da anarquia” tomaria parte) de “bancocracia”: “O princípio do governo de julho, fundado por e para a classe média, foi feito a propriedade, o capital."6 Tipógrafo de profissão, filho de mãe cozinheira e pai tanoeiro e cervejeiro, Pierre-Joseph Proudhon teve uma origem e formação diferentes da maioria dos reformadores sociais de então, egressos de classes aristocráticas ou mais propriamente burguesas. Suas críticas ao Estado e à propriedade levavam muitos “progressistas” ao espanto ou fúria e suas influências se estenderiam a pensadores, revolucionários e grupos tão distintos quanto Moses Hess, Mikhail Bakunin, Aleksandr Herzen, Arnold Ruge, Francisco Pi y Margall, Liev Tolstoi, os mutualistas da Associação Internacional dos Trabalhadores, cooperativistas espanhóis, communards de 1870, sindicalistas revolucionários...7

Autoridade e liberdade A compreensão dos meios de funcionamento da política é extremamente dinâmica nos escritos e nas ações de Pierre-Joseph Proudhon. Alguns termos utilizados inicialmente em um livro podem não ser retomados nas obras seguintes, ou podem ganhar novos sentidos, ter sua importância ampliada ou reduzida, como é o caso de “anarquia” de O que é a propriedade?, que perdeu seu lugar como ideal social frente ao “federalismo” em escritos posteriores. Apesar disso, e valendo-se de nosso objetivo de discussão geral das concepções de Estado para o revolucionário, há um movimento que parece perpassar (mesmo que utilizando-se de palavras diferentes) todas as suas críticas aos governos ao longo do tempo e suas propostas de uma nova organização social: a dinâmica das relações entre os princípios de autoridade e liberdade. Partamos do início. Para o tipógrafo de Besançon – cidade em que viveu até princípios da década de 1830 -, os seres humanos são naturalmente inclinados a associarem-se uns aos outros, quer dizer, são sociáveis por natureza e necessidade8. Esta associação, porém, para existir como tal necessita ser estabelecida entre iguais; não há associação entre pessoas e animais, por exemplo, ou ainda entre os homens e Deus9. Esta ideia base seria depois fundamental em suas propostas de “Le principe du gouvernement de Juillet [de 1830], fondé par et pour la classe moyenne, était done la propriété, le capital”. PROUDHON, P. Les confessions d’um révolutionnaire, pour servir a l’histoire de la révolution de février. Paris: Imprimerie de Doulé, 1849. p. 13. 7 Ver WOODCOCK, G. Anarquismo: uma história das ideias e movimentos libertários. Porto Alegre: L&PM, 1983 (vol. 1). p. 95-97. NETTLAU, M. História da anarquia: das origens ao anarco-comunismo. São Paulo: Hedra, 2008. p. 8283. COLSON, D. A filiação de Proudhon. p. 23-29. Verve. São Paulo, n° 9, 2006. p. 24-25. BANCAL, J. Tolstoi e Proudhon. p. 458-461. Verve Dobras. São Paulo, n° 21, 2012. 8 PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 198-199. 9 PROUDHON, P. 1997 [1840].p. 212. A discussão sobre a natureza humana e suas relações com as organizações políticas e sociais possíveis (desenvolvidas por Proudhon como tendo foco de discussão Jean-Jacques Rousseau) revelanos uma característica destacada pela pesquisadora Jacy Alves de Seixas: sob vários aspectos, ele é um homem do século 6

mutualidade e federalismo e em sua crítica ao Estado (seja o Estado comunista ou liberaldemocrático). Sendo sociável, o primeiro passo civilizador dado pelos seres humanos envolve o estabelecimento da comunidade10. Politicamente, entre os dois princípios citados, a comunidade é a forma social adquirida pela autoridade: “Era necessário domesticar, fixar as multidões errantes, indisciplinadas e grosseiras; formar um grupo de cidades isoladas e hostis: fundar pouco a pouco, com autoridade, um direito comum, e colocar, sob a forma de decretos imperiais, as leis gerais da humanidade” 11. Na comunidade o indivíduo é submisso à coletividade, “o homem despojado do seu eu, da sua espontaneidade, do seu génio e afeições deve apagar-se humildemente frente à majestade e inflexibilidade da comuna” 12. Em suas formas ideais, sistemas políticos como a monarquia absoluta e o comunismo são as manifestações básicas desse tipo de autoridade, e ambos só subsistem como tais através do Estado. No primeiro exemplo, “o indivíduo é subserviente ao soberano, no segundo ao coletivo social/estatal” 13. Esta forma de compreender a política fora proposta em esboço pelo revolucionário francês desde O que é propriedade?; uma década mais tarde, em uma obra intitulada Ideia geral da revolução no século XIX, de 1851, Proudhon descreveria em detalhes alguns dos dogmas e preconceitos da autoridade que sustentariam os governos: “1. A Perversidade original de da natureza humana; 2. A desigualdade essencial das condições; 3. A perpetuidade do antagonismo e da guerra; 4. A inevitabilidade da miséria. De onde se deduz: 5. A necessidade de governo, da obediência, da resignação e da fé.”14.

E também uma lista dos elementos concretos surgidos juntos a estes dogmas, ou, em suas palavras, a “arquitetura do poder” do princípio da autoridade: a) A divisão do Povo em classes, ou castas, subordinadas uma à outra e formando uma pirâmide, no topo da qual aparece, como a Divindade sobre o altar, como o rei em seu trono, a Autoridade; b) A centralização administrativa; c) A hierarquia judicial; d) A polícia; e) O culto. Adicionar, em países onde o princípio democrático tornou-se dominante: f) A divisão de poderes; g) A intervenção do Povo no governo pelo voto representativo; h) As inúmeras XVIII, “umbilicalmente ligado a muitas das apostas teóricas e políticas do movimento ilustrado”, como a maioridade racional kantiana. SEIXAS, J. Indivíduo, liberdade e solidariedade em Proudhon: contribuição para uma genealogia do pensamento e sensibilidade anarquistas. p. 57-70. MACHADO, M.; PATRIOTA, R. (orgs.) Política, cultura e movimentos sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia: EdUFU, 2001. p. 58. 10 “A comunidade, primeiro modo, primeira determinação da sociabilidade, é o primeiro termo do desenvolvimento social”. PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 224. 11 PROUDHON, P. Do princípio federativo [e da necessidade de reconstituir o partido da revolução]. São Paulo: NuSol/Imaginário, 2001 [1863]. p. 108. 12 PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 226. 13 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 49. 14 “1.La perversité originelle de la nature humaine; 2. L'inégalité essentielle des conditions; 3. La perpétuité de l'antagonisme et de la guerre; 4. La fatalité de la misère. D’où se déduit : 5. La nécessitédu gouvernement, de l’obéissance, de la résignation et de la foi.” PROUDHON, P. Idée générale de la revolution au XIXe siècle: choix d'études sur la pratique révolutionnaire et industrielle. Paris : Ernest Flammarion, 1925 [1851]. p. 254.

variedades de sistemas eleitorais, desde a convocação dos Estados, usados na Idade Média, ao sufrágio universal e direto; i) A dualidade das câmaras; j) O voto de leis e o consentimento de imposto pelos dos representantes da nação; k) A preponderância das maiorias.15.

Podemos já aqui começar a compreender a oposição de Proudhon ao comunismo 16. Qualquer forma de governo, monárquico ou comunista, não consegue fugir dos princípios que o sustentam: A experiência mostra, de fato, que por todo lugar e sempre o Governo, por popular que era em sua origem, alinhou-se com a classe mais esclarecida e mais rica contra a mais pobre e mais numerosa; depois de se mostrar algum tempo liberal, ele tornou-se aos poucos excepcional, exclusivo, finalmente, em vez de apoiar a liberdade e igualdade entre todos, ele trabalhou obstinadamente para destruí-la, em virtude de sua inclinação natural ao privilégio17.

Explica-se também a resposta enfática dada à carta remetida por Karl Marx em cinco de maio de 1846, pedindo ao tipógrafo de Besançon auxilio para uma aliança entre socialistas alemães, ingleses e franceses18. Afirmando seu antidogmatismo, Proudhon antecipou o que já lhe aparecia claramente como parte das propostas do pensador germânico: “Mas, por Deus!, depois de demolir todos os dogmatismos a priori, não sonhemos, de nossa parte, com a doutrinação do povo”, respondeu-lhe19. *** Surgido historicamente em um segundo momento após o princípio político da autoridade, tem-se o princípio da liberdade, que como afirma a cientista social Natalia Montebello, Proudhon “a) La division du Peuple par classes, ou castes, subordonnées l’une à l’outre, échelonnées et formant une pyramide, au sommet de laquelle apparaît, comme la Divinité sur son autel, comme le roi sur son trône, l'Autorité; b) La centralisation administrative; c) La hiérarchie judiciaire; d) La police; e) Le culte. Ajoutez, dans les pays où le principe démocratique est devenu prépondérant : f) La distinction des pouvoirs; g) L’intervention du Peuple dans le Gouvernement, par vote représentative; h) Les variétés innombrables de systèmes électoraux, depuis la convocation par Etats, usitée au moyen âge, jusqu’au suffrage universel et direct; i)Là dualité des chambres;j) Le vote des lois et le consentement de l'impôt par les représentants de la nation; k) La préponderance des majorités.” PRODHON, P. 1925 [1851]. p. 255. Mais adiante veremos como nesta mesma obra Proudhon coloca sua proposta de uma nova organização social, isenta de tais características. 16 Ressalva importante: naquele momento, Karl Marx ainda estava longe de ser o grande expoente o comunismo estatal, como seria, principalmente, no século XX com as experiências russa, chinesa, cubana etc. Ao discordar das propostas comunistas, o “pai da anarquia” referia-se a um grande conjunto de pensadores e reformistas sociais, como Étienne Cabet, Robert Owen, Tommaso Capanella, Thomas More e Platão (em A república). PROUDHON, P. De la capacité politique des classes ouvrières. Paris: Éditions du Trident, 1989 [1865]. p. 77. 17 “L'expérience montre, en effet, que partous et toujours le Gouvernement, quelque populaire qu’il ait été à son origine, s'est rangé du côté de la classe la plus éclairée et la plus riche contre la plus pauvre et la plus nombreuse; qu'après s’être montré quelque temps libéral, il est devenu peu à peu exceptionnel, exclusif; enfin, qu'au lieu de soutenir la liberté et l'égalité entre tous, il a travailler obstinément à les détruire, en vertu de ton inclination naturelle au privilège”. PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 111. 18 MARX, K. Carta de Marx à Proudhon. Bruxelas, 05/05/1846.p. 237-238. In: _______. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009 [1847]. p. 237 19 PROUDHON, P. Carta de Proudhon à Marx. Lyon, 17/05/1846. p. 239-241.In : MARX, K. 2009 [1847]. p. 239 15

relaciona com o primeiro de forma serial, através de inúmeras combinações dialéticas 20. Note-se que até o presente ponto de nossa discussão foi possível perceber que o revolucionário não procura simplesmente negar de forma absoluta o papel da autoridade na política e na organização social 21. A autoridade é necessária à sociabilidade primeira dos seres humanos, mas sua capacidade de ser racional, que os diferenciados outros animais, faz com que sua vontade não seja uniforme e constante; eles individualizam-se frente aos demais. Surge aí a liberdade22. A propriedade, dando seguimento ao raciocínio, é de certa maneira uma forma de concretização social da liberdade, que se opõe àquela comunidade primeira23. Entretanto, ela está longe de garantir a organização social almejada, pois a propriedade, como nos tempos de Proudhon e persistente até hoje, é geradora também de injustiça e desigualdade: O homem que se apossa de um campo e diz: Este campo é meu, não será injusto senão enquanto os outros homens não tiverem todos a mesma faculdade de possuir como ele; também não será injusta se querendo estabelecer-se noutro sítio, trocar um campo contra um equivalente. Mas, pondo um outro no seu lugar se lhe disser: Trabalha para mim enquanto descanso; então, torna-se injusto, desassociado, desigual: é um proprietário24.

Para Proudhon, a democracia liberal é uma forma idealizada de governo surgida com o princípio político da liberdade – assim como o é a anarquia, com importantes diferenças entre ambos -, onde, na democracia, prepondera a defesa da propriedade25. Nela a autoridade cede parcialmente espaço para a liberdade e o antigo monarca absoluto passa a ser servo da lei 26. O regime de contrato social torna-se dominante (na realidade, na monarquia haveria uma espécie de contrato entre soberano e súditos, mas ele seria por demais desproporcional em obrigações) 27. Entretanto, a persistência do Estado na democracia liberal é uma evidência premente de quão fictícia é a prática de justiça social através de seu contrato: MONTEBELLO, N. Analíticas anarquistas do federalismo. p. 242-258. Verve. São Paulo, n°1, maio de 2002. p. 245246. Aos interessados na dialética seria do autor, ver BORBA, J. Relativismo e ceticismo na dialética serial de Proudhon. São Paulo: PUC/SP, 2008 (tese). 21 O que, de fato, dificilmente é defendido pelos anarquistas de forma geral, ao contrário do que reza o senso comum. A discussão da importância do papel da autoridade costuma vir mais fortemente à baila nos debates sobre educação; mesmo Bakunin – para nos atermos a um exemplo cronologicamente próximo à Proudhon – defende que o ponto de partida para a educação das crianças é a autoridade, intencionando-se a construção gradativa da liberdade. BAKUNIN, M. A instrução integral. São Paulo: Imaginário/IEL/Nu-Sol, 2002. p. 83. Sobre as propostas anarquistas para a educação, ver, dentre inúmeros outros, CODELLO, F. “A boa educação”: experiências libertárias e teorias anarquistas na Europa, de Godwin a Neill. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2007. 22 PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 218-219. 23 “A comunidade, primeiro modo, primeira determinação da sociabilidade, é o primeiro termo do desenvolvimento social, a tese; a propriedade, expressão contraditória da comunidade, forma o segundo termo, a antítese.” PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 224. 24 PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 204. Perceba-se a crítica à propriedade, que gera a divisão classista e a desigualdade, enquanto – nesta obra – a posse é bem vista pelo filósofo (proposta rejeitada posteriormente pelos anarquistas comunistas e pelos coletivistas). 25 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 51-52. 26 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 82-83. 27 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p.87-88. 20

Pode dizer-se que esse contrato, que tira aos cidadãos metade ou dois terços da sua soberania e o quarto do seu produto, esteja encerrado nos seus justos limites? Seria mais verdade dizer, o que a experiência confirma demasiadas vezes, que o contrato, em todos esses sistemas [democracia representativa, monarquia constitucional, república comunista] é exorbitante, oneroso, pois que ele é, para uma parte mais ou menos, considerável, sem compensação; e aleatório, pois que a vantagem prometida, de início insuficiente, nem sequer é assegurada28.

Daí nos familiarizamos com a grande discordância de Proudhon frente a Jean-Jacques Rousseau, que em seu Do contrato social (de 1762) “não entendeu nada sobre o contrato social”, pois “contrato” e “governo” se diferenciam, até se opõem29: Este será evidente se considerarmos que o contrato é o ato pelo qual dois ou mais indivíduos convencionam organizar-se entre si, em uma extensão e por certo tempo, esta a potência industrial que chamamos de troca; (...) Entre governantes e governados, ao contrário, de qualquer forma que seja constituída a representação, a delegação, ou a função de governo, há, necessariamente, uma alienação de uma parte de liberdade e da riqueza do cidadão30.

Você, caro leitor, pessoalmente assinou o tal contrato social? Esta é a ficção denunciada por Proudhon, para quem o contrato deve ser “individualmente consentido, assinado com suas próprias mãos, por todos que dele participam”31. Em suma, “concluamos sem medo que a fórmula revolucionária não pode mais ser nem Legislação direta, nem Governo direto, nem Governo simplificado: ela é NÃO GOVERNO” 32. *** A organização social proposta por Proudhon conteria em si uma síntese entre os princípios de autoridade e liberdade33. Em 1840, com O que é a propriedade?,os termos utilizados nesta fórmula são comunidade e propriedade, que gerariam a liberdade, concretizado como organização social na anarquia34. Mais de vinte anos depois, com Do princípio federativo, os termos são aqueles PROUDHON, P. 2001 [1863]. p.89. “N'a rien compris au contrat social.” PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 116. 30 “Cela paraîtra évident, si l'on réfléchit que le contrat est l'acte par lequel deux ou plusieurs individus conviennent d'organiser entre eux , dans une mesure et pour un temps déterminé, cette puissance industrielle que nous avons appelée l’échange; (...) De gouvernants à gouvernés, au contraire, de quelque manière que soit constituée la représentation, la délégation, ou la fonction gouvernante, il y a nécessairement aliénation d'une partie de la liberté et de de la fortune du citoyen.” PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 116-117. 31 “Individuellement consenti, signé, manupropria, par touscequi y participent.” PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 117118. 32 “Concluons sans crainte que la formule révolutionnaire ne peut plus être ni Législation directe, ni Gouvernement direct, ni Gouvernement simplifié : elle est, PLUS DE GOUVERNEMENT. “1. La perfectibilité indéfinie de l'individu et de l'espèce; 2. L'honorabilité du travail; 3. L'égaillé des destinées; 4. L'identité des intérêts; 5. Le cessation de l'antagonisme; 6. L'universalité du bien-étre; 7. La souveraineté de la raison;8. La liberté absolue de l’homme et du citoyen. PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 130. 33 “O problema político se resume na busca do equilíbrio entre Autoridade e Liberdade”. PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 17. 34 PROUDHON, P. 1997 [1840]. p. 224, 235, 242-243. 28 29

que decidi privilegiar nesse texto, “autoridade” e “liberdade”, sintetizados na federação35. Em Ideia geral da revolução no século XIX, o revolucionário francês exporia com maiores detalhes os princípios dessa nova ordem: “1. O aperfeiçoamento indefinido do individuo e da espécie; 2. A honorabilidade do trabalho; 3. A igualdade das destinações; 4. A identidade de interesses; 5. O fim dos antagonismos; 6. A universalização do bem-estar; 7. A soberania da razão; 8. A liberdade absoluta do homem e do cidadão”36. E suas formas de ação – privilegiando-se aqui elementos econômicos e políticos: a) A divisão do trabalho, pela qual se opõe à classificação do Povo por castas, a classificação por INDÚSTRIAS; b) A força coletiva, princípio das COMPANHIAS OPERÁRIAS, no lugar dos exércitos; c) O comércio, forma concreta do CONTRATO, que substitui a lei; d) A igualdade de troca; e) A Concorrência; f) O crédito, que centraliza os INTERESSES, como a hierarquia governamental centralizava a obediência g) O equilíbrio de valores e propriedades37 .

Em abril de 1848, o Governo Provisório, que assumira o poder na França após a renúncia forçada de Luís Filipe, convocou eleições para formar uma assembleia constituinte de caráter republicano. Proudhon se candidatou, por certo esperando uma possibilidade de espaço para operacionalizar suas propostas naquele momento de indefinições políticas e possibilidades em aberto – o historiador George Woodcock apresenta a conjectura que sua intenção era buscar apoio para a implantação de seu projeto do Banco do Povo38. Proudhon foi eleito na votação secundária, em julho do mesmo ano. Ele relacionaria sua candidatura e eleição a um ideal socialista, dizendo: Quando penso em tudo o que tenho dito, escrito, publicado em dez anos a respeitodo papel do Estado na sociedade, sobre a subordinação do poder e da incapacidade revolucionária do governo, sou tentado a acreditar que minha eleição , em junho de 1848, foi o resultado de um mal-entendido por parte do povo. Essas ideias datam da época das minhas primeiras meditações; elas são contemporâneas de minha vocação no socialismo. O estudo e a experiência as desenvolveram; elas sempre me dirigiram em meus escritos e minha conduta39.

PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 90. “1. La perfectibilité indéfinie de l'individu et de l'espèce; 2. L'honorabilité du travail; 3. L'égaillé des destinées; 4. L'identité des intérêts; 5. Le cessation de l'antagonisme; 6. L'universalité du bien-étre; 7. La souveraineté de la raison;8. La liberté absolue de l’homme et du citoyen.” PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 257. 37 “a) La division du travail, par laquelle s'oppose, à la classification du Peuple par castes, la classification par INDUSTRIES; b) La force collective, principe des COMPAGNIES OUVRIÈRES, remplaçant les armées; c) Le commerce, forme concrète du CONTRAT, qui remplace la loi; d) L'égalité d'échange; e) La concurrence; f) Le crédit, qui centralise les INTÉRÊTS, comme la hiérarchie gouvernementale centralisait l’obéissance; g) L'équilibre des valeurs et des propriétés.” PROUDHON, P. 1925 [1851]. p. 257. 38 WOODCOCK, G. 1983. p. 110. Sobre o Banco do Povo, ver PROUDHON, P. 1849. p. 69-74. 39 “Quand je songeà tout ce que j'ai dit, écrit, publié depuis dix ans sur le rôle de l'Etat dans la société; sur la subordination du pouvoir et l'incapacité révolutionnaire du gouvernement, je suis tenté de croire que mon élection, em juin 1848, a été l'effet d'une méprise de la part du peuple. Cesidées datent en moi de l'époque de mes premières méditations; elles sont contemporaines de ma vocation au Socialisme. L'étude et l'expérience les ont développées; elles m'ont constamment dirigé dans mes écrits et ma conduite.” PROUDHON, P. 1849. p.50 35 36

Sua atuação na Assembleia foi quase solitária, tendo apoio mínimo ao tentar levar suas propostas para a constituição francesa, como a substituição da propriedade pela posse (tendo apenas dois votos a favor). Ao mesmo tempo, continuava a atacar as instituições do governo e do sufrágio universal através de seu jornal Le Représentant du People, que logo teria sua publicação suspensa devido ao teor de suas críticas ao governo40. Em seu livro Confissões de um revolucionário, de 1849, recordaria sobre sua atuação parlamentar: Desde que pus os pés no Sinai parlamentar, eu havia deixado de relacionar-me com as massas: à força de absorver-me em meus trabalhos legislativos, eu perdi completamente o rumo dos acontecimentos correntes. Eu não sabia nada, nem da situação das oficinas nacionais, nem da política do governo, nem das intrigas que atravessavam no seio da Assembleia. É preciso ter vivido nessa cabine que chamamos uma Assembleia nacional para conceber como os homens que ignoram completamente o estado de um país são quase sempre os que o representam.41

Mutualidade e Federalismo Em 1864, um grupo de artesãos lançou o chamado Manifesto dos sessenta42. O objetivo do documento era protestar contra a falta de representação dos trabalhadores entre os deputados na assembleia francesa: nas eleições do ano anterior, houveram candidaturas operárias nas eleições, mas sem conseguir votos suficientes43. Entre os signatários estava Henri Tolain, mais tarde um dos líderes dos mutualistas franceses, de propostas fortemente inspiradas em Proudhon, na Associação Internacional dos Trabalhadores. Um dos questionamentos principais do grupo era o quão destoante estava o princípio de igualdade política, proclamado pelo governo francês, e a desigualdade social efetivamente vivida por eles. Não havia nenhuma comunhão de interesses entre operários e quaisquer daqueles políticos, mesmo os liberais, na câmara. Em suas palavras: Mas, se estamos de acordo sobre a política, estamos na economia social? As reformas que nós queremos, as instituições que nós demandamos; a liberdade para estabelecer, são aceitas por todos aqueles que representam no Corpo legislativo o partido liberal? (...) O sufrágio universal fez-nos politicamente relevantes, mas ainda temos de nos emancipar socialmente44. WOODCOCK, G. 1983. p. 112 e SAMIS, A. 2011. p. 66. “Depuis que j'avais mis le pied sur le Sinaï parlementaire,j'avais cessé d'être en rapport avecles masses: à force de m'absorber dans mes travaux législatifs, j'avais entièrement perdu de vue les affaires courantes. Je ne savais rien, ni de la situation des ateliers nationaux, ni de la politique du gouvernement, ni des intrigues qui se croisaient au sein de l'Assemblée. Il faut avoir vécu dans cet isoloir qu'on appelle une Assemblée nationale, pour concevoir comment les hommes qui ignorent le plus complètement l'état d'un pays sont presque toujours ceux qui le représentent.” PROUDHON, P. 1849. p. 41 42 Aos interessados, o texto integral é facilmente encontrado na internet. Dentre outras fontes, MANIFESTE des soixante. 17/02/1864. Disponível em http://www.marxists.org/francais/general/tolain/works/1864/soixante.htm. Acesso em 27/02/2013. 43 PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 5 e MANIFESTE des soixante. 44 “Mais si nous sommes d’accord en politique, le sommes-nous en économie sociale ? Les réformes que nous désirons, les institutions que nous demandons; la liberté de fonder, sont-elles acceptées par tous ceux qui représentent au Corps 40 41

Mesmo desaconselhando os trabalhadores do Manifesto a concentrarem-se na via de ação política parlamentar, Pierre-Joseph Proudhon concordou com um ponto específico levantado por eles: de fato, a igualdade política do sufrágio universal não significoua igualdade social como prometido45. Esta consideração é muito importante para compreendermos a concepção de Estado para o revolucionário de Besançon, juntamente com suas propostas para uma nova organização social. Como bem colocou Francisco Trindade, segundo Proudhon para a transformação política – no caso, tendo em vista a construção do federalismo – é necessária também a estruturação das atividades produtivas (autônomas no plano local) até ao nível nacional, portanto à necessidade de uma regulamentação geral e de uma planificação coordenando os seus interesses próprios pelos agrupamentos na base: trabalhadores, consumidores, usuários dos serviços públicos etc. Implica, por outro lado, a descentralização das funções coletivas, asseguradas até aí pelo Estado e o seu aparelho, no nível das comunas e das regiões46.

Em outras palavras, como o leitor deve ter percebido, para Proudhon é impossível entender o funcionamento das relações e instituições políticas apartadas das organizações econômicas e sociais; impossível também, por consequência, uma transformação revolucionária que não envolva essas três esferas simultaneamente. Não há dificuldade para acompanharmos algumas destas relações: o sufrágio universal democrata é “organizado de maneira a servir de sanção perpétua a esta tirania anônima, pela preponderância de sujeitos medíocres ou mesmo nulos”47. Não há igualdade, justiça ou efetiva liberdade nesse sistema político; não há como o Estado, ou a comunidade, permitir a existência destes ideais. É preciso uma mudança ao mesmo tempo econômica e social para a transformação política, pondo em ação uma ideia que, na verdade, não é nova (mesmo na Declaração dos direitos e dos deveres do homem e do cidadão ela já estava presente), mas que ainda não foi plenamente praticada: a mutualidade48. “O verdadeiro problema a resolver não é na realidade o problema político, é o problema econômico49”.

législatif le parti libéral ? (...) Le suffrage universel nous a rendus majeurs politiquement, mais il nous reste encore à nous émanciper socialement.” MANIFESTE des soixante.1864. 45 PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 5. Foi exatamente a publicação do documento que o motivou a escrever seu livro Da capacidade política da classes operárias, publicado apenas postumamente, em 1865. 46 TRINDADE, F. O essencial Proudhon. São Paulo/Rio de Janeiro: Imaginário/Soma/Nu-Sol, 2001. p. 76. 47 “Organisé de manière à servir de sanction perpétuelle à cette tyrannie anonyme, par la préponderance des sujets medíocres ou même nuls.”PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 81. 48 PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 85-86. 49 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 128.

Mutualidade é um sinônimo de reciprocidade e relaciona-se intimamente à justiça social50. “Serviço por serviço, dizem, produto por produto, preço por preço, seguro por seguro, crédito por crédito, garantia por garantia etc.”51 Não se trata de um liberalismo extremado, ou de um ambiente de “cada um por si”; ainda existe na organização mutual a presença do princípio da autoridade – há uma organização clara e ativa da sociedade -, mas sintetizado na liberdade. Na mutualidade, “Estado, governo, poder, autoridade etc. são expressões utilizadas para designar sob outro ponto de vista a própria liberdade.”52. Com este regime, [com] o direito econômico determinado, o público vai se deduzir imediatamente. Um governo é um sistema de garantias; o mesmo princípio de garantia mútua que deve assegurar que cada um a instrução, o trabalho, a livre disposição de suas faculdades, o exercício da sua indústria [trabalho], o gozo de sua propriedade [posse], a troca de seus produtos e serviços, assegurará igualmente a todos a ordem, a justiça, a paz, a igualdade, a moderação do poder, a lealdade dos funcionários e dedicação de todos.53

Dessa maneira, percebemos mais uma vez a relação entre organização econômica e política – a mutualidade econômica possui como equivalência o federalismo político. “Assim, transportado à esfera política, o que temos chamado até agora mutualismo ou garantismo leva o nome de federalismo. Em um simples sinônimo, nos é dada a revolução completa, política e econômica...”54 *** A federação é um ponto de chegada. A dinâmica da federação está na diversidade e na autonomia das unidades federadas, articuladas de modo não burocrático. A autoridade federal carece de poder público no sentido clássico, embora seja chamado ao exercício de determinadas funções de serviço. Quem diz liberdade, quem diz república, socialismo diz, para Proudhon, federação55.

PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 90. “Service pour service, disent-ils, produit pour produit, prêt pour prêt, assurance pour assurance, crédit pour crédit, caution pour caution, garantie pour garantie, etc.”PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 92. 52 “État, gouvernement, pouvoir, autorité, etc., sont des expressions servant à designer sous um autre point de vu la liberté même.” PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 93. 53 “le droit économique donné, ledroit public va s’en déduire immédiatement. Un gouvernement est un système de garanties; le même principe de garantie mutuelles que doit assurer à chacun l’instruction, le travail, la libre disposition de ses facultés, l’exercice de son industrie, la jouissance de sa proprieté, l’échange de ses produits et services, assurerá également à tous l’ordre, la justice, la paix, l’égalite, la modération du pouvoir, la fidélité des fonctionnaires, et dévouemént de tous.” PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 181-182. 54 “Ainsi, transporté dans la sphère politique, ce que nous avons apelle jusqu’a présent mutuallisme ou garantisme prend le nom de fédéralisme. Dans une simple synonyme, nous et donnée la révolution tout entière, politique et économique... ” PROUDHON, P. 1989 [1865]. p. 183. 55 RESENDE, P. Avatares do devir federalista: atualidade de P.-J. Proudhon. p. 143-154. Política & Trabalho: Revista de Ciências Sociais. João Pessoa, n° 36, abril de 2012. p. 152. 50 51

O filósofo e cientista político Paulo Edgar Resende conseguiu assinalar nesse fragmento de artigo alguns dos aspectos centrais da proposta federalista de Proudhon – que difere em largas medidas do federalismo liberal e/ou democrático. Vejamos agora o problema nas palavras do próprio “pai da anarquia”: Se a produção e distribuição da riqueza for deixada à sorte; se a ordem federativa não servir senão para proteger a anarquia capitalista e mercantil; se, devido a essa falsa anarquia, a Sociedade se encontra dividida em duas classes, uma de proprietários-capitalistasempreiteiros, a outra de proletários assalariados; uma de ricos, a outra de pobres; o edifício político será sempre instável56.

No federalismo de Proudhon há uma forma de contrato social firmado entre os indivíduos, mas ele é concreto, não abstrato e universal como para Jean-Jacques Rousseau. Para sua efetividade ele necessita, em síntese, sustentar-se na igualdade, liberdade e soberania da organização mutual57. Em Do princípio federativo, que é uma das últimas obras do revolucionário publicada em vida, Proudhon chega a falar em “Estado” ao referir-se à organização federalista – a esta altura de sua experiência política e como escritor já demonstrava grande segurança de que seus interlocutores acompanhariam os novos sentidos dados por ele às noções e palavras – e descreve suas funções, claramente diversas do Estado autoritário (comunista, liberal-democrático ou monarquista). O Estado não é um empreiteiro de serviços públicos, o que seria identifica-lo com as indústrias que se encarregam da empreitada, dos trabalhos da cidade. O Estado, quer edite, quer aja ou inspecione, é o gerador e o diretor supremo do movimento; se por vezes põe mão à obra, é a título de primeira manifestação, para das o impulso e apresentar um exemplo. Realizado a criação, feita a instalação ou a inauguração, o Estado retira-se, abandonando às autoridades locais e aos cidadãos a execução do novo serviço 58.

O Estado federativo pode reunir e verificar estatísticas e transações, até mesmo fiscalizar, inaugurar, fundar e instalar, mas não é responsável pela economia – não é um tesoureiro. Em resumo, não possui poder executivo59. Em lugar de absorver os Estados federados ou as autoridades provinciais e municipais em uma autoridade central, [deve] reduzir as atribuições desta a um simples papel de iniciativa geral, de garantia mútua e de vigilância, cujos decretos não serão executados senão com o visto dos governos confederados e por agentes às suas ordens60.

Assim, mesmo utilizando-se do termo “Estado”, Proudhon apresenta uma concepção diversa da palavra em relação àquela referente às formas de organização social sustentadas no princípio da autoridade. Sua proposta política federalista é indissociável de uma nova organização econômica, embasada na mutualidade, onde não mais subsistiriam as divisões de classes caras a seu (e nosso) PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 127. “A autoridade das federações não é maior que seus constituintes”. PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 91. 58 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 99. 59 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 98-100. 60 PROUDHON, P. 2001 [1863]. p. 102. 56 57

tempo, pois a própria instituição da propriedade, como existente no capitalismo, não teria local e razão de ser.

Considerações finais Com a radicalidade de suas propostas e sua ousadia ao expô-las, Proudhon colecionou tanto admiradores quanto opositores – estes em maior número que aqueles, como esperado para um defensor de ideias revolucionárias. Chegou a ser preso por três anos (entre 1849 e 1852) por escrever contra o então presidente Luís Napoleão em seu jornal Le Peuple61. Um de seus rivais mais célebres, Karl Marx, que passara de admirador a detrator após a recusa de Proudhon em aceitar seus termos de ação em 1846 (mencionada anteriormente), ocupouse, no ano seguinte, em escrever toda uma obra contra as propostas do francês, contidas em Filosofia da Miséria62. Em Miséria da filosofia, Marx repete ipsis litteris as mesmas criticas feitas a Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Max Stirner em seus rascunhos d’A ideologia alemã: a argumentação de Proudhon revelaria sua “incapacidade de seguir o movimento da história”, suas propostas seriam apenas “fantasmagorias”, representando a sociedade como fazendo parte de uma “história sagrada”; em suma, tudo seria “velharia hegeliana” 63. Termino nosso texto trazendo novamente, de forma breve, aquela discussão como forma de destacar como é impossível dissociar o viés político contido em toda “teoria” proudhoniana – evocando com isso a importância de sua leitura e compreensão pelos anarquistas hoje. Marx acusara Proudhon de realizar uma reflexão “metafísica” da economia política.64 “Os economistas nos explicam como se produz nessas relações [sociais] dadas, mas não nos explicam como se produzem essas relações”, como quer Proudhon, diz Marx65. Dessa maneira, como Hegel, o revolucionário francês consideraria a economia e a sociedade apenas como um movimento da “razão pura” 66. Apesar dessa suposta semelhança, Marx apontaria uma diferença de Proudhon ante Hegel. Este, “não tem problemas a colocar. Ele possui apenas a dialética.” O francês, ao contrário, aponta um problema nas categorias apresentadas pela economia politica em suas análises sobre a sociedade e distingue explicitamente aspectos que considera bons (desejáveis) e maus (indesejáveis).67 Ora, WOODCOCK, G. 1983. p. 113. PROUDHON, P. Sistema de contradições econômicas ou filosofia da miséria. São Paulo: Ícone, 2003 [1846]. 63 MARX, K. 2009 [1847]. p. 246. Como comparação, ver MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 64 MARX, K. 2009 [1847]. p. 119. 65 MARX, K. 2009 [1847]. p. 120. 66 MARX, K. 2009 [1847]. p. 121. 67 MARX, K. 2009 [1847]. p. 128. 61 62

coloca Marx, apontar, digamos “preferências” por algum aspecto (como a liberdade sobre a autoridade, conforme discutimos) afetaria o funcionamento do pensamento dialético, uma vez que este requer “coexistência de dois lados contraditórios” 68. Marx critica a intervenção pessoal de Proudhon em uma análise que, ao que parece, deveria ser mais objetiva. O tipógrafo de Besançon acrescentaria um ideal à metodologia e conclusões da economia política – que deveria, para o filósofo prussiano, apenas demonstrar as contradições sociais através da lógica dialética, e não apontar aspectos politicamente almejados. O que nos é importante assinalar é que em certo sentido, na mesma obra pela qual sofreras críticas, Proudhon de fato leva a um passo adiante a reflexão sobre as relações entre a teorização social e a prática política. Em concordância com Karl Marx, Proudhon admite a intenção científica/objetiva da economia política, sendo esta “a coletânea das observações feitas até hoje, sobre os fenômenos da produção e da distribuição das riquezas, quer dizer, o agregado de observações sobre as formas mais gerais e espontâneas, e consequentemente mais autênticas, do trabalho e da troca”69. Entretanto, a aparente neutralidade dessa “pretensa ciência”, diz o francês, possui um sentido político claro: em sua falsa objetividade, ao relatar os fenômenos sociais, a economia política aceita como certos os “fatos consumados”, ou, o-que-já-está-aí, como a propriedade ou a divisão das classes70. Estes economistas “comportam-se como defensores da religião, da autoridade e dos princípios contemporâneos e conservadores da propriedade71”. Há em Proudhon – e toda sua produção e ação políticas demonstram isso – uma clareza da impossibilidade da abstenção em posicionar-se ante as análises sociais, mesmo que a lógica dialética teoricamente exija idealmente essa ação “neutra”. Afinal, ainda no interior do tema em debate, “os economistas respondem às questões que eles mesmos se põem”72. *** Pierre-Joseph Proudhon faleceu em 1865, pouco tempo depois da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, assinalam sempre os historiadores. Como mencionado, suas MARX, K. 2009 [1847]. p. 129. PROUDHON, P. 2003 [1846]. p. 88. 70 PROUDHON, P. 2003 [1846]. p. 90-91. 71 PROUDHON, P. 2003 [1846]. p. 91. 72 PROUDHON, P. 2003 [1846]. p. 105. Obviamente Marx, um dos pais do comunismo de Estado moderno, não se ilude tão ingenuamente com a objetividade pura da ciência, mas, como ferramenta de crítica a seus opositores ele acaba por cobrar-lhes, especialmente em suas obras de meados dos anos 1840, posturas intelectuais, acadêmicas e lógico-formais surpreendentemente (e possíveis apenas idealmente) apolíticas. Talvez a caso de seus escritos contra Max Stirner seja ainda mais gritante nesse sentido, ver MONTEIRO, F. O materialismo no debate Feuerbach, Stirner e Marx: relevâncias para a História Social contemporânea? p. 198-221. Revista de teoria da história. Goiânia, n° 5, junho de 2011. 68 69

influências seriam múltiplas daí em diante, de forma mais imediata com o grupo dos mutualistas franceses na AIT e também com o revolucionário russo Mikhail Bakunin, que transformaria alguns elementos de suas propostas, construindo novas concepções de anarquia e Estado, rumo a uma organização social libertária.

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