Piza, Douglas de T. 2012. “Um Palpite Sobre a Imigração nas Ciências Sociais de São Paulo: Três Décadas, Duas Perspectivas e Uma Cisão.” Plural, v.19: 33-47.

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Plural

Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretora: Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini
 Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano Departamento de Sociologia Chefe: Prof. Dr. Brasílio João Sallum Júnior Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Prof. Dr. Paulo Menezes Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação: Profa. Dra. Maria Helena Oliva Augusto Secretários do Programa de Pós-Graduação: Maria Ângela Ferraro de Souza e Vicente Sedrângulo Filho Comissão Editorial - Revista Plural, v. 19, n. 1 Andreza Tonasso Galli, Benno Alves, Cleto Júnior Pinto de Abreu, Cristiana Gonzalez, Guilherme Seto Monteiro, Gustavo Takeshy Taniguti, Irene Rossetto Giaccherino, Lucas Amaral de Oliveira, Mariana Toledo Ferreira, Rafael de Souza, Tiago Rangel Côrtes, Thiago Matiolli e Wilson Emanuel Fernandes dos Santos Conselho Editorial Álvaro Augusto Comin, Amaury César Moraes, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Cibele Saliba Rizek, Daisy Moreira Cunha, Edson Silva de Farias, Evelina Dagnino, Fernanda Peixoto, Fernando Albuquerque Mourão, Fernando Pinheiro, Heloísa André Pontes, Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins, Iram Jácome Rodrigues, Jordão Horta Nunes, José Jeremias de Oliveira Filho, José Sérgio Fonseca de Carvalho, José Sérgio Leite Lopes, Júlio Assis Simões, Leonardo Avritzer, Leonardo Mello e Silva, Lilia Katri Moritz Schwarcz, Marcelo Kunrath Silva, Marcelo Ridenti, Marcos César Alvarez, Maria Helena Oliva Augusto, Maria Neyara Araújo, Mario Antonio Eufrásio, Nadya Araújo Guimarães, Paulo Roberto Arruda de Menezes, Ricardo Musse, Ruy Braga, Samuel de Vasconcelos Titan Junior, Sergio Costa, Sylvia Gemignani Garcia e Vladimir Pinheiro Safatle Equipe Técnica Diagramação: Diagrama Editorial Revisão de texto: Meiry Ane Agnese Capa: Julio Aracil, “Sem título, 2008” (www.julioaracil.es) Financiamento CAPES

Os conceitos e ideias emitidos nos textos publicados são de exclusiva responsabilidade dos autores, não implicando obrigatoriamente a concordância nem da Comissão Editorial nem do Conselho Editorial. Endereço para correspondência: Depto. de Sociologia - FFLCH/USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil e-mail: [email protected] http://www.fflch.usp.br/sociologia/plural Facebook: http://www.facebook.com/ pages/Revista-Plural/293342497360416 Twitter: @plural_usp Publicação eletrônica semestral referente ao 1º semestre de 2012 (publicada em agosto de 2012). Plural. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, Programa de ­Pós-Graduação em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, v. 19, n. 1 (1° semestre), 2012. ISSN: 2176-8099 1. Ciências Sociais 2. Sociologia

Sumário Editorial Editorial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 Comissão Editorial

Artigos Prolegômenos de Florestan Fernandes como teórico crítico da sociedade brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Ricardo Ramos Shiota Um palpite sobre a imigração nas Ciências Sociais de São Paulo: três décadas, duas perspectivas e uma cisão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Douglas de Toledo Piza Da personalidade à pessoa: uma observação da sociedade e do direito a partir das teorias sistêmicas de Talcott Parsons e Niklas Luhmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Ricardo de Macedo Menna Barreto Teoria e crise. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Marcelo Vasques Vedroni Emancipação humana e controle social da produção: os dilemas das classes trabalhadoras na perspectiva de superação do capitalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Cesar Augustus Labre Lemos de Freitas e João Claudino Tavares Sindicalismo, superpopulação relativa e formas de luta no Brasil e na Argentina. . . 119 Davisson C. C. de Souza

Apresentação da Tradução Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 Mario Antonio Eufrasio

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Tradução Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Emilio Willems e Herbert Baldus Tradução de Gustavo T. Taniguti Revisão técnica de Mario Antonio Eufrasio

Entrevista Entrevista com Michael Burawoy. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 Entrevista realizada por Gustavo Takeshy Taniguti, Fábio Silva Tsunoda e Wilson Emanuel Fernandes dos Santos

Resenha Para uma compreensão da sociedade situacional: inter-relações do controle do comportamento em lugares públicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Rafael Mantovani

Defesas Teses defendidas no Departamento de Sociologia da FFLCH­‑USP em 2012. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Dissertações defendidas no Departamento de Sociologia da FFLCH­‑USP em 2012. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

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Editorial

A nova edição da Revista Plural vem com a mesma força da lente do fotógrafo espanhol Julio Aracil, nosso artista de capa, com a imagem “Sem título, 2008”. Sua obra, que oscila entre a arte e o fotojornalismo, remete nosso olhar àquilo que sempre buscamos a cada nova edição: um espaço capaz de proporcionar ao leitor a possibilidade de se defrontar com a diversidade de conteúdo e a pluralidade de perspectivas trazidas pelas diversas áreas das Ciências Sociais. É nessa perspectiva que abrimos a edição 19.1, com seis artigos inéditos de jovens pesquisadores, pós-graduandos e docentes de regiões distintas do país, como São Paulo, Londrina e Manaus, além de uma entrevista com o sociólogo britânico Michael Burawoy, presidente da International Sociological Association e professor da Universidade da Califórnia, Berkeley. Além dessas novidades, oferecemos ao leitor a tradução do texto “Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil”, de 1942, do etnógrafo Herbert Baldus e do sociólogo Emilio Willems, e a resenha da obra “Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos“, escrita em 1963 pelo cientista social canadense Erving Goffman. O primeiro artigo, “Prolegômenos de Florestan Fernandes como teórico crítico da sociedade brasileira”, de Ricardo Ramos Shiota, busca analisar a obra de Florestan Fernandes, das décadas de 1940 e 1950, à luz da teoria crítica, partindo da ideia de que, durante tal período, seus escritos questionavam o ideal de cientificidade e traduziam uma orientação intelectual preocupada com a realização democrática nos marcos da emancipação política. A Ciência Social paulistana é também o tema do artigo “Um palpite sobre a imigração nas Ciências Sociais de São Paulo: três décadas, duas perspectivas e uma cisão”, em que Douglas de Toledo Piza mostra como os estudos de imigração apresentam dois modelos distintos e que são, simultaneamente, permeados por continuidades e rupturas. Até os anos 1970, predominava nessa área a interpretação de Emilio Willems, com base na teoria da aculturação, que lidava com os conceitos de assimilação e integração. A partir de então, Eunice Durham traz uma visão alternativa e crítica, seguida por Ruth Cardoso, que, sem descartar totalmente a 2012

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perspectiva da aculturação, coloca a questão da imigração como um problema de mobilidade social, em uma sociedade capitalista cada vez mais complexa. Em seguida, Ricardo de Macedo Menna Barreto tenta desenvolver, no artigo “Da personalidade à pessoa: uma observação da sociedade e do direito a partir das teorias sistêmicas de Talcott Parsons e Niklas Luhmann”, os conceitos de “personalidade” e “pessoa” dos teóricos Talcott Parsons e Niklas Luhmann, respectivamente, de modo a articulá-los com a teoria do direito. É com isso que passamos da teoria contemporânea à clássica com o oportuno artigo “Teoria e crise”, de Marcelo Vasques Vedroni, que retoma a análise sobre as crises capitalistas empreendidas por Karl Marx, no intento de percorrer seus intrincados caminhos teóricos. O atual estágio do desenvolvimento capitalista é também tema do artigo de Cesar Augustus Labre Lemos de Freitas e João Claudino Tavares, “Emancipação humana e controle social da promoção: os dilemas das classes trabalhadoras na perspectiva de superação do capitalismo”. Os autores, a partir das teorias marxistas, relembram que, para a efetiva superação da sociedade burguesa, em um cenário onde a revolução é uma perspectiva cada vez menos concreta, é essencial a construção de uma identidade de classe. O marco teórico desenvolvido por Marx sobre a superpopulação relativa e as classes trabalhadoras é o centro do artigo “Sindicalismo, superpopulação relativa e formas de luta no Brasil e na Argentina”, de Davisson C. C. de Souza. A análise comparativa entre o movimento sindical e dos desempregados no Brasil e na Argentina, durante o período de 1990 a 2002, permite a reflexão sobre os vínculos entre o sindicalismo e os trabalhadores sem emprego, lançando um olhar mais preciso sobre a articulação entre as noções de exército de operários ativo e exército de operários de reserva. Além dos artigos, trazemos também a entrevista com Michael Burawoy, sociólogo marxista britânico e professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Começamos nossa conversa com uma questão sobre sua metodologia de pesquisa, desvendando o que é para ele recomeçar uma teoria e revirá-la do avesso, partindo de um método de reconstrução teórica com base na observação do chamado “Método de Caso Estendido”. Outro tema abordado em nossa entrevista é a Sociologia Pública, que, em sua perspectiva, é uma necessidade intrínseca à Sociologia excessivamente profissionalizante dos Estados Unidos, mas que, ao mesmo tempo, parece emergir espontaneamente no Brasil, sobretudo em trabalhos como os que são realizados na Universidade Federal da Bahia e divulgados no Caderno CRH. Discutimos também como a newsletter “Diálogo Global”, criada por Burawoy quando se tornou presidente da International Sociological Association (ISA), 6

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insere-se nessa sua concepção de Sociologia. Esse tema nos levou a tratar do debate sobre as mídias sociais e seu impacto sobre os movimentos sociais nacionais e transnacionais, desvelando sua perspectiva sobre o movimento Occupy Wall Street e as manifestações em Madrid e na praça Tahir. Para ele, estamos diante tanto de um movimento capaz de fazer ressurgirem as práticas comunalistas quanto de uma luta empreendida pela população excluída que teme a precarização em um contexto em que o capital financeiro se tornou mais significativo que o capital industrial. Por último, não poderíamos deixar de perguntar sobre sua visão da Sociologia brasileira. Burawoy, ao mesmo tempo em que reconhece a especificidade da Sociologia latino-americana, não deixa, obviamente, de se espantar com a grande influência dos franceses sobre a Sociologia dos trópicos. Para manter o caráter plural de nossa Revista, a resenha que compõe esta edição, feita por Rafael Mantovani, é sobre o livro Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos, de Erving Goffman, publicado em 1963 e apenas traduzido no Brasil em 2010, pela editora Vozes. Com isso, procuramos não apenas disseminar uma obra fundamental para entender a perspectiva da Sociologia Situacional, que tem como objeto comportamentos muitas vezes ignorados pelas Ciências Sociais, mas também estimular o debate sobre a luta antimanicomial. Para finalizar, a tradução é a novidade da vez. Com ela, damos início a outra etapa da Revista Plural, que pretende focar textos clássicos e relevantes na área de Ciências Sociais, de difícil acesso e inéditos em língua portuguesa. O etnógrafo Herbert Baldus e o sociólogo Emilio Willems, ambos imigrantes de origem alemã que se estabeleceram no Brasil na primeira metade do século XX, foram os autores escolhidos. Diretor do Museu Paulista entre os anos 1950 e 1960, desde o início de sua obra, Baldus se mostrou preocupado com as situações de contato com os grupos indígenas, pelo quê insistiu no estudo das temáticas da mudança cultural e da política indigenista, vendo com reservas os processos de aculturação. Willems, no mesmo sentido, desenvolveu sua obra centrada no tema da assimilação dos imigrantes à sociedade brasileira. No artigo traduzido “Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo”, de 1942, os autores expressam suas principais preocupações, elaborando uma minuciosa etnografia do grupo social estudado e uma indicação do significado das mudanças constatadas como parte do processo de adaptação a uma nova sociedade.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.9-32

Prolegômenos de Florestan Fernandes como teórico crítico da sociedade brasileira Ricardo Ramos Shiota*

Resumo  Apesar das diferentes interpretações da obra de Florestan Fernandes, as quais representam imagens distintas e até contraditórias, este artigo defende a pertinência de concebê-lo como um teórico crítico da sociedade brasileira. O estudo compreende o projeto crítico em um sentido mais amplo do que aquele concebido pelos intelectuais frankfurtianos, como um compromisso com as condições histórico-sociais emancipatórias, por meio da elaboração de diagnósticos de época, para uma práxis emancipatória. Sob essa perspectiva, é possível identificar o autor como pertencente ao campo crítico, desde seus primeiros trabalhos, nos decênios de 1940 e 1950. Palavras-chave  Florestan Fernandes; interpretação do Brasil; teoria crítica.

Florestan Fernandes’ prolegomena as a critical theorist of the brazilian society Abstract  Despite the different interpretations of the Florestan Fernandes work, which represents distinct and even contradictory images, this article defends the pertinence of considering him as a critical theorist of the Brazilian society. It comprehends the critical project in a wider sense than the one conceived by the Frankfurt intellectuals, i. e., as a compromise with the socio-historical emancipatory conditions to be pursued through the elaboration of diagnosis of epoch for an emancipatory praxis. In this perspective, it is possible to identify the author as belonging to the critical field since his first works in the decades of 1940 and 1950. Keywords  Florestan Fernandes; Brazilian interpretation; critical theory.

* Mestre em Ciências Sociais pela Unesp/FFC e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp/Ifch.

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LEGADO DE UM CLÁSSICO CIENTISTA SOCIAL BRASILEIRO O legado de Florestan Fernandes é uma vasta produção intelectual reunida em cerca de setenta livros – incluindo aqueles publicados em mais de uma edição, conforme o Serviço de Documentação da Fflch/USP. Também, além de uma vasta obra publicada, o autor teve o cuidado de manter um arquivo pessoal, adquirido pela Ufscar e inaugurado em 1996, um ano após sua morte. Trata-se da Sala de Coleções Especiais da Biblioteca Comunitária da Universidade. Em 2009, o Arquivo foi reconhecido pelo Programa Memória do Mundo, da Unesco, por seu valor como patrimônio documental da humanidade. O Fundo Florestan Fernandes possui cerca de trinta mil páginas de documentos pessoais e profissionais e um acervo de mais de nove mil livros. Constitui uma vasta fonte de informações catalogadas em cinco séries: Vida Pessoal, Vida Acadêmica, Vida Política, Produção Intelectual, Produção Intelectual de Terceiros e Homenagens Póstumas. Os documentos são de diversas naturezas: fotos, entrevistas transcritas, correspondências, cadernos de pesquisa, trabalhos de alunos, fichas manuscritas, etc. Somente após a documentação ter vindo a público, passou a ser considerada nas publicações dos intérpretes do autor. As dificuldades de abordar a totalidade dos escritos de Florestan Fernandes provêm de sua extensão, da multiplicidade de questões tratadas, sempre com muito rigor, e da densidade intelectual. Ele sintetiza contribuições de cinco fontes: a Sociologia clássica e moderna; o pensamento marxista; o pensamento brasileiro e latino-americano; os desafios de seu tempo; e a reflexão sobre grupo e classes sociais que compreendem a maioria, subalterna, do povo brasileiro. A síntese dessa constelação de fontes criou um novo “estilo de pensamento”, mais sistemático. Beneficiado pelo ensino e pela pesquisa nas Ciências Sociais institucionalizadas na universidade, ele ofereceu outros parâmetros de explicação da realidade político-econômica e sociocultural brasileira (Ianni, 2004). No panteão do pensamento político-social brasileiro, Florestan Fernandes está situado entre os “novos” pensadores, que se dedicaram a explicar o Brasil, cuja singularidade é o fato de terem sido amplamente favorecidos pelas conquistas das Ciências Sociais (Ianni, 2000). A extensão da obra, a multiplicidade de questões tratadas e a amplitude das fontes com as quais Florestan Fernandes dialoga possibilitam as mais diferentes

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interpretações de seus escritos e de suas publicações, “diversas e plurais, [...] indicativas de que seu pensamento continua a instigar a produção universitária” (Silveira, 2005, p. 1). O legado de Florestan Fernandes se mantém vivo como alvo contínuo de análises e interpretações em artigos, dissertações e teses, por pesquisadores contemporâneos, ex-alunos, amigos, admiradores, críticos e por uma geração de pesquisadores mais novos. Até 2007, havia trezentas e cinquenta e uma publicações sobre Florestan Fernandes, divididas em artigos, capítulos de livros, comunicações em anais, livros, monografias e teses, conforme as classificações dos tipos de publicação oferecidas pela Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (Mariosa, 2007). Trata-se de um legado que tem se revelado polêmico na disputa em torno de sua memória1. Nos limites deste artigo, o qual faz parte de uma pesquisa em andamento, são aventadas algumas questões, relacionadas aos escritos de Florestan Fernandes, nas décadas de 1940 e 1950, as quais permitem situá-lo como um teórico crítico da sociedade brasileira, no sentido ampliado do termo (Nobre, 2004a; 2004b). QUAL FLORESTAN? O legado de Florestan Fernandes é controverso, tendo em vista que vem recebendo alcunhas de seus intérpretes que vão desde o “sociólogo eclético”, “durkheimiano”, “weberiano”, “positivista”, “empirista”, “funcionalista”, “mannheimiano”, “reformador”, “cientificista”, “racionalista indutivista” ao “sociólogo radical”, “marxista”, “militante”, “socialista” ou “revolucionário”, criador de uma “síntese teórica original”, com uma pincelada de dialética e de interesse pelo Socialismo. Há, assim, diversas, distintas e contraditórias imagens desse autor, a depender da perspectiva de quem o lê e do momento analisado de sua obra ou de seus escritos, embora a maior parte das interpretações de sua obra consinta em sua posição como um dos autores clássicos das Ciências Sociais no Brasil. Muitos interesses teóricos contemporâneos balizam as pesquisas acerca do significado dos textos e da obra de Florestan Fernandes. A partir do momento em que uma obra é “classicizada”, sua interpretação se transforma na chave para a discussão científica. De fato, uma vez que os clássi-

1 Sobre o assunto, consultar Costa (2004) e Silveira (2005).

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cos são fundamentais para a ciência social, a interpretação deve ser considerada uma forma superior de discussão teórica (Alexander, 1999, p. 51).

É possível argumentar que há, grosso modo, pelo menos três formas de interpretação da obra de Florestan Fernandes, do ponto de vista metodológico, as quais dependem do “peso conferido à intenção do autor, ao contexto da obra, ao olhar do intérprete e à estrutura do texto enquanto tal” (Domingues, 1995, p. 139). Esses operadores hermenêuticos e textuais, quando não são dosados, oferecem tentações e riscos ao intérprete: o de indagar a intenção do autor e tomá-la no lugar de sua obra; o de buscar o contexto (de produção ou de difusão; social ou linguístico) e colocá-lo no lugar da obra; o de derivar o sentido por meio de seus leitores, pondo em relevo o efeito da obra sobre eles, de modo a substituir a obra por seu público; o de incorrer no subjetivismo e incorporar, sem operadores textuais, o olhar do intérprete na interpretação; e, finalmente, o risco positivista, do intérprete despossuído de si mesmo, em seu viés formalista ou estrutural. Atentando-se a análise a uma parcela pequena, porém significativa, de trabalhos sobre Florestan Fernandes, tem-se três pressupostos metodológicos que orientam o trabalho de interpretação. Tomando emprestada a categorização que Goldschmidt2 faz da história da filosofia, podem ser distinguidos intérpretes que fazem uso: 1) do “método dogmático” (Hecksher, 2004; Oliva, 1997), isto é, avaliam as condições de verdade das teses do autor, exigindo-lhe razões, conforme as intenções dos intérpretes, que abandonam as exigências de interpretação ao voltarem-se para a crítica e a refutação do autor; 2) do “método genético” (Arruda, 2001; Garcia, 2002; Martins, 2008; Barão, 2008), no sentido de interrogar as origens de suas teses, considerando-as condicionadas ou efeitos de um contexto social ou discursivo, de variáveis linguístico-institucionais, culturais, econômicas, políticas, biográficas, etc. e mesmo de filiações intelectuais; e, por fim, 3) do método de leitura interna da obra do autor (Ianni, 2004; Pinto, 1992; Mazza, 1997; Martins, 2002; Costa, 2010), sendo possível destacar o trabalho de Pinto (1992), que apreende o movimento interno do pensamento de Florestan Fernandes, mostrando como ele se desdobra e adquire consistência. De modo evidente, essas interpretações são construídas articulando outros operadores textuais, ditos anteriormente, sendo essa classificação sumária. No entanto, é a partir desse trabalho de interpretação dos textos que sentidos

2 Cf. Goldschmidt (1963, p. 139-147): “Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos”. Uma crítica da abordagem desse autor é oferecida por Domingues (1995).

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diferentes são atribuídos à obra escrita de Florestan Fernandes, sob risco de compreendê-lo por meio de esquemas simplistas ou leituras anacrônicas, que projetam, no momento de formação intelectual do autor, perspectivas assumidas na posteridade (A rruda, 2001). Assim, também a interpretação se vê mediante riscos de concebê-lo como um autor esgotado no passado ou alguém cuja trajetória pode facilmente ser dissociada do conteúdo teórico de suas produções e, igualmente, a imagem dicotomizada do cientista-acadêmico da ordem burguesa de um lado e o político, socialista, não mais acadêmico, de outro lado (Barão, 2008). As polêmicas, além de seu aspecto político em torno da apropriação da obra-memória do autor-político, revelam uma complexidade imanente aos seus escritos, mantendo-os vivos e passíveis de inúmeras possibilidades de leitura. No caso em tela, compreender Florestan Fernandes como um teórico crítico da sociedade brasileira implica reconhecer a orientação crítica articulada em três aspectos: teoria; diagnóstico de tempo; projeção de transformações possíveis e seus agentes. Ademais, requer empreender uma leitura imanente de seus escritos, articulada a outros operadores textuais. Essa perspectiva amplia à noção de teoria crítica um campo intelectual em disputa, sem que, no entanto, haja consenso acerca do que ela seja, a não ser em relação à elaboração de diagnósticos de época, com vistas à práxis emancipatória (Nobre, 2004a; 2004b). Esse campo intelectual integra autores que, em seu tempo, enxergaram seu presente, investigando as condições histórico-sociais para uma práxis emancipatória, categoria relacionada aos diferentes “modelos críticos” ou contextos teóricos e práticos específicos. Não prescinde a lição do século XIX, diagnosticada no nascedouro da teoria crítica, segundo a qual a emancipação política – como outras modalidades possíveis de emancipação parcial – representa grandes avanços, dependendo do contexto, mas mantém os “pilares da casa” (Marx, 2010). TEÓRICO CRÍTICO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Oliva (1997), em sua avaliação da proposta metodológica de Florestan Fernandes, questiona a pretensão de cientificidade com base na filosofia da ciência que estaria implícita nas contribuições teórico-metodológicas do autor. Segundo ele, a proposta de uma Sociologia empírica, observacional e indutiva, embora não exponha suas matrizes filosóficas, pode ser identificada à gnosiologia empirista clássica e criticada em seus fundamentos.

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Oliva recorre a Horkheimer (1975) para sugerir que, como uma modalidade de teoria tradicional, o suposto empirismo de Florestan, “ao dar primazia ao empírico genérico, pode dar origem apenas a teorias que favoreçam uma reificada reprodução da ‘atual ordem fatual’ em detrimento das potencialidades históricas” (Oliva, 1997, p. 142). Todavia, apenas uma visão das obras teóricas e metodológicas desvinculadas dos escritos nos quais esse referencial é aplicado permite esse tipo de afirmação. Por mais problemática que seja a atitude de Florestan Fernandes diante da filosofia, declará-lo como um autor que se limita à ordem dos fatos é se esquivar do trabalho de compreensão de sua obra. Ao lastrear sua concepção de Sociologia, ele revê a herança clássica, dialogando com as recentes, naquele contexto de 1940, segundo as proposições das teorias de médio alcance3 e dos principia media4–, em que acaba por elaborar uma distinção entre explanação histórica, ordenamento temporal e explanação sociológica, como a busca por leis5 capazes de explicar as ocorrências empíricas. Em 1953, quando aborda o método de interpretação funcionalista, Florestan Fernandes o apresenta como sendo: [...] uma análise que tem por objeto descobrir e interpretar as conexões que se estabelecem quando unidades do sistema social concorrem, com sua atividade, para manter ou alterar adaptações, ajustamentos e controles sociais de que dependem a integração e a continuidade do sistema social (Fernandes, 1967, p. 282).

Os verbos “manter ou alterar” os requisitos da “continuidade do sistema social” não são fortuitos. Uma das contribuições de Florestan Fernandes para o método funcionalista foi a de lhe descortinar a dimensão histórica dos fenômenos sociais – não como mero ordenamento temporal das ocorrências –, oferecendo a este 3 Engendradas pelas ciências físicas e naturais, as teorias de médio alcance poderiam ser utilizadas também por sociólogos, pois se voltam para o trabalho teórico que vai de baixo para cima, passo a passo, pelo plano empírico, para estabelecer uma teoria geral, em vez de deduzi-la abstratamente, lidando com aspectos bem delimitados dos fenômenos sociais e não provendo uma única e abrangente teoria, apesar de que seu amplo desenvolvimento pudesse conduzir a uma teoria geral. Cf. Merton (1968). 4 Trata-se da busca por “leis especiais”, conforme a época historicamente determinada de um contexto particular. Cf. Mannheim (1962). 5 Nas palavras do autor, “poucas são as explanações sociológicas que cabem na categoria de ‘lei’, tal como esta é entendida no campo das ciências exatas. As uniformidades e as regularidades que elas descrevem variam de um sistema social para outro, ou dependem da maneira pela qual o investigador abstrai e manipula, interpretativamente, certos aspectos dos fenômenos sociais” (Fernandes [1957], 2004, p. 84).

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“modelo de explicação” uma sensibilidade em relação aos problemas de mudança social. A perspectiva diacrônica ou histórica, oferecida por esse método na consideração dos fenômenos sociais em contextos empíricos determinados, oferece ao especialista a descrição interpretativa do fenômeno: [...] em termos de significação dinâmica do processo social considerado na constituição do meio social interno; então, procurará conhecer a relação das atividades das “partes” constituintes da sociedade com a integração e a continuidade desta com o todo. O especialista pode ainda interessar-se pelo fenômeno descrito em sua condição de vir-a-ser; então, procurará explicá-lo retrospectiva e prospectivamente, através da seleção de fatores causais que, nas condições de formação e de transformação do “meio social interno”, determinam o curso e os efeitos de sua atuação (Fernandes, 1967, p. 179).

Poder-se-ia, assim, desvendar as causas e os efeitos das transformações da vida social em momento determinado, bem como as alterações em emergência passíveis de serem retidas nas condições imediatas de sua atualização. Além disso, esse método possibilitaria ao investigador vincular a perspectiva sincrônica com a diacrônica de duas maneiras: Através da consideração dos processos de mudança social em termos de condições em que eles se tornam funcionalmente necessários. E por meio da análise da potencialidade funcional dos fenômenos sociais (em contextos empíricos determinados), a qual oferece um ponto de referência à explicação dos limites da mudança social e dos processos de reintegração da ordem social (Fernandes, 1967, p. 290).

Desse modo, é possível ver a apropriação do funcionalismo por Florestan Fernandes nos anos 1940 e 1950 como um modelo de explicação que incide sobre os problemas sociológicos explicativos empíricos e práticos, e não se trata de uma atitude ingênua. Além do mais, diante dessas citações, é possível argumentar que “já estamos em face de uma concepção da realidade social informada pela dialética, o que [...] exercerá influência nas reflexões posteriores do autor” (Ianni, 1971, p. 128). De acordo com os propósitos analíticos, interessa destacar somente dois aspectos da apropriação que o autor faz do método funcionalista: 1) a vinculação recíproca dos estudos diacrônicos aos estudos sincrônicos, resgatando esses elementos em uma relação horizontal, mas que confere atenção especial à pers-

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pectiva diacrônica dos fenômenos sociais, nos termos da mudança social; 2) a necessidade de aplicação dos conhecimentos, uma referência à articulação entre teoria e prática. A proposta de “historicizar” o método funcionalista oferecia um meio para o cientista social identificar o aparecimento de influxos inovadores e as condições em que eles operam, considerando-os em lapsos curtos de tempo e, no nível do sistema organizatório, o conhecimento dos limites ou obstáculos para estabelecimentos de meios de transformação ou de “mudança social progressiva”. Além disso, como poderá ser visto a seguir, tampouco nos decênios de 1940 e 1950, nos escritos de aplicação de seu método, visto por Oliva (1997) como “empírico, observacional e indutivo”, Florestan Fernandes se restringe à reprodução factual da ordem. Antes de entrar nessa questão, cabem algumas considerações acerca da formulação clássica de Max Horkheimer (1975), para a qual não se trata de contrapor, de modo excludente, “teoria tradicional” e “teoria crítica”, como sugere Oliva (1997), mas de pensar a teoria crítica como uma nova forma de prática social, que se distingue da ciência tradicional, porque propõe a realização da emancipação humana. Horkheimer (1975) tece um diálogo crítico com a tradição de conhecimento inaugurada por Descartes, valendo-se da crítica da economia política de Marx. Aponta as dificuldades de transpor o modelo de teoria sustentado nas ciências naturais para as Ciências Sociais, em tentativas que acabariam por justificar o existente. Revela ainda a ciência moderna como parte do aparato de dominação e afirma ser necessário decifrá-la e confrontá-la com suas pretensões e sua impotência para elaborar um “conhecimento de si da realidade”. Nesse sentido, teoria tradicional e teoria crítica foram aproximadas6 em uma dialética do movimento heurístico de interpretação do real, que tencionou subsumir os resultados particulares das investigações empíricas das ciências especializadas, sem se desviar de seus fins emancipatórios. A teoria crítica tem como “função diferencial” “orientação para a emancipação” e “comportamento crítico” e também possui um comprometimento com a felicidade geral, ao passo que a “teoria tradicional” sucumbe aos interesses metodológicos, como se a ciência constituísse um fim em si mesma, em seu esforço de encontrar a verdade.

6 Marcuse interpelou Horkheimer em relação à aproximação entre teoria tradicional e teoria crítica. Cf. Marcuse (1998, p. 137-159).

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A elaboração teórica é atividade política interessada e faculta uma prática, a qual pode remeter ao plano do “entendimento”, da descrição, da legitimação e da conciliação do existente ou, no plano da “razão negativa”, transfigurar o real por meio de uma teoria capaz de decifrar essência e aparência (Horkheimer, 1975). A teoria tradicional, segundo ele, é um modo de construção de teorias fundado no modelo das ciências naturais, cuja origem remete aos primórdios da Filosofia moderna, com a pretensão cartesiana de estender a dedução matemática à totalidade dos conhecimentos. A explicação teórica tradicional, de um lado, postula um saber previamente formulado e, de outro lado, fatos concretos a serem subsumidos por esse saber na ordem conceitual hierárquica, por meio de classificações descritivas ou de cálculos pertencentes ao arcabouço lógico da história. Esse modo de produzir teorias não remete ao plano do sujeito e sua ação, porque constitui um sistema formal, classificatório e autorreferente de racionalidade, à parte do real. Ele mantém uma relação de exterioridade entre ciência e gênese social dos problemas, no emprego da ciência, sem questionar os fins perseguidos de aplicação. É questionada “a teoria esboçada de cima para baixo por outros, elaborada sem o contato direto com os problemas de uma ciência [humana] particular” (Horkheimer, 1975a, p. 119). É uma teoria que não reconhece as tendências e metas históricas com as quais a teoria crítica se entrelaça, porquanto se distrai com a veneração dos fatos, com a negação de juízos de valor, com a separação rígida entre conhecimento e decisão prática. Há incapacidade, dessa forma, de construir teoria, de forma a elaborar um “conhecimento de si”: há a impossibilidade de referir-se ao contexto em que atua. Apesar de ter um conjunto de pressupostos que orientam seu fazer teórico, a teoria tradicional é uma produção social que não se reconhece enquanto produto histórico. A formalização de poucos princípios significativos, em relação às conclusões, e de suposta validade universal é a expressão perfeita dessa teoria: um discurso pretensamente universal, mas incapaz de questionar suas implicações e seus pressupostos e sua atividade como resultante do processo social. Ela não desenvolve elementos que ofereçam uma compreensão de sua própria realidade de construção (Horkheimer, 1975). A ciência tradicional quer reduzir a leis o porquê das coisas e como elas acontecem, mas não é autônoma nem independente, não está abstraída das demais atividades sociais, pois as relações entre hipóteses e fatos se realizam e se

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confirmam na indústria. A teoria assume, inevitavelmente, implicações políticas7. Embora não produza valor, a ciência especializada desenvolve as forças produtivas, torna a ordem social possível e contribui para a existência da sociedade em sua forma dada. Mas, apesar disso, a teoria crítica envolve a gnose no sentido tradicional, pois, “[...] no que se refere à transformação essencial, inexiste a percepção concreta correspondente enquanto essas transformações não ocorram de fato [...]” (Horkheimer, 1975a, p. 139). Os pressupostos existentes nas teorias sociais remetem à existência de valores no ponto de partida do conhecimento social. Trata-se da relação com valores e suas implicações teóricas e políticas. A teoria crítica é um momento inseparável da vontade de emancipação e estabelece conexão entre conceito e momento histórico atual, conhecimento e fins de autodeterminação humana, conforme o conceito materialista de sociedade livre e autodeterminante. Ela transforma os conceitos justificadores em seu oposto, desnuda contradições, e a totalidade é seu motivo propulsor. O teórico crítico possui integridade e perspectiva histórica e julga conforme aquilo que está no tempo. Os conceitos da teoria crítica adjazem movimentos sociais, vez que “seus representantes estiveram, em todas as ocasiões de revés, relativamente isolados”, mas nem por isso abandonam a “tenacidade da fantasia” (Horkheimer, 1975b, p. 168). Honneth (1999) questiona o sistema de referência funcionalista de “integração fechada da sociedade” adotado por Horkheimer (1975), originário de suas premissas histórico-filosóficas8, as quais reduziriam a luta pela emancipação humana a assumir funções na reprodução da expansão do trabalho social, como se uma economia planejada redirecionasse a socialização dos indivíduos e estes se ajustassem de modo automático e uniforme à nova sociedade. Parece haver uma impossibilidade de restringir o sentido da teoria crítica às formulações inaugurais. O debate ocorrido entre Horkheimer (1975) e Marcuse (1998), acerca da teoria crítica e da emancipação, com toda a importância existente

7 Em um texto anterior, Sobre o problema da verdade, Horkheimer relaciona a teoria a determinados interesses e a posições sociais: “Os grandes sistemas da filosofia européia eram sempre destinados a uma elite educada e não funcionam diante das necessidades psíquicas daquela parcela de cidadãos e camponeses em vias de empobrecimento e aviltamento social, os quais, por outro lado, estão ligados, necessariamente, pela educação, pelo trabalho e pela esperança, a esta forma de sociedade e não conseguem acreditar na sua transitoriedade” (Horkheimer, 1990, p. 144). 8 “A ação conjunta dos homens na sociedade é o modo de existência da sua razão, assim utilizam suas forças e confirmam sua essência [...]. Sendo a sociedade dividida em classes e grupos, compreende-se que as construções teóricas mantêm relações diferentes com esta práxis geral, conforme a sua filiação a um desses grupos ou classes” (Horkheimer, 1975, p. 136).

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pelo sentido instaurador revestido naquele momento, em 1937, não tem aquela mesma rigidez, não tem: [...] valor normativo, prescritivo, nem possui um significado que possa correlacionar-se com asserções políticas permanentes no fluxo de utilizações a que deu lugar essa orientação filosófico-social. [...] [Pois,] longe de decantar um formato canônico, sobre o qual pudessem medir de variantes e apostasias, a vitalidade da teoria crítica apenas pode se estabelecer e, em particular, apenas identificável nessa época, como tradição e incitação apta para adaptar-se a diferentes continuidades e campos de exercício (Sazbón, 2004, p. 174).

Desse modo, Hoje a teoria crítica já não é mais apenas um projeto intelectual histórico, cuja origem foi o esforço dos filósofos de Frankfurt [...], mas um amplo horizonte de leituras da sociedade, nas quais o tema da dominação e uma atitude problematizadora, por oposição a uma atitude descritiva, se configuram (Magalhães, 2007, p. 232).

A historicidade do real e do pensamento que se debruça sobre ele impõe restrições para pensar a formulação conceitual originária da teoria crítica, tal como proposta por Max Horkheimer (1975). Os sentidos do “comportamento crítico” e da “orientação para a emancipação” assumem novos significados em outros tempos e espaços, porquanto, em teoria crítica, os diagnósticos de tempo (incluindo o contexto desse diagnóstico) sempre orientam novas formulações. “A idéia de modelo crítico pretende ressaltar que não há teses determinadas, com conteúdos fixos, a que alguém tenha de aderir se quiser fazer parte do campo crítico” (Nobre, 2008, p. 19). Para Horkheimer, a validez ou o caráter significativo de um pensamento está relacionado com sua função social progressiva ou regressiva (Rusconi, 1969, p. 203). A apropriação de Nobre da teoria crítica a partir da ideia de “modelo crítico” é bastante fecunda. Trata-se de uma referência analítica que permite a apreensão do vínculo imanente da teoria com seu tempo histórico, por meio do resgate dos diagnósticos e prognósticos elaborados em função da “perspectiva da distância que separa o que existe das possibilidades melhores nele embutidas e não realizadas, vale dizer, à luz da carência do que é frente ao que melhor pode ser” (Nobre, 2004b, p. 56). Logo, é possível uma leitura que compreenda Florestan Fernandes como

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pertencente ao campo mais amplo da teoria crítica, em seus próprios termos, em sua própria contribuição ao campo. A compreensão das ideias deve considerar os problemas históricos a que elas tentam oferecer respostas e deve também apreender os modos específicos em que são formuladas e discutidas. As ideias respondem aos dilemas postos pelo desenvolvimento social e não pairam acima do processo social, pois são momentos constituídos e constituintes das relações existentes entre grupos no âmbito global da sociedade. Em países de “capitalismo retardatário”, a atuação dos intelectuais oferece uma “importante dimensão política por força da relação urgente que se estabelece entre formação da cultura e formação da nação” (Brandão, 2007, p. 22). As ideias estão enraizadas nas condições materiais e repercutem como “momentos da constituição de atores específicos, tentativas de diagnosticar e resolver problemas reais, de dirigir política e culturalmente a ação de forças sociais determinadas” (Brandão, 2005, p. 243). Em países como o Brasil, onde há um atraso em relação ao processo democrático e suas constelações, os intelectuais assumem protagonismo político e evocam papéis políticos enquanto atores políticos. Outra sugestão interessante é que as ideias também devem ser vistas como força social em relação a diferentes fatores, materiais e imateriais, na medida em que: A sociedade não se realiza desacompanhada das interpretações de que é objeto e, mais do que isso, as interpretações proporcionam significado à vida social, pesadas inclusive suas veleidades, possibilidades e limites efetivos. Por isso faz-se necessário voltar, principalmente no caso brasileiro, às (não por acaso assim chamadas) “interpretações do Brasil”, uma vez que elas também operam na orientação das condutas dos atores sociais, na organização da vida social, nos processos de mudança e nas relações de poder que isso sempre implica (Bastos e

Botelho, 2010, p. 914).

O sentido político da Sociologia de Florestan Fernandes, para Bastos (1998), está em seu gesto de ruptura com o pensamento político-social brasileiro, principalmente com aquele dos anos 1930, cujas ideias serviram para legitimar o “bloco agrário industrial de poder”. Para a autora, ele promoveu um questionamento decisivo dos arranjos de dominação tradicionalistas, ao mostrar que, em meio à heterogeneidade das explicações culturalistas, havia uma profunda desigualdade

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proscrita na sociedade brasileira. Como a tese da não integração do negro na sociedade de classes, a qual “opera como denúncia dos limites de aplicabilidade dos direitos no Brasil” (Bastos, 1998, p. 150-151), bem mostrou, as ideias, além de forças sociais, possuem um enraizamento na realidade histórica em que se fundamentam. Mesmo no sentido forte de Horkheimer (1975), não se está diante de um teórico tradicional da sociedade brasileira, mas de um teórico crítico, com todas as limitações que sua obra possa conter. DECÊNIOS DE 1940 E 1950: DIAGNÓSTICOS DE UMA DEMOCRATIZAÇÃO RESTRITA Desde cedo, Florestan Fernandes elaborou uma concepção de ciência como teoria e prática. Em sua obra9, nesses decênios, a pretensão de cientificidade questiona o ideal de uma prática científica alheia às questões históricas de seu tempo, bem como o engajamento pueril, que não confere a devida atenção para o modo como o conhecimento é organizado, produzido e processado pela sociedade. Essa orientação lhe facultou perceber que o desenvolvimento da “ordem social competitiva” não realizava automaticamente a democracia, orientando, assim, seus esforços intelectuais no sentido de uma realização democrática nos marcos da emancipação política, embora, com horizontes maiores, políticos e pessoais e socialistas. Há, em sua obra, um questionamento da objetividade científica proposta pelo positivismo funcionalista e sua restrição ao “ethos científico10”, ao mundo da ciência e à ciência pela ciência, que não reconhece seu caráter político e se isenta das questões de seu tempo. Ele tinha clareza de que as teorias suscitam perspectivas políticas, uma vez que esboçam aspectos da realidade e oferecem possibilidades de utilizações distintas do conhecimento. Não defendeu uma visão da Sociologia unicamente preocupada com explicação, métodos e técnicas de pesquisa, mas tencionou dispô-la e organizá-la institucionalmente para pensar e solucionar os problemas do Brasil, em vista de 9 Foram analisados os textos de Fernandes (1947; 1950; 1951; 1952; 1958; 1960a,1960b, 1962a; 1962b; 1962c; 1967; 1971). 10 “O ethos da ciência é esse complexo de valores e normas afetivamente tonalizado que se considera como constituindo uma obrigação moral para o cientista” (Merton, 1968, p. 652). Os valores do cientista deveriam ser: universalismo, remetendo ao plano impessoal da ciência, sua objetividade que exclui todo o particularismo; comunismo, referindo-se à comunicação dos resultados obtidos pelos cientistas; desinteresse, assegurando a integridade do cientista, de modo a controlar suas motivações; por fim, ceticismo organizado, que, embora possa ameaçar as instituições vigentes, é a etapa primordial da elaboração científica, em que se discute aquilo que parece ser óbvio.

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uma “ordem social competitiva” democrática. Nos três lustros que antecederam o Golpe de 1964, diferentes perspectivas vislumbravam a democratização da democracia como tendência histórica. Florestan Fernandes resguarda seu rigor e sua trincheira teórico-conceitual em sintonia com o debate intelectual de seu tempo, nas décadas de 1940-1950, que primava pelas transformações da sociedade brasileira em diferentes registros teóricos e políticos, embora, nesse momento, tratasse, para Florestan, de aliar ambição teórica à investigação dos problemas brasileiros, de modo a contribuir para o avanço da teoria e para o conhecimento sociológico do Brasil, por meio da elaboração de diagnósticos que facultassem a intervenção social. Nesse ponto, Guerreiro Ramos (1957; 1965) foi um replicador construtivo, em nome da sensibilidade em relação às especificidades e aos problemas brasileiros, em seu debate com o sociólogo paulista. Retornando à crítica de Oliva (1997), restringiam-se os escritos dos anos 1940 e 1950 – de aplicação do método de Florestan Fernandes – à ingênua reprodução da ordem factual; à reprodução cega do status quo, desconsiderando a perspectiva das potencialidades? Em um artigo publicado em 1º de março de 1945, na Folha da Manhã, denominado “As tarefas da inteligência”, o jovem sociólogo se posiciona diante do tema, em franco diálogo com o livro Interpretações, de Astrojildo Pereira (1944), e as propostas surgidas na ocasião do Primeiro Congresso dos Escritores Brasileiros11, a saber: democratizar a cultura, elevar o nível intelectual do “povo” e lutar contra o analfabetismo; questões históricas não resolvidas, que ainda hoje ressoam. Fernandes se posiciona contrário aos argumentos de participação específica dos intelectuais no processo de democratização da cultura. Quem pensa os fatos não pode fazer uma separação assim brutal nas atividades da “inteligência”, uma limitação tão violenta nas tarefas dos intelectuais e acreditar na eficiência de uma ruptura dêsse gênero exatamente no momento em que é necessário colocar as fôrças do pensamento e de ação no campo aberto da luta contra as fôrças da reação, do aproveitamento e da opressão. [...] A causa da cultura e a causa do povo sob certos aspectos são uma só. Não é possível dissociar uma da outra. Ou, mais precisamente, a causa do povo implica a causa da cultura. [...] Os intelectuais não podem deixar de discutir concretamente as condições de vida do povo brasileiro, se quiserem conseguir qualquer coisa prática. [...] É 11 Informações sobre o Congresso podem ser consultadas em Mota (1994).

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necessário atuar sôbre as causas quando se pretende eliminar ou agir sôbre os efeitos. [...] Isso tudo quer dizer, como também reconhece o sr. Astrojildo Pereira, que a questão tem três lados: a democratização da cultura, que é o coroamento, o fim e o resultado; a “democratização política” e a “democracia econômica”. O escritor nunca chegará à “democracia cultural” diretamente saltando seus princípios políticos e suas bases econômicas (Fernandes, 1945, p. 2).

Critica a liberdade intelectual típica do ideal ilustrado da cultura, separada do mundo e da atividade dos agentes econômicos, a qual distingue o espaço privado da sociedade burguesa, a ser esclarecido, do espaço público, dos negócios do Estado. É nítida e significativa a recusa de Florestan Fernandes à concepção de autonomia intelectual, ao pensamento dissociado de suas origens e raízes sociais, além de ser evidente também em sua crítica das ideias com base na tese da “ligação do pensamento com o ser”, na esteira de sua apropriação de Marx (2010) e Mannheim (1968). Assim, há um comprometimento do autor, desde cedo, com a produção de um conhecimento capaz de se realizar nas relações sociais de uma perspectiva de “mudança social progressiva”, em vista do que melhor poderiam ser as relações sociais, voltando-se para os controles democráticos e requisitos da emancipação política. De um viés sociológico, nem por isso estreito e especializado, Florestan Fernandes inicia a tessitura de sua teoria crítica da sociedade brasileira, valendo-se de seu “ponto de vista sociológico”, capaz de subsumir diferentes teorias e modelos de explicação, considerando diferentes possibilidades de explicação. Para ele, “a interpretação científica não é um mero arrolamento de dados de fato. Porém, uma análise dos dados vistos através de problemas precisamente definidos” (Fernandes, 1967, p. 50). Em sua sistematização heurística dos autores clássicos, afirmava, em 1954: “conforme os problemas que se colocam, sociologicamente, variam os fenômenos que precisam ser investigados e as técnicas de sua manipulação” (Fernandes, 1967, p. 146). Mas nem por isso restringiu suas preocupações ao âmbito dos processos formais de elaboração do conhecimento, porquanto visava transformar em forças sociais as descobertas científicas. Ele denunciava o “padrão liberal de produção científica” e primava por uma “obrigação moral” dos cientistas diante do desenvolvimento democrático da sociedade (Fernandes, 1971). Assim, desenvolveram-se, nos anos 1940 e 1950, três facetas de sua obra, preocupações que se tornariam indissociáveis: 1) elaboração de uma teoria da investigação sociológica, nos termos da irredutibilidade dos modelos de explicação

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sociológica, do contraste das explicações dos autores clássicos com o modelo explicativo das ciências naturais e da complementaridade daqueles quando considerados em conjunto; 2) aplicação do “ponto de vista sociológico” ao real, garantindo que o conhecimento não se restrinja a uma redoma, lançando luz sobre os problemas históricos e sociais; 3) reflexão sobre as possibilidades e condições de intervenção racional e controle democrático da sociedade ou de que maneira transformar o conhecimento em força social, por seu aproveitamento prático, transformador, conforme o alcance das contribuições. Havia um diagnóstico de época que ancorava essa perspectiva tripartite do conhecimento sociológico, o qual está bem exposto em uma conferência realizada no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, em 1954, a convite de Guerreiro Ramos (1954), intitulada “Existe uma crise de democracia no Brasil?”. Florestan Fernandes elabora uma reflexão acerca dos diagnósticos que apontavam para a existência de uma crise da democracia no Brasil e questiona sua validade. Contrariando a “isenção” do cientista, ele se permitiu emitir “opiniões estritamente pessoais” ou “juízos de valor”, porém acompanhados, de antemão, por seus raciocínios e suas análises rigorosas. Isso torna o texto interessante e explicita as preocupações políticas democráticas do autor, nesse momento de sua obra. Eis a tônica de suas preocupações em relação à sociedade brasileira, nas décadas de 1940 e 1950. Outros diagnósticos foram elaborados nessa direção, envolvendo temas como o folclore: um processo histórico informal de educação, senso comum, reprodutor do passado e dos lugares ocupados pelo índio e pelo negro na sociedade brasileira; processo social que contradizia a visão desencantada, secular e racional, não por questões de natureza, mas, em virtude da situação social dos indivíduos e da sociedade, nascia dos escombros da velha ordem escravocrata-senhorial, fundada na dominação patrimonialista e patriarcal. O processo de desagregação dessa ordem social delineou os limites do desenvolvimento da democracia no país. A efetivação de uma sociedade democrática tinha na Sociologia a possibilidade de construção da autoconsciência dos cidadãos; na ciência e na tecnologia, a possibilidade de superar o subdesenvolvimento; e na educação, a mediação para formar personalidades democráticas. A análise de Fernandes (1954) se orienta pelo fato de o desenvolvimento da democracia ocorrer em um país economicamente subdesenvolvido. A democracia no Brasil é apreendida nos diagnósticos como estando em elaboração sociocultural, em vias de estruturação e maturação política. Ela não estava em crise, mas em processo de desenvolvimento; cabia, pois, fortalecê-la, encontrar meios de

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promovê-la, de onde advêm suas preocupações com o planejamento e a transformação do conhecimento científico em força social na sociedade brasileira. Afirma-se que os obstáculos antepostos à expansão do regime democrático eram consequentes às condições desfavoráveis de sua formação na sociedade brasileira. Sua caracterização do exercício do poder político na sociedade escravocrata-senhorial concebia o Estado como resultante do regime estamental, da dominação patrimonialista e patriarcal da sociedade, cuja concentração do poder político em um número restrito de indivíduos e parentelas manteve o alheamento das camadas populares, “desinteressadas” ou impossibilitadas de atuarem na vida política (Fernandes, 1954). A organização jurídica do Estado contrastava com sua organização do ponto de vista prático. A desagregação da velha ordem pelo regime de trabalho livre preservou a hierarquia social e a mentalidade política, mantendo situações econômicas e sociais que perpetuavam os velhos hábitos e práticas. Os “móveis egoístas das elites dirigentes” ignoraram as tarefas de “como preparar a Nação para o regime democrático e a de organizar o Estado de acordo com esse regime” (Fernandes, 1954, p. 458). Esse quadro histórico impunha severas limitações ao avanço da democracia. Não obstante a lentidão em consolidá-la, esse seria um processo de “vir a ser” manifesto no diagnóstico das tendências do desenvolvimento histórico-social. A adoção jurídica da isonomia política dos cidadãos brasileiros havia desconsiderado as condições sociais que traduziam o passado no presente. O Estado se manteve alheio às demandas da nação e da organização política, e as condições reais da nação não se harmonizavam com tal adoção do Regime Republicano. Por meio de seus estudos sobre o negro, Florestan Fernandes (1953a; 1953b) aprofundou seu conhecimento histórico da sociedade brasileira e consagrou um tipo de análise macrossociológica singular e voltada para a história, almejando nela intervir. Seu diagnóstico apreende as funções sociais cumpridas pelas formas de preconceito vigentes na sociedade brasileira e a interferência do preconceito no ajustamento das relações sociais, contribuindo para a manutenção da estrutura social. A desagregação da escravidão e seus efeitos criaram situações histórico-sociais heterogêneas, sem nenhuma organicidade. A desproporção entre o ritmo do processo político (transformação do escravo em cidadão), a mentalidade dos agentes (obstáculos culturais, preconceito de cor, representação/cristalização dos papéis sociais) e o processo econômico (morosidade ao transformar o escravo em trabalhador livre) prejudicaram o ajustamento do negro à sociedade de classes.

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A mesma rapidez que transformou o status político do escravo em cidadão não se processou no plano econômico de formação da sociedade de classes e integração desse agente social, reabsorvido no sistema de trabalho pelas ocupações “mais humildes” e “mal remuneradas”. Do ponto de vista dos agentes, uma denúncia é de que eles herdaram do regime escravista, unicamente, o status social e cultural depreciativo e aviltado que legitimava as relações e o hiato mantido entre senhores e escravos, status que se convertia em obstáculos para a inserção profissional e política do negro na sociedade de classes, pois contribuía para conservar os estereótipos e o “preconceito de cor”. Mediante esse quadro, ele concebe que apenas uma “mudança provocada” podia equacionar a articulação problemática do passado com o presente. Seus prognósticos miram a educação para a democracia. A educação principia nas práticas dos partidos e dos governos. Os primeiros deveriam estender seus papéis para a educação política da população, inculcando princípios democráticos e atitudes cívicas: “galvanizar as massas populares e dirigir para fins políticos os seus anseios de reforma” (Fernandes, 1954, p. 462), ao passo que aos governos competia a tarefa de promover melhores condições sociais e econômicas para a nação. Os partidos precisavam ser integrados “estrutural e dinamicamente” à ordem legal democrática do país e alcançar meios de disciplinar a vida política brasileira, necessitando de uma relativa autonomia para preencher seus papéis políticos. A educação para a democracia demandava necessariamente uma intervenção do Estado no sistema educacional brasileiro, objetivando integração política. Os governos não cumpriram o papel de preparar as massas populares, egressas da antiga ordem, para que elas se envolvessem na “ordem social legalmente igualitária” (Fernandes, 1954, p. 465). A pretensão das classes conservadoras no sistema educacional de formar “elites dirigentes”, representando um interesse técnico-administrativo e profissional, só faria sentido se, para além de seus interesses egoístas, estendessem as oportunidades educacionais para todos, ampliando a seleção entre muitos, e não a restringindo a poucos. Na escola, inexistia, conforme Florestan Fernandes (1954), o interesse por formar personalidades democráticas para uma ordem social também democrática. Ele se posicionou em defesa da escola pública e contra a utilização de recursos públicos no ensino privado, enfim, pela democratização com qualidade da educação popular. A intervenção estatal deveria ter propósitos políticos e atuar concomitantemente sobre todos os níveis do ensino. A educação, nessa perspectiva, poderia

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contribuir para a superação da mentalidade privatista e tradicionalista, vista como um dos obstáculos para o desenvolvimento da democracia no país. Pode ser que a preocupação central de Florestan Fernandes com a educação no período12 derive de suas inquietações em torno do folclore, pois a atenção conferida a esse saber tradicional, transmitido informalmente e visto como “continuidade sociocultural”, tinha sua contrapartida na “educação sistemática”, como fator de “homogeneização”, no sentido democrático da consciência dos cidadãos e como meio de despertar o interesse por soluções racionais aos problemas práticos enfrentados pela sociedade brasileira. Embora não seja a racionalidade dos diagnósticos que conduza as forças sociais e o jogo político, ela é crucial para uma prática emancipatória mediada pela teoria. Temas como folclore, educação, situação histórica dos povos indígenas e afrodescendentes, não coincidência entre democracia e desenvolvimento no Brasil revelam a compreensão do autor de seu tempo, enraizada nos interesses dos setores subalternos da sociedade, em vista das transformações que considerava possíveis em seus diagnósticos nesse período. Apreendeu os obstáculos presentes à emancipação política, para a realização democrática da “ordem competitiva”, mas não parou aí. Já nos anos 1960, entreviu a emancipação humana como finalidade máxima de sua teorização. HORIZONTE DA EMANCIPAÇÃO HUMANA Leclerc (2004) caracteriza os intelectuais do “terceiro mundo” como frutos do colonialismo, do imperialismo, da modernização e ocidentalização. Seriam eles “traidores” em relação à tradição local, “cavalos de troia” do Ocidente? O autor conclui que esses intelectuais desempenham papéis de mediadores entre diferentes mundos culturais: Com efeito eles devem enfrentar problemas locais específicos, que os intelectuais europeus (os seus antepassados do Renascimento e das Luzes) não precisaram abordar de maneira tão brutal, nem tão dramática. Na Europa, as questões apareceram progressivamente e foram resolvidas por uma longa série de gerações intelectuais. No terceiro mundo, a urgência dos problemas e das soluções impõe-se e pesa sobre o ombro de duas ou três gerações que, de um século para cá, tiveram de cuidar das passagens da tradição à modernidade, da autarquia cultural 12 Sobre a temática da educação no período, em Florestan Fernandes, consultar Mazza (1997).

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à ocidentalização e mundialização. Essas questões giram em torno das relações entre o secularismo e o fundamentalismo [...] entre os supostos valores universais da modernidade democrática, de origem ocidental (Leclerc, 2004, p. 122-123).

A esses problemas o modelo crítico da dependência cultural de Florestan Fernandes tentou oferecer respostas com vistas à transformação da sociedade brasileira, mas, como já mostrou Cardoso (1996), ele avançou e percebeu que a “condição heteronômica de várias nações constituiu uma expressão de natureza histórica e, portanto, modificável, de sua posição no intercâmbio econômico, político e cultural com as nações dominantes na estrutura internacional do poder” (Fernandes, 1974, p. 187). A dependência cultural deixa de ter origens na ausência de produção intelectual autônoma, derivada das relações patrimonialistas de dominação, e passa a ser pensada como uma “alienação intelectual e moral de imensas proporções”; como forma de dependência cultural que fortalecia o domínio econômico pela internalização de valores e disposições subjetivas dos países imperialistas, gerando “um estado de dependência fundamental”, uma “dupla articulação” (Fernandes, 1975). Não por acaso o legado de Florestan Fernandes é polêmico. Escreveu em meio às vicissitudes de sua trajetória de vida pessoal, intelectual e política como catedrático, articulista e parlamentar. Agruras da vida e de toda a ordem, desde cedo, imprimiram diversas facetas à sua obra, escrita em mais de meio século (1941-1995). Uma “obra, como sua biografia, cheia de oscilações, que apenas a linha reta da hagiografia ideológica faz desaparecer” (Vouga, 1998). Não obstante uma obra que esteve intimamente vinculada à sua época, desde os anos 1940 e 1950, diagnosticando-a, sem dogmatismos, reformulando suas crenças e concepções à luz da realidade histórica, fazendo autocrítica e transformando-se em sentido oposto às tendências históricas consolidadas na sociedade brasileira, as quais levaram a uma “agonia da tradição crítica brasileira e latino americana” (Coggiola, 2005). Essas múltiplas facetas não esvaziam o teórico crítico, pois estiveram imbuídas de um “saber militante” das causas da universidade, da educação, da democratização das relações sociais e raciais, da emancipação política, do socialismo e da emancipação humana. Trata-se de um saber questionador, principalmente do Brasil, das condições históricas legadas pelos processos de independência política colonial, de abolição da escravidão e das características autocráticas da revolução burguesa brasileira.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.33-47

Um palpite sobre a imigração nas Ciências Sociais de São Paulo: três décadas, duas perspectivas e uma cisão Douglas de Toledo Piza*

Resumo  Os estudos de imigração nas Ciências Sociais de São Paulo estiveram presentes desde a institucionalização do ensino superior. Não apenas nas pesquisas levadas a cabo no Estado, mas em todo o país, deve-se ressaltar a contribuição de Emilio Willems. Seu programa de pesquisa se firmou como um modelo a ser seguido ou uma perspectiva teórica, compreendidos nele a preocupação geral com a mudança cultural por meio da teoria da aculturação e os conceitos de assimilação e integração. Embora esse grande paradigma somente tenha vindo a ser substituído nas Ciências Sociais brasileiras a partir da década de 1970, com o surgimento de estudos ligados à etnicidade e ao pluralismo étnico, já na década de 1960 emerge uma perspectiva teórica alternativa, ainda preocupada com a mudança cultural, mas rejeitando a teoria da aculturação. Essa visão alternativa e crítica surge na Universidade de São Paulo, pelas mãos de Eunice Durham. O artigo advoga que essa ruptura é semelhante (e na verdade guarda causas em comum) à ruptura sofrida pelos “estudos de comunidade”, também introduzidos por Willems, mas contrastados com um modelo alternativo, por alunos de Florestan Fernandes, preocupados com o desenvolvimento da sociedade capitalista no Brasil e com a formação da sociedade de classes. Palavras-chave  Ciências Sociais de São Paulo; estudos de imigração; aculturação; assimilação; estudos de comunidades.

* Bacharel em Relações Internacionais e mestrando em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor universitário nos cursos de graduação em Relações Internacionais, Administração e Pedagogia, nas Faculdades Anglo-Americano de Foz do Iguaçu – FAA.

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A hypothesis about immigration in São Paulo´s social sciences: three decades, two perspectives and a split

Abstract  There are studies about immigration in São Paulo’s social sciences since its academic institutionalization. Not only in the researches made in the state, bus also in all over the country, one must highlight the contribution of Emilio Willems. His research program has become a theoretic model or perspective to be followed, with the general awareness about cultural changes through acculturation theory and the concepts of assimilation and integration. Although this paradigm has only been substituted in Brazilian social sciences after 1970´s decade and the appearance of studies related to ethnicity and ethnic pluralism, early as in 1960’s decade there has emerged an alternative theoretic perspective, also concerning cultural change but rejecting acculturation theory. This critic and alternative vision arise at University of São Paulo, by the hands of Eunice Durham. The article advocates that this disruption is similar to (indeed it has common causes with) the disruption suffered in the field of “community studies”, equally introduced by Willems but contrasted with an alternative model by Florestan Fernandes’ students, concerning the class society formation and the capitalist society development in Brazil. Keywords  São Paulo’s social sciences; immigration studies; acculturation; assimilation; community studies.

Introdução: OS Primeiros Estudos DE Imigração E UMA Tendência À Continuidade A tarefa de tentar rastrear os estudos de imigração nas Ciências Sociais (de que forma apareceram e para onde desaguaram) realizados no Estado de São Paulo começa com a observação do período subsequente à institucionalização do ensino superior e à criação das universidades na década de 1930. Logo na primeira década de vida das instituições universitárias paulistas – a Escola Livre de Sociologia e Política (Elsp), fundada em 1933, e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (Ffcl-USP), em 1934 –, houve, em ambas, pesquisas focadas em comunidades1 de imigrantes, sobretudo nos aspectos de aculturação 1 É preciso esclarecer, logo de partida, que o termo “estudo de comunidades imigrantes” não se refere aos “estudos de comunidade” no sentido que convencionalmente se lhes emprega. Para essa distinção, consultar Seyferth (2004, p. 31 e nota 39), em que a autora esclarece que, entre os pesquisadores que ganharam proeminência, apenas Ursula Albersheim analisou os imigrantes pela perspectiva teórico-metodológica dos “estudos de comunidade”. O uso do termo “estudo de comunidades (de) imigrantes” no artigo é preferível para indicar o teor dos estudos de imi-

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e assimilação desses grupos. Ao longo das três décadas seguintes, até meados dos anos 1970, portanto, esses estudos apresentaram continuidades importantes em certos aspectos, embora se possam traçar dois grandes modelos distintos, nos quais se encaixam as pesquisas. Há de se destacar a importância de Emilio Willems para a formatação dos estudos de comunidades imigrantes, predominantes nas Ciências Sociais até a década de 1970 não apenas em São Paulo, mas também em todo o Brasil (Seyferth, 2004, p. 07-08 e 33). O professor Willems lecionou tanto na Elsp quanto na USP, e, de modo geral, os principais estudos de imigração no Estado sofreram influências de seus trabalhos, senão diretamente de sua orientação. Este artigo se centra na análise das pesquisas sobre grupos de imigrantes feitas entre 1933 e 1973, por Willems, Egon Schaden (que também esteve ligado a ambas as faculdades e sucedeu Willems à frente da Antropologia uspiana), Hiroshi Saito (professor da Elsp e da Escola de Comunicação e Artes da USP), Eunice Durham e Ruth Corrêa Leite Cardoso (ambas alunas de Schaden, na USP, onde seguiram carreira acadêmica, como docentes e pesquisadoras). Com isso, pretende-se indicar os pontos de continuidade e mudança ao longo desses trinta anos de estudos. A grande preocupação de Willems, que perpassa suas pesquisas, é a mudança cultural, porém isso não é exclusividade sua; ao contrário, perpassou todas as primeiras gerações das Ciências Sociais em São Paulo (Peixoto; Simões, 2003, p. 388; Seyferth, 1988, p. 32). É o interesse pela mudança cultural que o faz desaguar primeiro nos estudos de aculturação dos imigrantes e, depois, nos “estudos de comunidade”. O ponto a assinalar aqui é que os estudos de imigração surgem nas Ciências Sociais por intermédio da teoria da aculturação e de todo o ferramental conceitual utilizado para estudar as comunidades de imigrantes, como assimilação e integração. Mais importante ainda: o grande mote da mudança cultural esteve sempre presente, nesses trinta primeiros anos de estudos sobre imigração, assim como as ideias de assimilação e integração, porém a rejeição da teoria da aculturação por Durham e Cardoso se reflete na interpretação de assimilação e integração em termos de mobilidade social e integração à sociedade de classes capitalista nacional, aproximando as pesquisas das autoras de abordagens mais propriamente uspianas e as apartando dos estudos de Willems ou de seus sucessores mais fiéis, Schaden e Saito. gração dentro das Ciências Sociais, entre as décadas de 1930 e 1970, pois era a comunidade ou grupo que se estudava majoritariamente, em detrimento de, por exemplo, processos migratórios, emigração brasileira ou “etnicidade” (neologismo dos anos 1970 que se liga com a perspectiva do pluralismo étnico nos estudos de imigração).

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Willems, Schaden E Saito: Continuidade Fidelíssima Além de vários artigos publicados, dois livros de fôlego dão o tom da perspectiva willemsiana acerca das comunidades de imigrantes: Assimilação e populações marginais no Brasil, de 1940, e A aculturação dos alemães no Brasil, de 1946. Ambos foram publicados em São Paulo, sendo o segundo uma ampliação e um refinamento do primeiro, mas ambos se referem ao período em que Willems esteve em contato com comunidades de alemães e teuto-brasileiros. Quando chegou da Alemanha, Willems primeiro esteve em Santa Catarina, entre os anos 1931 e 1935, e somente depois se mudou para São Paulo e para os meios universitários das Ciências Sociais paulistas. Há até mesmo quem julgue possivelmente circunstancial o interesse de Willems pela sociedade teuto-brasileira (Seyferth, 1988, p. 30)2. Willems se apoia em fontes documentais para descrever o processo de aculturação, a assimilação e integração das populações estrangeiras e “marginais” – termo que para ele designa uma fase de transição entre as culturas do imigrante e a nacional. Uma inovação teórica de Willems, entre a bibliografia brasileira, reside no conceito que adjetiva as populações e culturas marginais: marginalidade se caracteriza pela ambivalência de atitudes individuais em relação às duas culturas em contato (a imigrante e a nacional). A marginalidade revela a transitoriedade da situação intermediária do processo (contínuo) de assimilação3.

2 Seyferth é responsável pelos dois levantamentos bibliográficos sobre imigração no Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (BIB): “Imigração e colonização alemã no Brasil: uma revisão da bibliografia”, de 1988, e “A imigração no Brasil: comentários sobre a contribuição das Ciências Sociais”, de 2004. Como os títulos sugerem, aquele é mais específico do que este, pois se restringe às questões da imigração alemã. Contudo, não apenas os argumentos mais importantes, do ponto de vista deste artigo, encontram-se reiterados e mais detalhados no segundo trabalho como é suavizada neste a crítica dirigida a Willems, no artigo de 1988. No de 2004, a importância da perspectiva willemsiana acerca da aculturação de populações imigrantes (por ter feito água nas Ciências Sociais) é o ponto central de seu duplo argumento, que se completa com a ideia de que essa tradição apenas foi abandonada paulatinamente com a primazia conferida aos estudos que abarcavam o pluralismo étnico (transformado em valor positivo, na sociedade contemporânea). Com efeito, ideias como “Willems não conseguiu dar conta do processo histórico, nem da assimilação, nem da aculturação” (Seyferth, 1988, p. 31), que cedem lugar a outras como “as análises sobre a imigração alemã empreendidas por Willems, de certa forma, [que] constituem um ponto de partida: sem os compromissos do nacionalismo, realizou uma ampla pesquisa bibliográfica, à qual acrescentou sua vivência junto à população teuto-brasileira do Vale do Itajaí (SC), para produzir uma obra ancorada na literatura teórica sobre assimilação e aculturação oriunda da sociologia e antropologia cultural norte-americana” (Seyferth, 2004, p. 08-09). 3 A noção de marginalidade e a dimensão processual da mudança cultural chegam a Willems por duas fontes diferentes: por Everett Stonequist – autor de The marginal man – e William Thomas e Florian Znaniecki – pesquisadores, do domínio da psicologia social, da imigração de campesinos poloneses para Chicago, um dos maiores centros urbanos dos Estados Unidos e do mundo (Seyferth, 2004, p. 09).

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São três pressupostos teóricos intercambiáveis de que Willems lança mão para explicar a mudança cultural de populações imigrantes marginais: assimilação, acomodação e aculturação. Assimilação se refere ao aproveitamento de atitudes novas relacionadas ao contato com novas culturas – o que compreende reajustamento de personalidade e conflitos de lealdade a duas culturas em confronto. Nas palavras de Seyferth (2004, p. 09): Willems considera a assimilação uma espécie de processo de reajustamento coletivo a uma sociedade culturalmente diferente, implicando em mudanças de personalidade; portanto, o objeto do analista é o comportamento.

A acomodação é uma dimensão da assimilação para os ajustamentos transmitidos socialmente – a inspiração vem de Robert Park e Ernest Burgess. Já aculturação se define pelo contato direto de grupos de indivíduos de culturas diversas e as consequentes mudanças culturais de um ou mais deles – essa dimensão cultural da assimilação vem de Redfield, Linton e Herskovits (Seyferth, 2004, p. 09-10). Muito próximos entre si, cada um dos termos põe ênfase no indivíduo, na sociedade ou na cultura. Quanto a Egon Schaden, pode-se dizer que foi um ferrenho defensor da teoria da aculturação. A Cadeira n. 49, criada por Willems, foi assumida pelo neto de alemães, que era seu primeiro-assistente antes disso. A defesa da aculturação aparece em toda a trajetória acadêmica de Schaden e foi mais forte na Antropologia indígena em que era especialista4. Embora tenha se dedicado pouco aos estudos de imigração, é importante notar que, quando o fez – em Aculturação de alemães e japoneses no Brasil –, foi ainda mais fiel à perspectiva willemsiana sobre as comunidades imigrantes, sem se esquecer da questão (já presente em Willems) da ascensão social como fator motivador da aculturação (Seyferth, 1988, p. 18). De fato, o artigo (que é um balanço dos estudos realizados até então, inclusive o de sua coordenação conjunta com Willems, sobre os japoneses), de um lado, retoma o nome do alemão e sua contribuição ao “estudo sistemático de aculturação e assimilação dos imigrantes” e, 4 A tese de cátedra de Schaden, Aculturação indígena, foi um balanço dos principais estudos de aculturação realizados pela etnologia brasileira. Ali se encontra “uma crítica (um tanto benevolente) ao alcance explicativo da teoria da aculturação. Lida, hoje [1994], essa crítica pode ser interpretada também como uma defesa dessa teoria de contatos culturais que durante quase duas décadas reinou entre nós e que começava a ser demolida, principalmente, pelo estruturalismo de Lévi-Strauss” (Borges Pereira, 1994, p. 253). Foi uma das últimas aplicações de vulto da teoria da aculturação, antes que o estruturalismo tivesse tomado todo o pensamento antropológico (Borges Pereira, 1991, p. 02).

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por outro, reafirma a pertinência do mesmo referencial teórico-metodológico para estudar as populações indígenas e outros grupos marginais (Schaden, 1956, p. 41). Schaden se fundamenta em um sumário preparado pelo próprio Willems para salientar os pontos principais de seus estudos sobre as populações alemãs5. As condições ecológicas da colonização alemã ajudam a explicar o processo de assimilação: o regime de pequenas propriedades com economia familiar, ambiente com pouca necessidade de brasileiros e, assim, mais homogêneo culturalmente rendeu certa impermeabilidade dessa comunidade. Por outro lado, os artesãos alemães que foram à zona semiurbana, onde havia demanda por certos tipos de trabalhadores, logo se assimilaram (Schaden, 1956, p. 42). São três os processos importantes para a assimilação: a urbanização e industrialização – pois alavancaram o contato e, até mesmo depois, a miscigenação – e a formação de classes sociais. Se os dois primeiros processos intensificam as chances de aculturação pelo contato, criando uma cultura híbrida (no caso, a teuto-brasileira), o último tende a se relacionar às vantagens da aculturação vistas pelos imigrantes. Pelo fato de serem de origens étnicas diversas e de se unirem por uma solidariedade de classe sobreposta às diferenciações culturais, os componentes do proletariado tendem para a aculturação rápida, o que os aproxima da população dominante na vida política. Por seu turno, a classe média mais rural [...] revela maior resistência à aculturação (Schaden, 1956, p. 43).

Em sua visão, a aculturação dos japoneses é dificultada pelo conflito cultural mais estremado (distância racial, valorações etnocêntricas e fator histórico). Nunca teria havido, pois, uma cultura nipo-brasileira, híbrida, em vias de integrar-se completamente à cultura nacional. O contato com Donald Pierson e com a Sociologia de Chicago, após sua chegada na Elsp, fez com que Willems e Schaden rendessem maior atenção à ecologia dos japoneses em São Paulo: as condições gerais da imigração são definidas em termos de distribuição regional, da percentagem em relação aos nacionais, da espacialização rural-urbana e da mobilidade espacial, mas não apenas isso: os aspectos particulares da aculturação dos japoneses compreendem a aculturação linguística e outros aspectos da cultura material e não material, como alimentação, escolaridade e festividades. 5 Emilio Willems, “Zur sozialen Anpassung der Deutschen in Brasilien”, Kolner Zeitschrift fur Soziologie, 1. Jahrg, Heft 3, S. 64-71; Koln-Opladen, 1948-49. Consultar Schaden (1956, p. 42 e nota 1).

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Há um argumento presente nos trabalhos de Willems e Schaden sobre a propensão à aculturação, o qual passa pela formação de classes no interior da população imigrante: a aculturação é possível se houver diferenciação em base de estratificação social interior ao grupo. No caso japonês, a luta por ascensão não se desenvolve no interior da comunidade, e sim “por meio de competição com a população nacional, luso-brasileira e urbana”; e como resultado dessa configuração da comunidade japonesa, a “migração [rural-urbana] é também a mola principal para incentivar processos aculturativos e assimilatórios” (Schaden, 1956, p. 45). A aculturação de japoneses requer tempo e algumas gerações6. A de alemães e de japoneses teve diferenças em função de situações histórico-ecológicas distintas que facilitaram, em um caso, e dificultaram, no outro, soluções transitórias. Em ambos os casos, no entanto, a luta por status na comunidade nacional alavancou o processo de integração, sendo o domínio da língua portuguesa e o bilinguismo os fatores iniciais e mais emblemáticos de tal processo (Schaden, 1956, p. 46). Talvez um nome desponte entre os pesquisadores da imigração japonesa: Hiroshi Saito. Japonês emigrado ao Brasil, ele foi um informante da investigação de Willems, Schaden e dos alunos da USP, coordenados por eles (Schaden, 1956, p. 41; Nogueira, 1984, p. 447). Willems havia trabalhado com documentação histórica (jornais, revistas e almanaques) e observação empírica, nos estudos sobre a comunidade alemã; em São Paulo, desconhecendo a cultura e as chaves de acesso à comunidade japonesa, preferiu lançar mão de inquéritos (Schaden, 1950, p. 76). Por meio desse método de pesquisa, aproximou-se de um informante curioso e prestativo: Saito. Ele decidiu se matricular no bacharelado da Elsp, onde foi aluno de Piersons e Willems. Suas pesquisas seguem à risca a cartilha de seus mestres e, entre suas contribuições, despontam, entre outras, Shindô-Renmei: um problema de aculturação (sua primeira publicação, com Willems), a organização do Painel Nipo-Brasileiro, de 1958, e do Simpósio de 1968, comemorativo do sexagésimo aniversário da imigração nipônica (Nogueira, 1984, p. 448). Outra contribuição sua de peso foi a organização de artigos, juntamente com Takashi Maeyama, publicada em 1973. A importância dessa obra é que, mais de trinta

6 Já Willems teria distinguido entre as diferenças raciais, culturais e de classe social no processo de miscigenação, segundo relata Schaden (1950, p. 77). Em Aspectos da aculturação dos japoneses no Estado de São Paulo, o pesquisador alemão teria coletado indícios de preconceito racial, mas a grande diferença impeditiva da miscigenação era a cultural: a organização da família japonesa e o afastamento dos indivíduos de sexos opostos. O status social relativamente baixo do caboclo brasileiro teria posto obstáculos ao casamento com indivíduos de classe social mais baixa (Schaden, 1950, p. 77-78).

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anos depois da primeira obra de Willems acerca da aculturação de imigrantes, ela retoma e renova a proposta original do precursor alemão (Maeyama; Saito, 1973, p. 7)7. Durham, Cardoso E UMA Continuidade Crítica (OU: E UMA Crítica Abrangente) Eunice Durham fez seus estudos entre 1961 e 1964, na Ffcl-USP, sob orientação de Schaden. Sua dissertação de mestrado, Assimilação e mobilidade: a história do imigrante italiano num município paulista8, contém uma crítica explícita à teoria de aculturação. A tese de doutorado de Ruth Cardoso, Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no Estado de São Paulo, defendida em 1972, dá prosseguimento à perspectiva alternativa defendida por Durham, sua orientadora, mas de maneira tácita. Muitas das críticas mais claras das autoras podem ser vistas nas diversas resenhas publicadas no primeiro decênio da Revista de Antropologia. Essa cisão com relação à perspectiva vigente, embora com ela guarde similitudes, representa um modelo alternativo de estudos de comunidades de imigrantes em contato cultural com a sociedade nacional. Influenciada por George Foster, essa perspectiva alternativa encerra por privilegiar a zona urbana como foco de mudança e observar as “consequências amplas da integração de comunidades relativamente isoladas numa economia de mercado” (Peixoto; Simões, 2003, p. 397). Não se deve esquecer que as autoras foram as precursoras,

7 Talvez este seja o momento oportuno para um comentário sobre o panorama traçado por Giralda Seyferth, na BIB do primeiro semestre de 2004. A autora relembra o trabalho de Maeyama e Saito como um dos principais sobre “assimilação e mobilidade”. Longe de contestar sua afirmação, faz falta ao leitor atento uma atenção dedicada à dissertação de mestrado de Eunice Durham, cujo título se compõe exatamente por aquelas duas palavras, assimilação e mobilidade. Na verdade, Seyferth, ao centrar seu balanço bibliográfico sobre a imigração no Brasil, exclusivamente no trabalho pioneiro de Willems e em seus seguidores, de um lado, e em estudos ao redor da etnicidade, de outro, passa ao largo da discussão (essencial a este artigo), proposta por Durham e Ruth Cardoso, sobre uma nova versão, alternativa, de estudo de assimilação. Certamente, os trabalhos de ambas as autoras merecem espaço não apenas pela magnanimidade de seus escritos, mas, especialmente, porque estabelecem um modelo paralelo de estudo de assimilação e mobilidade, que se fincou com vigor nos preceitos da Sociologia uspiana de sua época. Seyferth apenas comenta um artigo de Cardoso, quando lembra que já Willems indicava a ascensão social como propulsora da aculturação ou assimilação, mas não trata de sua tese de doutorado, nem assinala sua divergência teórica da perspectiva willemsiana. Ela diz: “[Cardoso] abordou as associações juvenis de nisseis (segunda geração de imigrantes japoneses) em São Paulo, destacando seu papel integrativo, sua importância no contexto da mobilidade social ascendente e sua atuação ante as mudanças impostas pela aculturação” (Seyferth, 2004, p. 18). 8 O subtítulo aparece na folha de rosto do livro publicado pelo Instituto de Estudos Brasileiros. Na capa não consta subtítulo nenhum; na contracapa aparece A história do imigrante italiano numa comunidade paulista. O município em questão é Descalvado, oeste paulista, marcado por expansão cafeeira e imigração.

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no momento seguinte, da Antropologia urbana e da aventura de etnografar (n)as cidades (Peixoto; Simões, 2003, p. 402). Em linhas gerais, a proposta dessa Ciência Social propriamente uspiana – ambas as autoras, ao contrário de Willems, Schaden e Saito, fizeram carreira apenas na USP; e, mais importante, atinaram-se aos temas amplos do grupo de Florestan Fernandes e dos estudos que evoluíram a partir disso – procurava explicar a mudança cultural por meio das características da sociedade mais ampla e de seu desenvolvimento socioeconômico (Peixoto; Simões, 2003, p. 397). Com efeito, o desenvolvimento da sociedade capitalista e a formação da sociedade de classes no Brasil, certa ótica da modernização brasileira, foi marca indelével dos pensadores que passaram pelas mãos de Fernandes e estiveram mais próximos das obras de Celso Furtado e, especialmente, Caio Prado Júnior. Durham começa seu trabalho explicitando que os imigrantes italianos e seus descendentes estão “aculturados” e, em seguida, explica sua conceituação e filiação teórico-metodológica: aculturação não se refere à “teoria da aculturação”, mas sim a um dos três processos que correspondem à “absorção completa” de que fala Einsenstadt, ao lado de dispersão étnica (espraiamento por todas as esferas da sociedade local) e ajustamento individual (Durham, 1966, p. 03-04 e nota 1). A pesquisadora prefere denominar como assimilação a confluência dos três processos, em vez de absorção, mas também aí há uma crítica dirigida (nomeadamente) a Willems, pois ela explicita que não quer designar “mudança do sistema de atitude”, e sim a fase final dos três processos assinalados antes. A teoria da aculturação lidaria com uma dualidade básica, a qual Durham não invalida. De um lado, a noção de “transmissão cultural em processo”, herdeira dos estudos de difusão cultural americanos; e, de outro, a ideia de integração cultural em termos psíquicos de referência individual. A crítica que faz à teoria da aculturação (para o que se dirige textualmente, uma vez mais, a Willems) não nega a noção de aculturação, mas reclama dessa perspectiva a possibilidade de não se restringir à análise dos fenômenos em âmbito estritamente local. Seu objetivo é analisar as conexões entre aspectos socioculturais para compreender a mudança cultural e a assimilação à sociedade local. As críticas que os antropólogos vêm formulando em relação a essa abordagem têm sido principalmente no sentido de atribuir importância crescente aos aspectos socioeconômicos e de procurar estabelecer, nesse nível, as conexões causais e funcionais que explicam as transformações culturais (Durham, 1966, p. 05). Em suma, Durham advoga que “Descalvado não é um sistema isolado” e que é, portanto, necessário compreender a mudança cultural ali ocorrida a partir de

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algo próximo dos “níveis de integração sócio-cultual” de Julian Steward (Durham, 1966, p. 05-06). O mesmo vale para Ruth Cardoso. Aliás, fora ela própria quem resenhou o livro famoso de Steward – Theory of culture change –, louvando seu método, segundo ela, capaz de dar conta da aculturação (no sentido assinalado por Durham, de parte constitutiva da assimilação ou absorção completa), com ênfase na mudança e em outros processos sociais de “sociedades complexas”, em contexto de urbanização (Peixoto; Simões, 2003, p. 388). Tanto Durham quanto Cardoso abrem seus escritos explicando as condições econômicas da lavoura paulista, narrando a modernização das técnicas produtivas, a capitalização das fazendas, a nova estratificação social emergente e a complexificação da sociedade em que se inserem os grupos imigrantes. Em seguida, passam a explicar a assimilação em termos de mobilidade social e as maiores chances de realização de ascensão com a urbanização. Ambas ressaltam o aproveitamento de aspectos culturais da organização familiar e social dos grupos imigrantes para o processo de ascensão social e completa assimilação (Durham, 1966; Cardoso, 1972). Certamente, há algumas mudanças importantes entre as perspectivas abertas por Willems ou Durham, quando se comparam os artigos sobre imigrantes alemães e japoneses, ou, como ilustram Peixoto e Simões, sobre as diferenças e semelhanças das pesquisas da Elsp e da Fflc. Há uma “fricção intertextos” (Peixoto; Simões, 2003, p. 398). Contudo, também isso deve ser relativizado. Afinal, conforme já assinalado, Willems e Schaden enfrentaram questões ligadas à estratificação social, mais precisamente a criação de classes modernas típicas da sociedade capitalista, como fator de assimilação. Além disso, tinham definido industrialização, urbanização e a formação de classes sociais – três palavras mágicas no vocabulário conceitual de onde saem os paradigmas de Durham e Cardoso – como os processos pelos quais se explicaria a assimilação. A seguinte frase de Schaden poderia ser encontrada, ou ao menos algo similar, no trabalho de Cardoso: a aculturação dos japoneses é, assim, um problema de uma ou duas gerações; incrementa-a a competição por um status na sociedade nacional, competição em que o nipão recorre ainda a valores de sua cultura tradicional e que não se resumem, mas encontram uma de suas mais significativas expressões no apreço que à escola e ao estudo livresco dispensa a tradição japonesa (Schaden, 1956, p. 45). Há de se contextualizar a crítica de Durham e Cardoso para bem compreendê-la. Ela é mais abrangente do que uma proposta de renovação da teoria da aculturação aplicada aos estudos de comunidades imigrantes. É uma crítica geral que brota de dentro do grupo de Florestan Fernandes contra toda a tradição da teoria da aculturação e recai, especialmente, nos “estudos de comunidade” levados

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a cabo por Willems: “é da USP justamente que provêm muitas das objeções teóricas e metodológicas aos ‘estudos de comunidade’ e, por extensão, aos estudos de ‘aculturação’” (Peixoto; Simões, 2003, p. 393)9. Uma das publicações que confere voz a essa crítica é a de Maria Sylvia Carvalho Franco. Seu Estudo sociológico de comunidades, citado por Durham sobre a necessidade de considerar as “relações com a sociedade mais ampla” (Durham, 1966, nota 1), de 1963, refere-se ao debate, intelectual e político, de intervenção da ordem social. A comunidade relativamente isolada é um local estratégico de compreensão do processo de modernização, pois elementos de resistência e mudança se encontram lado a lado. No entanto, seria necessário abandonar as modalidades clássicas da realização dos estudos de comunidade. Nas comunidades pequenas, segundo ela, não apenas as condições socioeconômicas podem ser privilegiadamente observadas – algo para o quê Willems já havia atentado –, mas também, ou melhor, principalmente, a integração delas com as condições econômicas (Franco, 1963, p. 30). Em vez de se delimitar precisamente a unidade, despi-la de seu contexto imediato, traçando o “quadro o mais completo possível”, ela se apoia em “situações mais ou menos raras” para explicar como as comunidades isoladas foram se integrando paulatinamente ao sistema capitalista (Franco, 1963, p. 33 e 34). Os principais intelectuais das Ciências Sociais uspianas, alguns deles muito ligados a Willems, criticam seus estudos de comunidade e demarcam seu afastamento deles (Jackson, 2009, p. 184). Isso acontece até mesmo por parte de Gioconda Mussolini, sua assistente mais próxima, com quem havia levado a termo um estudo de comunidade na Ilha de Búzios. Do ponto de vista teórico-metodológico, as críticas são feitas no sentido de demonstrar a inocuidade teórica e a validade desses estudos como método, para o qual é mister revestir de teoria. Esse é o tom da crítica de Florestan, por exemplo, que defende a análise macrossociológica, pela qual a história do Brasil é entendida como parte do movimento de expansão capitalista ou, ainda, a direção comum das reações de Franco, Durham e Cardoso, retomando a validade empírica e metodológica dos estudos desses grupos de

9 Não está no escopo deste artigo demonstrar as fronteiras, os interstícios e as sobreposições dos “estudos de comunidades” e dos estudos de comunidades de imigrantes. No entanto, essas questões perpassam todo o texto, na medida em que se advoga que a crítica feita à teoria de aculturação e aos “estudos de comunidade” se relacionam. Vale lembrar que, segundo Borges Pereira, ao tratar a imigração alemã no Brasil, Willems se vale da teoria da aculturação, a partir da tríade temática composta por etnia, vida rural e comunidade. Estes últimos dois temas, vida rural e comunidade, tornaram-se o cerne dos “estudos de comunidade” que o próprio Willems introduziu às pesquisas brasileiras (Borges Pereira, 1994, p. 250).

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população, mas urgindo pelas conexões com a sociedade moderna, da qual faz parte a unidade estudada. Do ponto de vista histórico, as críticas apontam para o protagonismo dessas populações isoladas ou marginais no processo de formação socioeconômica do Brasil, como indicam Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado Júnior (este último se vale de todos os demais argumentos). Se o argumento vale para dizer que a crítica aos estudos de aculturação das comunidades de imigrantes é mais ampla do que isso, referindo-se no plano acadêmico mais dilatado como crítica à perspectiva de mudança cultural de Willems e aos estudos de comunidade por ele realizados, vale, então, ressaltar que a mesma crítica revela uma contestação ainda mais geral, de cunho político. Sob pena de parecer um esquema demasiado dicotômico, que opõe USP e Elsp, cada qual de um lado do espectro político-ideológico (cuja atenuação já fora beneficiada por Peixoto e Simões, 1993, p. 388), cabe relembrar que a Escola de Chicago era vista como conservadora, e essa imagem era projetada em Donald Piersons e na Elsp, vinculando Willems a esse cesto não apenas por maiores afinidades teóricas, mas também pela filiação acadêmica dupla, entre ambas as instituições. A crítica geral de falta de posição teórica firmemente definida nos trabalhos de Willems pode ser lida como o rechaço por parte da ala dos que apostavam suas fichas na modernização do país, que alcançaria as comunidades tradicionais, da ideia do isolamento e valorização da organização social local. Continuidades E Rupturas Entre AS Duas Perspectivas À guisa de conclusão, resta cumprir duas tarefas, ambas explicativas da grande tarefa inicial de compreender a entrada, a consolidação e as ramificações dos estudos de imigração nas Ciências Sociais em São Paulo. Primeiro, apontar sinteticamente os pontos de continuidade e de ruptura. Segundo, recobrar o argumento central, a essa altura mais claro, da crítica feita à perspectiva de Willems sobre as comunidades de imigrantes, que abre fila para um modelo alternativo. A luz da mudança cultural orientou as pesquisas durante todo esse período (apenas se esvanecendo com a valoração moral do pluralismo étnico e cultural e a emergência da etnicidade a partir dos anos 1970). A ideia de assimilação esteve, assim, presente em todos os autores, nessas três primeiras décadas, mas seus significados eram matizados para cada uma das perspectivas, porque o desenvolvimento da sociedade capitalista no Brasil e a modernização brasileira estão na base da motivação intelectual do projeto alternativo, e a ênfase no concernente à

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assimilação e integração de imigrantes recai sobre as oportunidades e capacidades de mobilidade social. A ascensão social é vista como uma proxi da integração: basta ver os títulos10 dos trabalhos de Durham e Cardoso, que privilegiam a mobilidade. Conforme já assinalado por Peixoto e Simões, a própria concepção de Antropologia para uma e outra gerações é distinta: o formato paulista – sobretudo uspiano – das Ciências Sociais concebe uma Antropologia mais próxima da Sociologia, e as autoras são expoentes nacionais da consolidação de uma “Antropologia das sociedades complexas”; enquanto certa “divisão do trabalho” põe os pesquisadores estrangeiros (e inclua-se aí Schaden) mais próximos aos temas indígenas e aos estudos de comunidades isoladas da sociedade “complexa” (Peixoto; Simões, 2003, p. 390-392). A introdução da questão da ascensão social e de formação de classes sociais é um forte elemento de continuidade, como assinalado. O curioso é que, imbuídas do projeto renovador por elas próprias proposto e no afã de marcar a distância entre suas pesquisas e as de seus antecessores, Durham e Cardoso não se preocupam em indicar a já vasta tradição aberta por Willems e Schaden. Aliás, Seyferth assinala bem a pertinência da estratificação e mobilidade social em Willems, e é nesse momento que, exclusivamente, comenta os trabalhos de Schaden e Cardoso, acentuando a persistência desse eixo temático. A ideia da dicotomia entre o projeto de Willems e Schaden beirando o encapsulamento, de um lado, e o de Durham e Cardoso sensível às transformações da modernização capitalista brasileira, de outro, ajuda apenas a obliterar a continuidade da formação de classes sociais e a mobilidade como um elemento explicativo central em todas as análises. Finalmente, o que este artigo quis demonstrar foi que os estudos de imigração nas Ciências Sociais paulistas podem ser flagrados a partir de dois modelos distintos, um preconizado por Willems e seguido de perto por Schaden e Saito e outro adiantado por Durham e reiterado por Cardoso. Na verdade, o segundo modelo se cindiu do primeiro ao confrontar algumas de suas premissas; notadamente, a teoria da aculturação. Essas duas perspectivas teóricas apresentam elementos de continuidade, cada qual pondo mais ênfase em uns ou outros. Em 10 Os títulos das publicações dos cinco autores revisados são reveladores. Combinando quase sempre dois dos termos na sequência apresentada – marginalidade, aculturação, assimilação e mobilidade –, nunca Willems, Schaden ou Saito usaram a palavra mobilidade, tampouco Durham e Cardoso utilizaram marginalidade e aculturação. Essa mesma sequência aponta para certa evolução (no sentido cronológico, apenas) dos paradigmas teóricos que orientavam os primeiros estudos de imigração em São Paulo.

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linhas gerais, mantém o problema da assimilação, pensada primeiro em termos de reajustamento psicológico diante da aculturação e da formação de culturas híbridas e, depois, em termos de mobilidade social e ascensão dentro da sociedade capitalista complexa. Os elementos de ruptura, porém, demonstram um contraste entre as duas perspectivas muito semelhante ao contraste que se operou nos “estudos de comunidade”. Brotam, assim, nos estudos de imigração, tal como havia sido em relação aos estudos de comunidade, dois programas teóricos que também são refletidos nas diferenças acadêmicas e políticas – a despeito de toda a complementaridade – entre Elsp e USP. Referências Bibliográficas Borges Pereira, João Batista. Lembrando Egon Schaden. Jornal da USP, São Paulo, p. 2, 13 out. 1991. . Emilio Willems e Egon Schaden na história da Antropologia. Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, p. 249-253, 1994. Cardoso, Ruth C. L. Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no Estado de São Paulo. 199 p. 1972. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972. Durham, Eunice. Assimilação e mobilidade. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1966. Franco, Maria Sylvia de Carvalho. O estudo sociológico de comunidades. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 11, n. 01 e 02, p. 29-39, 1963. Jackson, Luiz Carlos. Apresentação: uma defesa da comunidade. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 183-185, 2009. Maeyama, Takashi; Saito, Hiroshi. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Edusp, 1973. Nogueira, Oracy. Hiroshi Saito: 1919-1983. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 27 e 28, p. 447-449, 1984/85. Peixoto, Fernanda Arêas; Simões, Júlio Assis. A Revista de Antropologia e as ciências sociais em São Paulo: notas sobre uma cena e alguns debates. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 384-409, 2003. Schaden, Egon. Recentes contribuições à antropologia brasileira. Boletim Bibliográfico da Biblioteca Pública Municipal de São Paulo, São Paulo, v. 14, p. 75-84, 1950.

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. Aculturação de alemães e japoneses no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 41-46, 1956. Seyferth, Giralda. Imigração e colonização alemã no Brasil: uma revisão da bibliografia. BIB – Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, São Paulo, n. 25, p. 03-55, 1988. . A imigração no Brasil: comentários sobre a contribuição das Ciências Sociais. BIB – Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, São Paulo, n. 57, p. 07-47, 2004.

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Da personalidade à pessoa: uma observação da sociedade e do direito a partir das teorias sistêmicas de Talcott Parsons e Niklas Luhmann1 Ricardo de Macedo Menna Barreto*

Resumo  O presente artigo busca analisar as perspectivas sistêmicas de Talcott Parsons e Niklas Luhmann, nomeadamente no que tange a seus conceitos de personalidade e pessoa, respectivamente, destacando, ao final, sua importância para a Teoria do Direito. Com efeito, tais conceitos possuem especial relevância para a teoria jurídica, não obstante tenham se tornado problemáticos, pois assentados em bases ontológicas, as quais os tornam incapazes de serem operacionalizados no plano sistêmico, ante a crescente complexidade social. Embora erigidas de maneira diferenciada e em momentos distintos, as perspectivas desses dois autores proveem o observador de um instrumental teórico-sistêmico privilegiado, capaz de ampliar o campo de observação das complexas relações entre o sistema social e seu ambiente. Palavras-chave  personalidade; pessoa; sociedade; Direito.

From personality to person: an observation of the society and the law based on the systemic theories of Talcott Parsons and Niklas Luhmann Abstract  This article analyzes the systemic perspective of Talcott Parsons and Niklas Luhmann, in particular regarding their concepts of Personality and Person, respectively, indicating, in the end, its importance for the Law’s Theory. Indeed, such concepts have special relevance to law theory, despite becoming problematic because settled in ontological foundations, a problem that makes them unable to be operationalized at the systemic level in the face of increasing social complexity.

1 Texto dedicado com carinho à minha mãe, Maria de Lourdes, e à minha irmã, Silvia. * Mestre em Direito pela Unisinos. Professor e coordenador de atividades de extensão do Curso de Direito do Ceulm/Ulbra (Manaus/AM).

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Although erected differently and at different times, the prospects of these two authors provide a privileged theoretical instrument, capable of widening the observation field of the complex relationships between the social system and its environment. Keywords personality; person; society; law.

“Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma.” Fernando Pessoa, em O Livro do Desassossego.

INTRODUÇÃO Este texto tem por objetivo observar as contribuições das perspectivas sistêmicas de Talcott Parsons e Niklas Luhmann em relação aos conceitos de personalidade e pessoa, respectivamente. Para a teoria jurídica contemporânea, tais conceitos se tornaram particularmente problemáticos, uma vez que se encontram assentados em bases ontológicas, incapazes de fornecer um aparato conceitual que possa ser operacionalizado sistemicamente, ante a crescente complexidade social. Nesse sentido, as perspectivas de Talcott Parsons e Niklas Luhmann, embora erigidas em momentos distintos, fornecem um privilegiado instrumental teórico-sistêmico, delineando categorias que permitem uma observação mais sofisticada das complexas relações entre o sistema social e seu ambiente. A análise aqui foi dividida, para tanto, em três partes. Para a primeira e a segunda partes, sugere-se uma subdivisão em três itens. A primeira parte é dedicada a situar o funcionalismo estrutural de Talcott Parsons. No item Prolegômenos, será observado o tema, destacando certas ideias gerais da teoria parsoniana, bem como o contexto histórico no qual surgiu o funcionalismo estrutural. Por conseguinte, no segundo item, serão observados brevemente aspectos do Sistema de Ação proposto por Parsons, momento em que, analiticamente, será delineado o famoso esquema “AGIL” proposto por esse sociólogo. No terceiro e último item dessa primeira parte, será analisada a Personalidade como Ambiente para a Sociedade. Com efeito, tem-se a personalidade como ponto de especial interesse na teoria parsoniana, pois esta surge como unidade complexa, ligando o organismo ao mundo físico e este à necessidade de integração a uma ordem normativa.

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Na segunda parte, será analisada a Sociologia Sistêmica de Niklas Luhmann. O primeiro item, intitulado Sistema Social (Sociedade): da Distinção à Indicação, será o ponto de partida para observar-se a distinção diretriz da teoria luhmanniana (sistema/ambiente), além da ideia de comunicação e autopoiesis. No segundo item, cognominado Observando o que Não se Deve Pensar: Sistemas Psíquicos e o Problema da Dupla Contingência, busca-se delinear a concepção de Luhmann de sistemas psíquicos. Nesse momento, perceber-se-á como o ambiente do sistema social é composto por sistemas psíquicos, sendo a dupla contingência uma forma de explicar e incorporar o inesperado, o imprevisto e o diferente nas relações sociais. Lançadas essas bases sistêmicas, partir-se-á para a análise do conceito de pessoa como forma, no item intitulado A Forma “Pessoa”. Nesse ponto, ver-se-á como as pessoas se condensam como efeito da necessidade de resolver o problema da dupla contingência social, limitando o repertório de conduta dos participantes, permitindo, assim, o compartilhamento de sentido. Em uma terceira e última parte, nas Considerações Finais, observar-se-á, brevemente, a necessidade de reoperacionalizar o conceito de pessoa no âmbito da teoria jurídica. Com efeito, o ponto de vista sistêmico sustenta que não vale a pena polemizar acerca da “natureza” ou do “ser” do Direito, salientando que a pergunta decisiva é sobre os limites do Direito (os quais são apontados pelo próprio sistema). No interior desses limites, encontra-se presente o conceito de pessoa, o qual há muito tempo pertence às operações do sistema jurídico. Contudo, por tratar-se de conceito fundado em valores humanísticos, a pessoa perpassa o sistema jurídico, fazendo com que a questão se cristalize em valores políticos. Ver-se-á, pois, como trabalhado desse modo, que pessoa é conceito difícil de ser operacionalizado no plano sistêmico. Logo, a forma pessoa pode ser uma interessante saída para os obstáculos epistemológicos presentes na teoria jurídica contemporânea. O FUNCIONALISMO ESTRUTURAL DE TALCOTT PARSONS

PROLEGÔMENOS Professor de Sociologia da Universidade de Harvard, no período que compreende de 1927 a 1973, Talcott Parsons foi responsável por uma das teorizações mais ousadas da Sociologia contemporânea. Para Parsons, o principal interesse da Sociologia como disciplina teórica residiria nos problemas de integração dos

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sistemas sociais, visto aqui não como “entidade concreta”, mas como um conjunto de abstrações de comportamento e relações concretas e interativas (Parsons, 1970). Parsons concebe o sistema social, portanto, como um sistema “aberto”, que está em constantes relações de interdependência e interpenetração com certo número de sistemas “circundantes”. Com efeito, rapidamente se percebe o impacto dessa perspectiva na disciplina sociológica, que há muito se encontrava em forte crise de caráter teórico. Apresentando o pensamento de Parsons, Niklas Luhmann afirma, em suas aulas, que tanto na literatura especializada como nas reuniões convocadas sob essa disciplina, a referência fundamental se volta para seus clássicos: Karl Marx, Max Weber, Georg Simmel, Durkheim. A impressão que resulta daí é a de que toda a teia conceitual da sociologia esgotou-se com esses nomes (Luhmann, 2009, p. 35).

Ora, tais nomes representam pontos de observação que, há muito, já vinham se apresentando insuficientes para a descrição dos problemas da sociedade contemporânea. Daí a necessidade de encontrar um ponto de partida complexo, transdisciplinar, que realmente integrasse na análise sociológica os dados e moldes de outras Ciências Sociais, proposta essa levada a cabo com grande engenhosidade por Parsons. Talcott Parsons surge em um momento histórico no qual ainda imperavam análises que descreviam as atividades necessárias à manutenção de relações sociais específicas. Distanciando-se de uma tradição que pretendia compreender “o sentido de todas as existências, individuais e coletivas, impostas ou escolhidas, sem dissimular o peso das necessidades sociais ou a obrigação inelutável de tomar decisões que nunca poderão ser demonstradas cientificamente” (A ron, 2002, p. 860), como o fez Weber, por exemplo, Parsons, astuciosamente, interessa-se mais em descrever sistematicamente as atividades de sustentação necessárias à manutenção das estruturas sociais em geral (R ex, 1973). Em uma de suas mais importantes obras (Parsons, 1969)2, dedicada ao tratamento das sociedades – observando desde as primitivas até as históricas –, Parsons defende que o tratamento destas não esgota as possibilidades de aplicação do conceito de sistema social. De fato, muitos sistemas sociais – como, por 2 É oportuno destacar que esse livro é o primeiro volume de uma obra que, apesar de dividida em dois volumes (por questões meramente editoriais), foi idealizada como um único livro. No Brasil, o segundo volume foi traduzido e publicado cinco anos depois do primeiro; aliás, o mesmo lapso temporal das edições originais americanas: 1966-1971. Consultar Parsons (1974).

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exemplo: comunidades locais e unidades de parentesco – não são sociedades, mas subsistemas de uma sociedade (isto é, de um sistema social) (Parsons, 1969, p. 11). Portanto, por conta do que Parsons denominou “participação interpenetrante”, é possível, em um mundo pluralista, que muitos subsistemas sociais façam parte de mais de uma sociedade. Com base no exposto até o momento, surgem pistas que indicam que a teoria sociológica de Parsons se serve de estímulos de forte cunho social-antropológico, o que marca, na obra desse sociólogo americano, a influência da teoria do funcionalismo estrutural. Um dos nomes de destaque no funcionalismo estrutural é o do polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942). Malinowski foi um dos fundadores da moderna Antropologia, demonstrando, em seus estudos, a importância da observação etnográfica3. Esse antropólogo polonês foi um dos pioneiros no estudo dos grupos aborígenes da Oceania, grupos isolados que se encontravam literalmente à margem do desenvolvimento social. John Rex, da Universidade de Warwick 4, entende que as realizações do funcionalismo estrutural, no âmbito da disciplina sociológica propriamente dita, são, entre outras: 1) destacar a importância dos determinantes sociais em comparação com os determinantes individuais do comportamento humano; 2) traçar uma distinção importante entre explicação em termos dos motivos dos indivíduos e explicações em termos das exigências dos sistemas sociais; e 3) colocar fatores objetivamente determináveis (como, por exemplo, as necessidades da estrutura social) em lugar de fatores puramente subjetivos como determinantes dos sistemas sociais (excluindo-se, assim, da Sociologia todos os julgamentos de valor) (R ex, 1973, p. 94-95). Observadas, pois, essas generalidades acerca do contexto funcionalista-estrutural no qual Talcott Parsons se encontrava inserido, passa-se, agora, à breve análise do pensamento desse autor, nomeadamente no que se refere ao sistema de ação.

3 Recomenda-se interessante análise desse autor acerca da magia e de aspectos religiosos em tribos primitivas. Para tanto, consultar Malinowski (1954), obra que conta com um artigo no qual Malinowski analisa a questão do mito a partir daquilo que denominou “psicologia primitiva”. 4 John Rex é o legatário da famosa coleção de Karl Mannheim, International library of Sociology and social reconstruction. Sobre Mannheim, consultar, especialmente, a excelente obra organizada por Wolff (1993). Do mesmo modo, veja-se o texto de Mannheim, intitulado “The positive role of the Sociology of knowledge”, na obra de Parsons, Shils, Naegele e Pitts (1962, p. 1070 e ss.), momento no qual o autor analisa as consequências da Sociologia do Conhecimento para a Epistemologia.

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O SISTEMA DE AÇÃO Para Parsons, a sociedade é considerada um tipo especial de sistema social, sendo aquele mais autossuficiente com relação ao seu ambiente, onde se incluem outros sistemas sociais (Parsons, 1969, p. 12; 1974, p. 19). Veja-se como Talcott Parsons entende o sistema social como um dos principais subsistemas do sistema de ação humana; os outros são o organismo comportamental, a personalidade do indivíduo e o sistema cultural (Parsons, 1969, p. 16). Niklas Luhmann, em suas aulas, posteriormente publicadas em forma de livro por Javier Nafarrate, explica como Parsons parte do pressuposto de que a ação é uma propriedade emergente (emergent property) da realidade social, ou, em outras palavras, de como Parsons entende que, para a realização de uma ação, é preciso haver determinado número de componentes. “A tarefa da análise sociológica seria, assim, a de identificar esse tipo de componentes e, consequentemente, chegar a traçar as linhas fundamentais de uma teoria analítica da ação”, afirma Luhmann (2009, p. 42). Para Parsons, a ação consiste em estruturas e processos por meio dos quais os seres humanos formam intenções significativas e, com maior ou menor êxito, as executam em situações concretas. Consideradas em conjunto, as intenções e a execução supõem uma disposição do sistema de ação para modificar, em certa direção pretendida, sua relação com sua situação ou seu ambiente (Parsons, 1969, p. 16). Nesse contexto, é melhor o emprego do termo “ação” que o termo “comportamento”, pois o que interessa, nesse caso, não são os acontecimentos físicos do “comportamento considerado em si mesmo”, mas sim sua padronização, isto é, seus produtos padronizados e significativos, bem como os mecanismos e processos que controlam essa padronização (Parsons, 1969, p. 16). O que Parsons pretende, em outras palavras, é realizar uma observação no plano “macro”, e não apenas no individual, como um modo de superarem-se certos obstáculos epistemológicos5, há muito arraigados na tradição sociológica. Ora, o organismo e o sistema cultural, por exemplo, incluem elementos que não podem ser pesquisados na esfera individual; daí a necessidade de uma abordagem sistêmica. A teoria geral dos sistemas de Ludwig Von Bertalanffy traz uma explicação privilegiada acerca desse ponto. Bertalanffy destacou a necessidade de evitarem-se explicações de fenômenos observáveis por meio da redução destes a unidades 5 Sobre a noção de obstáculo epistemológico, consultar Bachelard (1996).

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elementares, investigáveis independentemente umas das outras. Esse autor parte do pressuposto de que existem leis gerais dos sistemas que se aplicariam a sistemas de qualquer tipo, independentemente de propriedades particulares dos sistemas e dos elementos em questão (Bertalanffy, 1973, p. 60-61). Não é de se estranhar, portanto, análises no plano estrutural e de processos, como aquela realizada por Parsons, até porque esse tipo de análise não implica negação de que toda a ação é a ação de indivíduos. Como visto, Talcott Parsons parte de uma classificação de quatro subsistemas muito gerais de ação humana, sendo eles: o organismo, a personalidade, o sistema social e o sistema cultural. Essa classificação – demasiadamente analítica – é responsável pela criação do famoso esquema do autor, denominado “AGIL”. Note-se que o sistema de ação, em Parsons, pode ser considerado como a organização das relações de interação existentes, ou melhor, ocorridas entre um ator e uma dada situação. Para analisar o esquema “AGIL”, é preciso considerar inicialmente que Parsons crê na existência de quatro componentes básicos para que uma ação se realize. Para entender a esquematização proposta pelo sociólogo, detalha-se: horizontalmente, traça-se um eixo que distingue entre componentes instrumentais e consumatórios; por instrumental entende-se tudo aquilo que tenha de ser concebido como meio que conduza à ação; por consumatório entende-se a satisfação adquirida e o aperfeiçoamento do estado do sistema ao qual se chega quando se age. A variável vertical, por sua vez, distingue externo de interno. Por tais denominações entendem-se as relações do sistema para fora e em referência às suas próprias estruturas, respectivamente (Luhmann, 2009, p. 44). O cruzamento desses quatro componentes cria compartimentos os quais Parsons preenche analiticamente. A combinação entre instrumental e exterior cede lugar ao primeiro componente que surge da ação, qual seja, o processo de adaptação (adaptation)6. Da combinação entre exterior e consumação surge aquilo que Parsons designou como obtenção de fins (goal-attainment). Por conseguinte, da terceira combinação entre consumação da ação e parte interna do sistema surge o que o sociólogo denominou integração (integration). O quarto e último compartimento é o resultante do cruzamento entre o instrumental e o interno do sistema. Nele, Parsons designa a possibilidade de manutenção das estruturas latentes (latent pattern maintenance) (Luhmann, 2009, p. 45-46). 6 Na cibernética, já se afirmou que, “para conseguir sobreviver num mundo em transformação, um organismo é necessariamente um sistema de controle adaptativo”. Nesse sentido, consultar Pask (1970, p. 134, grifo nosso).

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Em outras palavras, sintetizando, o esquema proposto por Parsons tem a pretensiosa finalidade de analisar qualquer sistema de ação por meio de quatro categorias: 1) a que se refere à manutenção dos padrões mais elevados que controlam ou governam o sistema; 2) a integração interna do sistema; 3) sua orientação para a realização de objetivos com relação ao seu ambiente; e 4) sua adaptação mais generalizada às condições amplas do ambiente (Parsons, 1969, p. 19). Com efeito, a esquematização de Parsons pode ser representada analiticamente da seguinte forma. Tabela 1. Sistema de ação. Exterior

Interior

Instrumental A Adaptação

Consumatório G Obtenção de fins

(Adaptation)

(Goal-attainment)

Conduta Orgânica L Manutenção de estruturas latentes

Personalidade I Integração

(Latent patternmaintenance)

(Integration) Sistema social

Cultura

Esse quadro proposto por Parsons permite variações para cima /baixo  que levam o esquema “AGIL” a transformar-se em “LIGA”. Isso ocorre porque os diagramas foram concebidos de modo a unir uma dupla hierarquia: de cima para baixo/de baixo para cima7. Essa inversão somente é possível por conta daquilo que, no âmbito da cibernética, denomina-se “hierarquia cibernética”8, que se estrutura por meio de dois movimentos em direções opostas. Observando a hierarquia cibernética, percebe-se como a informação conduz comunicativamente o gasto de energia. Não obstante, como este texto não se propõe a realizar uma revisita extenuante às principais consequências e repercussões dessas categorizações parsonianas9, observar-se-á, por conseguinte, especificamente o compartimento que trata da

7 Tudo conforme Luhmann (2009, p. 55). 8 Sobre a dinâmica (cima/baixo) do esquema parsoniano, passível de ser explicada a partir da noção de “hierarquia cibernética”, consultar, especialmente: Parsons (1962, especialmente página 35 e seguintes). 9 Até porque tal revisita já fora exaustivamente realizada por diversos autores. Entre eles, pela clareza da abordagem, destacam-se: Luhmann (2009), Domingues (2008), Quintaneiro e Oliveira (2002).

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personalidade (obtenção de fins – goal attainment), momento em que se verificarão as possíveis relações desta com o ambiente social. A PERSONALIDADE COMO AMBIENTE SOCIAL Parsons, em seu esquema “AGIL”, preenche o diagrama que trata da obtenção de fins (goal attainment) com a personalidade. As exigências ligadas a personalidades, organismos comportamentais e ambiente físico-orgânico explicam muitas das dimensões complexas e transversais da organização real e do funcionamento dos sistemas sociais (Parsons, 1969, p. 26), tornando interessante a análise dessa dimensão na teoria parsoniana. Nesse ponto “G” (goal attainment) do esquema “AGIL”, estão situadas as funções psíquicas e conscientes da ação. Conforme Luhmann (2009, p. 50), o sistema psíquico, na teoria parsoniana, é o responsável pelo controle da ação, fazendo não só que esta seja realizada, mas que as necessidades sejam satisfeitas, que se oriente para a práxis e que se obtenham os fins. Em um movimento circular, vê-se, no diagrama, como no compartimento “G”, em direção ao “I” , tem-se a energia (ou os fatores) impostos pela personalidade em relação ao sistema social. No sentido inverso (“I” em direção a “G” ), vê-se como o sistema social condiciona e determina a personalidade. No primeiro caso, o esquema parsoniano é lido como “AGIL”; no segundo, como “LIGA”. Na obra de Parsons, o sujeito é o único que pode estabelecer uma relação com o exterior, intermediando as referências internas da consciência e as externas do meio. O sujeito é, portanto, quem tem delegada a função de controlar as consequências da ação, e não somente buscar suas satisfações particulares (Luhmann, 2009, p. 50). Não obstante, a importância da personalidade, propriamente dita, pode ser explicitada a partir de um fenômeno denominado interpenetração por Parsons10. Para Parsons, a personalidade do indivíduo interioriza objetos sociais e normas culturais por meio da interpenetração. Assim, em virtude dessas “zonas de interpenetração”, podem ocorrer processos de intercâmbio entre sistemas. Nesse cenário, passa-se a perceber facilmente o complexo papel da personalidade, que, a partir desse momento, não pode mais ser tratada como algo em separado, pertencente

10 Conceito de tal alcance na obra de Parsons que Luhmann, ao fixar as bases de sua teoria autopoiética, dedica um capítulo inteiro de sua obra Soziale Systeme ao assunto. Para tanto, consultar Luhmann (1991, cap. 6/Interpenetração).

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exclusivamente a um campo específico (como fruto de condutas derivadas da experiência pessoal ou algo pertencente ao sistema social) (Parsons, 1974, p. 17). Parsons, no entanto, entende que o principal problema funcional referente à relação entre o sistema social e o sistema de personalidade inclui a aprendizagem, o desenvolvimento e a manutenção, durante toda a vida, de motivação adequada para participar de padrões de ação socialmente valorizados e controlados (Parsons, 1969, p. 26). A motivação, a propósito, é objeto de teorizações, desde a Psicanálise de Freud, que a observou a partir da noção de desejo. O desejo sexual, em Freud, é considerado como a fonte de toda a energia (libido), sendo responsável por dirigir o comportamento humano (Freud, 1996). No âmbito da Psicologia, Erich Fromm (pensador fortemente influenciado pela Sociologia) observou até que ponto fatores psicológicos desempenhavam forças ativas no processo social (Fromm, 1980). Charles Judd, por sua vez, é o autor que realiza interessante análise, demonstrando como os hábitos (isto é, as diferentes fases da personalidade) variam de acordo com as sucessivas adaptações às instituições sociais e aos objetos materiais da cultura (Judd, 1926). De fato, não se precisa de mais que esses três rápidos exemplos para demonstrar como a personalidade se trata de um verdadeiro ponto de articulação entre os estudos psicológicos e sociológicos, podendo ser observada na Sociologia parsoniana a partir de noções como interpenetração e níveis de sentido simbólico. Discorreu-se – ainda que brevemente – acerca da interpenetração. Quanto à noção de sentido simbólico, Parsons entende que, a fim de se comunicarem simbolicamente, “os indivíduos precisam ter códigos comuns, culturalmente organizados, tais como os da linguagem, que são também integrados em sistemas de sua interação social” (Parsons, 1974, p. 17). Isso permite observar sistemas sociais como abertos, participando de um intercâmbio contínuo de recepções e apresentações de seus ambientes. Nessa lógica, “sistemas sociais são constituídos por estados e processos de interação social entre unidades de ação” (Parsons, 1974, p. 18). Não obstante, Parsons entende que nenhuma sociedade pode manter estabilidade diante de diferentes exigências e tensões, a não ser que as constelações de interesses de seus membros partilhem de sentido, seja na forma de solidariedade, seja de lealdade e obrigações devidamente interiorizadas. Aliás, esse é um dos possíveis pontos de contato, na teoria parsoniana, de questões que envolvem a personalidade e o sistema jurídico. Aquilo que Parsons denominou, em sua obra, “ordem normativa societária” está muito próximo do que geralmente se entende pelo conceito de lei (Parsons, 1974, p. 30).

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Com efeito, não basta o entrelaçamento de interesses e o (utópico) consenso na vida em sociedade. Precisa-se, segundo Parsons, de algum mecanismo de imposição. Para o sociólogo americano, “essa necessidade [...] liga-se à necessidade de uma interpretação oficial das obrigações normativas institucionalizadas. Por isso, todas as sociedades têm alguns tipos de processos ‘legais’; [pois] através deles é possível decidir, sem utilização da violência, o que é certo e errado” (Parsons, 1969, p. 29). Pode-se perceber, assim, que uma exigência fundamental da sociedade em relação às personalidades de seus membros é a motivação de sua participação, incluindo-se aí a obediência às exigências de sua ordem normativa (Parsons, 1969, p. 26). Nessa lógica, para Parsons, não há como se falar em personalidade sem se referir ao seu ambiente social, nomeadamente no que se refere à integração com o sistema jurídico. E isso é válido porque a personalidade está (e sempre estará) presente como fator de ação concreta. A SOCIOLOGIA SISTÊMICA DE NIKLAS LUHMANN Observaram-se, até o momento, aspectos gerais da teoria parsoniana, nomeadamente no que tange a seu afamado esquema, conhecido como “AGIL”. Nesse esquema, a personalidade encontra lugar onde estão presentes as funções psíquicas ou conscientes da ação. Não obstante, a Sociologia Sistêmica de Niklas Luhmann produz um verdadeiro corte epistemológico, rompendo com noções que supostamente não ficaram bem resolvidas na teoria de Talcott Parsons11. Por exemplo, uma noção que é fortemente redefinida por Luhmann, possuindo simbólicos pontos de contato com Talcott Parsons, é o conceito de pessoa. Contudo, antes de adentrar nesse ponto, parece interessante situar brevemente algumas categorias da teoria luhmanniana. SISTEMA SOCIAL (SOCIEDADE): DA DISTINÇÃO À INDICAÇÃO Para a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann, observar sistemas é observar diferenças. Sociedade e indivíduos devem, logo, ser observados também a partir de uma diferença diretriz: sistema/ambiente. Descrever a sociedade a partir de uma diferença somente é possível após indicá-la, partindo-se de uma distinção. Explica-se: na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, a distinção está intimamente ligada ao cálculo matemático da forma de George Spencer-Brown. 11 Nesse sentido, consultar Luhmann (2009, Aula 1 – Funcionalismo Estrutural/Parsons).

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Na lógica das formas de Spencer-Brown (1979), três são os valores que constituem uma operação de reprodução: a indicação (ou espaço marcado), o espaço não marcado e a operação de separação do espaço marcado do não marcado. A partir daí, a ideia de forma pode ser vista como fruto de uma operação, na qual, simultaneamente, faz-se uma distinção e uma indicação, de modo que “uma forma é sempre uma forma com dois lados” (Luhmann, 1998, p. 232). Ao fim e ao cabo, tem-se indicada, de um lado da forma, a sociedade, permanecendo do outro lado (no espaço não marcado) os sistemas psíquicos. Partindo do cálculo da forma, Luhmann observa a sociedade como um sistema social autopoiético que se reproduz comunicativamente em face de um ambiente altamente complexo e contingente. Nesse sentido, a sociedade traça os limites da complexidade social, limitando o universo de suas próprias possibilidades. Vista como sistema social autopoiético, a sociedade tem por elementos tão somente comunicações. “A matéria-prima da sociedade, o que permite indicar e, ao mesmo tempo, distinguir a sociedade do ambiente que a envolve, a operação que faz a sociedade funcionar, tudo isso responde pelo nome de comunicação” (Campilongo, 2006, p. 12)12. Aliás, para Luhmann, a comunicação é a síntese entre informação, ato de comunicação e compreensão, sendo o elemento básico da sociedade (Luhmann, 2001, p. 17). Sobre o tema, Campilongo (2006, p. 14) afirma que “o pressuposto para a nova comunicação é a comunicação anterior. A comunicação precedente [...] poderia ter sido diversa do que foi. A comunicação sucessiva também. Trata-se de um processo contingente de conexão de eventos altamente improváveis”. Nessas conexões, efetua-se a autopoiesis social, a qual deve ser observada conjuntamente com as noções de comunicação e produção, pois, conforme Luhmann (2007, p. 69-70), o conceito de produção (ou melhor de poiesis) sempre designa somente uma parte das causas que um observador pode identificar como necessárias; a saber, aquela parte que pode se obter mediante o entrelaçamento interno de operações do sistema, aquela parte com a qual o sistema determina seu próprio estado. Logo, reprodução significa – no antigo sentido deste conceito – produção a partir de produtos, determinação de estados do sistema como ponto de partida de toda determinação posterior de estados do sistema. E dado que esta produção/repro-

12 Com efeito, o corte epistemológico realizado por Luhmann gerou (e ainda gera), sobretudo no campo do Direito, críticas esvaziadas de sentido (além de bastante apressadas). Os obstáculos epistemológicos enraizados na teoria sociológica, dos quais Luhmann pretendeu escapar em suas teorizações, foram devidamente situados na primeira parte de sua obra escrita com Rafaelle De Giorgi (1994).

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dução exige distinguir-se entre condições internas e externas, com isso o sistema também efetua a permanente reprodução de seus limites, isto é, a reprodução de sua unidade. Neste sentido, autopoiesis significa: produção do sistema por si mesmo. Os indivíduos, por sua vez, são vistos como sistemas psíquico-orgânicos, caracterizando-se, especialmente, pelos pensamentos e pela consciência. No entanto, os pensamentos não são comunicáveis, permanecendo inacessíveis. Qualquer coisa advinda desse âmbito (psíquico) surge como representação e, uma vez exteriorizada, ganha logo a forma de comunicação. Sendo a comunicação o elemento básico dos sistemas sociais, como pode então haver alguma espécie de contato entre estes e os pensamentos ou a consciência (sistemas psíquicos)? Com efeito, o conceito de interpenetração auxilia na resposta a essa questão. Interpenetração, para Luhmann, é conceito que trata “de uma relação intersistêmica entre sistemas que pertencem reciprocamente um ao ambiente do outro” (Luhmann, 1991, p. 222). Em outras palavras, interpenetração é o modo de explicar como sistemas que pertencem ao ambiente de outros sistemas podem se relacionar com esses mesmos sistemas. A interpenetração surge como um modo de superar certas condições que tornam viável a dupla contingência, uma vez que evita explicações acerca da natureza do homem ou, até mesmo, da subjetividade da consciência. O decisivo, pois, na ideia de interpenetração é que os limites de um sistema podem ser adotados no campo de operação de outro. Por exemplo, os limites dos sistemas sociais chegam à consciência dos sistemas psíquicos (Luhmann, 1991, p. 225). Observar a sociedade aliada ao conceito de interpenetração leva a perceber como a sociedade pode “comunicar-se em si mesma, sobre si mesma e sobre seu ambiente, porém nunca consigo mesma e nem com seu ambiente, pois nem ela mesma, nem seu ambiente, podem comparecer novamente na sociedade – como interlocutor, como direção da comunicação” (Luhmann, 2007, p. 69). Diante do exposto, percebe-se a importância da distinção diretriz sistema/ ambiente e da ideia de interpenetração como forma de explicar as relações entre o sistema social e seu ambiente, de tal modo que a “forma-sistema” organiza, por assim dizer, toda a consistência da teoria de Niklas Luhmann – possibilitando que se organize toda uma multiplicidade de possíveis distinções. OBSERVANDO O QUE NÃO SE DEVE PENSAR: SISTEMAS PSÍQUICOS E O PROBLEMA DA DUPLA CONTINGÊNCIA Percebe-se, na década de 1980, a conquista de certa autonomia nas reflexões de Luhmann em relação ao pensamento de Parsons, uma vez que o primeiro,

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desde o início de seus estudos, já vinha buscando se distanciar do segundo13. Com efeito, a obra que marca a autonomia intelectual de Luhmann intitula-se Soziale systeme (1984) (Luhmann, 1991). Nela, influenciado pelo pensamento de dois biólogos chilenos – Humberto Maturana e Francisco Varela (Maturana; Varela, 2001) –, o sociólogo alemão lança as bases de sua teoria social autopoiética, a qual, conforme mencionado anteriormente, parte de uma distinção diretriz: sistema/ ambiente, que obriga a colocar separadamente, no plano epistemológico, sistemas psíquicos e sistema social. A diferenciação sociedade/sistema psíquico, longe que se encontra de paradigmas ontológicos, obriga logo a reconhecer que o ambiente do sistema social é composto por sistemas psíquicos, os quais são inacessíveis, formados unicamente por pensamentos, os quais devem ser concebidos como representações, pois não podem ser observados (como podem ser observados os sistemas sociais). Não obstante, a um grande número de observadores impõe-se certa concordância na observação, de modo que a observação passa a se correlacionar com a estrutura social (Luhmann, 2007, p. 735-736). Essa estrutura social é concebida virtualmente por Luhmann a partir do problema da dupla contingência. No âmbito pessoal, tal problemática sempre se apresenta quando um sistema psíquico experimenta um sentido, pois “a dupla contingência acompanha toda a vivência, sem foco preciso, até encontrar-se com outra pessoa ou com um sistema social” (Luhmann, 1991, p. 121). Contudo, como a noção de dupla contingência se encontra igualmente presente na obra de Talcott Parsons, Luhmann busca se diferenciar desse autor, afirmando que pretende superar em larga medida o nível de abstração tratado por Parsons. Ante a acepção de Parsons, a dupla contingência de Luhmann se distancia nomeadamente ao considerar as perspectivas de sentido diferenciadas socialmente (dimensão social) de um processo de diferenciação de uma dimensão universal (Luhmann, 1991, p. 122). Na teoria sociológica luhmanniana, a dupla contingência surge como uma forma de explicar e incorporar o inesperado, o imprevisto e o diferente, nas relações sociais. Assim, mesmo diante de estruturas aparentemente estabilizadas de expectativas, o problema da contingência continuará sempre existindo. Para Jean Clam (2006, p. 20), a pergunta pela contingência social “é a pergunta pela capacidade flutuante que uma sociedade possui de integrar em determinado momento aquilo que ela até então havia excluído”. 13 Nesse sentido, consultar o artigo apresentando por Niklas Luhmann a Talcott Parsons, em sua estadia na Universidade de Harvard. O texto, intitulado “Função e causalidade”, foi publicado em Luhmann (1973).

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O problema da dupla contingência possibilita a construção de estruturas sobre um novo nível de ordem, no qual se regula cada perspectiva, desde as próprias perspectivas (Luhmann, 1991, p. 134). Assim, a equação sistêmica da dupla contingência surge quando uma personalidade se relaciona com a possibilidade de comunicação. A personalidade se constitui, para Luhmann, onde o comportamento de outros se representa como comportamento escolhido, que pode ser influenciado comunicativamente por meio do próprio comportamento, regulando, desse modo, o problema da dupla contingência (Luhmann, 2007, p. 510). Ver-se-á, a seguir, como a pessoa, para Luhmann, serve também para regular essa problemática. A FORMA “PESSOA” Niklas Luhmann se propõe a elaborar uma teoria complexa, que acentua a distinção entre diversos tipos de sistemas. É natural, portanto, que velhas conceituações (até certo ponto problemáticas, dependendo do ponto de observação) necessitem ser reoperacionalizadas no âmbito da teoria dos sistemas. Com efeito, o conceito de pessoa é um desses pontos, sendo noção de especial interesse tanto para a Sociologia como para o Direito. O conceito de pessoa pode ser introduzido a partir de uma interessante afirmação proposta por Luhmann: “Para se ser uma pessoa, deve-se pretender estar obrigado a ser esta mesma pessoa também em outro lugar” (Luhmann, 1991, p. 422). Mais que uma vaga aproximação ao conceito, essa frase é uma síntese da concepção luhmanniana de pessoa, pois, para esse autor, pessoas se condensam como efeito da necessidade de resolver o problema da dupla contingência social. Nessa ótica, são as pessoas que permitem que se disciplinem expectativas, que se limite o repertório de conduta e, inclusive, que se obrigue alguém a ser aquele que havia inicialmente aparentado ser (Luhmann, 1998, p. 239). Por conseguinte, todo o desvio de conduta surge imediatamente como discrepância, uma vez que alter possui expectativas acerca da conduta de ego; isso de tal modo que, se alter se comportar de maneira muito diferente, precisará justificar o porquê de tal comportamento para ego. “Assim, quanto mais diversas e individualizadas forem as expectativas, tanto mais complexa será a pessoa” (Luhmann, 1991, p. 320). Nesse cenário, como “os sistemas de consciência não sabem nada acerca das condições nas quais trabalham seus cérebros (ainda que pensem com a “cabeça”), os sistemas de comunicação não sabem que as comunicações fazem contato unicamente com outras comunicações” (Luhmann, 2007, p. 67). Essa curiosa afirmação

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leva, consequentemente, à necessidade de observar como é possível que distintos tipos de sistemas (psíquicos e sociais) travem alguma espécie de contato. A distinção que interessa analisar já é conhecida: sistema/ambiente ou, mais especificamente, sistema social/sistema psíquico. É relevante lembrar que sistemas sociais são compostos de comunicações, e sistemas psíquicos, de pensamentos. De todo modo, percebe-se que não há uma efetiva separação deles, pois ainda que se tratem reciprocamente de sistema e ambiente (um do outro), “todos os sistemas estão adaptados a seu ambiente (ou não existiriam); porém, até o interior do raio de ação que lhes é conferido, tendo todas as possibilidades de comportarem-se de modo não adaptado” (Luhmann, 2007, p. 73). Percebe-se aí uma sutil diferença de separação para não adaptação. Uma não adaptação pode implicar, de fato, separação, todavia, uma separação não necessariamente é fruto de uma não adaptação. Entre sistema psíquico e sistema social não há separação, mas sim uma relação de interpenetração: “não se trata de uma relação geral entre sistema e ambiente, mas sim de uma relação entre sistemas que pertencem reciprocamente um ao ambiente do outro” (Luhmann, 2009, p. 267). Nesse complexo contexto, deve-se, ao máximo, evitar certas crises conceituais. Por isso deve-se ressalvar como Luhmann, ao longo dos anos, modifica sua concepção acerca do que vem a ser, conceitualmente, em sua teoria, pessoa. Em um primeiro momento, no início da década de 1980, Niklas Luhmann afirma categoricamente que “pessoas são aqueles sistemas psíquicos que são observados por outros sistemas psíquicos ou sociais” (Luhmann, 1991, p. 124). Por outro lado, em um texto posterior, tratando da “forma” pessoa, esse sociólogo afirma (buscando evitar que sistemas psíquicos se confundam com pessoas) que “pessoas são identificações que não se referem a um modo operativo próprio, o que significa que não são sistemas” (Luhmann, 1998, p. 236). É preferível compreender essa aparente confusão não como uma incongruência teórica, mas como uma evolução do pensamento do autor, até porque Luhmann enfatiza reiteradamente (no segundo texto) a necessidade de observar-se a pessoa como forma, noção que proporciona uma diferenciação efetiva entre sistema psíquico e sistema social. Desse modo, para a teoria sistêmica de Luhmann, pessoa é conceito que primeiramente serve para indicar a identificação social de um complexo de expectativas dirigidas a um homem individual (Luhmann, 1991, p. 219), para, por conseguinte, ser observada como forma, sob a qual se observam objetos como indivíduos (Luhmann, 1998, p. 242). Luhmann entende, ainda, que as pessoas servem de acoplamento estrutural entre sistemas psíquicos e sociais, pois fazem possível que os sistemas psíquicos experimentem em seu próprio eu as limitações com as quais contarão no

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tráfico social (Luhmann, 1998, p. 243). Sistemicamente, acoplamento estrutural é a forma de explicar como o sistema social não precisa absorver ou reconstruir sua complexidade ante as complexas condições do ambiente (Luhmann, 2007, p. 78). Com efeito, são os acoplamentos estruturais que proporcionam interpenetrações e irritações sistêmicas, de modo que se tenha o funcionamento já ambientalmente adaptado dos sistemas. Pode-se afirmar, em síntese, que, do ponto de vista sistêmico, a pessoa é, portanto, uma forma. Como tal, serve para auto-organização do sistema social, resolvendo o problema da dupla contingência e limitando o repertório de conduta dos participantes de uma dada relação social (inclusive jurídica). É, igualmente, uma âncora de expectativas, permitindo que alter e ego se orientem a partir de um ponto simbólico presente no social. A pessoa é, portanto, um ponto de contato privilegiado de sistemas psíquicos com sistemas sociais. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À (RE) OPERACIONALIZAÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA NO DIREITO Viram-se, nos pontos anteriores, os conceitos de personalidade e de pessoa em duas teorias sociológicas distintas, as quais problematizam esses conceitos de modo a afastá-los significativamente. Não obstante, do ponto de vista da dogmática jurídica14, o conceito de pessoa se liga bastante à noção de personalidade. Sobre isso, Marcos Bernardes de Mello afirma que a personalidade, vista como “condição ou maneira de ser da pessoa”, pode ser objeto de estudo sob os mais diversos prismas, como o filosófico, o sociológico e o jurídico (Mello, 2011, p. 156). No âmbito do Direito Civil, por exemplo, a personalidade é recepcionada a partir dos chamados “direitos da personalidade” (arts. 11 a 21 do Código Civil de 2002), os quais são resguardados constitucionalmente. Já a pessoa, no mundo jurídico, é vista por Mello como “criação do direito, uma vez que constitui eficácia imputada a fatos jurídicos específicos. Não é um atributo natural do ser humano, menos ainda desses outros entes, mas a imputação jurídica” (A ndrade, 2003, p. 157). Pessoa, em outras palavras, é conceito que se reveste de sentido jurídico quando se parte do sistema jurídico como ponto de observação. Não obstante, sabe-se

14 A dogmática jurídica se identifica “com a ideia de Ciência do Direito que, tendo por objeto o Direito Positivo vigente em um dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) a ‘construção’ de um ‘sistema’ de conceitos elaborados a partir da ‘interpretação’ do material normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna, tem por finalidade ser útil à vida, isto é, a aplicação do Direito” (Cf. A ndrade, 2003, p. 18).

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que a conciliação de conceitos sociológicos (sistêmicos), como os esboçados nos pontos anteriores, com conceitos jurídicos (oriundos da dogmática jurídica) não é tarefa fácil de ser empreendida. Conforme Niklas Luhmann, tal dificuldade se deve ao fato de que a demanda por “teorias jurídicas” surge, por um lado, da docência do Direito, e por outro, da prática jurídica. No princípio, os argumentos relativos ao Direito eram provenientes dos envolvidos no processo jurídico, depois, eram fundamentados nas decisões judiciais e, no mesmo contexto, reutilizados no âmbito dos tribunais. A experiência proveniente dos casos e dos conceitos teve, então, de ser organizada e mantida disponível para que pudesse ser reutilizada (Luhmann, 2002, p. 61). Contudo, é geralmente sabido que a teoria jurídica que se origina da prática (práxis) do Direito não cumpre, no contexto do sistema da ciência, com o que promete o próprio conceito de “teoria”, pois é um produto colateral da necessidade de que se tomem decisões jurídicas sólidas. Logo, as denominadas “teorias” (dogmáticas) nada mais fazem do que “agrupar os dados e ordenar o complexo material a que se confronta a prática jurídica, em grupos semelhantes de casos e problemas para, dessa maneira, delimitar e orientar o processo decisório” (Luhmann, 2002, p. 62). Entre esses “dados”, tem-se o conceito de pessoa habitando a ordem jurídica nacional, a qual sustenta que “todos os homens são ‘pessoas’ do ponto de vista jurídico e titulares de plena capacidade jurídica”, sendo livres e gozando de isonomia perante a lei (Mello, 2011, p. 160-161). Contudo, um ponto de observação teórico-sistêmico jurídico vai bem mais além do que o mero “orientar da práxis”, proposto pela dogmática jurídica. O ponto de vista sistêmico sustenta que não vale a pena polemizar acerca da “natureza” ou do “ser” do Direito, pois entende que a pergunta decisiva é sobre os limites do Direito. Sistemicamente, o Direito mesmo aponta quais são seus limites, determinando o que pertence ao sistema e o que não pertence (Luhmann, 2002, p. 67). Com efeito, o conceito de pessoa há muito pertence às operações do sistema jurídico, sobretudo quando se fala em dignidade da pessoa humana, na teoria jurídica de cariz dogmático15. Entretanto, sendo conceito fundado em valores humanísticos, a pessoa é refletida de tal modo que a discussão tem perpassado o sistema jurídico, fazendo com que a questão se cristalize em valores políticos. Trabalhado desse modo, pessoa é conceito difícil de ser operacionalizado no plano sistêmico. Por outro lado, também

15 Por todos, consultar Sarlet (2001). Do mesmo autor, consultar também, (jan./jun. 2007, p. 361388).

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sabe-se que não se pode simplesmente “importar” conceitos da dogmática jurídica ou mesmo tratar a pessoa a partir de ideias como “consciência”16 (a qual não existe para o sistema jurídico). Com efeito, em uma sociedade complexa e funcionalmente diferenciada, certas conceituações imperantes no imaginário jurídico podem ganhar a forma de obstáculos epistemológicos (categoria trazida por Luhmann da obra de Gaston Bachelard). Para Luhmann, são três os principais obstáculos epistemológicos atualmente presentes na teoria sociológica: 1) a hipótese de que a sociedade consiste em seres humanos ou na relação entre eles (acidamente denominada pelo sociólogo como preconceito humanista); 2) a noção de pluralidade territorial de sociedades; e 3) o prejuízo que se refere à teoria do conhecimento, nomeadamente à distinção entre sujeito e objeto (Luhmann, 1998, p. 52-53). Assim, para Luhmann, uma teoria social que se proponha certo rigor não pode ser apoiada em imprecisões conceituais. Note-se, por outro lado, como o direito pode proporcionar um conceito próprio para “interesses” de suas próprias operações. O conceito jurídico de pessoa (incluindo a ficção daí advinda: “pessoa jurídica”) trata-se de interesse o qual, em consonância com o código binário do Direito (legal/ilegal), divide-se em interesses legalmente protegidos, em face de interesses legalmente desprotegidos. Exemplificativamente, o amor entre as pessoas não é um interesse legalmente protegido, já o casamento o é. Se o amor acaba, isso em nada interessa para o sistema jurídico, já o fim do casamento gerará uma repercussão legal. Note-se como para Luhmann o conceito de interesse é atraente por indicar como o sistema jurídico constrói uma estação hipersensível de recepção e de transformação de informações provenientes de outras áreas (Luhmann, 2002, p. 520-521). Como dito, há muito recepcionada pela teoria dogmática do Direito, a pessoa é reconhecida pelo sistema jurídico como sendo de duas espécies: a) naturais ou físicas – considerados, individualmente, todos os seres humanos; b) jurídicas ou morais – constituídas por entes estatais, internacionais, associações, fundações e sociedades simples e empresariais (Mello, 2011, p. 162). Não obstante, uma teoria sistêmica do Direito deve considerar a pessoa além dessa mera separação, observando-a como “ponto de interseção” entre sistemas psíquicos e sociais que

16 A ideia de consciência, central para a Psicanálise, possui por objeto de estudo a forma consciente/inconsciente. Não obstante, em abordagens teórico-jurídicas, leva-se em consideração que a “consciência” de um indivíduo pode ser algo particularmente problemático, se feito apressadamente. Nesse sentido, alcança apenas os limites da retórica, talvez da poesia, afirmar que é preciso, no direito privado, “ir em direção a uma consciência efetivamente madura, que reconhece seus limites e sua condição e que, precisamente, neste reconhecimento se transcende”, como sustenta Silva Filho (2005).

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resolve o problema da dupla contingência, limitando o repertório de conduta dos participantes de relações jurídicas. Além disso, a pessoa serve para indicar com certa precisão a identificação social de um complexo de expectativas, quando dirigidas a um homem individual (Luhmann, 1991, p. 219), provando, assim, que não há negação do “fator humano” pela teoria luhmanniana, pois a pessoa é o meio efetivo pelo qual se observam indivíduos (humanos!) (Luhmann, 1998, p. 242). Servindo de acoplamento estrutural entre sistemas psíquicos e sociais, as pessoas também tornam possível que sistemas psíquicos experimentem, em seu próprio eu, as limitações com as quais contarão no tráfico social (Luhmann, 1998, p. 243). Saliente-se a necessidade de, no âmbito da teoria sistêmica, observar essa (aparente) separação entre indivíduo e sociedade, pois as distintas recursões dos sistemas psíquicos e sociais obrigam a separá-los. Porém isso não indica que tais sistemas não mantenham relações de nenhum tipo, nem tampouco que não possam evoluir conjuntamente. A afirmação de que o psicológico e o biológico do indivíduo (sistema psíquico e sistema físico-orgânico) pertencem ao ambiente social não exterioriza nenhum tipo de juízo ontológico sobre a importância dessas dimensões, tratando-se, para Luhmann, de uma posição de método: um modo efetivo de situar o que se designa como sistema e o que se define como ambiente (Luhmann, 2009, p. 259). Por outro lado (e em outra perspectiva), a teoria de Parsons pode contribuir para o debate jurídico, nomeadamente quando destaca a exigência fundamental da sociedade em relação às personalidades de seus membros: a motivação de sua participação, incluindo aí a obediência às exigências de sua ordem normativa (Luhmann, 2009, p. 26). Contudo, a complexa questão que permanece é: como se observa isso? O problema reside no fato de que, para Parsons, não há como se falar em personalidade sem se referir ao seu ambiente social, nomeadamente no que se refere à integração com o sistema jurídico, ponto de observação oculto para a teoria sistêmica luhmanniana. Assim, indo além da personalidade, a pessoa acaba por resolver o problema da dupla contingência, limitando o repertório de conduta dos participantes de certas relações sociais. Pode-se, desse modo, realocar a pessoa (mas não facilmente a personalidade) no âmbito da teoria da sociedade e do Direito. Como âncora de expectativas, sistemicamente a pessoa pode ser vista como um ponto simbólico, presente no individual e no social, perpassando distintos sistemas sociais, inclusive o Direito – o sistema que possui a função de aliviar as expectativas sociais,

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estabilizando-as nas três dimensões de sentido (temporal, social e pragmática)17. Possivelmente, na atualidade, não se encontre concepção que privilegie tanto a pessoa, pois ela é o ponto de contato possível entre sistemas psíquicos e sociais, ainda que, se observada isoladamente, não pertença a nenhum deles. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A ndrade, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica. Escorço de sua configuração e identidade. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. A ron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Bachel ard, Gaston. A formação do espírito científico. Para uma psicanálise do conhecimento. São Paulo: Contraponto, 1996. Bertalanffy, Ludwig V. Teoria geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 1973. Campilongo, Celso Fernandes. Aos que não veem que não veem aquilo que não veem: sobre fantasmas vivos e a observação do Direito como sistema diferenciado. In: De Giorgi, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006. Clam, Jean. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade. Contingência, paradoxo, só-efetuação. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2006. De Giorgi, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006. Domingues, José M. A Sociologia de Talcott Parsons. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2008. Freud, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Freud, Sigmund. Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII. Fromm, Erich. O medo à liberdade. Biblioteca de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980. Judd, Charles H. The Psychology of social institutions. New York: The Macmillan Co., 1926. Luhmann, Niklas. Ilustración sociológica y otros ensayos. Buenos Aires: Sur, 1973. . Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. . Sistemas sociales. Lineamentos para uma Teoría General. México: Alianza Editorial/Universidad Iberoamericana, 1991. . La Forma “Persona”. Complejidad y Modernidad: de la Unidad a la Diferencia. Edición e traducción de Josetxo Beriain y José María García Blanco. Madrid: Editorial Trotta, 1998. . A improbabilidade da comunicação. Lisboa: Vega, 2001.

17 Sobre esse ponto, consultar Luhmann (1983).

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.73-97

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Resumo  O presente artigo pretende retomar a análise teórica empreendida por Karl Marx sobre as crises capitalistas. Procurou-se, assim, identificar as leis fundamentais de movimento do capitalismo desenvolvidas por Marx em seus estudos, sendo a lei do valor aquela que comanda a produção e a acumulação capitalistas, quando há subsunção real do trabalho ao capital. Assim, identificou-se o objetivo real do capital, qual seja a valorização. Ocorre que ela depende de algumas condições, tais como o desenvolvimento máximo das forças produtivas. Ao desenvolver a tal ponto as forças de produção social, o capital acaba por dispensar trabalho vivo e tende à superprodução. Daí a possibilidade formal e real das crises, que são geradas no próprio movimento do capital e surgem periodicamente, de forma cíclica, e a análise da lei tendencial da queda da taxa de lucro como uma das principais formulações para se compreender os motivos de existência das crises capitalistas. Palavras-chave  crise; valorização; superprodução; taxa de lucro.

Theory and crises Abstract  This article intends to resume the theoretical analysis undertaken by Karl Marx on capitalist crises. Thus seek to identify the fundamental laws of motion of capitalism developed by Marx in his studies, and the law of value that controlling the production and accumulation capitalists when there real subsumption of labor to capital. Thus, we identify the real goal of the capital, which is the appreciation. It happens that the appreciation depends on several conditions, such as the maximum development of productive forces. In developing this point the forces of social production capital eventually dispense live work and tends to over-production. Then, there’s the possibility of formal and actual crises. Such crises are generated in the movement of capital and appear periodically, in a cyclic. Then the analysis of law

* Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente, é professor universitário nos cursos de graduação em Direito da Universidade Camilo Castelo Branco (Unicastelo) e nos cursos de graduação em Serviço Social e Pedagogia da Fundação Educacional de Fernandópolis (FEF).

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trend of falling profit rate as a major formulations to understand the reasons for the existence of capitalist crisis. Keywords  crisis; appreciation; recovery; overproduction; rate of profit.

APRESENTAÇÃO No segundo semestre de 2008, a economia mundial foi acometida por uma crise de proporções tamanhas, e prontamente surgiram comparações com a famigerada crise de 1929. O financiamento sem controle nos mercados imobiliários norte-americanos, seguido da alta nas taxas de juros, impulsionou uma avalanche de insolvência que fez falir, em alguns dias, imensas fortalezas de capital financeiro acumulado. Tão logo a crise foi se desenrolando, surgiram inúmeros estudos sobre as causas, consequências e características de tamanho abalo na economia capitalista. Nesse ímpeto de se compreender o que estava havendo, as análises de Marx sobre o modo de produção capitalista submergiram, demonstrando sua atualidade e importância para o entendimento da realidade atual. Nessa ocasião, o célebre historiador inglês Eric Hobsbawm afirmou: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado (Hobsbawn, 2012).

Tendo em vista esses pontos destacados, o objetivo aqui é retomar a análise teórica de Marx concernente ao entendimento das crises no modo de produção capitalista. Julga-se necessário debruçar-se sobre essa temática não pela discussão teórica em si, mas pelos indispensáveis instrumentos que são fornecidos para a compreensão sobre o movimento do capital em seu processo de produção e reprodução e para o entendimento do atual momento pelo qual passa a economia capitalista. AS LEIS DE MOVIMENTO DO CAPITAL Grande parte dos estudos de Marx tem como objetivo desvendar e compreender as leis imanentes ao modo de produção capitalista, as quais determinam o movi-

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mento do capital. Nesse contexto, ao realizar a crítica à economia política clássica, Marx discute as fontes e formas do valor, considerando a teoria do valor-trabalho de Ricardo1. Assim, é a lei do valor que vai determinar o movimento do capital em geral, porém, a seu modo, reconfigurada na forma de lei de valorização, a partir do momento em que há subsunção real do trabalho ao capital, que significa um momento histórico no qual o modo de produção capitalista alcança um avançado grau de desenvolvimento das forças produtivas. Nesse patamar, o capital passa a se fundamentar na utilização da mais-valia relativa, na qual a elevação da produtividade se obtém pelo incremento dos meios de produção. É nesse momento que a produção se torna especificamente capitalista. A subsunção real do trabalho no capital desenvolve-se em todas aquelas formas que produzem mais-valia relativa, ao contrário de absoluta. Com a subordinação real do trabalho no capital efetua-se uma revolução total (que prossegue e se repete continuamente) no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho. [...] Desenvolvem-se a forças produtivas sociais do trabalho e, graças ao trabalho em grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção imediata (Marx, 2004, p. 104).

A utilização da máquina e a aplicação da ciência e da técnica permitem um ritmo acelerado de produção. O capital se torna, então, sujeito de um processo de produção cuja finalidade é a própria produção. É a ideia de produzir por produzir. Mas isso só faz sentido se o valor adiantado para a produção de mercadorias for instrumentalizado de tal modo que seja capaz de produzir um valor maior, acrescentado àquele do início do processo. Para nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia (Marx, 1983, p. 155).

1 Em Miséria da Filosofia, Marx afirma: “o passo decisivo que é a aceitação da teoria do valor-trabalho e, em especial, do enfoque de Ricardo, diverso do de Smith no que se refere à determinação do valor pelo tempo de trabalho e não pelo ‘valor do trabalho’” (Marx, 1982, p. IX).

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O objetivo fundamental da produção capitalista é produzir valor de troca para que possa haver valorização do valor adiantado. Nesse contexto, o valor de uso só é produzido pelo fato de carregar consigo um valor de troca e ser, assim, expressão material do valor. Esse objetivo se apresenta implícito no próprio conceito de capital e somente é obtido se o processo de produção for cada vez mais eficiente, produzindo mais produtos, valores de uso, com menor quantidade de trabalho necessário, imediato. Produtividade do trabalho, em suma = máximo de produtos com mínimo de trabalho; daqui o maior embaratecimento possível das mercadorias. Independentemente da vontade deste ou daquele capitalista, isto converte-se na lei do modo de produção capitalista. E esta lei só se realiza implicando outra, a saber: a de que não são as necessidades existentes que determinam o nível da produção mas de que é a escala de produção – sempre crescente e imposta, por sua vez pelo próprio modo de produção – que determina a massa do produto. O seu objetivo (é) que cada produto etc. contenha o máximo possível de trabalho não pago, e isso só se alcança mediante a produção para a própria produção (Marx, 2004, p. 107-8).

Aqui Marx chama atenção para o objetivo do capital, qual seja a valorização. Não são as necessidades de consumo particulares, ou seja, não é a necessidade de consumo dos produtos que determinará o ritmo da produção. Este passa a ser determinado pela própria produção em si, transformando-se em produção que busca o valor de troca. A produção capitalista desenvolvida tem como objetivo não o valor de uso, as diferentes mercadorias disponíveis para consumo dos indivíduos, mas sim o valor de troca. Em Teorias da mais-valia, Marx reafirma o propósito máximo do capital. Explica: [...] o objetivo direto da produção capitalista não é o valor de uso, mas o valor de troca e em especial incremento da mais-valia. Este é o motivo que impulsiona a produção capitalista, e é um primor de concepção a que, para escamotear as contradições da produção capitalista, omite-lhe a base e faz dela uma produção dirigida para o consumo imediato dos produtores (Marx, 1980, p. 931)2.

2 [...] o objetivo da produção capitalista não é apossar-se de outros bens, e sim apropriar-se de valor, de dinheiro, de riqueza abstrata (Marx, 1980, p. 939).

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Nesse nível de desenvolvimento das forças produtivas no qual há subsunção real do trabalho perante o capital, este pôde adquirir uma autonomia tal que se desvencilhou de quaisquer limites externos à sua reprodução continuada. Grespan vê nesse fato a ideia de desmedida e infinitude do movimento do capital. Afirma que o capital não encontra Fora de si mais nenhum limite permanente, nenhum elemento exterior que lhe possa conter indefinidamente a expansão, já que esta se baseia no domínio da fonte de valor mesma. [...] O primeiro significado de “desmedida”, específica do movimento de acumulação do capital portanto, vem da infinitude deste movimento. [...] Não há, por princípio, uma referência externa ao capital para determinar a magnitude de sua acumulação. Ele tem essencialmente em si a sua medida [...]. É claro que Marx considera também os obstáculos e as condições existentes para a acumulação. Mas lhe interessa enfatizar que da natureza do capital surge o impulso para a superação destes obstáculos, impulso, assim, inerente e necessário àquela natureza (Grespan, 1998, p. 129-30).

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o capital se liberta de limites externos à sua reprodução e expansão, afirma seu caráter contraditório, ao esbarrar em obstáculos gerados por seu próprio movimento. O capital põe a si mesmo entraves e dificuldades a seu movimento de produção e reprodução. AS CONDIÇÕES PARA A VALORIZAÇÃO Para poder atingir seu principal objetivo, a valorização, o capital tem, obrigatoriamente, que criar uma base técnica adequada para se reproduzir de forma constante. Assim, procura desenvolver ao máximo as forças produtivas sociais, o que permite explorar cada vez mais trabalho vivo e, consequentemente, diminuir o tempo de trabalho necessário para a produção de mercadorias. Marx chega a afirmar: “O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é a tarefa e justificativa histórica do capital” (Marx, 1988, p. 186). Nessa tarefa, portanto, o capital tem a oportunidade de elevar o tempo de trabalho não pago e, por isso mesmo, extrair mais mais-valia por meio da exploração do trabalho. A propósito desse movimento, Mazzuchelli afirma tratar-se de lei imanente ao modo de produção capitalista, pois

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[...] a valorização máxima supõe a apropriação máxima de trabalho não-pago, que implica o desenvolvimento máximo das forças produtivas e, portanto, a acumulação máxima. A “produção pela produção”, a tendência ao “desenvolvimento absoluto das forças produtivas”, a “acumulação progressiva” constituem, assim, uma lei imanente do regime de produção capitalista, no sentido de que se deduzem e se adéquam ao conceito mesmo de capital, enquanto valor que se valoriza através da apropriação de trabalho não-pago (Mazzuchelli, 1985, p. 20).

Ocorre que o desenvolvimento máximo das forças produtivas na busca pela superação dos limites da produção capitalista não é um processo infinito ou ilimitado. É, antes, histórico e tem por base determinadas condições históricas para se desenvolver e se consolidar. O fato de não encontrar limites externos a seu movimento expansivo é contraditoriamente refutado pelo fato de que o limite à produção capitalista passa a ser o próprio capital. Nesse sentido, o capital põe a si mesmo barreiras que devem ser superadas se a intenção for manter seu ritmo de exploração do trabalho e de acumulação. Ao desenvolver as forças produtivas sociais, o capital cria uma base técnica específica na qual o aumento da apropriação de trabalho não pago se torna possível e viável. Para tanto, utiliza-se da exploração do trabalho na forma de mais-valia relativa. Com isso, o quanto de capital constante (meios de produção) em cada capital individual tende a aumentar em relação ao capital variável (trabalhadores produtivos). Nesse momento há uma elevação da composição orgânica do capital, a qual se reflete na negação do trabalho vivo. O capital nega trabalho vivo, no entanto, sendo o trabalho vivo a única fonte de valor, o capital acaba por negar, contraditoriamente, seu principal instrumento para a valorização. O trabalho vivo, imediato, é fonte de valor, mas é contraditoriamente negado, dispensado pelo capital, o qual se desenvolve de forma contraditória, já que coloca constantemente a si mesmo, em seu movimento de produção e reprodução, contradições que devem ser superadas a todo o momento. Como afirma Mazzuchelli (1985, p. 22): [...] a valorização do valor pressuposto, ao redundar na autonomização da produção pela produção, implica, contraditoriamente, a tendência recorrente do capital a se abstrair das determinações de sua valorização e, portanto, das determinações da própria produção de valores. [...] é neste sentido que o capital contém em si mesmo a tendência à superprodução e à negação do trabalho imediato.

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Aqui, o objetivo primeiro do capital, o da valorização, é forçado a se realizar em uma base cada vez mais estreita. A negação do trabalho vivo implica uma dificuldade cada vez maior para a valorização, visto que, como será explicado mais adiante, a tendência à elevação da composição orgânica do capital dificulta e faz cair a taxa de lucro. À elevação da composição orgânica do capital corresponde uma diminuição do tanto de trabalho vivo empregado na produção, e, nesse sentido, é nesse momento que o capital abstrai as determinações de sua valorização. Nesse contexto, as crises de sobreacumulação e superprodução, manifestações violentas da dificuldade imposta para a realização do valor, aparecem como resultado do próprio movimento do capital. POSSIBILIDADE FORMAL DA CRISE É relevante apontar que Marx não apresenta um conceito único acerca das crises capitalistas. No interior de sua obra, mais especificamente em O capital e Teorias da mais-valia, o conceito de crise aparece disperso, de modo que pode ser definido no decorrer das explicações sobre as contradições do capital. Ao se elevar do abstrato para o concreto, Marx demonstra desde as contradições mais abstratas do capital, como a oposição interna da mercadoria, até as formas mais concretas de aparecimento dessas contradições, como no crédito e na concorrência. As crises capitalistas são produtos do próprio movimento do capital, no sentido de que é o próprio capital que, por meio de suas contradições, traz consigo as condições para as crises. Primeiramente, essas condições se apresentam como uma possibilidade formal, como crise em potência, pois a metamorfose da mercadoria enseja a forma para essa possibilidade. Por sua vez, a possibilidade de crises se encontra implícita, então, no próprio conceito de capital como valor que se valoriza e que, para tanto, deve percorrer um processo de metamorfose contínua da mercadoria. Nesse processo, o valor se manifesta em diferentes formas: ora como mercadoria, ora como dinheiro. Em sua obra Teorias da mais-valia, Marx analisa o fenômeno das crises capitalistas; primeiramente, como essa possibilidade acaba se tornando realidade. Afirma que “a dissociação entre o processo de produção e o processo de circulação evidencia e desenvolve mais a possibilidade de crise [...]” (Marx, 1980, p. 931). Isso ocorre, pois, no movimento de valorização que acontece na produção, e o capital se converte da forma dinheiro à forma mercadoria. Para que se complete

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o ciclo de valorização, a mercadoria, por sua vez, tem de se reconverter na forma dinheiro, por meio de sua venda. É justamente se reconvertendo em dinheiro que o movimento de valorização pode se completar, mas, para isso, a mercadoria deve ser vendida, pois só assim ela se reconverte em dinheiro. Nesse sentido, o processo de circulação no qual se insere a venda da mercadoria tem de se completar para que não seja dissociada a unidade entre produção e circulação do capital, expressão mais concreta da oposição entre valor de uso e valor de troca identificada na mercadoria. Para cumprir esse processo de metamorfose, de manifestação do valor na forma de mercadoria e na forma de dinheiro (D – M – D’), é necessário percorrer etapas que se apresentam no interior de uma unidade e, por isso, são complementares. Porém, [...] apesar dessa unidade intrínseca necessária, são por igual partes e formas independentes do processo, contrapostas em sua existência, discrepantes no tempo e no espaço, separáveis e separadas uma da outra. A possibilidade da crise reside apenas na dissociação entre compra e venda. [...] se compra e venda coincidissem, deixaria de haver, de acordo com as suposições feitas, a possibilidade de crise (Marx, 1980, p. 944).

Com isso, Marx quer demonstrar que a possibilidade de crise se encerra na própria metamorfose da mercadoria, que se expressa no ciclo produtivo no qual o dinheiro se converte na forma mercadoria, e esta, por sua vez, deve se reconverter na forma dinheiro. A mercadoria deve se reconverter em um valor expresso em dinheiro que seja mais elevado que o valor inicialmente aplicado. Nesse processo, o ciclo pode sofrer rupturas e ter suas fases complementares dissociadas, pois o dinheiro, em sua atuação como meio de pagamento, permite que essas fases se autonomizem, dando ensejo à interrupção do movimento de valorização do capital. Por isso, o que deveria permanecer em unidade para completar um processo, um ciclo, é violentamente separado. Nesse contexto, as crises capitalistas se manifestam, então, como produto da interrupção do movimento de valorização do capital. Nas palavras de Marx, a crise vem a ser “a imposição violenta da unidade das fases do processo de produção, as quais se tornaram independentes uma da outra” (Marx, 1980, p. 945). O DINHEIRO

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Os momentos de compra e venda podem ser separados no tempo e, assim, fazer com que o processo de valorização do capital seja interrompido, quando interrompida a metamorfose da mercadoria. Cabe enfatizar que a existência do dinheiro como meio de pagamento possibilita a paralisação do movimento de compra e venda, fato que não aconteceria na troca direta entre valores de uso. Na troca direta entre produtos, o objetivo seria adquirir um valor de uso, uma utilidade. Na produção capitalista desenvolvida, o objetivo é o valor de troca na forma dinheiro, sendo este “única existência adequada do valor de troca perante todas as demais mercadorias, enquanto simples valores de uso” (Marx, 1983, p. 110). Ocorre que o dinheiro como forma de manifestação do valor não carrega consigo qualquer materialidade, sendo pura forma. Como tal, destituído de materialidade, o dinheiro pode interromper uma troca mercantil, uma transação de compra e venda, pois seu uso como meio de pagamento, vale dizer, o uso do dinheiro como dinheiro, não requer que haja uma materialidade por trás do valor. Nesse sentido, o valor na forma de dinheiro é mera forma vazia, sem conteúdo3. Compra e venda são duas fases de um processo unívoco e complementar que, não obstante, pode ser interrompido por um período de tempo. Isso é possível tendo em vista que o movimento do capital em seu processo de valorização torna necessário transformar mercadoria em dinheiro e, por isso, a utilização de dinheiro na compra de mercadorias. A dificuldade de transformar a mercadoria em dinheiro, de vender, provém apenas de a mercadoria ter de se transformar em dinheiro, sem o dinheiro ter de imediato de se converter em mercadoria, e de compra e venda poderem dissociar-se (Marx, 1980, p. 945).

Verifica-se que há possibilidade de interrupção do necessário movimento de metamorfose da mercadoria, tendo em vista que há possibilidade de que o valor apresentado na forma de mercadoria não se reconverta na forma dinheiro. Nesse caso, o capital não realiza a mais-valia, e as crises surgem como manifestação desse problema, pois o lucro não pode ser obtido.

3 Sobre dinheiro na atualidade, Paulani analisa a realização plena de seu conceito como forma do valor. Nesses termos, afirma: “É só nos marcos de um regime monetário como o atual, inteiramente fiduciário e com câmbio flexível, que o dinheiro pode realizar plenamente sua essência descarnada. Se, como adiantou Marx, o espaço mundial é o lócus em que o dinheiro ganha uma forma de existência adequada a seu conceito, é só com sua desvinculação do ouro que ele ganha uma matéria (a forma pura) capaz de realizar plenamente essa existência” (Paulani, 2000, p. 105-6).

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Em Marx, o dinheiro aparece como resultado do desenvolvimento histórico da troca e para que os produtos dos trabalhos individuais se tornem mercadorias mercantilizadas. Esse processo faz do dinheiro forma independente e autônoma do valor das mercadorias. O valor passa a ser expresso pela forma dinheiro e põe na circulação a oposição encoberta no interior da mercadoria entre valor de uso e valor. Conforme explica Marx (1988, p. 63): A antítese interna entre valor de uso e valor, oculta na mercadoria, é, portanto, representada por meio de uma antítese externa, isto é, por meio da relação de duas mercadorias, na qual uma delas, cujo valor deve ser expresso, funciona diretamente apenas como valor de uso; a outra, ao contrário, na qual o valor é expresso, vale diretamente apenas como valor de troca.

A oposição interna e oculta na mercadoria entre valor de uso e valor de troca se manifesta, na realidade, de modo mais concreto na oposição entre mercadoria e dinheiro. É aí que o desenvolvimento da produção capitalista faz com que a forma passe a ganhar conteúdo, para que a circulação do capital possa funcionar. O dinheiro passa a atuar, então, como expressão concreta do valor. A ampliação e aprofundamento históricos da troca desenvolvem a antítese entre valor de uso e valor latente na natureza da mercadoria. A necessidade de dar a essa antítese representação externa para a circulação leva a uma forma independente do valor da mercadoria e não se detém nem descansa até tê-la alcançado definitivamente por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e em dinheiro (Marx, 1988, p. 81).

O dinheiro é a mercadoria na qual todas as outras se fundamentam para medir seus valores. Essa função surge para o dinheiro conforme a contradição interna da mercadoria valor de uso/valor de troca se exterioriza no processo de troca, na circulação do capital. Nesse processo, há a ocorrência de dois momentos que, não obstante serem complementares, podem ser dissociados pelo dinheiro. Marx visualiza na circulação do capital o processo de metamorfose das mercadorias ocorrido na troca por meio da equação M – D – M. Nela se pode visualizar o primeiro movimento como M – D (venda), troca de mercadoria M por dinheiro D; e o segundo movimento D – M (compra), troca de dinheiro D por mercadoria M. Esse processo, que poderia se completar de uma só vez, de forma simultânea, pode ser separado no tempo ou ter seus momentos interrompidos com o uso do

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dinheiro como meio de pagamento, não obstante serem uma unidade que carrega em seu interior duas fases complementares. A primeira metamorfose de uma mercadoria, sua transformação da forma mercadoria em dinheiro, é sempre, simultaneamente, a segunda metamorfose inversa de outra mercadoria, sua retransformação da forma dinheiro em mercadoria (Marx, 1988, p. 97).

Na equação M – D – M, venda e compra são dois atos que relacionam duas pessoas e as colocam em oposição, sendo estas o possuidor de mercadoria e o possuidor de dinheiro. Assim, é possível que ocorra um intervalo no interior do processo pelo fato de que o possuidor de dinheiro pode decidir não realizar uma compra, mesmo tendo efetuado uma venda, já que “Ninguém pode vender sem que outro compre. Mas ninguém precisa comprar imediatamente apenas por ter vendido” (Marx, 1988, p. 100). A unidade interna da mercadoria é desfeita por meio de uma antítese externa, na qual os processos se autonomizam. A contradição encontrada no interior da mercadoria se manifesta nas formas desenvolvidas da troca. É dessa dedução das formas da mercadoria, do movimento de metamorfose da mercadoria, quando há produção especificamente para a troca, que Marx demonstra a possibilidade de crises. Assim, essa possibilidade está no interior do modo de produção capitalista, e o capital traz consigo as possibilidades e as condições para as crises. AS CONDIÇÕES GERAIS DA CRISE: DA POSSIBILIDADE PARA A REALIDADE Toda essa análise conceitual deve ter por complemento compreender o movimento real do capital em contraposição à análise meramente formal da crise. Até aqui, há apenas a forma que permite a manifestação de um conteúdo. A possibilidade geral das crises é a metamorfose formal do próprio capital, a dissociação da compra e venda no tempo e no espaço. Mas esse processo nunca é a causa da crise, pois é apenas a forma mais geral da crise, isto é, a própria crise em sua expressão mais geral. Não se pode dizer que a forma abstrata da crise é a causa da crise. Quem pergunta por sua causa, quer saber precisamente por que sua forma abstrata, a forma de sua possibilidade, passa da possibilidade para a realidade (Marx, 1980, p. 950).

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Nessa passagem, Marx chama a atenção para o fato de que a investigação deve avançar para além das formas e, assim, poder apreender seu conteúdo. Esse é o caminho no qual se eleva do abstrato para o concreto. Aqui eis a forma, pura abstração. Cabe, portanto, compreender como a possibilidade geral das crises se efetiva na realidade e se manifesta no modo de produção capitalista, pois “[...] o meio por que essa possibilidade de crise se torna a crise não se contém nessa própria forma; esta implica apenas em que existe a forma para uma crise” (Marx, 1980, p. 945). A forma que possibilita o surgimento das crises está implícita no próprio modo de ser do capital, em suas leis fundamentais de existência. Seu movimento de metamorfose em mercadoria e em dinheiro revela a unidade contraditória identificada no interior da mercadoria, a qual carrega consigo a contradição percebida na oposição produzida por seu duplo caráter de valor de troca e de uso. A contradição abstrata entre valor de troca e de uso se manifesta na contradição, um pouco mais concreta, entre dinheiro e mercadoria. A forma dinheiro, como expressão do valor de troca, permite que a venda de uma mercadoria não se efetue e, por isso, a reconversão da forma mercadoria em forma dinheiro fica prejudicada. A produção mercantil tem por finalidade a produção de valores de troca, e, por isso, a conversão da mercadoria em dinheiro se torna o objetivo primeiro, sem o qual a possibilidade de crise torna a crise realidade. Podemos portanto dizer: em sua primeira forma, a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a dissociação da compra e venda. Em sua segunda forma, a crise é a função do dinheiro como meio de pagamento, e então o dinheiro figura em duas fases diferentes, separadas no tempo, em dois papéis diversos. As duas formas ainda são de todo abstratas, embora a segunda seja mais concreta que a primeira (Marx, 1980, p. 945).

Nesse sentido, a crise é possível pelo fato de que o capital é obrigado a percorrer um movimento de metamorfose para se valorizar, porém esse movimento pode ser interrompido a qualquer momento, em decorrência do uso do dinheiro como meio de pagamento, que se autonomiza de tal forma que pode se retirar momentaneamente da circulação. Isso se explica tendo em vista que, para Marx, a função do dinheiro como meio de pagamento se define por sua condição de realizar pagamentos diferidos, com prazo de vencimento que não o exato momento da compra. Diferentemente dos pagamentos à vista, em que o dinheiro funciona como meio de circulação, na função de meio de pagamento, o dinheiro pode se ausentar por

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um momento da transação, até que vença o prazo para o pagamento. Na ocasião em que não executa o pagamento no prazo estipulado, o dinheiro “não retorna” à circulação, e a metamorfose da mercadoria, vale dizer, a reconversão da mercadoria em dinheiro, não se realiza. Nesse momento, a mais-valia não se realiza, o valor não se realiza, e não pode haver valorização. Tendo isso em vista, é relevante salientar que o dinheiro permite a interrupção do processo, pois, além de meio de pagamento, tem condição de cumprir a função de elemento de entesouramento, ao se ausentar da circulação. Nesse momento, “o dinheiro petrifica-se, então, em tesouro e o vendedor de mercadorias torna-se entesourador” (Marx, 1988, p. 111). O dinheiro passa a ser elemento que se autonomiza perante a troca e atinge um nível de independência tal que se autonomiza em relação a todo o processo. Passa mesmo a determiná-lo e, determinando seu movimento, dita sua pausa e sua continuação. Contudo, cabe enfatizar que o dinheiro nessa função de meio de pagamento acaba por implicar uma contradição, sendo que “essa contradição estoura no momento de crises comerciais e de produção a que se dá o nome de crise monetária” (Marx, 1983, p. 116). Tendo isso em vista, a análise até aqui se concentrou no movimento de metamorfose do capital, nas formas como o valor se reveste. Ocorre que essas formas não são vazias, pois, em realidade, manifestam um conteúdo. Assim, a investigação teórica necessita elevar-se do abstrato para o concreto, sendo forçoso passar para a análise do processo real de produção capitalista, no qual há exploração de trabalho, crédito e concorrência. Nesse ponto, as formas do valor adquirem substância, que se manifesta na realidade. Assim, ao observarmos o processo de reprodução do capital (o qual coincide com a circulação dele) cabe, antes de mais nada, demonstrar que aquelas formas apenas se repetem ou antes só aí adquirem um conteúdo, um fundamento que lhes permite se manifestarem (Marx, 1980, p. 945-6).

As contradições do capital aparecem na realidade preenchendo a forma que confere condições a que elas se manifestem. O modo como aparecem é histórico, determinado pelas condições históricas concretas pelas quais passa a economia capitalista, com o desenvolvimento das forças produtivas e das forças sociais em luta. A produção e a circulação do capital respeitam as condições históricas a que estão submetidas, mas, não obstante, as leis que regem a existência e o funcionamento do capital podem ser percebidas a qualquer tempo. Os fundamentos do modo de produção capitalista se mantêm atuais e aparecem nas variadas formas

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que a produção e a circulação do capital determinam. Concentração e centralização do capital, capital financeiro, padrão dólar-dólar são fenômenos que apenas corroboram, na concreticidade, as formas de manifestação das condições de existência do capital. O conteúdo a ser manifestado pelo movimento do capital, ou seja, o fundamento real e não apenas formal da possibilidade das crises, pode ser encontrado na circulação do capital, onde há a atuação do dinheiro como meio de pagamento. É nessa função de meio de pagamento que o dinheiro permite a dissociação entre compra e venda. Compra e venda se tornam a manifestação da metamorfose da mercadoria, no sentido de que, pela compra, o capitalista adquire os elementos do capital constante, ou seja, os meios de produção necessários à produção de uma mercadoria. Por meio do consumo produtivo dos meios de produção, há a conversão do dinheiro em mercadoria, já que ali foi produzida uma mercadoria, um valor de uso. Agora, é chegado o momento de reconverter essa mercadoria em dinheiro e reconverter um valor de uso em valor de troca, sendo que este, por sua vez, deve representar um valor já valorizado. Isso ocorre por meio da venda da mercadoria, expressão concreta da realização da mais-valia. Esse processo de produção e reprodução do capital deve ser repetido continuadamente. Desse modo, [...] uma mercadoria se converte em dinheiro porque outra se reconverteu da forma dinheiro em mercadoria. Assim, a dissociação da compra e venda aparece aí de modo que à conversão de um capital, da forma mercadoria para a forma dinheiro, tem de corresponder a reconversão de outro capital, da forma dinheiro para a forma mercadoria; a primeira metamorfose de um capital tem de corresponder à segunda do outro, e a saída de um capital do processo de produção, à volta do outro a esse processo (Marx, 1980, p. 946).

Se o capitalista que comprou os meios de produção não conseguir vender a mercadoria por ele produzida, ou seja, não conseguir reconverter a mercadoria em dinheiro, não terá condições de pagar a compra dos meios de produção por ele utilizados. Consequentemente, o produtor daqueles meios de produção não poderá pagar a compra dos insumos utilizados para produzi-los. Isso ocorre, pois, “uma vez que aí a mesma soma de dinheiro funciona para uma série de transações e operações recíprocas, há insolvência não só num ponto, mas em muitos. Daí a crise” (Marx, 1980, p. 949). A insolvência se generaliza e, então, uma crise está instalada na economia. Os capitalistas não conseguem dar continuidade à produção e, por isso,

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[...] todos eles, que não realizam o valor de sua mercadoria, não podem substituir a parte que repõe o capital constante. Surge assim crise geral. Isso nada mais é que o desenvolvimento da possibilidade da crise no caso do dinheiro como meio de pagamento, mas aí já vemos, na produção capitalista, uma conexão entre os créditos e obrigações recíprocas, entre as compras e vendas, quando a possibilidade pode converter-se em realidade (Marx, 1980, p. 947).

Percebe-se que as condições para as crises estão inscritas no próprio movimento do capital, na própria metamorfose da mercadoria como movimento necessário à realização do capital. À reprodução das condições de produção capitalista como produção para a valorização corresponde uma base já desenvolvida em um patamar que permite ao dinheiro se autonomizar e, consequentemente, dissociar a unidade entre compra e venda. É na circulação desenvolvida do capital, no momento em que se desenvolvem o crédito e a concorrência, que o ambiente propício para as crises pode ser contraditoriamente desenvolvido pelo próprio capital. Nesse sentido, é com o desenvolvimento das condições propícias para a valorização do capital que se processam ao mesmo tempo, e de forma contraditória, as condições que dificultam sua valorização. E as condições para a valorização do capital determinam que a produção tenha como objetivo final o valor de troca. Nesse caso, o dinheiro aparece como expressão do valor. Ao fim de cada ciclo de produção, a mercadoria produzida deve ser vendida para que o valor seja reconvertido na forma dinheiro. Deve-se ressaltar que o capital, como algo que se valoriza e, para tanto, tende necessariamente a desenvolver ao máximo as forças produtivas a ponto de chegar a “produzir por produzir”, ultrapassa constantemente seus limites, sua base estreita na qual se apoia para se valorizar. O afã desmedido de apropriação da mais-valia relativa se choca, assim, com a tendência à “supressão” do trabalho necessário [...]. Mas não é apenas o trabalho necessário que tende a ser suprimido: na medida em que a finalidade do capital é a de “dar à produção um caráter científico”, reduzindo o trabalho “a um mero momento desse processo”, é o próprio trabalho que se torna progressivamente redundante para os fins da produção capitalista. E isto envolve uma abrupta contradição, já que o capital tende a negar a base sobre a qual se apóia a produção de valores e, portanto, a própria valorização (Mazzuchelli, 1985, p. 33).

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Ao suprimir trabalho necessário na produção, o capital faz aumentar sua produtividade. Agora, mais produto é produzido com o mesmo quantum ou uma quantidade menor do trabalho que era anteriormente necessário. Isso é possível, como já dito antes, com a utilização da técnica e da ciência na produção, as quais permitem a utilização de meios de produção cada vez mais produtivos e “poupadores de trabalho vivo”. Com isso, a extração de mais-valia relativa, a produtividade do trabalho e a acumulação se tornam potencializadas e aceleradas. Porém, ao dispensar trabalho vivo, imediato, o capital acaba por elevar relativamente sua composição técnica (meios de produção), e esse fato, por consequência, acaba por elevar a composição orgânica do capital (elevação no valor do capital constante). Mesmo que haja uma diminuição no valor do trabalho vivo empregado (capital variável), há uma elevação absoluta da composição orgânica do capital puxada pelo aumento do capital constante. Desse modo, “cai a taxa de lucro, porque o valor do capital constante subiu em relação ao do variável e se emprega menos capital variável” (Marx, 1980, p. 951). Essa é, em realidade, a condição para a crise. Mas aqui se trata da crise no nível da produção capitalista, e não mais no nível das formas do capital, em sua metamorfose processual. Desse raciocínio depreende-se uma das leis imanentes à produção capitalista, lei essa que caracteriza uma tendência no movimento da produção, qual seja a chamada lei da queda tendencial da taxa de lucro. A LEI DA QUEDA TENDENCIAL DA TAXA DE LUCRO A lei de tendência à queda das taxas de lucro é um dos importantes elementos teóricos desenvolvidos por Marx. Demonstra que a queda das taxas de lucro como tendência histórica da economia capitalista não surge por fatores exteriores ao capital, ou seja, não se trata de nenhum fato ou acidente externo à produção capitalista. É, sim, proveniente das contradições que se encontram na natureza mesma do modo de produção capitalista. Paulani, em artigo para o seminário virtual “Marxismo e século XXI” (2009), organizado pelo portal eletrônico Carta Maior, interpreta essa questão afirmando que as crises capitalistas não expressam uma falha no movimento do capital, mas, pelo contrário, são necessárias para manter viva a atividade do capital. Entende que: Bem ao contrário do que postula a economia convencional, para a qual o estado normal da economia capitalista é a harmonia e o equilíbrio, sendo as crises momentos incomuns, rapidamente corrigidos se o mercado for deixado em paz,

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Marx enxerga nesses eventos a característica definidora do capitalismo. Vendo-o como um sistema complexo e dinâmico, movido a contradições, esses episódios são, para ele, tão naturais quanto necessários. Na visão de Marx, a crise é o momento em que as contradições se materializam e exigem solução, sob pena de se comprometer a viabilidade do sistema. A causa das crises é sempre o excesso de acumulação de capital, que, a partir de determinado momento, não encontra condições de se realizar. Ao permitir a queima de capital, as crises liberam o espaço para a continuidade do processo de acumulação (Paulani, 2009a).

Paulani afirma serem as crises característica natural de um sistema movido a contradições. Mas, além disso, enxerga nas crises um recurso momentâneo para solucionar as interrupções, no movimento de valorização do capital. As contradições se manifestam concretamente na forma de crise, pois esse é o modo como o capital tem condições de solucionar o problema da baixa nas taxas de lucro. De tempos em tempos, o capital acumulado em excesso não tem condições de se realizar. A valorização do capital fica assim interrompida, e as crises aparecem como solução violenta a esse fenômeno. O desenvolvimento das forças produtivas sociais faz com que, no interior da produção, o valor do capital constante se eleve proporcionalmente mais que o valor do capital variável. O resultado disso é uma elevação da composição orgânica do capital, e o valor do capital constante empregado cresce em relação ao capital global adiantado, e isso se reflete na queda da taxa de lucro. [...] ocorre um decréscimo relativo do capital variável em relação ao capital constante e, com isso, em relação ao capital global posto em movimento. Isso só quer dizer que o mesmo número de trabalhadores [...] põe em movimento, processa e consome produtivamente ao mesmo tempo uma massa sempre crescente de meios de trabalho [...], portanto, também um capital constante de volume de valor sempre crescente (Marx, 1988, p. 154-55).

Nessa passagem, pode-se perceber que o movimento de valorização, objetivo primeiro do capital, leva o conjunto dos capitalistas a elevarem a composição orgânica do capital. Para alcançar maior produtividade, o capital procura fazer com que um mesmo número de trabalhadores possa produzir cada vez mais produtos. O valor embutido em meios de produção, capital constante, cresce em relação ao valor do capital variável. Nesse momento, o trabalho vivo, fonte de valor, é negado.

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Marx explica o lucro como excedente de valor obtido por meio da extração da mais-valia. Por meio desse recurso, é gerado um valor que “[...] está, portanto, numa relação com o capital global, que se expressa na fração m , em que C representa o C’

capital global” (Marx, 1988, p. 32). À medida que se eleva o valor da composição orgânica do capital, eleva-se o valor do capital global C, e, consequentemente, a taxa de mais-valia expressar-se-á em uma taxa de lucro em queda. [...] o progressivo decréscimo relativo do capital variável em relação ao capital constante gera uma composição orgânica crescentemente superior do capital global, cuja conseqüência imediata é que a taxa de mais-valia, com grau constante e até mesmo crescente de exploração do trabalho, se expressa numa taxa geral de lucro em queda contínua (Marx, 1988, p. 155).

A lei tendencial da queda da taxa de lucro reflete, assim, o quão contraditório é o movimento do capital. Para lograr aumentar a exploração do trabalho via mais-valia relativa, e, desse modo, elevar o tempo de trabalho não pago, o capital utiliza elementos que se transformam em verdadeiras barreiras para a elevação da taxa de lucro. Sendo ela inversamente proporcional à composição orgânica do capital, a elevação desta por consequência da elevação do valor do capital constante gera uma queda da taxa de lucro, que se transforma em verdadeira tendência na economia capitalista, à medida que se generaliza na produção capitalista. Nesse ponto, quando, apesar de todo o esforço capitalista em ampliar e acelerar a produção, seu lucro passa a não ser satisfatório, o capital encontra seu algoz, que, paradoxalmente, é ele mesmo, o próprio capital, o ser que impõe limites a si mesmo. O capital é seu próprio limite e traz consigo as barreiras as quais tem de suplantar. Traz em si mesmo os elementos que o leva à crise, já que [...] o desenvolvimento da força produtiva de trabalho gera, na queda da taxa de lucro, uma lei que em certo ponto se opõe com a maior hostilidade a seu próprio desenvolvimento, tendo de ser portanto constantemente superada por meio de crises (Marx, 1988, p. 185).

Aqui se reafirma o entendimento de que as crises não são desvios de conduta do capital, mas, pelo contrário, são soluções momentâneas para os obstáculos que o capital encontra no decorrer de seu movimento em busca de valorização. Em O capital, Marx explica que a oscilação para mais ou para menos da taxa de lucro não é reflexo direto da oscilação da taxa de mais-valia. Demonstra que uma

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taxa de mais-valia constante pode expressar uma taxa de lucro decrescente, ou seja, “a mesma taxa de mais-valia com grau constante de exploração do trabalho expressar-se-ia assim em uma taxa decrescente de lucro” [...] (Marx, 1988, p. 154). Isso ocorre, pois a variação no volume de capital constante influencia no volume do capital global. A taxa de lucro é expressa na relação entre taxa de mais-valia e capital global. Com o crescimento do volume material do capital constante, “[...] cresce também, ainda que não na mesma proporção, o volume de valor do capital constante e, com isso, o do capital global” (Marx, 1988, p. 154). O desenvolvimento das forças produtivas reitera um movimento de crescente produtividade. Historicamente, a ciência e a técnica são aplicadas na produção e, por consequência, a produtividade das forças produtivas sociais se eleva ao extremo. A máquina pode produzir cada vez mais com um número cada vez menor de trabalhadores, fato que se reflete na negação de trabalho vivo. O decréscimo no valor do capital variável em relação ao valor do capital constante pode ser observado nesse processo. Sendo a taxa de lucro a relação entre a taxa de mais-valia obtida no final do processo e o capital global adiantado, com o aumento do valor deste, uma mesma taxa de mais-valia constituirá uma taxa de lucro cada vez menor. [...] mostrou-se, entretanto, como lei do modo de produção capitalista que, com seu desenvolvimento, ocorre um decréscimo relativo do capital variável em relação ao capital constante e, com isso, em relação ao capital global posto em movimento. Isso só quer dizer que o mesmo número de trabalhadores [...] põe em movimento, processa e consome produtivamente ao mesmo tempo uma massa sempre crescente de meios de trabalho [...], portanto, também um capital constante de volume de valor sempre crescente (Marx, 1988, p. 154-5).

Se esse processo se generaliza, a crise está instaurada. Se não há taxa de lucro satisfatória, os pagamentos não podem ser realizados, e o dinheiro se retira de circulação. A insolvência se generaliza, a taxa de lucro geral entra em queda, e a acumulação e a reprodução do capital veem-se interrompidas. Como demonstra Marx, esse processo não pode ser considerado um acidente ou um mero desvio no desenvolvimento do capitalismo. As crises capitalistas têm de ser vistas como resultados do movimento do próprio capital em sua produção e reprodução. “A tendência progressiva da taxa geral de lucro a cair é, portanto, apenas uma expressão peculiar ao modo de produção capitalista para o desenvolvimento progressivo da força produtiva social de trabalho” (Marx, 1988, p. 155).

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Marx demonstra teoricamente como o capitalismo tende a crises temporárias e cíclicas, e essa tendência é demonstrada “a partir da essência do modo de produção capitalista, como uma necessidade óbvia” (Marx, 1988, p. 155). Não se trata da influência de algum elemento exógeno, exterior ao capital, mas de seu próprio movimento. As crises, vistas como reflexo das taxas de lucro em queda, são expressões do modo de existência da produção capitalista e, além disso, expressões de seu modo contraditório de existência. Quanto à tendência ao declínio da taxa de lucro, Belluzzo (1980, p. 100-1) afirma que: [...] na perspectiva vislumbrada por Marx, a natureza contraditória do processo de acumulação capitalista manifesta-se fundamentalmente na tendência ao declínio da taxa de lucro, como expressão característica desse regime de produção, não porque o capital demonstre qualquer inclinação a incorrer em rendimentos decrescentes à medida que se acumula, senão, ao contrário, porque sua acumulação envolve obrigatoriamente a potenciação continuada da força produtiva social do trabalho.

Como afirma Belluzzo, a potenciação continuada da força produtiva social do trabalho é necessidade indispensável ao capital para se reproduzir, e, paradoxalmente, é justamente essa necessidade que cria um penoso obstáculo para sua reprodução. O crescimento do valor do capital constante em relação ao capital variável é fenômeno que obedece à lógica do capital de produzir cada vez mais. O capital é sempre uma potência que produz cada vez em maior quantidade e em menor tempo, mas essa potencialidade esbarra no aumento do valor do capital constante em relação ao valor do capital variável (mesmo que ambos cresçam de forma absoluta), e, com isso, a taxa de lucro é pressionada para baixo. O EXCESSO DE CAPITAL NA DÉCADA DE 1970: RAIZ DAS CRISES ATUAIS Pode-se afirmar que a economia capitalista se encontra em estagnação desde a década de 1970. Para o historiador inglês Eric Hobsbawn, “[...] parece que tal desempenho decorre de uma crise geral da sociedade capitalista, iniciada no final dos anos 1960 e que abriu uma fase de ‘crise continuada’” (Hobsbawm, 1995, p. 393). A crise atual, iniciada em 2008, seria, assim, um dos fenômenos relacionados à longa crise por que passa a economia capitalista. O capitalismo estaria, então, atra-

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vessando um período de dificuldades que já dura mais de trinta anos, no qual há o surgimento de uma série de crises pontuais, caracterizadas como crises financeiras. Longe de ser o fenômeno recente e quase fortuito retratado pela maioria das análises em curso, que preferem enfocar causas imediatas, além de relacionadas a escolhas de agentes privados e públicos, a crise atual é um processo sistêmico, antigo, cujas raízes remontam à década de 1970. [...] o que começou ali, de fato, foi um período de estagnação dos investimentos, com queda persistente na taxa média de lucro e desvalorização de capital na economia dos Estados Unidos, coordenadora do sistema comercial e financeiro mundial (Grespan, 2009, p. 11).

Grespan entende que a crise atual tem como motivação inicial o período da década de 1970. Nesse momento, a economia capitalista mundial estava saindo de um período de grande crescimento, e isso gerou um acúmulo de capital que não conseguia espaço para se realizar. Argumenta que: Em linhas gerais, o patamar técnico e institucional alcançado durante os trinta anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, chamado resumidamente de “fordismo” (com todas as suas variantes e derivações), permitiu crescente incorporação de mão de obra até que novos investimentos levassem à queda da taxa de lucro, e não a seu aumento, como antes (Grespan, 2009, p. 14).

Nessa passagem, Grespan corrobora o entendimento de que as crises capitalistas são provenientes do aumento da composição orgânica do capital, consequência da busca pela elevação da capacidade produtiva por meio dos investimentos em capital constante. Brenner, argumentando na mesma direção, afirma que as raízes da crise atual podem ser encontradas na segunda metade da década de 1960, quando empresas alemãs e japonesas expandiram sua produção e colocaram seus produtos no mercado mundial com preços mais baixos que seus concorrentes. Nesse sentido, O resultado foi excesso de capacidade e de produção fabril, expresso na menor lucratividade agregada no setor manufatureiro das economias do grupo dos 7 (G-7) como um todo. Os fabricantes com custos altos dos Estados Unidos sofreram originalmente o impacto dessa queda, tendo a lucratividade caído cerca de 40% no setor fabril e 25-30% na economia como um todo entre 1965 e 1973. Em 1973, no entanto, tanto o Japão quanto a Alemanha [...] foram obrigados a

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enfrentar custos cada vez maiores, em conseqüência da severa valorização de suas moedas em relação ao dólar que ocorreu no momento da crise monetária internacional e do colapso da ordem de Bretton Woods entre 1971 e 1973. Foi a grande queda de lucratividade dos Estados Unidos, Alemanha, Japão e do mundo capitalista adiantado como um todo — e sua incapacidade de recuperação — a responsável pela redução secular das taxas de acumulação de capital, que são a raiz da estagnação econômica de longa duração ao longo do último quartel de século (Brenner, 1998, p. 07).

Capacidade produtiva em excesso requer alto nível de desenvolvimento dos meios de produção. Brenner considera que o excesso de capacidade produtiva, vale dizer, o montante de capital constante acumulado, foi responsável por uma compressão dos lucros em escala mundial. Em um ambiente de alta produtividade por parte da indústria, a composição orgânica do capital se torna elevada de tal maneira que os lucros, sendo expressão da relação entre a taxa de mais-valia e o capital global, tendem a cair. [...] as grandes corporações dos Estados Unidos, Alemanha e Japão que dominavam o setor fabril mundial pareciam ter perspectivas muito melhores de manter e aumentar a lucratividade pelo incremento da competitividade em suas próprias linhas do que pela transferência para outros setores. Elas contavam com grandes volumes de capital empatado já pago em suas próprias linhas; tinham relações antigas com fornecedores e clientes que não podiam ser facilmente reproduzidas em outros ramos; haviam criado, durante longo período, um saber tecnológico especializado, duramente conquistado, que era útil apenas em suas próprias linhas. Assim, durante e após a década de 1970, as corporações dos Estados Unidos, Alemanha e Japão geralmente não largaram suas posições a menos que fossem forçadas a isso, e o resultado foi que havia pouca saída e alívio para o excesso de capacidade fabril (Brenner, 1998, p. 07).

No sentido de buscar as raízes da crise, Paulani enfatiza uma mudança do regime de acumulação ocorrido na segunda metade do século xx, no qual as empresas se ausentam do setor produtivo para buscar valorização no setor financeiro. Afirma que: As multinacionais americanas espalhadas na Europa optam por não reinvestir a totalidade de seus lucros na produção, pois as perspectivas de ganho já não eram

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tão boas, mas tampouco enviam o excedente não reinvestido aos Estados Unidos, por conta de uma legislação tributária, à época, considerada muito dura. Esses recursos (eurodólares) começam então a “empoçar” na city londrina, o espaço off shore, também conhecido como euromarket, criado no início dos anos 1950 (Paulani, 2009b, p. 31).

Desses fatos pode-se entender que os rendimentos obtidos no setor produtivo, em vez de serem reinvestidos nesse mesmo setor, são desviados para a busca de valorização em curto prazo nos mercados financeiros. A incapacidade de realizar valor no sistema produtivo, quando a composição orgânica do capital se eleva em relação ao capital global adiantado, faz com que os lucros sejam pressionados para baixo. Nessa situação, o investimento se volta a meios alternativos à valorização, via produção de mercadorias. A busca pelo juro acaba se colocando em primeiro plano, negando a busca pelo lucro. Para Chesnais (1998b, p. 18), a partir da década de 1970, houve uma queda das taxas de investimento na economia mundial. Não sendo possível sustentar a valorização do capital, foi gerada uma capacidade ociosa no setor produtivo, o que é expressão da elevação extrema de capital constante na produção. O economista francês afirma que, nos últimos trinta anos, o capital procurou outros meios para superar seus limites. Esses meios estão nos mercados financeiros. Entende que a forma escolhida para superar os limites imanentes ao capital foi recorrer à criação de capital fictício. A criação de capital fictício é um dos instrumentos a que o capital recorre para se sustentar em um ambiente de crise e dificuldade de realizar valor. Mas a crise no setor financeiro da economia não quer dizer que não haja relação com o setor produtivo, local por excelência da criação de valor. Nesse sentido, em uma entrevista sobre a crise da Ásia no ano de 1998, Chesnais (1998a, p. 30) afirma: A gravidade do processo em curso está ligada ao fato de que, por trás de um episódio aparentemente financeiro, há na verdade uma crise econômica. Ela traduz a dificuldade crescente das empresas [...] para vender as mercadorias produzidas, atender os objetivos de rentabilidade fixados para os investimentos produtivos e, portanto, satisfazer os níveis de rendimentos aos quais os operadores financeiros se habituaram, sobretudo nos Estados Unidos ao longo desta década.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao tratar da questão da teoria de Marx acerca do fenômeno das crises capitalistas, visa-se tecer alguns comentários que se julga serem pertinentes para compreender o caminho teórico percorrido pelo pensador alemão, pois se julga sua teoria ser instrumento indispensável para a compreensão do capitalismo e seus fenômenos. A crítica à economia política de Marx dispensa o discurso da harmonia do mercado capitalista para demonstrar sua existência contraditória. O capital se movimenta de contradição em contradição, e esta se manifesta de diversas formas na realidade. Da análise da teoria de Marx depreende-se que as crises capitalistas são momentos de exacerbação das contradições do capital. É nos momentos de crise que fica visível a forma contraditória inscrita no modo de ser do capital, pois esses momentos revelam um conteúdo que realiza na realidade concreta as contradições de forma violenta. Mas as crises, além de expressarem as contradições internas do capital, aparecem como instrumento para solucionar momentaneamente a interrupção do movimento de valorização do capital. Assim, não são acontecimentos fortuitos e exógenos ao capital; são, pois, fenômenos inseparáveis da existência do modo de produção capitalista. Aparecem como manifestação concreta da interrupção da valorização e como solução momentânea para isso, mesmo que a solução dure por um tempo cada vez menor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Belluzzo, Luiz Gonzaga de Mello. Valor e capitalismo: um ensaio sobre a economia política. São Paulo: Brasiliense, 1980. Brenner , Robert. A crise emergente do capitalismo mundial: do neoliberalismo à depressão? Outubro, São Paulo, n. 3, p. 07-18, 1998. Chesnais, François. Crise da Ásia ou do capitalismo? ADUSP, São Paulo, n. 14, p. 29-36, 1998a. . Rumo a uma mudança total dos parâmetros econômicos mundiais dos enfrentamentos políticos e sociais. Outubro, São Paulo, n. 1, p. 07-32, 1998b. Grespan, Jorge. O negativo do capital. São Paulo: Hucitec, 1998. . A crise de sobreacumulação. Crítica Marxista, n. 29, p. 11-17, 2009. Hobsbawn, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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.  A crise do capitalismo e a importância atual de Marx. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2012. Marx, Karl. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico. São Paulo: DIFEL, 1980. . Para a crítica da economia política; salário, preço e lucro; o rendimento e suas fontes: a economia vulgar. São Paulo: Abril Cultural, 1982. . O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1983. . O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988. . Capítulo VI inédito de O Capital. São Paulo: Centauro, 2004. Mazzuchelli, Frederico. A contradição em processo. São Paulo: Brasiliense, 1985. Paulani, L. M. A atualidade da crítica da economia política. Crítica Marxista, São Paulo, n. 10, p.111-121, 2000. . A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos Avançados, v. 23, n. 66, 2009a. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2012. . Marx, as crises e a “desregulação financeira”. mai. 2009b. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2012.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.99-117

Emancipação humana e controle social da produção: os dilemas das classes trabalhadoras na perspectiva de superação do capitalismo Cesar Augustus Labre Lemos de Freitas* e João Claudino Tavares**

Resumo  O atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo tem construído uma realidade dramática para grande parte das classes trabalhadoras. O aumento do grau não só de exploração – representada pelo aumento da mais-valia relativa e absoluta –, mas também de espoliação – negação do direito do trabalhador ao pleno exercício das faculdades humanas – se expressa na dificuldade dos trabalhadores em controlar sua existência social. A luta de classes – conforme Marx e Engels assinalam em O manifesto comunista – ou termina em uma transformação revolucionária ou ocorre a destruição das classes em luta, o que, no atual estágio de desenvolvimento social, pode ser indicado como a expressão mais clara de um possível estágio de “barbárie”. Isso pode ser dito porque a perspectiva revolucionária tem se mostrado cada vez mais difícil de se concretizar, o que dificulta a superação da realidade predatória do capitalismo. No entanto, isso não significa sua impossibilidade, pois a perspectiva revolucionária se apresenta como uma possibilidade histórica que precisa ser transformada de potência em efetividade, e isso só pode acontecer no momento em que os trabalhadores se apropriarem das condições objetivas de sua reprodução social. Palavras-chave  Emancipação humana; luta de classes; barbárie.

* Professor doutor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), no Núcleo de Estudos e Pesquisas Marx-Engels. ** Professor doutor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), no Núcleo de Estudos e Pesquisas Marx-Engels.

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Human emancipation and social control of production: the dilemma of the working class in view of overcoming of capitalism

Abstract  The current stage of development of productive forces under capitalism has built a tragic reality for many of the working classes. The increase not only the degree of exploitation – represented by the increase of surplus value relative and absolute – but of spoliation – denial of the right of workers to the full exercise of human faculties – is expressed in the workers’ difficulty in controlling their social existence. The class struggle – as Marx and Engels pointed out in The Communist Manifesto – that ends in a revolutionary transformation occurs or the destruction of classes in struggle, which at the present stage of social development can be indicated as the clearest expression of a possible stage “barbarism”. This can be said, because the revolutionary perspective is proving increasingly difficult to achieve, making it difficult to overcome the reality of predatory capitalism. However, this does not mean it is impossible, because the revolutionary perspective is presented as a historic opportunity that must be transformed into effective power, and this can only happen when the workers ownership of the objective conditions of social reproduction. Keywords  Human emancipation; class struggle; barbarism.

INTRODUÇÃO O presente texto se estrutura no debate sobre a relação entre as condições de reprodução dos trabalhadores no século XXI e como elas podem potencializar ou não os elementos de superação da ordem social burguesa. Diante disso, os objetivos do texto são: estudar a ordenação das forças produtivas no atual momento histórico; construir as formulações que melhor elucidem a materialidade dos elementos da transição social e como eixo central da discussão; e identificar como essa transição pode efetivamente ocorrer para a construção do retorno à comunidade humana, ou seja, o homem se fazendo homem em seu processo de existência (Marx, 2007). Assim, considera-se que o debate posto a partir desses elementos se efetiva como chave para as Ciências Sociais, no sentido de sua utilização como instrumento de produção de uma nova realidade que supere a ordem social burguesa. TRABALHO E CAPITAL: A REPRODUÇÃO COLETIVA DA EXISTÊNCIA SOCIAL ENQUANTO ELEMENTO DE DOMINAÇÃO O desenvolvimento das forças produtivas, nos últimos dois séculos, criou os mecanismos necessários que permitem a potencialização de forças emancipa100

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tórias à sociedade do capital. Uma das formulações mais pertinentes sobre esse processo foi a utilizada por Hobsbawm (1994; 2000; 2001; 2002), que estabelece uma periodização, na qual estão identificados três elementos: a esperança (período da burguesia revolucionária), a construção da hegemonia burguesa (proletariado traído) e, finalmente, a desesperança (o dilema entre revolução ou barbárie), no século XXI. O primeiro pode ser identificado com o momento da derrubada da “velha ordem”, como a materialidade de uma “nova era” burguesa, sob as perspectivas da igualdade, da liberdade e da fraternidade. A cidade moderna expressa uma nova realidade que se desenvolveu sob o mito do trabalho livre. É outra forma de vida que rompe com a servidão e representa a chance de mobilidade social. Um espaço luminoso (Santos; Silveira, 2001) que absorveu, durante mais de dois séculos, levas de trabalhadores expropriados dos meios de produção. Eles esperavam encontrar na cidade o espaço de sua emancipação, mesmo porque, segundo Marx e Engels (2007), a “cidade burguesa” representa o ofuscamento e o esvaziamento do campo. O segundo elemento ocorre quando a burguesia perde seu caráter revolucionário (Hobsbawm, 2000). A ordem e consolidação do capitalismo se constituíram como elementos necessários à sobrevivência da burguesia como classe hegemônica. É o momento em que fica evidente que o que se apresenta como emancipação não se configura como mais do que elementos de fetiches produzidos pela ordem burguesa dominante (Marx, 2007). Contudo, ao mesmo tempo, ocorre a consolidação do proletariado como força potencialmente revolucionária, e este não consegue efetivar sua ação emancipatória, principalmente depois da derrota da Comuna de Paris, que se pretendia como espaço de consolidação da autonomia dos trabalhadores. Trata-se de um período que se caracteriza pela organização dos Estados Nacionais e do imperialismo, elementos que contribuíram para a expansão do capitalismo em esfera global. Nem mesmo o advento da revolução bolchevique e a “fundação” do Estado soviético impediram um gradativo processo de dissolução do potencial revolucionário do proletariado, mesmo porque a construção da burocracia estatal soviética estabeleceu uma “nova” classe dominante, que criou novos meios de opressão e consolidou atrasos nas lutas emancipatórias dos trabalhadores, em todo o mundo. O terceiro elemento a ser considerado está sintetizado no que Hobsbawm (2001) denomina como três grandes eras – “Era da Catástrofe”, “Era do “Ouro” e “Era do Desmoronamento” –, representando o século XX. As duas grandes guerras se apresentam como uma grande catástrofe para a humanidade. No pós-guerra, o

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desenvolvimento do fordismo e do keynesianismo favoreceu o processo de emancipação social e atrasou a perspectiva de emancipação humana (Marx, 2007). São instrumentos de ordenamento social que garantem avanços pontuais para uma parte “privilegiada” das classes trabalhadoras (Harvey, 1992). Nessa “era dos extremos” (Hobsbawm, 2001), deve-se considerar o atual momento de reestruturação produtiva do capital, que garante a total perda de hegemonia do proletariado sobre o conjunto das classes trabalhadoras, se é que se pode considerar que, em algum momento histórico, existiu de fato essa hegemonia. É um momento em que as classes trabalhadoras ganham uma nova forma ou mesmo uma “não forma”, pois se apresentam cada vez mais multifacetadas e precárias1. Os dilemas e as incertezas das classes trabalhadoras estão na ordem do dia, e suas indefinições quanto a que rumo tomar estão postas. É o momento da desesperança, em que a grande questão para os trabalhadores é qual caminho seguir. Segundo Hobsbawm (2001, p. 537): O Breve Século XX acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem dizia ter, soluções. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milênio em meio ao nevoeiro global que os cercava, os cidadãos do fin-de-siécle só sabiam ao certo que acabara uma era da história. E muito pouco mais.

É um período de incertezas, que ocorre principalmente pela dificuldade em se identificar, na transição do século XX para o século XXI, quem seria o sujeito revolucionário. O proletariado, identificado por Marx e Engels no século XIX, não se apresenta nas mesmas condições de condução desse processo no limiar do século XXI. O trabalho produtivo (produtor de mais-valia) não passa a ser mais uma característica apenas do proletariado, mas também de uma ampla parcela das classes trabalhadoras. Assim, o trabalhador coletivo (Marx, 1988a) é ampliado no atual momento histórico. Os trabalhadores se apresentam cada vez mais disformes e precarizados em sua situação, o que dificulta, inclusive, seu processo de reconhe1 De acordo com Marx (2004a), com o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, a força de trabalho se torna uma mercadoria cada vez mais dilapidada. Assim, considera-se que a precariedade da força de trabalho não se limita às condições dos contratos – se existe ou não uma relação formal –, mas sim pelo fato de que a força de trabalho no capitalismo está sendo, de forma cada vez mais geral, vendida por um valor abaixo de suas necessidades de reprodução. Isso se for considerado que, no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, as necessidades têm se ampliado, o que cria um grande hiato entre os desejos criados e sua capacidade de efetivação pelas classes trabalhadoras (Freitas, 2010).

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cimento como classe (classe para si). No entanto, as condições de existência do capitalismo no século XXI não podem ser consideradas novas. As “novas” condições do capitalismo são resultado de uma série de mutações que se ordenam no sentido de ampliar seu escopo de exploração (Harvey, 2004). CAPITALISMO E CONTRADIÇÕES: DILEMAS E DESAFIOS EM SEU PROCESSO DE SUPERAÇÃO A não novidade na existência do capitalismo se expressa em sua contradição como ordem social, identificada na condição de que a riqueza social só pode ser produzida de forma coletiva, sendo que sua apropriação ocorre de forma privada. Assim, o trabalho é um elemento sacralizado, enquanto a classe dominante vive exatamente não do “suor de seu rosto” (Marx, 1988b), mas sim de expropriar as forças físicas e mentais dos trabalhadores, agindo como verdadeiros vampiros que sugam trabalho vivo (Marx, 1988b). Com o desenvolvimento das forças produtivas, o novo surge como resultado da degeneração do velho. A ordem cria sua própria desordem, e a sociedade burguesa também cria os elementos de sua própria superação. Segundo Marx (1986a), a burguesia só pode continuar existindo se mantiver de forma contínua o revolucionamento das forças produtivas. Mas a burguesia cria também seus próprios coveiros, o que, de acordo Marx (1986b), seria uma função prioritária do proletariado como classe. Contudo, diante de todas essas mutações, o proletariado, além de não apresentar mais as mesmas condições de conduzir o processo revolucionário, tem uma parte que se aproxima cada vez mais de uma situação de “lumpemproletariado” (Freitas, 2010). E não é exatamente o “lumpemproletariado” que Marx identifica no século XIX, pois esse lumpemproletariado não está representado apenas nas prostitutas, nos trapaceiros e em uma gama de sujeitos desqualificados para as atividades produtivas (Marx, 1986b); de forma contrária, estes são cada vez mais reaproveitados na produção e valorização do capital. O incessante revolucionamento das forças produtivas como condição de existência da burguesia, segundo Marx (1986a), pode também transformar seu papel como classe dirigente. O desenvolvimento de novas relações de produção pode criar, como afirma Engels (1978; [s/d]), a não necessidade de uma classe que exista com a função de direção dentro da ordem societária.

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Segundo Engels ([s/d], p. 122-123): Graças precisamente a essa revolução industrial a fôrça produtiva do trabalho humano alcançou tal nível que, com uma divisão racional do trabalho entre todos, há a possibilidade – pela primeira vez desde que existem os homens – de produzir o suficiente, não só para assegurar um abundante consumo a cada membro da sociedade e constituir um considerável fundo de reserva, mas também para que todos tenham o suficiente repouso, de modo que tudo quanto oferece um valor verdadeiro na cultura legada pela história – ciência, arte, formas de convívio social, etc. – possa ser não somente conservado, mas transformado de monopólio da classe dominante em bem comum de toda a sociedade e, além do mais, possa ser enriquecido. E chegamos com isso ao ponto essencial. Quando a força produtiva do trabalho humano alcançar esse nível terá desaparecido todo pretexto para explicar a existência de uma classe dominante.

A análise de Engels leva ao seguinte questionamento: qual a importância de uma classe cada vez mais abstrata – se for considerado que a gerência do capital ocorre hoje pela predominância na sociedade de ações e não de capitalistas individuais – na condução da sociedade contemporânea? A resposta só pode ser dada de forma concreta, quando um processo de organização autônoma das classes trabalhadoras permitir uma autodeterminação de sua própria existência. Em outra passagem, Engels ([s/d], p. 123) ainda afirma: A razão última para defender as diferenças de classe foi sempre a de que era necessário existir uma classe que não se extenuasse na produção de sua subsistência diária a fim de dispor de tempo para preocupar-se com o trabalho intelectual da sociedade. Essa fábula, que encontrou até agora uma copiosa justificação histórica, teve as suas raízes cortadas pela revolução industrial dos últimos cem anos. A manutenção de uma classe dominante é cada dia mais um obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas industriais, assim como das ciências, da arte e, em particular, das formas elevadas de convívio social. Jamais houve palermas maiores que os nossos burgueses modernos.

O desenvolvimento das forças produtivas fetichiza também as relações de exploração, isso porque, aparentemente, o capital não se apresenta mais como elemento mediador das relações sociais, cabendo esse papel a produtores individuais supostamente autônomos.

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A pretensa “autonomização” das forças produtivas, no século XXI, constrói a ideia que o trabalho passou a ser um elemento dispensável para a humanidade. A redução nos níveis do assalariamento formal tem conduzido várias análises a sugerir uma nova ordem. Uma ordem pretensamente baseada não na autovalorização do capital, mas sim no atendimento imediato das necessidades e desejos dos produtores individuais (Freitas, 2010, p. 234).

Essas afirmações ajudam a compreender a necessidade das classes trabalhadoras em fortalecer o processo de autogestão, mas não como indicados pelo Sebrae2, pelo Cempre3 e demais organismos vinculados ao capital. É necessário desenvolver formas de autogestão em que os próprios trabalhadores se deem conta da capacidade de controle social da produção. Isso tem a ver com a produção de sua própria vida, e não com a vida como “meio de vida” (Marx, 2004a). As formas de reprodução da vida têm se degenerado cada vez mais; no entanto, são criados diversos fetiches, com o objetivo de os trabalhadores não se acreditarem como sujeitos históricos potenciais para a superação das relações mediadas pelo capital. Como estratégia para manter viva esta “fábula” (Engels, [s/d]), a ordem social burguesa, em suas diversas expressões, procura manter discursos e práticas que fortaleçam a noção de que é possível o convívio harmonioso entre classes, além de manter a aparência da necessidade de uma classe dirigente, que tem a “competência” que as classes subalternizadas não possuem. Assim, a ênfase no controle social da produção deve estar em contraposição a uma concepção de transformar o processo de organização em empresas que possam sobreviver no mercado. É uma perspectiva que parte do processo organizativo como algo de importância essencial, mas não para garantir a inserção competitiva no mercado, e sim superar o processo de exploração e espoliação que os trabalhadores sofrem na dinâmica reprodutiva do capitalismo. Por outro lado, as propostas que privilegiam a luta (acirramento dos conflitos de classe) como forma de garantir ganhos para os trabalhadores têm se apresentado cada vez menos atrativas. As diversas 2 Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. 3 O Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre) é uma associação que trabalha com reciclagem dentro do conceito de gerenciamento integrado do lixo. Fundado em 1992, o Cempre é mantido por empresas privadas de diversos setores que procuram divulgar a ideia da reciclagem/ coleta seletiva de lixo como um aspecto que representa uma emancipação do trabalhador, não levando em consideração as condições estruturais negativas para o trabalhador na reciclagem. Nos últimos anos, as entidades empresariais têm se esforçado no convencimento do importante papel que a reciclagem possui no sentido de garantir um desenvolvimento sustentável com base em princípios de responsabilidade ambiental.

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opções que têm sido tomadas, principalmente pelos setores mais organizados, são as políticas conciliatórias de classe. A ideia hegemônica que tem se estabelecido é a necessidade de conciliação de classes como um pressuposto básico para a construção de um amplo entendimento social, o que esconde o caráter espoliativo das relações de trabalho no capitalismo. Por isso, as formas tradicionais de organização das classes trabalhadoras têm se mostrado cada vez mais incapazes de garantir os elementos necessários de superação da realidade exploradora do capital. Isso não quer dizer também que essas formas devam ser abandonadas ou desprezadas, mas sim que o sentido de sua luta deve ser o da construção identitária de classe e dos elementos que permitam a consecução da autonomia dos trabalhadores. As organizações das classes trabalhadoras devem partir do pressuposto da construção de um conjunto de ações que garantam que o saber cotidiano – a apreensão da realidade com todas as situações que lhes são particulares – seja um elemento formador e educador em que se estabeleçam as condições de formação da identidade de classe. Gramsci (1999), ao pensar essa relação, considera que um dos aspectos mais importantes no processo de construção da realidade é a sinergia entre o sentir e o saber, que se completam de forma dialética. Na concepção do movimento, esse processo se apresenta diretamente como resultado da percepção da realidade construída na práxis cotidiana. O elemento popular “sente”, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende e, menos ainda, “sente”. Os dois extremos são, portanto, por um lado, o pedantismo, o filisteísmo, e, por outro, a paixão cega e o sectarismo [...]. O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história, com uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada, com o “saber”; não se faz política-história sem essa paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação (Gramsci, 1999, p. 221-222).

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A compreensão que Gramsci tem do processo é de que a sinergia entre o momento de abstração e ação é necessária, no sentido de construção de uma práxis transformadora que permite que a consciência se desenvolva como resultado da materialidade das ações. A construção de uma práxis revolucionária exige, assim, uma apreensão da realidade que consiga apreender a totalidade da dinâmica da reprodução social, e não apenas seus aspectos parciais, pois só assim os trabalhadores conseguem garantir as condições objetivas de superação da sociedade do capital. A SUBMISSÃO DA CONSCIÊNCIA ÀS NECESSIDADES DE REPRODUÇÃO: O NÃO DOMÍNIO DE SUA EXISTÊNCIA PELAS CLASSES TRABALHADORAS O entendimento até aqui é de que a reprodução social no capitalismo produz necessariamente formas de consciência fetichizadas. Assim, na formação da consciência, devem estar presentes os elementos que expressam a materialidade dessa luta por moradia, escolas e creches para as crianças, além de alimentação, transporte e lazer. No entanto, nessas necessidades, devem ser percebidos os elementos de não emancipação dos trabalhadores, pois a superação só pode ocorrer no momento em que surgirem não como resultados de “conquistas”, mas sim como elementos de humanização das relações sociais. Como forma de garantir a não transição para uma forma humanizada de reprodução social, o capitalismo como ordem hegemônica reproduz as condições de não efetivação de organização das classes trabalhadoras. A organização é até estimulada, mas um processo se trata de organização que obedeça aos limites do capital. Essa realidade condiz com um aspecto “flexível” da produção social (Harvey, 1992) que permitiu definir uma nova organização espacial do trabalho. Foram criadas as perspectivas para uma série de novas atividades complementares ao processo industrial, mas aparentemente inseridas em outros setores da economia. A flexibilidade determina os ritmos de acumulação do capital, pois é um momento histórico que se apresenta como necessariamente flexível para facilitar a reprodução capitalista em escala ampliada. Harvey (1992) define esse momento do capitalismo como de “acumulação flexível”, quando afirma: Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores

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de produção inteiramente novos, novas maneiras de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional [...]. Ela também envolve um movimento que chamarei de “compressão espaço-tempo” (ver Parte III) no mundo capitalista – os horizontes temporais de tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda nos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado (Harvey, 1992, p. 140).

As atividades de trabalho contemporâneas possuem várias características apontadas por Harvey. Com relação ao tempo, elas se apresentam de duas formas: na velocidade que os trabalhadores têm de impor a seu ritmo de trabalho – apesar de formalmente, em muitos casos, não ter nenhum patrão obrigando a isso –, bem como seu material de trabalho é resultado direto da redução do tempo de vida das mercadorias. A compressão espaço-temporal pode significar também maior desgaste das mercadorias produzidas, aliado à intensidade na redução do tempo de circulação. Essa nova realidade faz com que os trabalhadores tenham um domínio cada vez menor não apenas sobre seu ritmo de produção, mas essencialmente sobre seu ritmo de vida. Para que essa realidade seja efetivamente produzida, o capitalismo como ordem social tem como um de seus pilares fundamentais sua capacidade de se tornar plenamente aceitável por todas as classes sociais. No imaginário social, oferecem uma ampla gama de possibilidades de evolução, principalmente por ser uma formação social com base na perspectiva de mobilidade. Essas condições se fundamentam principalmente nos conceitos de liberdade e igualdade, que se estabelecem como pilares fundamentais da sociedade capitalista. No entanto, o conceito de liberdade no capitalismo não se efetiva no pleno exercício das faculdades humanas, mas sim no que Marx (1988b, p. 252) denomina como duplo sentido, quando afirma: Trabalhadores livres no duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos, os servos etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exemplo, o camponês economicamente autônomo, etc., estando, pelo contrário, livres, soltos e desprovidos deles.

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Além disso, a igualdade pressuposta no capitalismo está diretamente ligada à capacidade dos indivíduos de fazer contratos. As duas classes fundamentais (capitalistas e trabalhadores) são portadoras de mercadorias: meios de produção e força de trabalho. A igualdade se efetiva por meio dos contratos entre iguais – no sentido de que são portadores de mercadorias – que criam o mecanismo necessário para que ocorra a produção social. Surge um conjunto imenso de necessidades criadas – resultado das possibilidades apresentadas para todos – que precisam ser atendidas, e só o mercado existe como principal elemento mediador. As necessidades socialmente produzidas são ampliadas com o desenvolvimento do capitalismo, pois a intensificação da divisão social do trabalho (um aspecto determinante para o aumento da produtividade) cria o trabalhador unilateral, mas com necessidades multiplicadas (Marx, 1988a). Segundo Heller (1978, p. 23): El desarollo de la división del trabajo de la productividad crea, junto com la riqueza material, también la riqueza y la multiplicidad de las necesidades; pero las necesidades se reparten siempre em virtud de la división del trabajo: el lugar ocupado al seno de la división del trabajo determina la estructura de la necessidad o al menos sus límites. Esta contradicción alcanza su culminación en el capitalismo, donde llega a convertirse [como veremos] en la maxima antinomia del sistema4.

A antinomia citada por Heller é de fundamental importância para compreender a relação entre necessidades e produtividade no capitalismo. O trabalhador procura se esforçar ao máximo, como forma de garantir necessidades que estão cada vez mais longe e difíceis de serem atendidas. Por outro lado, o trabalhador se esforça também, muitas vezes, para atender as necessidades mais simples e básicas. A realidade socialmente produzida no capitalismo cria uma relação ao mesmo tempo de expectativa e desânimo por parte dos indivíduos. Expectativa, pois, desde o momento em que se tornam sociabilizados, está presente nos indivíduos uma condição que, em algum momento de suas vidas, poderão alcançar. Ao mesmo 4 “O desenvolvimento da divisão do trabalho e da produtividade cria, junto com a riqueza material, também a riqueza e a multiplicidade de necessidades; mas as necessidades se repartem sempre em virtude da divisão do trabalho: o lugar ocupado no seio da divisão do trabalho determina a estrutura da necessidade ou ao menos seus limites. Esta contradição alcança sua culminação no capitalismo, quando chega a converter-se [como veremos] na máxima antinomia do sistema” (em livre tradução).

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tempo, ocorre também desânimo e frustração, pois, ao longo de seu processo de desenvolvimento e inserção na sociedade, não conseguem atender as expectativas que lhes foram socialmente impostas. A situação das classes trabalhadoras se pauta por um “vir a ter” e um “vir a ser”, o que alimenta, inclusive, o processo de estabilidade social, e isso precisa ser constantemente introjetado no imaginário social. O trabalho aparece, então, como um elemento de importância fundamental na construção desse processo, pois é criado o imaginário de que “quanto maior esforço”, maiores as chances de conquistas. Para o trabalhador, sua inserção no mercado de trabalho e um necessário aumento de sua produtividade aparecem como formas únicas de atingir seus objetivos. O trabalhador se entrega ao máximo pelo mínimo necessário à sua sobrevivência, porque as necessidades dos trabalhadores são estabelecidas pelos limites das necessidades naturais (Smith, 1988). Entretanto, Heller (1978) relaciona as necessidades naturais com determinado limite para a satisfação das necessidades sociais. Heller (1978, p. 33) afirma: A nuestro critério las “necesidades naturales” no constituyen um conjunto de necesidades, sino um concepto límite: límite diferenciable según las sociedades – superado en cual la vida humana ya no es reproducible como tal; dicho en otras palabras, el límite de la simple existencia (la muerte masiva de hambre en la India o en el Pakistán expressa precisamente esa superación). Seria puro aristocratismo – en nuestro mundo al menos – eliminar esse concepto límite de la discusión sobre las necesidades. Por ello no hablaré de “necesidades naturales” sino de límite existencial para la satisfación de las necesidades.5

O principal conflito que se estabelece no capitalismo, pelo lado do capital, é garantir o maior tempo de trabalho excedente; pelo lado dos trabalhadores, é limitar ao máximo esse tempo (Marx, 1985, 1988a, 2004b; Marx; Engels, 2010,

5 “A nosso critério, as ‘necessidades naturais’ não constituem um conjunto de necessidades, mas um conceito limite: limite diferenciado segundo as sociedades – superado em qual a vida humana já não é reproduzível como tal; dito em outras palavras, o limite da simples existência (a morte massiva de fome na Índia ou no Paquistão expressa precisamente essa superação). Seria puro aristocracismo – em nosso mundo, ao menos – eliminar esse conceito limite da discussão sobre as necessidades. Por isso não falarei de ‘necessidades naturais’, mas sim do limite existencial para a satisfação das necessidades” (em livre tradução).

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2011). De forma mais ampla, pode-se considerar isso como a disputa pelo domínio do tempo, o que aparece como algo essencial para a ordem socialmente estabelecida. Sobre isso, Dobb (1983, p. 186) afirma: Nos velhos tempos, a produção era essencialmente uma atividade humana, em geral individual em seu caráter, no sentido de que o produtor trabalhava em seu próprio tempo e à sua própria maneira, independentemente de outros, enquanto as ferramentas ou os implementos simples que usava pouco mais eram do que uma extensão de seus próprios dedos.

Essa relação com o tempo está diretamente relacionada com a produção de suas próprias necessidades, pois o desenvolvimento capitalista não tira do produtor apenas seus meios de produção. A formação social burguesa expropria também a capacidade plena que ele tem de decidir sobre suas próprias condições de existência. Em formas sociais não capitalistas, o sobretrabalho se caracteriza principalmente pela obtenção de valor útil para os proprietários dos meios de produção, enquanto no capitalismo o objetivo prioritário passa a ser produção de valor de troca. Por isso, no capitalismo existe o impulso para o prolongamento da jornada de trabalho, e a capacidade de sobrevivência do trabalhador está justamente no fato de sua capacidade em se inserir no tempo do capital. Deve se inserir no tempo da produção, pois a medida de sua existência pautar-se-á pela medida de sua produtividade. Por fim, é relevante ressaltar uma citação de Marx (2003, p. 48-49), quando afirma: Considerar unicamente a quantidade de trabalho como medida de valor, sem ter em conta a qualidade, supõe, por sua vez, que o trabalho simples se converteu em fulcro da indústria. Implica que os trabalhos se equiparam mediante a subordinação do homem à máquina. Ou pela divisão extrema do trabalho; que os homens se esfumam ante o trabalho; que o balançar do pêndulo se tornou a medida exata da atividade relativa de dois operários, do mesmo modo que é o da velocidade de duas locomotivas. Então, é preciso dizer que uma hora de um homem equivale à hora de outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é nada; é quando muito a carcaça do tempo.

Essa reflexão de Marx ajuda a compreender que a relação no capitalismo não se estabelece mais entre homens, mas sim entre os diversos tempos, entre as

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diversas formas de concorrência que imprime a humanidade. O tempo aparece como um deus ex machinna, ou seja, algo que está fora de seu controle, mas que se apresenta como elemento determinante de sua existência. O desenvolvimento capitalista faz com que o trabalhador perca o domínio sobre as condições de sua própria existência, o que significa uma total submissão às necessidades do capital. Para Marx (1975, p. 65), em formas pré-capitalistas, “o indivíduo relaciona-se consigo mesmo como senhor das condições de sua realidade”. No entanto, essa relação se dissolve com o pleno desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo, o que determina sua completa submissão às necessidades reprodutivas do capital. Para entender todo o processo descrito nos parágrafos anteriores, é de fundamental importância entender também como têm ocorrido as mutações nos “mundos” do trabalho. Uma das alternativas mais viáveis encontradas pelo capitalismo no plano global tem sido a de intensificar a mobilidade das classes trabalhadoras de um ramo de produção para outro. Entretanto, isso não é um fenômeno novo no capitalismo, mas faz parte de diversos movimentos do capital, no sentido de ampliar seu processo de valorização. Marx (1988b, p. 54) identifica esse processo, quando afirma: Os fatos verdadeiros, transvertidos pelo otimismo econômico, são estes: os trabalhadores deslocados pela maquinaria são jogados da oficina para o mercado de trabalho aumentando o número de forças de trabalho disponíveis para a exploração capitalista [...]. Assim que a maquinaria libera parte dos trabalhadores até então ocupados em determinado ramo industrial, o pessoal de reserva também é redistribuído e absorvido em outros ramos de trabalho, enquanto as vítimas originais em grande parte decaem e perecem no período de transição.

Essas constantes “liberações” das classes trabalhadoras induzem à criação de setores que possam absorvê-las. Isso explica uma série de novas atividades que apareceram nas últimas décadas como atividades que têm se tornado predominantes no capitalismo. São atividades que aparentemente não estão mais diretamente submetidas ao controle do capital industrial. É apresentada, então, uma série de conclusões de que nesses setores estaria ocorrendo um movimento de superação das relações capitalistas. Essa confusão ocorre pelo fato de uma série de atividades não representar, de forma aparente, uma das condições fundamentais da produção capitalista: a formação de valor.

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Diante dessa nova realidade dos “mundos” do trabalho, uma questão merece atenção especial: quais as condições objetivas das classes trabalhadoras e, em especial, do proletariado (seja da cidade, seja do campo) de garantir não só as condições mínimas de sua existência social, mas, principalmente, os instrumentos necessários ao processo de superação da sociedade do capital? Essa questão se torna pertinente, se for considerado que as novas faces dos “mundos” do trabalho se materializam principalmente em um processo de fragmentação. Isso constrói grandes barreiras ideológicas e materiais, no sentido de não permitir uma construção identitária de classe. No entanto, Kosik (1985, p. 182) afirma que “no processo de trabalho se revela ao mesmo tempo a especificidade do ser humano”. Afirmando essa característica do trabalho, Lessa (2007, p. 142) indica: O trabalho é, pois, a categoria fundante do mundo dos homens porque, em primeiro lugar, atende à necessidade primeira de toda sociabilidade: a produção dos meios de produção e de subsistência sem os quais nenhuma vida social poderia existir. Em segundo lugar, porque o faz de tal modo que já se apresenta, desde o seu primeiro momento, aquela que será a determinação ontológica decisiva do ser social, qual seja, a de que, ao transformar o mundo natural, os seres humanos também transformam a sua própria natureza, o que resulta na criação incessante de novas possibilidades e necessidades históricas, tanto sociais como individuais, tanto objetivas quanto subjetivas.

O trabalho nessa sua característica se apresenta também como uma metamorfose geral, em que é criado o elemento novo da realidade (Kosik, 1985). Isso se torna um elemento importante para o debate, porque todo esse processo de fragmentação das classes trabalhadoras nas últimas décadas tem criado algumas confusões conceituais. Para garantir os níveis de exploração, é de fundamental importância que não se construa uma solidariedade orgânica das classes trabalhadoras. É uma situação que garante a construção de um discurso em que o trabalho perde a característica de elemento na organização da vida em sociedade. A defesa da perda não se efetiva apenas na centralidade do trabalho, mas nele como elemento fundante da vida social (Schaff, 1990; Gorz, 1987, 2003; Habermas, 1987), desconsiderando dois aspectos: primeiro o caráter duplo do trabalho, que se apresenta em sua forma concreta e abstrata (Marx, 1988a); e a manutenção da relação de compra e venda da força de trabalho, aliada a outras formas de subor-

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dinação do trabalho ao capital. Essas são condições básicas para a dinâmica da produção social capitalista. A multiplicidade de atividades criadas representa tão somente a ampliação e não redução das classes trabalhadoras. Contudo, essa ampliação se apresenta de forma cada vez mais precária, vulnerável e multifacetada, como resultado de um intenso processo de dispersão espacial (Harvey, 1992). Além disso, não se pode deixar de citar que, no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, tem surgido uma série de atividades tipicamente não capitalistas, as quais estão fundamentadas nos negócios familiares, trabalhos domésticos e artesanal ou mesmo na formação de “economias subterrâneas” (Harvey, 1992, p. 145). Sobre a absorção de formas não capitalistas no circuito do capital – no capítulo que descreve sobre a grande maquinaria –, Marx (1988b) já a identificava como uma forma necessária de garantir a perpetuação no processo de acumulação. A exploração de forças de trabalho baratas e imaturas torna-se, na manufatura moderna, mais desavergonhada do que na fábrica propriamente dita [...]. Ela se torna ainda mais desavergonhada no assim chamado trabalho domiciliar do que na manufatura, porque a capacidade de resistência dos trabalhadores diminui com sua dispersão; toda uma série de parasitas rapaces se coloca entre o trabalhador propriamente dito e o trabalhador, o trabalho domiciliar luta em toda parte com empresas mecanizadas ou ao menos manufatureiras no mesmo ramo de produção, a pobreza rouba do trabalhador as condições mais necessárias ao trabalho, como espaço, luz, ventilação etc.[...] (Marx, 1988b, p. 70).

Todas essas situações colocadas nos parágrafos anteriores demonstram um dos aspectos de inserção das classes trabalhadoras na dinâmica produtiva do capitalismo. Marx identifica como um intenso processo de pauperização das classes trabalhadoras que acompanha o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo. Além disso, no atual momento do capitalismo, as formas de organização das classes trabalhadoras se alteram significativamente, porque, segundo Harvey (1992, p. 145): As formas de organização da classe trabalhadora (como os sindicatos), por exemplo, dependiam basicamente do acúmulo de trabalhadores na fábrica para serem

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viáveis, sendo peculiarmente difícil ter acesso aos sistemas de trabalho familiares e domésticos.

Levantando também a um importante questionamento sobre o caráter e alcance das mudanças ocorridas no capitalismo entre os séculos XIX e XXI, Harvey (2004) não nega um aspecto qualitativamente novo na estrutura social capitalista, mas o autor afirma que, no fundamental das relações capitalistas, houve um processo de recrudescimento da exploração do trabalho vivo. Considera ainda como elemento pertinente para essa questão um amplo processo de mercantilização das relações socialmente estabelecidas. O capitalismo em sua dinâmica totalizadora se aproveita de forma conjuntural de tudo e de todos para garantir sua reprodução. Sobre essas mudanças no capitalismo, Harvey (2004, p. 98) afirma: Assim sendo, houve uma transformação qualitativa a partir dessas mudanças quantitativas? Minha própira resposta é um “sim” qualificado a essa pergunta, seguido imediatamente da asserção de que não houve uma revolução fundamental do modo de produção e das relações a ele vinculadas e de que, se há alguma tendência real qualitativa, seu rumo é no sentido da reafirmação dos valores capitalistas do início do século XIX associada a uma inclinação típica do século XXI no sentido de jogar todos (e tudo que possa ser trocado) na órbita do capital, ao mesmo tempo que se tornam grandes segmentos da população mundial redundantes no tocante à dinâmica básica da acumulação de capital.

Nessa afirmação, o que mais chama atenção é o caráter de redundância de parte da população mundial. O capitalismo em sua dinâmica totalizadora se aproveita, de forma conjuntural, de tudo e de todos para garantir sua reprodução. Por isso, considera-se aqui que vivemos em um momento histórico onde as grandes incertezas e os dilemas, como afirma Hobsbawm, estão dificultando cada vez mais as condições de efetivação das lutas para superar a dinâmica de exploração. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das análises elencadas nos parágrafos anteriores, algumas breves considerações merecem ser feitas. Primeiramente, para a efetivação do processo de superação da sociedade burguesa, é essencial a construção também de uma identidade de classe, fundante no sentido de fazer com que os trabalhadores consigam se perceber em sua condição. Assim, poderá ser afirmada novamente a

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existência de uma classe trabalhadora, e não de classes trabalhadoras. Em segundo lugar, os trabalhadores devem se apropriar efetivamente dos elementos potenciais de superação da sociedade do capital, elementos que se materializam com o desenvolvimento das forças produtivas (Marx, 1988b, Marx; Engels, 2010, 2011). No entanto, é necessário, segundo Harvey (2004), a construção de “espaços de esperança” que permitam a edificação de alternativas para essa possível superação. Diante disso, como forma de levantar elementos para os debates que envolvam os futuros e destinos dos trabalhadores, é necessária uma reflexão com base em uma análise crítica que não seja desconectada de uma práxis que se coloque como revolucionária. Essa crítica deve dar conta de construir os elementos necessários que possam romper com a perspectiva de aprofundamento da barbárie. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Dobb, Maurice. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas.) Engels, Friederich. Classes sociais necessárias e supérfluas. Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo, Editora Ciências Humanas Ltda., n. 3, 1978. . Como a burguesia resolve o problema da habitação. In: Marx, Karl; Engels, Friederich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [s/d]. Freitas, Cesar Augustus Labre Lemos de. A reciclagem e sua dinâmica reprodutora de uma situação de lumpemproletariado. 249 p. 2010. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2010. Gorz, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. . Metamorfoses do trabalho. São Paulo: Annablume, 2003. Gramsci, Antônio. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. Habermas, Jurgen. Teoria de la accion comunicativa. Madri: Taurus, 1987. Harvey, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. . Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Heller, Agnes. Teoria de las necesidades em Marx. Barcelona: Peninsula, 1978. Hobsbawm, Erich. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1994. . A era do capital: 1848 a 1875. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. . Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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. A era dos impérios: 1875-1914. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Kosik, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Lessa, Sérgio. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez Editora, 2007. Marx, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 1975. . Salário, preço e lucro. 4. ed. São Paulo: Global Editora, 1985. . Manifesto do partido comunista. São Paulo: Editora Novos Rumos, 1986a. . O dezoito Brumário e Cartas a Kugelman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986b. . O capital: crítica da economia política: livro primeiro: o processo de produção do capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. (Coleção Os Economistas.) v. I. Tomo I (prefácios e capítulos I a XII.) . O capital: crítica da economia política: livro primeiro: o processo de produção do capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. (Coleção Os Economistas.) v. I. Tomo II (capítulos XIII a XXV.) . Miséria da filosofia: resposta a filosofia da miséria do senhor Proudhon (1847). São Paulo: Centauro Editora, 2003. . Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004a. . Capítulo VI inédito de o capital. São Paulo: Centauro, 2004. . Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2007b. . Para a crítica da economia política: manuscrito de 1861-1863. São Paulo: Autêntica, 2010. Cadernos I a V: terceiro capítulo – O capital em geral. . Grundrisse: manuscritos econômico-filosóficos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial; Rio de Janeiro: Ed da UFRJ, 2011. Santos, Milton; Silveira, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001. Schaff, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Unesp, 1990. Smith, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Economistas.)

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Sindicalismo, superpopulação relativa e formas de luta no Brasil e na Argentina Davisson C. C. de Souza*

Resumo  O artigo analisa a relação entre o movimento sindical e os desempregados no Brasil e na Argentina, de 1990 a 2002, a partir de uma reflexão sobre as duas principais centrais sindicais de cada país: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical (FS), no caso brasileiro; a Confederación General del Trabajo (CGT) e a Central de los Trabajadores de la Argentina (CTA), no caso argentino. Como marco teórico, parte principalmente da teoria da superpopulação relativa de Marx e analisa como os vínculos entre o sindicalismo e os trabalhadores sem emprego contribuem para explicar, de maneira mais ampla, a unidade e fratura entre o exército de operários ativo e o exército de operários de reserva. Palavras-chave  Sindicalismo; desemprego; movimento de desempregados; superpopulação relativa; Brasil e Argentina.

Syndicalism, relative overpopulation and forms of struggle in Brazil and Argentina Abstract  The article analyses the relationship between the unions and the unemployed in Brazil and in Argentina from 1990 to 2002. It bases in a reflection about the two main unions of each country: the Central Única dos Trabalhadores (CUT) and the Força Sindical (FS), in the case of Brazil; the Confederación General del Trabajo (CGT) and the Central de los Trabajadores de la Argentina (CTA), in the case of Argentina. It parts of the relative overpopulation theory of Marx and analyzes how the links between trade unionism and unemployed workers contribute to explain, so broader unity and fracture between the army of workmen active and reserve army of workers. Keywords  Trade unionism; unemployment; unemployed movements; relative overpopulation; Brazil and Argentina.

* Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados da tese de doutorado precedente, em que foi estudada a relação entre sindicalismo e desempregados no Brasil e na Argentina de 1990 a 2002 (Souza, 2010). Nesta pesquisa, observaram-se as ações e representações das principais centrais sindicais de cada país: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical (FS), no caso brasileiro; a Confederación General del Trabajo (CGT) e a Central de los Trabajadores de la Argentina (CTA), no caso argentino. O marco teórico foi construído especialmente a partir da tese da superpopulação relativa desenvolvida por Engels, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Engels, 2008), e aprofundada por Marx no capítulo 23 de O capital (Marx, 1982). Assim, o vínculo entre o movimento sindical e os trabalhadores sem emprego foi pensado a partir de um recorte mais amplo: a relação de unidade e fratura entre o exército de operários ativo (EOA) e o exército de operários de reserva (EOR). A comparação entre o Brasil e a Argentina ocorreu a partir de uma pesquisa de campo que contou com quarenta e oito entrevistas com sindicalistas e dirigentes de movimentos de desempregados, além da leitura de documentos de fonte primária (especialmente boletins, revistas e resoluções de congressos) das quatro centrais citadas. O exercício proposto no presente texto é apresentar de maneira sintética as principais reflexões feitas acerca das duas questões centrais da tese: (i) como compreender a relação entre o movimento sindical e os desempregados, construída nos dois países no período estudado; e (ii) de que maneira esse vínculo expressou a unidade e fratura entre o EOA e o EOR. Ao longo da tese, buscou-se situar essas perguntas em um quadro no qual foram considerados, entre outros elementos, a estrutura social, a correlação de forças, as experiências de luta e as tradições organizativas das formações sociais estudadas1. Serão revistos alguns tópicos que contaram com maior fundamentação no material de pesquisa: (i) a ideologia político-sindical predominante nas centrais analisadas e o modelo de relação do sindicalismo com o Estado e a classe capitalista; (ii) a posição adotada pelas entidades diante do neoliberalismo; (iii) suas práticas diante da estrutura sindical; (iv) os interesses imediatos de sua base; (v) e os interesses organizacionais de suas cúpulas. Em seguida, será realizada uma

1 Alguns elementos desse quadro analítico foram desenvolvidos em Souza (2009a).

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discussão sobre como esses elementos possibilitam uma reflexão mais geral sobre as formas de luta da superpopulação relativa nos dois países. SINDICALISMO E DESEMPREGADOS NO BRASIL E NA ARGENTINA As práticas das centrais podem ser explicadas, em parte, por sua ideologia político-sindical, esta entendida em seu vínculo com a correlação de forças, as experiências históricas e as tradições do movimento operário e sindical de sua formação social. No Brasil, o tipo de política desenvolvida pelas centrais diante dos desempregados foi o resultado e um dos principais motores das transformações político-ideológicas mais gerais em direção a um sindicalismo “propositivo” e “de serviços” (autodenominado “cidadão”), posição que se tornou hegemônica ao longo do período estudado. As propostas de representação dos desempregados levadas a cabo pelas entidades foram condizentes com essa perspectiva. No caso cutista, essa orientação conviveu com a tradição classista e combativa mantida parcialmente (mas não isenta de contradições) por algumas correntes minoritárias2. Contudo, o sindicalismo propositivo possui uma matriz histórica no “democratismo”, presente desde a formação da CUT, especialmente no setor “sindicalista” que originou a Articulação Sindical, setor majoritário da central. Essa ideologia se fundamenta, entre outros aspectos, na política institucionalista de “atuar por dentro” do Estado para transformá-lo. No caso da FS, o propositivismo tem sua raiz na tradição assistencialista e no governismo participacionista da central, tendência já expressiva em seus sindicatos mais importantes, como os metalúrgicos de São Paulo, antes da fundação da central. Por último, é necessário considerar que, embora tenha negado aspectos do trabalhismo populista, adaptando-o à sua adesão ao neoliberalismo, a FS preservou seu elemento básico: a busca da aliança capital-trabalho mediada pelo Estado como condição necessária para desenvolver e modernizar as relações capitalistas3. Nesse contexto, é possível afirmar que a utilização dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e as Câmaras Setoriais expressaram as aspirações mais gerais das correntes hegemônicas do sindicalismo brasileiro. No caso cutista, foi, ademais, um exercício para a participação de seus quadros no aparelho estatal, o que se concretizou no nível federal após a eleição de Lula, em 2002. 2 Sobre a prática diante do desemprego realizada por sindicatos ligados a correntes cutistas minoritárias nos anos 1990 e 2000, consultar, por exemplo, o caso dos metalúrgicos de Campinas em Souza (2005). 3 Sobre a ideologia político-sindical da Força Sindical, consultar Trópia (2009).

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Na Argentina, o tipo de política levada a cabo pelas centrais também possui relativa correspondência com as divisões político-ideológicas presentes no sindicalismo do país, ainda que, em seu conjunto, as entidades e os setores internos analisados se enquadrem em diferentes correntes do peronismo. A ala majoritária da CGT se fundamenta no participacionismo-propositivo, matriz ideológica que caracteriza a ala hegemônica do movimento sindical no país desde a formação dessa central, em 1930. Esse setor se pauta, fundamentalmente, na política de “concertação”, noção historicamente mais difundida no sindicalismo argentino do que no brasileiro, por ser constitutivo do “justicialismo”4. A partir dessa prática, os sindicatos são considerados legítimos interlocutores de um “pacto social”, construído em torno de uma aliança entre os trabalhadores e os capitalistas, com a intermediação do Estado, que, por sua vez, deve incorporar quadros de dirigentes em seu aparelho administrativo. Destacam-se a seguir dois relatos que sintetizam como o movimento sindical no país concebe a ideologia política peronista: o primeiro, de um dirigente do setor telefônico, ligado à CTA, segundo o qual “(...) o movimento peronista [representa] a maioria do sindicalismo na Argentina, e essa ideologia do peronismo [é uma] ideologia de conciliação de classes, porque é a participação na combatividade” (E15); o segundo, de um dirigente bancário, vinculado à CGT: A Argentina teve acesso, a partir da segunda metade da década de 40 com o peronismo, a políticas de pleno emprego. E isso fortaleceu o movimento sindical, que teve um importante grau de participação na direção do Estado [...]. Esse primeiro governo peronista [o entrevistado se refere ao período de 1946 a 1955] marcou a consciência do trabalhador argentino e determinou o nível de confrontação que teve o movimento sindical argentino com todas as ditaduras de 1955 em diante (E2).

A CTA e os setores minoritários da CGT, como o Movimiento de los Trabajadores Argentinos (MTA), que atuou como corrente dissidente nos anos 1990, correspondem às frações sindicais mais ligadas a um sindicalismo confrontacionista, sem referência a estratégias classistas, já que seu horizonte político não é a superação do capitalismo. 4 Referente ao Partido Justicialista (PJ), que, juntamente com a CGT, são as principais entidades do movimento peronista. 5 Os entrevistados serão citados a partir da referência E1, E2, E3..., conforme a ordem em que aparecem no texto.

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Nesse sentido, poder-se-ia argumentar que a organização dos desempregados para a luta levada a cabo pela CTA6 foi a concretização de sua ideologia combativa, pautada na noção de que os trabalhadores devem se mobilizar para obter mais conquistas. Esse argumento, porém, não valeria para o caso do MTA, o que poderia ser explicado pelo fato de que o modelo de relação com o Estado nessa corrente também se expresse na fórmula peronista de busca de aliança dos trabalhadores com o poder político e econômico. Entretanto, como essa também é uma característica presente na CTA, a questão não se esgota nesse elemento. Por ora, pode-se afirmar que o sindicalismo praticado pela CGT no período estudado foi a consubstanciação de sua tendência concertacionista, sustentado pela busca de participação institucional no aparelho estatal e na aliança com o partido político no governo, levado ao paroxismo, quando o PJ está no poder, mas que não exclui o pacto social com a oposição. A análise da ideologia político-sindical das centrais leva à discussão de dois problemas nos casos analisados. No Brasil, as correntes classistas e combativas da CUT não organizaram os desempregados a partir de uma luta com caráter massivo e nacional, embora defendessem a necessidade de mobilização do conjunto da classe trabalhadora. Na Argentina, o MTA, setor confrontacionista da CGT que conformou uma dissidência interna na central, ainda que tenha atuado conjuntamente com a CTA, também não organizou esse segmento dos trabalhadores. Vejamos que outros fatores podem explicar as ausências presentes nos dois casos. No Brasil, a CUT, a maior central do país, opôs-se ao neoliberalismo. No caso argentino, a ala majoritária da CGT se constituiu como a principal base de apoio sindical do governo de Menem, quando este aplicou a plataforma neoliberal. Logo no início do período analisado, surgiram setores sindicais opositores nos dois países. No caso brasileiro, apareceu a FS para se contrapor à CUT e apoiar a política de Collor. No caso argentino, de dentro da CGT surgiram dissidências internas (CGT-Azopardo, MTA, CGT-Moyano) e uma ruptura que levou à formação da CTA. Esses setores se caracterizaram pela oposição ao neoliberalismo e às políticas de Menem e de De la Rúa. Pode-se dizer que a aliança dos governos com setores expressivos do sindicalismo foi uma condição indispensável para a implantação das políticas neoliberais nesses países, porém o apoio da ala majoritária do sindicalismo na Argentina não significa que houve menos resistência ao neoliberalismo nesse país do que no Brasil. A FS e a CGT não defenderam as políticas neoliberais 6 A CTA foi a única das centrais estudadas a organizar parte do movimento de desempregados que surgiram na Argentina no final da década 1990. A atuação da entidade ocorreu principalmente a partir da Federación de Tierra, Vivienda y Habitát (FTV).

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sem restrições. Nos dois casos, quando os interesses da base e da cúpula foram ameaçados, as entidades assumiram posturas mais combativas. No caso do Brasil, a política da FS para os desempregados se inseriu na lógica do discurso neoliberal de “empregabilidade”, o que se explica parcialmente por seu apoio ao neoliberalismo, ainda que essa defesa não tenha sido feita sem conflitos internos e momentos de descontinuidade. A CUT, embora no nível do discurso não tenha defendido abertamente a ideologia da “empregabilidade”, na prática, fundamentou-se em seus argumentos para justificar a construção de políticas de serviços para os desempregados7. A central apresentou bandeiras alternativas de combate ao desemprego em relação às propostas pelas políticas neoliberais, denunciou os planos econômicos dos governos, mas não se propôs a organizar os trabalhadores sem emprego para a luta. Conservou, parcialmente, no nível do discurso, uma referência a um “horizonte” socialista, embora as práticas do que a central chama de sindicalismo “cidadão” tenham sido desenvolvidas mais como “terceira via” entre a social-democracia e o capitalismo neoliberal do que como superação deste último. Nesse sentido, as ações cutistas nesse campo atestaram o relativo abandono da bandeira socialista e o recuo da central diante da ofensiva do neoliberalismo. A entidade aceitou, em certa medida, o modelo de “assistência” aos desempregados, propugnado pela plataforma neoliberal, construído principalmente com base na noção de que o problema do desemprego é gerado pela inadequação entre a qualificação individual e as exigências do mercado de trabalho. As experiências de economia solidária, consolidadas na criação da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), em 1999, também expressaram essas transformações, ainda que estrategicamente tenham se justificado na central como forma de combinar as lutas históricas com as lutas imediatas da classe trabalhadora. No caso argentino, como já foi dito, o setor majoritário da CGT aderiu aos aspectos centrais do neoliberalismo, especialmente às privatizações e à bandeira da “revolução produtiva”, que fundamentava a aplicação de políticas econômicas como a sobrevalorização cambial e a diminuição das alíquotas às importações. O MTA e a CTA fizeram oposição a essas medidas, combatendo a venda das estatais, as propostas de flexibilização trabalhista, a abertura comercial e a “convertibilidade” (paridade entre o peso e o dólar). Para se contrapor ao modelo, o MTA defendeu políticas de geração de emprego e políticas sociais como o seguro-desemprego, 7 Essa política está expressa na fundação do Centro de Solidariedade ao Trabalhador (CST) pela FS, em 1998, e da Central de Trabalho e Renda (CTR), pela CUT, em 1999, instituições voltadas, entre outros objetivos, para a “requalificação profissional”, a “intermediação de mão de obra” e a habilitação para o recebimento do seguro-desemprego.

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embora essas bandeiras também estivessem presentes na CGT, especialmente nos momentos em que a central rejeitou aspectos das reformas propostas por Carlos Menem (1989-1999) e Fernando De la Rúa (1999-2001). A CTA apresentou, ademais, a reivindicação de uma “renda cidadã” universal. As diferentes correntes sindicais não se diferenciaram, porém, no objetivo de levar a cabo uma política nacionalista de desenvolvimento do capitalismo argentino. Pelo que foi exposto, é possível afirmar que, assim como a ideologia político-sindical e sua matriz ideológica mais geral, a maior ou menor adesão ao neoliberalismo não explica totalmente a ausência ou presença de organização dos desempregados por parte das entidades analisadas. Vejamos se essa questão possui uma relação com o modelo de organização do sindicalismo nos dois países. No caso brasileiro, pode-se dizer que a política das centrais em relação aos desempregados possui uma correspondência direta com sua acomodação à estrutura sindical. A FS critica alguns de seus aspectos, mas defende abertamente o sindicalismo de Estado (Boito Jr., 1991). A CUT faz o discurso sobre a necessidade de seu desmonte, mas prevalece nessa central a prática sindical dentro da estrutura. Esse aspecto contribui para compreender por que o conjunto do sindicalismo cutista, incluindo os setores minoritários, não levou a cabo uma política de organização dos desempregados, ainda que tenha feito discurso sobre sua importância. Ora, as chamadas correntes de esquerda também não estiveram imunes ao acomodamento à estrutura sindical, e por isso o corporativismo também se reproduz em seu interior como ideologia e prática hegemônica. Em dissertação de mestrado, foi possível verificar que uma importante entidade cutista herdeira do sindicalismo combativo das oposições dos anos 1970, o Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas e Região, atualmente na Intersindical, não avançou no rompimento das amarras da estrutura sindical, entre elas, o modelo de representação corporativista (Souza, 2005). No caso argentino, a CGT e o MTA defendem o atual modelo de organização sindical por ramo de atividade com base na afiliação de trabalhadores empregados formalmente, assim como o conjunto do aparelho jurídico do sindicato oficial corporativo. A CTA não se opõe à estrutura sindical em sua totalidade, mas reivindica seu reconhecimento como central sindical, sob a bandeira do pluralismo no nível da cúpula e da organização de base8. Também defende a ruptura parcial 8 Na Argentina, apenas um sindicato (e uma central sindical) recebe a personería jurídica – próximo ao que se denomina no Brasil como “carta de reconhecimento”. No entanto, a estrutura sindical do país reconhece entidades “simplesmente inscritas”, que são permitidas por lei, embora

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com o modelo de representação, na medida em que incorpora a afiliação direta e individual que possibilita a associação de qualquer trabalhador, independentemente de seu vínculo de trabalho, e a incorporação de organizações populares em suas federações. Desse modo, ainda que a entidade não tenha buscado romper com o conjunto do edifício corporativista estatal, sua concepção de sindicalização se constituiu, parcialmente, na superação da ideologia jurídica da forma legal do sindicato (A lthusser, 1999), um dos principais obstáculos para a construção da unidade entre o EOA e o EOR. Além das questões levantadas, vale destacar os interesses imediatos das bases e das cúpulas sindicais diante da organização dos desempregados. Os interesses da base empregada são os do EOA, para o qual, em última instância, a luta sindical é um meio para a manutenção de seu emprego e a conquista de melhores salários e condições de trabalho, e a realização desses objetivos não depende diretamente do incremento do número de trabalhadores ou da redução dos níveis de desemprego, que são reivindicações econômico-corporativas do EOR. Seria importante indagar se o perfil da base influencia a superação dessa fratura. No Brasil, sabe-se que a CUT representa trabalhadores dos diferentes setores (agrário, industrial, comercial e de serviços, etc.) do pequeno, médio e grande capital privado e estatal. A FS atua predominantemente em sindicatos do setor privado, sendo inexpressivo em seu interior o sindicalismo do setor rural e do funcionalismo público. Na Argentina, a base social da CGT é diversa, mas essa central reúne os sindicatos de trabalhadores em empresas de capital mais concentrado, especialmente do setor industrial. No período em que atuou como setor cegetista dissidente, o MTA possuía sindicatos vinculados a setores de empresas de médio capital, embora não tenham sido inexistentes, em seu interior, entidades representantes de trabalhadores do grande capital. A CTA representa dois sindicatos importantes do funcionalismo público e tem uma pequena inserção no sindicalismo privado. A partir do material investigado, não se evidenciou um vínculo direto entre o perfil dos representados e a política sindical para os desempregados. A pequena representatividade e a predominância de sindicatos do funcionalismo público no interior da CTA foram apontadas por alguns entrevistados da CGT como elementos que facilitaram sua política de mobilização dos desempregados. Porém, no caso cutista, apesar de o sindicalismo

não possam participar das negociações coletivas e eleger delegados no local de trabalho. A CTA reivindica que todas as entidades sindicais tenham esses direitos garantidos.

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do setor público ter sido identificado como um dos que teve maior resistência ao neoliberalismo, suas entidades não propuseram uma alternativa de política sindical para esse segmento. Se as ações e representações para os desempregados não estão diretamente relacionadas aos interesses específicos do grupo socioprofissional, ou seja, da base sindical de representados, qual a relação entre as medidas levadas a cabo pelas centrais e os interesses organizacionais da cúpula? Essa política corresponde a suas estratégias de expansão e manutenção do poder no sindicalismo de Estado e, mais amplamente, no próprio aparelho estatal? Por que a direção de algumas entidades decidiu organizar os desempregados para a luta e outras não? Não se trata, aqui, de fazer uma leitura “voluntarista” das práticas da direção sindical, como se esta fosse formada por um conjunto de atores que expressam vontades individuais, embora, no plano microssocial, esse fator possa estar presente. Pode-se entender os dirigentes como burocratas, na medida em que atuam como funcionários de um órgão da administração do Estado que exerce um tipo de “dominação legal” (Martins, 1978), no sentido empregado pela análise clássica de Weber como ação racional com relação a fins. Ademais, as cúpulas ou quadros de dirigentes são portadores de relações sociais de classe. Como a inserção política desses sujeitos ocorre no nível do Aparelho Ideológico de Estado, em última instância, estes são agentes da reprodução da ideologia do Estado burguês (Saes, 1998). Essa ideologia se pauta essencialmente no fetiche do Estado-protetor, visto como representante de todas as classes sociais, o qual se evidencia, em relação ao objeto estudado, na leitura das causas e na apresentação de propostas de solução para o desemprego, que, em todas as centrais analisadas, são canalizadas para políticas de Estado ativas (como a geração de empregos) ou passivas (a exemplo da assistência aos desempregados). No Brasil, a política sindical para os desempregados se processou por meio da busca dos dirigentes pela gestão de verbas públicas, com base na lógica do oferecimento de serviços. Essa prática esteve subordinada ao interesse político-partidário dos quadros pela conquista de espaços institucionais. Para Oliveira (2003), a partir dos anos 1990, os sindicalistas teriam se convertido em “operadores de fundos públicos”, ao manipularem verbas de previdência complementar, ativos das estatais privatizadas e recursos do FAT. Para Boito Jr. (2002), esse processo seria uma das evidências da ascensão de um neocorporativismo societal no sindicalismo brasileiro. Ademais, ainda em relação a esse tema, há uma questão relacionada ao acomodamento dos dirigentes

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à estrutura sindical, pois o sindicalismo de Estado, ao garantir o monopólio de representação e da arrecadação financeira, não necessita dos desempregados para se manter, pois estes não contribuem financeiramente nem votam nas eleições sindicais. Essa última observação vale também para o sindicalismo argentino e para toda a forma legal do sindicato, ou seja, sua expressão histórica como Aparelho Ideológico de Estado (A lthusser, 1999). Tanto a CGT como o MTA não se interessaram pela representação direta dos desempregados, o que foi justificado por essas entidades com o argumento da prioridade da defesa de políticas de emprego, ideia que também aparece nas centrais brasileiras. Por isso, as diferenças político-ideológicas entre os dois setores não se estenderam à postura diante da estrutura sindical. O objetivo maior da cúpula cegetista no período estudado foi a manutenção de seu poder institucional nas negociações coletivas e na administração do sistema de saúde sindical por meio das obras sociales9, meios principais para a reprodução de seus interesses como organização. O MTA teve como estratégia principal assumir a direção da entidade – o que, de fato, ocorreu durante o governo de Néstor Kirchner (2003-2007) para retomar o que, em sua avaliação, eram os autênticos ideais peronistas. Como explicitou um entrevistado da atual Direção Nacional da CGT, pertencente a essa corrente nos anos 1990: Nós defendemos o modelo sindical argentino. Nós sempre dizemos que os melhores momentos dos trabalhadores foram quando o sindicalismo estava unido. Mas o objetivo [do MTA] nesse momento era se opor ao modelo econômico e recuperar a condução da Confederação [a CGT] para colocá-la a serviço de todos os trabalhadores. [Ademais,] jamais quisemos formar uma central. O objetivo era, Moyano [o líder do MTA] sempre dizia: “primeiro, recuperamos o movimento sindical, depois recuperamos a CGT, depois recuperamos o peronismo” (E3).

Diante dos interesses organizacionais mais imediatos dessas entidades, os desempregados possuíam um papel secundário. No entanto, apesar da relação de fratura entre os desempregados e a CGT e o MTA, a construção de uma unidade com esse segmento foi parte da estratégia de representação de base levada a cabo pela CTA, embora nem todas as organizações de desempregados tenham 9 As obras sociales constituem a principal referência do sistema de saúde da Argentina. Trata-se de planos administrados pelos sindicatos que fornecem atendimento médico à família dos trabalhadores formais.

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sido mobilizadas por essa central. É importante destacar, ademais, que o vínculo partidário ou sindical esteve presente na constituição e expansão da maioria das organizações. Aqui se torna relevante fazer duas observações: primeiro, que isso explica por que é mais adequado chamar esses agrupamentos de organizações político-sindicais de desempregados, e não de “movimentos piqueteiros”, já que esse conceito remete ao instrumento de luta empregado em detrimento da base social; segundo, que o objetivo imediato da CTA também se aplica aos partidos de esquerda que organizaram esse segmento, pautado especialmente pela estratégia de expansão de suas entidades. A CTA buscou representar os desempregados, aglutinando parte das organizações e contribuindo para dar impulso e atuação no plano nacional, especialmente à FTV, embora já existisse uma mobilização prévia desse agrupamento, anterior à proposta pela central. Como entidade que representa setores minoritários do sindicalismo argentino, essa foi a estratégia da CTA para se consolidar como organização com poder de convocação e mobilização massiva, condição necessária para pressionar o Estado por seu reconhecimento legal como central sindical. Essa mesma tendência se verificou recentemente em setores minoritários do sindicalismo brasileiro dissidentes da CUT, como a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) e a Intersindical, que, a partir da proposta de criarem uma nova entidade, debateram, a partir de 2007, se seu caráter seria de central “do mundo do trabalho”, “sindical e popular” ou “de trabalhadores”10. No caso da CUT e da FS, a mobilização dos desempregados não se constituiu como estratégia de seu aumento de poder sindical, já que este estava relativamente garantido pela estrutura oficial; no entanto, o oferecimento de serviços para esse segmento foi um dos principais meios para sua estratégia de disputa por poder político-partidário. Por isso, o conflito entre essas centrais, durante os anos 1990, restringiu-se ao âmbito sindical. No caso da CTA, teve um papel crucial sua estratégia para enfrentar o poder da CGT, garantida pela representatividade nacional de suas entidades. FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO EOR E RELAÇÃO DE UNIDADE E FRATURA COM O EOA Como foi dito, o vínculo entre o movimento sindical e os desempregados se insere em um contexto mais amplo da relação de unidade e fratura entre o EOA e o EOR. A seguir, será realizada uma breve apresentação da composição da super10 A união entre ambas não se confirmou, e a Conlutas criou a Central Sindical e Popular (CSP).

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população relativa e das formas de representação e organização de suas diferentes parcelas (latente, estagnada e flutuante) e camadas (pauperismo e lúmpen), bem como sua relação com o sindicalismo no Brasil e na Argentina. No caso brasileiro, a parcela latente da superpopulação relativa é historicamente mais representativa que a argentina, até mesmo por conta de sua estrutura social, que possui uma população camponesa mais significativa. A partir dos anos 1980, o processo de expansão capitalista no campo, por meio da mecanização (expresso, atualmente, pelo crescimento do chamado “agronegócio”), fez com que um contingente significativo de trabalhadores repelidos da produção agrícola migrasse para a cidade ou se pauperizasse no campo. Essa parcela é composta, ainda, por expropriados pelo processo de concentração fundiária (como as vítimas de grileiros), pela população indígena pauperizada, por pequenos proprietários de produção familiar proletarizados, por camponeses parcialmente empregados (peões e boias-frias) e por trabalhadores em regime de escravidão. Uma parte desses trabalhadores se organiza no sindicalismo rural, no movimento de resistência indígena, nas comunidades quilombolas, ribeirinhas e em organizações de camponeses, cuja maior expressão é o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Ao longo da década de 1990, a CUT teve uma política constante de aliança com este último, apresentando a bandeira da reforma agrária como uma de suas principais propostas de combate ao desemprego. Por sua vez, como parte de sua política desde os anos 1990, o MST organizou trabalhadores urbanos desempregados para voltar ao campo, e, fruto dessa mobilização, surgiram os assentamentos “rururbanos” do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD). Este último foi fundado em 2000, na região metropolitana de Porto Alegre-RS, e, a partir de 2003, começou a atuar em diversos estados do país, passando a compor, juntamente com a CUT e o MST, a Coordenação de Movimentos Sociais (CMS)11. Além disso, parte dos trabalhadores do campo é representada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que congrega os sindicatos rurais de todo o país. Essa confederação esteve filiada à CUT de 1991 a 2009, quando se desligou da central. Na Argentina, a parcela latente da superpopulação relativa é historicamente menos expressiva. Os setores mais significativos da população do campo estão organizados em sindicatos rurais. Ainda assim, nos anos 1990, surgiu o Movimento Campesino de Santiago del Estero (Mocase), que representa pequenos 11 Atualmente, o MTD atua em diversos estados do país, mas jamais chegou a possuir uma força política considerável no conjunto das lutas sociais do Brasil, tal como se evidenciou no movimento de desempregados argentino, na passagem dos anos 1990 para 2000.

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proprietários em processo de proletarização em uma das províncias mais pobres do país, porém essa parcela da superpopulação relativa não possui um peso político considerável no país. A superpopulação relativa estagnada foi a que mais cresceu ao longo do período estudado, tanto no Brasil como na Argentina, com a diferença de que se trata de uma parcela historicamente maior e mais significativa no caso brasileiro, pois representa a maior parte do EOR urbano no país. Está composta, em ambos, por trabalhadores parcialmente empregados, com ocupações “irregulares” e temporárias, ambulantes e trabalhadores sem registro. No caso brasileiro, também é mais expressiva a “classe dos serviçais” (Marx, 1982, p. 512), estudada por Pochmann (2003) a partir da categoria de “agregados sociais”. Do conjunto dessa parcela, surgiram no Brasil sindicatos de ambulantes (ou dos trabalhadores da economia informal) e um expressivo movimento pela moradia (sem-teto). Atualmente, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) faz parte da estrutura organizativa da CSP-Conlutas, e o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL) está filiado à Intersindical. Durante o período estudado e especialmente em 2000, cresceu o cooperativismo no país. A CUT organizou parte desse movimento por meio da chamada economia solidária. Na Argentina, a parcela estagnada foi uma das principais bases para a expansão das organizações de desempregados no país. Parte desses agrupamentos vinha de uma experiência de organização de bairro que, desde a década de 1980, lutava por melhores condições de vida, em um contexto marcado pelo crescimento da pobreza nas periferias, porém o fator fundamental para compreender a formação do movimento de desempregados nesse país foi a tradição de organização e luta de seu movimento operário (Souza, 2009b), em um contexto de desemprego crônico e pauperização. A superpopulação relativa flutuante cresceu nas duas formações sociais, especialmente por conta das políticas neoliberais e do processo de reestruturação produtiva. Sua maior evidência está na eliminação de postos de trabalho e no crescimento do desemprego aberto. Essa parcela protagonizou processos de resistência às demissões por intermédio das organizações sindicais. No entanto, com a permanência na situação de desemprego, um segmento expressivo migrou para o “assalariamento encoberto”, como ambulante, pequeno comerciante ou “agregado social”. Sua trajetória de trabalho foi marcada, a partir de então, pela alternância entre o emprego temporário, a ocupação irregular e o desemprego, processo verificado tanto no Brasil (Guimarães, 2004) quanto na Argentina (Castillo et al., 2006).

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A situação anterior, de predominância do emprego com contrato formal por tempo indeterminado e baixos índices de desemprego, rotatividade e assalariamento encoberto, contribui para explicar o aparecimento, na Argentina, de organizações de desempregados massivas e nacionais, bem como um significativo movimento de recuperação de fábricas que chegou a reunir cerca de cento e setenta unidades produtivas (Fajn, 2003). A organização prévia, por meio de associações de bairro e do movimento pela moradia, foi fundamental para a formação dessas experiências. No entanto, foi na organização sindical, principal mobilizadora das tradições de luta do país, que o núcleo originário encontrou seu potencial organizativo. No Brasil, embora tenha aparecido o MTD e o cooperativismo autogestionário, como demonstra o caso da Flaskô, em Sumaré-SP, esse tipo de experiência esteve menos presente. O movimento de recuperação de empresas foi aglutinado, de certa forma, pelo sindicalismo, especialmente pela CUT (cuja experiência mais notória é a da Conforja). Ademais, pode-se dizer que os interesses materiais de parte da superpopulação relativa flutuante no Brasil foram representados nas centrais por meio dos cursos de requalificação profissional e da intermediação do emprego da força de trabalho. Uma parcela expressiva do EOR ainda é composta pelo lumpemproletariado e pelo pauperismo. No Brasil, ambas são mais expressivas historicamente. Ainda que esteja presente na Argentina, no caso brasileiro, é considerável a parcela da população que consegue sua sobrevivência por meio do “delito” individual (Engels, 2008). Entre os setores pauperizados, encontram-se moradores de rua e favelados que vivem a partir da apropriação da riqueza produzida por outros (esmola, coleta de lixo para o consumo ou a venda para a reciclagem, caridade de igrejas e ONGs, ou ainda do “benefício” do pauperismo oficial por meio de políticas focalistas do Estado, como o Bolsa-Família). O movimento sindical dificilmente aglutinou essas camadas. Ao longo do período estudado, cresceu o pauperismo e o lúmpen na Argentina, mas estes seguem sendo menos expressivos que no Brasil. De qualquer forma, o movimento de desempregados do país recrutou camadas da classe trabalhadora em processo de pauperização, tendo sido um dos motores mais importantes do movimento a obtenção de auxílios do Estado, como o Plan de Jefas y Jefes de Hogar Desocupados12. Ademais, nessas organizações, estiveram muito presentes a organização coletiva para a produção e o consumo (com refeitórios e hortas

12 Plano de assistência aos desempregados, criado pelo governo argentino, que contemplava a entrega de subsídios monetários com contraprestação laboral em órgãos públicos.

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comunitárias) e pequenos empreendimentos autogestionários (como padarias, confecção de roupas e artesanato). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste texto, foi apresentada uma proposta de quadro explicativo que teve como maior aspiração contribuir para a compreensão de um tema que, a despeito de sua importância para o debate contemporâneo do movimento operário e sindical, ainda possui poucos estudos nas Ciências Sociais. De acordo com a perspectiva teórica adotada, as ações e representações do movimento sindical diante dos desempregados foram compreendidas como uma síntese de múltiplas determinações. Neste artigo, procurou-se articular alguns dos elementos trabalhados ao longo da tese de doutorado aqui referida, que se focou na análise de como essa questão se manifestou no Brasil e na Argentina. O ponto de partida da pesquisa foi pautado na noção de que a construção de uma ação conjunta entre o sindicalismo e os trabalhadores sem emprego é parte da formação histórico-social das classes e da luta de classes. Nesse processo, a relação entre o movimento operário organizado sindicalmente (forma de manifestação orgânica do exército de operários ativo no capitalismo) e os desempregados (segmento mais expressivo do exército de operários de reserva) pode se expressar em uma relação de unidade ou de fratura. Marx, em O capital, apontou a importância da ação conjunta entre empregados e desempregados como ponto de partida para perturbar o funcionamento puro do movimento de oferta e demanda da força de trabalho. No entanto, tal como aponta Engels no prefácio àquela obra, têm sido frequentes na História os momentos em que os desempregados se encarregam de “decidir seu destino com suas próprias forças”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A lthusser, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. Boito Jr., Armando. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. Campinas-SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Hucitec, 1991. . Neoliberalismo e corporativismo de estado no Brasil. p. 59-87. In: A raújo, Ângela Maria Carneiro (Org.). Do corporativismo ao neoliberalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.135-138

Apresentação da Tradução

Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo Mario Antonio Eufrasio* Nascido em 14 de março de 1899, em Wiesbaden, na Alemanha, Herbert Baldus participou, ainda jovem, da Primeira Guerra Mundial, primeiro como cadete, em Potsdam, e, já quase no fim do conflito, como oficial da força aérea. Viajou para a Argentina em 1921 e mudou-se para São Paulo em 1923. Logo depois, fez uma viagem com uma equipe cinematográfica ao Gran Chaco, no Paraguai, tendo contato com três tribos indígenas. Essa viagem despertou seu interesse pelos estudos de Etnologia indígena, a que passou a se dedicar profissionalmente até morrer em São Paulo, em 24 de outubro de 1970, de um ataque cardíaco. Em 1927, visitou os guaranis do litoral de São Paulo, retornando, depois, às tribos do Chaco paraguaio, em 1928. Nessa época, começou a publicar estudos sobre grupos indígenas e Etnologia. De volta à Alemanha, cursou a Universidade Friedrich Wilhelm, de Berlim, onde estudou Etnologia com Richard Thurnwald e obteve seu doutorado. Com a ascensão do nazismo ao poder, mudou-se definitivamente para o Brasil, em 1933. Iniciou, então, uma série de expedições, visitando tribos brasileiras e paraguaias, atividades que desenvolveu periodicamente (de 1933 a 1935, em 1941, 1944, 1947 e 1952) e a partir das quais veio a publicar um grande número de artigos, ensaios e livros nas áreas de Etnologia e Arqueologia. Em 1939, iniciou sua carreira acadêmica ao assumir a Cadeira de Etnologia Brasileira na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Ministrou cursos e dirigiu seminários – o mais importante dos quais foi o Seminário sobre os Índios no Brasil, que ofereceu até 1960 –, que foram acompanhados por numerosos alunos que viriam a estar entre os primeiros cientistas sociais acadêmicos no Brasil.

* Professor doutor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Nessa condição, com Emilio Willems e alunos da Escola de Sociologia e Política, foi ao Vale do Ribeira estudar a mudança cultural em um grupo de imigrantes japoneses lá instalados. Como resultado, publicou com Willems dois artigos: “Casas e túmulos de japoneses no Vale do Ribeira de Iguape” (Revista do Arquivo Municipal, n. 77, 1941) e o artigo aqui traduzido (1942), mais tarde, “Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo” (Folha da Manhã, 18 de junho de 1958) – talvez os únicos de sua vasta bibliografia que não tratam de etnologia indígena e temas a ela relacionados, mas de um tema da sociedade moderna. Convidado, em 1946, para organizar as coleções do Museu Paulista, veio a ser o diretor do setor de Etnologia até 1968, quando se aposentou e passou a ser o editor da Revista do Museu Paulista, de 1947 até 1967. Foi também diretor do Museu Paulista de 1953 até 1960. Em 1949, visitou tribos de índios dos estados do Arizona e do Novo México, nos Estados Unidos, e foi o secretário do Comitê Executivo do 29º Congresso Internacional de Americanistas, realizado em Nova York, cargo que desempenhou também no encontro seguinte, em Cambridge, Inglaterra (ocasião que lhe permitiu visitar centros de pesquisa em outros oito países europeus). Além de participar do II Congresso Latino-Americano de Sociologia, em 1953, Baldus foi, nesse mesmo ano, presidente da la Reunião Brasileira de Antropologia e da Associação Brasileira de Antropologia, no biênio 1961-1963. Nos anos seguintes, participou de congressos de diversas entidades das Ciências Sociais, até 1966. Organizou o 31º Encontro Internacional dos Americanistas, de 1954, realizado em São Paulo, e, em 1961, ministrou um curso de Etnografia Geral e do Brasil na FFCL de Rio Claro. Desde o início de sua obra, Baldus se mostrou preocupado com as situações de contato com os grupos indígenas, pelo quê insistiu no estudo das temáticas da mudança cultural e da política indigenista, vendo com reservas os processos de aculturação, defendendo o isolacionismo e criticando a perspectiva evolucionista na atuação do Serviço de Proteção aos Índios, criado por influência do Marechal Cândido Rondon, a quem muito admirava, e a desintegração da unidade étnica dos grupos indígenas. Entre seus muitos escritos, ao longo de quarenta e cinco anos, destacam-se: Ensaios de Etnologia brasileira (1937); o volume I da monumental Bibliografia crítica da Etnologia brasileira (São Paulo, 1954), cujo volume II foi editado por Hans Becher (Hannover, 1968) e o volume III foi organizado por Thekla Hartmann (Berlim, 1984); e a monografia Tapirapé: tribo tupi do Brasil Central (1970).

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Emilio Willems nasceu em 1905, na aldeia de Niehl, junto à cidade de Colonia, na Alemanha, onde se formou em Economia em 1924, indo, em seguida, estudar Sociologia e Etnologia em Berlim. Criado em uma família católica, em 1931 veio para o Brasil lecionar em um Seminário em Brusque, Santa Catarina, e depois em Jacarezinho, no norte do Paraná. Transferiu-se em 1936 para São Paulo, onde viveu até 1949, quando mudou com a família para Nashville, nos Estados Unidos, passando a lecionar na Vanderbilt University, na qual se tornou professor emérito em 1975. Faleceu em novembro de 1997. Nos dezoito anos em que permaneceu no Brasil, Willems desenvolveu uma obra de notável relevância, centrada no tema da assimilação dos imigrantes à sociedade brasileira. Ainda em Brusque, escreveu seu primeiro trabalho: “Essai sur le problème de la colonisation au Brésil” (Revue Internationale de Sociologie, 1934), sendo, logo depois, convidado por Fernando Azevedo para lecionar Sociologia da Educação na Universidade de São Paulo, onde obteve a livre-docência em 1937 e passou a lecionar Antropologia, vindo a ser o regente dessa cadeira em 1947. Ao mesmo tempo, lecionou na Escola de Sociologia e Política. Com seus estudos, Cunha: tradição e transição em uma cultura rural no Brasil (1947; 2. ed.: Uma vila brasileira: tradição e transição, 1961), com base em trabalho de campo realizado em diversos meses de 1945, e Buzios Island: a caiçara community in southern Brazil (1952, com Gioconda Mussolini), foi um dos pioneiros dos estudos de comunidades e da chamada “cultura caipira” no Brasil. Willems combinava o trabalho de campo etnográfico com pesquisas de reconstrução histórica, o que caracterizou a maior parte de seus estudos, que buscavam revelar como mudanças sociais e culturais e modificavam a organização social de grupos particulares. Seus estudos de mudança cultural abordam, sobretudo, imigrantes alemães – em Assimilação e populações marginais no Brasil: estudo sociológico dos imigrantes germânicos e seus descendentes (1940) e Aculturação dos alemães no Brasil (1946) – e imigrantes japoneses – em Aspectos da aculturação dos japoneses no Estado de São Paulo (1948) e “The japanese in Brazil” (Far Eastern Survey, 1949), antecedidos pelos dois artigos já citados, elaborados com Baldus. O leitor tem uma agradável surpresa ao encontrar em certo número de textos seusa discussões que revelam uma reflexão própria, lucidamente aprofundada e lastreada em um notável conhecimento da melhor literatura especializada da época, acerca dos fenômenos e processos de contatos culturais que resultam em situações de conflito cultural, aculturação e assimilação, em suas diversas dimensões

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e perspectivas – antropológicas, sociológicas e sociopsicológicas: “Asimilación y aculturación” (Revista Mexicana de Sociología, 1944), “Some aspects of cultural conflict and acculturation in southern rural Brazil” (Rural Sociology, 1942) e “Problemas de uma Sociologia do Peneiramento” (Revista do Arquivo Municipal, 75, 1941). O artigo aqui traduzido, “Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo”, de 1942, manifesta diversos elementos das linhas de preocupação dos dois autores: uma minuciosa etnografia do grupo social estudado e uma indicação do significado das mudanças constatadas como parte do processo de adaptação a uma nova sociedade. Assim, após um relato da colonização japonesa no Vale do Ribeira, o artigo apresenta sucessivamente as evidências de mudança cultural nos itens de vestuário, casas e mobília, condições econômicas, hábitos alimentares, organização familiar, organização da comunidade, religião, atividades recreativas e idioma, em um levantamento abrangente, embora rápido, da organização cultural em processo de transformação.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.139-148

Tradução

Mudança cultural entre imigrantes japoneses no Brasil, no Vale do Ribeira de São Paulo1 Emilio Willems e Herbert Baldus Tradução de Gustavo T. Taniguti* Revisão técnica de Mario Antonio Eufrasio**

***[525] A COLONIZAÇÃO JAPONESA NO VALE DO RIBEIRA Em 1908, a imigração japonesa para o Brasil teve início. Até 1909, apenas oitocentos e vinte e cinco japoneses entraram no Estado de São Paulo, que absorveu quase a totalidade desse tipo de imigrantes orientais. Seu número cresceu rapidamente e, de 1910 a 1914, quatorze mil, quatrocentos e sessenta e cinco japoneses se estabeleceram em diferentes regiões desse Estado. O município de Iguape concedeu a eles cerca de dois mil e cem acres de terra próximos a Jepuvura. Em pouco tempo, a vila de Katsura foi fundada, sendo a mais antiga colônia japonesa do Vale do Ribeira. O governo do Estado de São Paulo acrescentou mais cento e vinte e três mil acres, e sessenta e um mil e setecentos acres foram adquiridos pela companhia de colonização Kaigai. Dessa forma, outras duas colônias foram estabelecidas no Ribeira – Registro e Sete Barras. O Vale do Ribeira está situado na parte sul do Estado brasileiro de São Paulo. A área total da colonização japonesa nessa região se estende de 24° a 25° de lati-

1 Originalmente publicado sob o título “Cultural change among Japanese immigrants in Brazil in the Ribeira Valley of São Paulo”. Sociology and Social Research, v. 26, n. 6, p. 525-537, jun. 1942. * Universidade de São Paulo e Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. ** Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. *** Nota: A paginação original é indicada entre colchetes.

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tude sul e de 47° a 48° de longitude oeste. De Sete Barras ao oceano, há grandes extensões de planícies que dispõem de bons recursos hídricos. Com exceção da faixa arenosa da costa, elas são adequadas para o cultivo de arroz e banana. As terras mais altas em torno de Registro e aquelas rio acima são mais ricas, porque suas possibilidades agrícolas são mais numerosas. Essas terras também estão localizadas tão perto do nível do mar que a temperatura é quase intolerável, durante os meses de verão. Por isso e em virtude da malária, os [526] europeus se mantiveram afastados, exceto em locais longe do rio, onde poloneses e italianos se estabeleceram, na colônia de Pariquera, organizada pelo governo. Entretanto, o perigo da malária existe apenas em lugares abrigados de vento e próximos a águas paradas. Os imigrantes japoneses não sofrem tanto dessa e de outras doenças como a população rural brasileira, pois prevenção e tratamento organizados são mais comuns e eficientes entre os japoneses. Além disso, esses imigrantes viveram, desde muitas gerações, em terras úmidas, onde cultivam arroz em temperaturas elevadas. Assim, eles são mais adaptados para se estabelecer no Vale do Ribeira do que homens de outras origens. Segundo o Censo de 1934, em três prefeituras do Vale, o número total de japoneses nascidos no exterior e que ali se estabeleceram era de quatro mil, seiscentos e quarenta e oito. Os imigrantes vieram não apenas do Japão, mas também de outras colônias japonesas no Brasil. Alguns imigrantes retornaram para o Japão e outros foram para colônias no interior de São Paulo. Fomos informados de que há, atualmente, vinte e nove famílias de origem japonesa em Katsura, quatrocentas e trinta em Registro e apenas noventa em Sete Barras. Além da geração mais antiga nascida no exterior, há uma segunda, nascida no Brasil, e muitas crianças são de terceira geração. Os colonos vieram de regiões bastante diferentes de seu país de origem. O governo japonês exerceu um rigoroso controle sobre o movimento de emigração. Apenas aqueles camponeses que prometeram usar vestimentas ocidentais e abandonar o xintoísmo e o budismo como forma de culto público foram admitidos. Aqueles que não possuíam conhecimento agrícola tiveram de ser instruídos um ano antes de obter permissão para emigrar. O único monge budista de toda a região nos informou que não foi autorizado a ir para o Brasil como monge, mas somente como camponês. Isso era exigido pelo próprio governo japonês, e, mesmo hoje em dia, esse homem, bastante instruído em teologia, cultiva sua terra como um simples camponês, em circunstâncias bastante pobres. [527]

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EVIDÊNCIAS DE MUDANÇA CULTURAL Vestuário. As sandálias de palha usadas no Japão podem ser encontradas em muitas lojas de Registro. Elas são bastante baratas (cinco centavos o par) e são usadas não apenas por imigrantes, mas também por alguns brasileiros. Em relação ao uso dos calçados de couro ocidentais, os japoneses do Vale do Ribeira se diferenciam da maioria da população brasileira da região, os caboclos descalços. Os calçados japoneses (geta) com solas altas de madeira foram encontrados apenas em uma residência, e apenas como recordação. O vestuário é quase totalmente ocidental. Dizem que algumas mulheres ainda vestem uma espécie de quimono, no interior de suas residências, como robe. Quando há um festival escolar com danças ou peças teatrais, as mães japonesas confeccionam pequenos quimonos e outras vestimentas japonesas especialmente para o papel de suas crianças no festival. As largas faixas do vestuário que cruzam o tórax das mães para apoiar o bebê em suas costas podem ser consideradas também como parte da vestimenta. As garotas, mesmo da terceira geração, carregam suas bonecas da mesma forma. Algumas mulheres brasileiras de classes mais baixas imitam essa técnica de carregar os filhos, que lhes permite trabalhar e andar com a criança nas costas. Casas e mobília. Por causa das grandes dimensões do Brasil, as concepções de grande e pequeno são diferentes daquelas em vigor no Japão ou mesmo na maioria dos países europeus. No Brasil, o colono geralmente possui áreas tão grandes de floresta e de terra cultivável que as famílias tendem a ficar isoladas umas das outras por grandes distâncias. Aqui, colônias dispersas são mais comuns, enquanto no Japão esses colonos moravam em aldeias e pequenas cidades. Registro é o único município em que a pequena classe alta e a um pouco mais numerosa classe média são compostas por comerciantes e artesãos japoneses. As casas2 dos colonos japoneses são bem diferentes umas das outras. Há casas de pessoas ricas e pobres, [528] com traços arquitetônicos trazidos do Japão ou incorporados de estilos brasileiros. Assim como em outros lugares no Brasil, um grande número de casas da região possui paredes de barro. Muitos japoneses adotaram essa técnica, mas misturam o barro com palha de arroz. Colonos prósperos adicionam areia e cal. No entanto, quase todas as casas de imigrantes possuem paredes cuidadosamente aplainadas, e a estrutura de madeira é mais bem feita do que na casa dos caboclos.

2 Consultar Herbert Baldus e Emilio Willems, “Casas e túmulos de japoneses no Vale do Ribeira de Iguape”, Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, n. 77, 1941.

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A preferência pela estrutura de madeira foi trazida da terra natal, mas, no Japão, as paredes são feitas de papel e são móveis. No Brasil, esse traço cultural foi abandonado por causa da voracidade de certos insetos. No novo país, os terremotos são desconhecidos, e as paredes podem ser construídas de pedra e tijolo. Há apenas seis anos, olarias foram construídas, e, no presente momento, poucas casas são feitas desse material. Contudo, mesmo as paredes rebocadas ou de barro são mais pesadas do que as de papel, e, por essa razão, a estrutura tem que ser muito mais forte, especialmente em casas com dois ou três andares. O pequeno hall de entrada (genkan), onde os japoneses deixam seus sapatos antes de entrar em casa, foi encontrado somente em uma residência. Porém às vezes eles deixam seus sapatos na escada, antes de caminhar sobre os brilhantes pisos polidos dos quartos, no primeiro andar. Poucas famílias ainda mantêm o tokonoma, um espaço que ocupa o lugar de honra do melhor aposento da casa rural japonesa. Com o desaparecimento do xintoísmo, o tokonoma também se tornou raro. Nós o encontramos somente em uma casa do distrito rural, no entanto, sem símbolos xintoístas, com exceção de uma fotografia do casal imperial. Próximo ao tokonoma, havia outro espaço, mas ele não representava, como de costume, o butsudan, uma espécie de altar doméstico budista. Esse espaço estava vazio, e o proprietário da casa, um japonês nascido no exterior, informou-nos que ele pretendia usá-lo como guarda-louças. Nessa casa, o butsudan estava no quarto. Não era uma obra de [529] arte, como geralmente é no Japão rural, mas um armário pequeno, pouco atraente, colocado em uma caixa comum, em um canto do quarto. Sua prateleira continha flores murchas, uma vela, incensos, um pequeno prato de oferendas de arroz e chá, um rolo de seda com a imagem de Buda e a tabuleta dos ancestrais com o nome da dona da casa escrito nela. Essa tabuleta, em frente da qual as crianças rezam todos os dias para sua falecida mãe, não era cortada tão cuidadosamente ou pintada com tão bom gosto como as tabuletas que alguns imigrantes trouxeram de sua terra natal. A técnica descuidada usada na confecção das tabuletas dos ancestrais no Brasil mostra o começo da desintegração desse traço significativo da cultura japonesa. O butsudan pode ser encontrado também em famílias japonesas que adotaram a fé católica, mas, nesses casos, é geralmente resultado do sincretismo religioso em que elementos culturais católicos e budistas se fundiram. Em algumas casas rurais de Registro e Jepuvura, havia, em vez de tabuletas de ancestrais, fotografias de falecidos membros da família, juntamente com a estátua de Cristo, imagens de santos, velas e flores.

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A mobília japonesa desapareceu quase inteiramente. Nas casas visitadas, às vezes, constavam menos móveis do que nas casas brasileiras do mesmo status econômico, mas eram sempre do mesmo tipo. Geralmente, há somente uma sala, usada tanto para fazer refeições como para receber visitas. Somente em uma casa foi possível notar uma colcha japonesa ( futon), que estava no assoalho, próximo a várias camas de tipo ocidental padronizado. Na quase inacessível vila de Peroupava, os japoneses usam essas camas, mas, em qualquer lugar e a qualquer hora do dia, nós as encontramos da mesma forma que foram deixadas de manhã. Parece que os imigrantes aderiram ao artefato, mas não ao padrão de comportamento correspondente. Quase todas as famílias japonesas possuem a banheira de madeira (ofurô), que algumas vezes é mantida a céu aberto e, em outras vezes, em uma sala especial, dentro ou fora de casa. [530] Condições econômicas. A maioria dos imigrantes japoneses do Vale do Ribeira chegou com pouco ou nenhum capital. No presente momento, seu nível econômico médio está consideravelmente acima do da população rural brasileira da mesma região. Alguns poucos se tornaram prósperos ou mesmo ricos. Quase todos se tornaram proprietários de terras, logo após sua chegada, mas as áreas cultivadas são comparativamente menores. A maior fazenda japonesa do Vale possui setecentos e vinte acres, dos quais apenas cento e trinta e três estão sendo cultivados. Os principais produtos agrícolas são o chá da China, casulos de seda, arroz, café e banana. No presente momento, o cultivo de bichos-da-seda e de chá ocupam os primeiros lugares entre as atividades agrícolas. Há três safras de casulos anualmente, enquanto no Japão somente uma pode ser obtida. O arroz é semeado, e não transplantado, como no Japão. Várias ferramentas e máquinas utilizadas na plantação do arroz foram adotadas e aceitas pelos brasileiros. O arroz é semeado por uma máquina especial e colhido com uma foice (kama), ambos desconhecidos em outras partes do Brasil. Os japoneses também introduziram um cavalete de madeira para a debulha do arroz e uma espécie de ventilador para separar os grãos da palha. O chá do tipo chinês é cultivado em pequenas plantações por trabalhadores diaristas que, com raras exceções, são caboclos brasileiros. Toda a técnica de preparo do chá para a comercialização foi transplantada do Japão com máquinas especiais, e especialistas da área agrícola vieram para supervisionar e aconselhar a maioria das vinte e três fábricas de chá do Vale, que são todas, com exceção de uma, de propriedade dos japoneses.

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Alguns tipos de cereais e legumes cultivados no Brasil foram adotados pelos imigrantes do Vale do Ribeira. Cultivam-se feijão preto, milho, mandioca, tabaco e cana-de-açúcar. A destilação de cachaça, o rum brasileiro, feito da cana que cresce facilmente e de enorme tamanho, é bastante comum entre japoneses. O equipamento técnico das destilarias segue os padrões brasileiros, em todos os seus detalhes. [531] Os animais domésticos mais comuns são cavalos, porcos e galinhas. Camponeses japoneses a cavalo, certamente uma visão rara no Japão rural, são vistos por toda a parte, no Vale do Ribeira. Os imigrantes adotaram esse traço cultural do Brasil rural, com todos os seus acessórios. Quase todos os japoneses da região do Ribeira possuem pequenas carroças, com duas ou quatro rodas, puxadas por um ou dois cavalos. A carroça de duas rodas é exatamente como a brasileira mais comum, enquanto o outro tipo, com quatro rodas, foi importado do Estado sulista de Santa Catarina, onde foi usado pela primeira vez por imigrantes alemães. Atualmente, há cento e oitenta e seis carroças desse tipo em Registro, e quase todas elas foram feitas por carpinteiros japoneses. Apesar das estradas ruins que prevalecem nessa região e até mesmo na cidade de Registro, bicicletas são utilizadas em maior grau do que em outras áreas rurais do Brasil. Além de um ou dois comerciantes que têm automóveis, apenas seis japoneses são proprietários de caminhões. O agricultor de chá mais rico de Registro usa uma bicicleta para ir à cidade. A escassez de automóveis se deve principalmente ao fato de que sua aquisição e utilização são muito caros no Brasil. Os japoneses educados na terra natal não são capazes de resolver as mais simples contas aritméticas sem o soroban, a máquina de calcular japonesa. Os japoneses de primeira ou segunda geração que frequentaram as escolas brasileiras não sabem mais como utilizar esse instrumento popular, que é encontrado em muitas casas de imigrantes do Vale do Ribeira. Registro possui vinte e cinco lojas, das quais vinte e uma são de propriedade de japoneses que eram, antigamente, com poucas exceções, pequenos agricultores. As sociedades cooperativas, que, em grande medida, controlam as atividades agrícolas no Japão, fracassaram no Vale do Ribeira. Existe uma em Registro que, em virtude da falta de capital, não se desenvolveu. Os japoneses de Jepuvura transformaram sua sociedade cooperativa em uma [532] empresa varejista. Uma organização similar de Sete Barras faliu e foi dissolvida. Para todas as perguntas relativas às atividades cooperativistas, os colonos responderam que havia pouca ou nenhuma vantagem em ser membro desse tipo de organização. Alguns disseram que os lucros dos não cooperados eram muito maiores.

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Alimento. O prato mais importante das residências japonesas do Vale do Ribeira é o arroz. Contudo, nas residências brasileiras nativas, também não há refeição sem arroz. A maioria dos japoneses ainda prepara o arroz como em sua terra natal, sem sal ou gordura. Outras formas de preparo do arroz também foram preservadas. Farinha de arroz e água são cozidos juntos, formando um mingau pegajoso. Após resfriado, é cortado em fatias, frito e servido com açúcar e shoyu. O arroz japonês (moti) é importado da terra natal, mas usado apenas para preparar bolos. Além de vários tipos de feijão oriental utilizados g​​ eralmente para fazer bolos e biscoitos, o consumo de feijão preto pelos imigrantes, um dos pratos nacionais brasileiros, já é considerável. Shoyu, o molho japonês, ainda é bastante popular e agora está sendo fabricado em São Paulo. Organização familiar. Parece que a proporção entre os sexos tem sido normal durante o período inicial de colonização do Vale do Ribeira. Não há evidências de prostituição ou concubinato. O número de casamentos entre parentes é muito pequeno. Em Registro, que é o centro mais urbanizado no Vale, houve somente quatro casamentos entre homens japoneses e mulheres brasileiras, desde o início da colonização. Os pais japoneses se opõem veementemente a essas uniões, especialmente quando eles são desejados por suas filhas. A razão principal para o número reduzido de casamentos mistos é que a população rural dessa região ocupa um status muito mais abaixo do que a média dos colonos japoneses. Há ao menos duas vezes mais caboclos brasileiros do que imigrantes japoneses nessa parte do Vale do Ribeira. Onde os contatos [533] são frequentes, os caboclos analfabetos e descalços são geralmente trabalhadores diaristas nos campos, nas docas e nas fábricas. Portanto, quando ocorre o casamento misto, é uma indicação de perda de status social para o imigrante japonês ou seus filhos nascidos no Brasil. Mesmo em Registro, a classe média, com poucas exceções, é composta por comerciantes e funcionários japoneses. A escassez de pessoas brasileiras aceitáveis para casamento de mesmo nível econômico e educacional resulta no desenvolvimento de padrões endogâmicos que são aceitos pela geração nascida no Brasil. A única objeção expressa pelos japoneses para os casamentos mistos é que a população rural brasileira possui níveis econômicos e educacionais mais baixos. A influência decrescente do sistema patriarcal de organização familiar permite maior liberdade na seleção de parceiros para casamento. Uma mãe japonesa, em Registro, que tentou forçar sua relutante filha a se casar contra a própria vontade enfrentou não apenas a evidente revolta da filha, mas também atitudes hostis dos vizinhos. Irrompeu uma disputa no dia do casamento, e a cerimônia não foi

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realizada. A opinião pública na comunidade imigrante se opõe a essas uniões forçadas, e a Igreja Católica insiste no direito dos filhos de escolher seus parceiros livremente. Contudo, em Registro, a escolha do marido raramente produz conflito entre as moças japonesas e seus pais. Elas geralmente lhes obedecem sem objeções. A instituição do nakaudo (casamenteiro) é conservada nessa região. As cerimônias de casamento são muito mais simples do que no Japão. O banquete ocorre apenas no dia do casamento, e as visitas às casas dos amigos e parentes têm sido abandonadas. Em 1938, as escolas japonesas foram fechadas, e toda a organização comunitária foi dissolvida ou adaptada às leis brasileiras. Mais tarde, os sintomas da desorganização comunitária [534] aumentaram constantemente. Crianças anteriormente obrigadas a frequentar as escolas brasileiras e japonesas, uma de manhã e outra à tarde, ficaram muito satisfeitas quando essa carga de trabalho escolar foi reduzida. O uso da língua portuguesa se tornou cada vez mais comum. Em Registro, as crianças raramente são ouvidas falando japonês. Os professores, nas escolas, estimulam o uso do idioma português, e, de acordo com o diretor da Escola Primária de Registro, qualquer aluno que acidentalmente use uma palavra ou expressão japonesa é imediatamente informado aos professores por seus colegas de escola. Mesmo nas zonas rurais, notou-se, por toda a parte, que as crianças e os adolescentes falam o português sem sotaque, enquanto o uso da língua portuguesa por parte de seus pais era geralmente pobre. Assim, as conversas familiares são muitas vezes exercidas em dois idiomas: os pais falam japonês, e as crianças respondem em português. Às vezes, os pais não entendem as conversas de seus filhos, e estes preferem o português, a fim de esconder o fato de que estão falando de certos assuntos muito diferentes da cultura do mundo velho, representado pela geração nascida no exterior. De acordo com o vigário católico, alguns pais se queixam da distância social que se desenvolveu entre seus filhos e eles. A punição é rara nessas famílias, e a única sanção usada pelos pais é um apelo aos jovens para não envergonhar suas famílias e a terra natal. No entanto, em alguns casos, esses apelos são desconsiderados. A organização da comunidade. A colonização japonesa no Vale do Ribeira foi realizada de forma organizada. A Companhia Kaigai comprou o terreno e o vendeu aos imigrantes que haviam sido cuidadosamente selecionados na terra natal. A mesma empresa estabeleceu sua própria administração, a fim de amenizar o impacto inicial das novas condições e evitar fracassos econômicos e os efeitos desintegradores [535] sobre a personalidade. A colônia foi dividida em distritos e subdivisões que permaneceram sob o controle das autoridades locais. Associações de jovens rapazes (seinendan) e jovens moças (shojokai) e locais especiais foram

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organizados e se destinaram casas especiais para as reuniões. Os membros do Seinendan colaboraram no trabalho dos campos dos colonos que ficaram doentes, ajudaram os médicos a distribuir medicamentos e prevenir as epidemias e organizaram festivais e recepções. As mulheres jovens aprenderam costura e culinária. Os dois grupos tinham suas reuniões aos domingos. Embora houvesse um número considerável de escolas públicas, a colônia também mantinha escolas japonesas. As associações de jovens e as escolas com professores japoneses foram, sem dúvida, as principais responsáveis pela manutenção da ordem moral tradicional e os sentimentos nacionais. Além dessas instituições, havia várias formas de assistência econômica mútua (kumi), cuja eficiência foi um pouco limitada. Os administradores privados da colônia, junto com o cônsul japonês, exerceram grande influência moral sobre os colonos japoneses. A mera ameaça de exposição tem sido suficiente para evitar problemas entre os japoneses e os brasileiros. A principal sanção aplicada aos infratores era a deportação para a pátria. Desde o início da colonização até o presente momento, o comportamento criminoso entre os colonos do Vale do Ribeira tem sido quase inexistente. Com a grande transformação da política de assimilação do governo brasileiro em 1938, todas as instituições mencionadas não puderam funcionar mais. No entanto, as acomodações nos níveis econômico e moral já haviam se operado sem graves crises pessoais, de modo que a desintegração dessas instituições parece não ter tido consequências desastrosas para os colonos; além disso, deve-se notar que a imigração para o Vale do Ribeira havia cessado [536] alguns anos antes da mudança da política de assimilação do governo. Assim, o equilíbrio já estabelecido quase não foi perturbado. As medidas legais das autoridades brasileiras foram reforçadas pelo controle exercido sobre a imprensa dos imigrantes, que, antes de 1938, tinha se beneficiado de liberdade quase completa. Após essa data, o governo estabeleceu restrições que foram gradualmente aumentadas, até que a publicação de qualquer periódico em língua estrangeira fosse proibida. Religião. Já foi mencionado que os imigrantes japoneses, antes de deixarem sua terra natal, prometeram desistir de suas formas próprias de culto público. Por essa razão, nenhum santuário xintoísta ou templo budista é encontrado em todo o Vale do Ribeira. Apenas algumas casas ainda têm tokonoma e butsudan. Os símbolos religiosos, tais como amuletos, pergaminhos de imagens ou estátuas de divindades xintoístas ou budistas, são raros. Em maior grau, no entanto, ainda existem influências orientais no cemitério de Registro. O culto aos antepassados ​​

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exige cerimônias fúnebres especiais, e a única função do sacerdote budista é realizar essas cerimônias. Os japoneses que foram batizados receberam um nome cristão de origem portuguesa, além do nome japonês. Muitos filhos de japoneses católicos nascidos no Brasil já não recebem pré-nomes japoneses. Em Katsura, todos os habitantes são católicos, e somente entre as pessoas mais velhas ainda é possível encontrar, como um informante expressou, “um pouco de budismo”. Na casa de um colono de sessenta anos dessa vila, um butsudan foi visto pendurado na parede do quarto. Era uma prateleira onde estavam uma estátua da Virgem e duas tabuletas de ancestrais. Na parede, havia um crucifixo com um rosário e nove imagens de santos. A maioria dos japoneses trabalha aos domingos e em feriados [537] cristãos, sendo observados apenas uns poucos feriados japoneses – o dia de Ano Novo e o aniversário do Imperador. Atividades recreativas. Os filhos de imigrantes aprenderam todos os jogos que são comuns entre as crianças brasileiras. No entanto, existe um jogo japonês (o kaice ou kaicem) que agora é jogado por todos os brasileiros, bem como pelos japoneses. Go, o conhecido jogo japonês, também é jogado em Registro. No entanto, o futebol, esporte nacional do Brasil, não foi adotado pelos imigrantes japoneses e seus descendentes. A geração nascida no Brasil ainda prefere o beisebol, que, trazido para o Brasil, juntamente com todos os seus termos técnicos, foi originalmente adotado pelos japoneses a partir dos Estados Unidos. Como o beisebol é jogado apenas por japoneses, ele tende a isolá-los. Por outro lado, o futebol, que tem sido amplamente aceito pelas outras minorias étnicas, coloca-os em frequente contato com os times brasileiros e estimula, em uma dimensão considerável, a assimilação. Idioma. Jornais, revistas e livros, impressos na terra natal ou no Brasil, têm contribuído para a preservação da língua japonesa no Vale do Ribeira. Parece que não há analfabetismo entre os imigrantes, e até a família mais pobre possui uma pequena estante com algumas revistas e livros. A geração mais velha nascida no Japão fala pouco ou mesmo não fala português, e as pessoas mais jovens que cresceram no Japão têm sérias dificuldades fonéticas e gramaticais, mesmo depois de estarem no Brasil por muitos anos. O grupo dos vinte aos trinta anos de idade, dos quais a maioria nasceu no Brasil, não difere dos brasileiros nesse aspecto. Frequentemente foram observados falando português uns com os outros. A utilização da língua portuguesa entre as crianças já foi mencionada. No entanto, as diferenças linguísticas entre as gerações não são as mesmas em toda a região.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.149-159

Entrevista

Entrevista com Michael Burawoy1 Realizada por Gustavo Takeshy Taniguti, Fábio Silva Tsunoda e Wilson Emanuel Fernandes dos Santos* Revista Plural  Você se tornou conhecido por seus estudos etnográficos sobre trabalhadores industriais em Chicago e pelos trabalhos de observação participante como operário, realizados ao longo de vinte anos, em países como Estados Unidos, Zâmbia, Hungria e Rússia. Em suas pesquisas, você desenvolveu o “método de caso estendido”. Em quê esse método é distinto? Michael Burawoy  Bem, essa é uma longa história. Sumariamente, ela tem que ser entendida em dois contextos. Um contexto é o da Antropologia Social na Grã-Bretanha, onde eu fui treinado; tratava-se de um método que os antropólogos sociais usavam quando eles vinham à cidade, na África. Eles estavam estudando vilas e vieram para o meio urbano. Mas como nós, antropólogos, estudamos as cidades? Nós não podemos enclausurar as comunidades com limites claros, como uma vila. Então, eles procuraram desenvolver novas formas de compreender a cidade na África, o que envolvia estudos de casos situacionais – o que eu chamo de “análise situacional” –, estudando casos, greves, danças e vendo como eles refletem uma comunidade urbana mais ampla. Esse é um contexto. O outro é o debate que eu tinha com etnógrafos nos Estados Unidos, que praticavam aquilo que eles chamam de grounded theory. A ideia é de que você vá estudando situações,

1 Michael Burawoy  possui mestrado em Sociologia pela Universidade da Zâmbia (1972) e doutorado na mesma área pela Universidade de Chicago (1976). Foi presidente da American Sociological Association (2003-2004). Atualmente, é presidente da International Sociological Association e professor da Universidade da Califórnia, Berkeley. Ao longo de sua carreira como sociólogo, Burawoy realizou pesquisas em fábricas da Zâmbia, dos Estados Unidos, da Hungria e da Rússia e desenvolveu o “método de caso estendido” para pesquisa etnográfica. Entre suas publicações mais conhecidas estão: Manufacturing consent: changes in the labor process under monopoly capitalism. Chicago: University of Chicago Press (1979); The politics of production: factory regimes under capitalism and socialism. London: Verso (1985); Uncertain transition: ethnographies of change in the postsocialist world. Lanham, MD: Rowman and Littlefield. Edited with Katherine Verdery (1998); Por uma Sociologia pública. Ed. Alameda (em coautoria com Ruy Braga) (2008); The extended case method: four countries, four decades, four great transformations, and one theoretical tradition. University of California Press (2009). Em passagem pelo Brasil, quando participou de eventos acadêmicos, Burawoy concedeu à Plural, no dia 22 de outubro de 2011, esta entrevista. * Respectivamente, doutorando e mestrandos em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

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até que tente remover qualquer esquema teórico de sua cabeça. Então, olha somente para os processos sociais do contexto micro. Alguns trabalhos muito famosos e incríveis foram feitos sob esse esquema. Erving Goffman seria um exemplo disso ou minha colega Arlie Hochschild, de alguma forma. De qualquer modo, eu pensei que basicamente o problema seria, para mim, que os estudos africanos não eram muito teóricos; eles não viam a centralidade da teoria na etnografia. O problema era que os estudos de Chicago – os estudos de grounded theory – eram quase sempre de caráter micro. Eles, na realidade, suspendiam o contexto mais amplo, o contexto histórico-social. Então, o “método de caso estendido” é bastante similar a todas as etnografias, isto é, você vai adiante, estuda a situação no tempo e no espaço das pessoas envolvidas e seus espaços e tempos durante um período estendido. Não se fica lá por algumas horas ou mesmo alguns dias. Você vai lá por semanas, meses ou mesmo anos. Isso tudo é comum à grounded theory e ao “método de caso estendido”, e obviamente que eles [os antropólogos britânicos] fizeram isso na África. Há algumas dimensões mais controversas: a primeira, eu estendi do micro ao macro. Estou interessado na forma como o contato com as forças macro modela as situações micro. Logo, você pode dizer que as teorias de escolha racional olham para as bases da macrossociologia. Eu olho para as bases macro da microssociologia. Então, você pode dizer que essa é uma terceira extensão. Ou melhor, a primeira extensão é quando você vai até os lugares; a segunda, quando você estende isso também no tempo; a terceira é quando você estende do macro ao micro; e a quarta extensão é que não se constrói teoria da observação, mas sim se reconstroem teorias preexistentes. Você inicia com teoria e a reconstrói com base em suas observações. Então, eu não acredito que se possa ir a algum lugar sem teoria, pois todos temos alguma. Acho, aliás, que é necessário tornar isso explícito. A ideia é, em grande parte, reconstruir a teoria. Algumas pessoas falam em sintetizar diferentes teorias, mas o ponto central talvez seja reconstruí-las, muito mais do que induzir. Então, o “método de caso estendido” é distinto, em seus aspectos micro e macro, de começar com uma teoria e reconstruí-la. Foi assim que eu a pratiquei. Mas só aprendi isso ensinando. Não sabia o que estava fazendo, mas, quando comecei a ensinar parte dessa observação, eu tinha que explicar o que estava fazendo, então, sob essas circunstâncias, comecei a formular isso de forma mais sistemática. Então, esse livro, o “método de caso estendido”, basicamente, contém uma coleção de ensaios que escrevi nos últimos vinte anos, tentando entender o que eu realmente faço.

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Entrevista com Michael Burawoy

Revista Plural  Nos últimos tempos, você também tem defendido uma “Sociologia Pública”. Como esse debate tem se desenvolvido no Brasil e no mundo? Michael Burawoy  Bem, no Brasil, é interessante. Eu estive na Bahia, e lá era tudo Sociologia Pública. Tudo! Eles internalizaram completamente e agora têm um nome para o que eles têm feito ao longo de décadas. Eles gostaram do nome – porque talvez alguns não gostem do nome. Mas eles parecem gostar realmente – “Sociologia Pública”. Soa bem para eles. Aquele dia foi extraordinário! Eles são sociólogos públicos espontâneos, estudam coisas que são importantes para o Brasil, com os instrumentos e as teorias da Sociologia – eles têm até mesmo o jornal deles, o CRH. Revista Plural  Cadernos CRH? Michael Burawoy  Isso. Ele é basicamente uma revista de Sociologia Pública. Claro que não totalmente, mas em grande parte. Ou seja, no Brasil, esse negócio de Sociologia Pública não era uma questão. Eu me lembro bem de ter ouvido, na África do Sul, que as pessoas diziam: “Sociologia Pública? Mas o que é Sociologia Pública?”. E o mesmo acontece em algumas regiões aqui no Brasil. Eu me lembro de que, quando vim aqui pela primeira vez, as pessoas me olhavam como se houvesse algo errado comigo. Elas não entendiam o que estava sendo proposto, e eu não percebia por que eles não entendiam – porque é algo bem específico; de alguma forma, já que se trata de ideia norte-americana específica, em que a Sociologia tem um caráter bem mais profissional. Então, basicamente, os sociólogos usam seu tempo escrevendo artigos para outros dois ou três outros sociólogos lerem. Revista Plural  No Brasil também, de certa forma. Michael Burawoy  Bem… Revista Plural  Bom, de alguma forma, os sociólogos aqui vêm se tornando cada vez mais orientados no sentido da profissionalização. Michael Burawoy  Nos Estados Unidos, isso é levado ao extremo – há um grande número de sociólogos, porque o sistema acadêmico é enorme; e tão enorme que as pessoas podem gastar seu tempo apenas escrevendo textos uns para os outros. Eles não encontram audiência além dos sociólogos, nem economistas e antropólogos. Nesse contexto em que a Sociologia é bastante profissionalizada, a “Sociologia Pública” é, em essência, uma posição distinta; é uma posição que se opõe, em certa medida, à Sociologia Profissional.

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Quando eu pregava a Sociologia Pública nos Estados Unidos, eu ia pelo país afora falar sobre isso, e sempre havia uma ou duas pessoas nos departamentos ou faculdades que possuíam um novo sentimento sobre aquilo, porque eu estava legitimando o que eles estiveram fazendo por muitos anos, mas eles eram marginalizados em seus próprios departamentos. Então, eu dei início a um grande debate nos Estados Unidos. Basicamente, quando eu iniciei isso tudo, provavelmente em 2002 ou 2003, o debate começou nos Estados Unidos. Eu vejo, nesse sentido, quatro tipos de Sociologia: Profissional, Pública, Crítica e Política2 (policy). A Profissional é uma pesquisa feita para um cliente; a Pública é mais um diálogo, um debate aberto para o público em geral – bem, ela é bastante pública, mas o ponto é que é também um diálogo, muito mais que o ato de estudar alguém; a Crítica, que é importante particularmente nos Estados Unidos, onde a profissionalização é forte, tem o papel de criticar os valores profissionais e a infusão para o público; e tem a Política. De qualquer forma, há esses quatro tipos de conhecimento sociológico, e eu os defendo sempre, pois precisam se desenvolver cada um a seu modo, já que acredito que a disciplina necessita deles. Eu era atacado por todos os lados – os profissionais me atacavam porque eu estava usando muito do meu tempo enfatizando as sociologias públicas e críticas. Os sociólogos críticos me atacavam porque eu defendia os profissionais. Os políticos pensavam que eu estava politizando a disciplina e ameaçando suas carreiras de sociólogos da política, sobretudo porque, você sabe, se os clientes pensassem que a Sociologia era apenas política, então, eles não teriam mercado. E os sociólogos públicos, por sua vez, pensavam que eu era um vendido por estar achando que a Sociologia Profissional não deveria nem existir (enquanto, na verdade, eu a estava defendendo). O que era interessante é que onde quer que eu fosse era criticado, o que gerou um debate ainda mais amplo. Isso foi trazido à frente quando eu era presidente da American Sociological Association, porque esse foi o tema que eu trouxe e se tornou a melhor reunião da qual eles participaram. Foi em São Francisco, e estava claro que isso estava atraindo bastante interesse, principalmente dos departamentos que não eram da elite. Os departamentos da elite queriam manter uma aura de Sociologia Profissional e confinar a Sociologia Pública apenas para eles – só poderiam 2 O termo policy, na língua inglesa, designa um conjunto de iniciativas governamentais que visam a um determinado resultado para a população; em português, corresponde, grosso modo, à noção de políticas públicas. No texto, o autor parece se referir, com o termo policy sociology, a um conjunto de pesquisas sociológicas voltadas para a análise de políticas públicas ou mesmo pesquisas solicitadas por outra espécie de clientes, como empresas, ONGs, jornais, etc. [Nota dos entrevistadores.]

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falar com o público de fato. Então, eu acredito que comecei a gerar esses debates e essas discussões em outros lugares. Na verdade, sempre disse que minha inspiração para a Sociologia veio da África do Sul. Eu tive uma relação longa com ela, voltando na década de 1960. Lembro-me também de quando retornei para lá, em meados de 1990. Foi um momento incrível, estava claro que o apartheid estava em seus últimos dias. O Nelson Mandela tinha acabado de ser libertado da prisão. Então, eu fui para lá e fiquei encantado com a Sociologia que encontrei, tão engajada com o sentido de uma Sociologia do mundo. Então, esses eram lugares em que havia uma Sociologia Pública forte, mesmo que não institucionalizada. Havia outros lugares onde havia uma Sociologia Política forte – na União Soviética, por exemplo, a Sociologia sempre foi um instrumento do partido. E a Sociologia Crítica era geralmente a Sociologia da dissidência na Europa Oriental. Então, nos vários países, você tem um balanço diferente desses quatro tipos de conhecimento sociológico, e o debate em torno da Sociologia Pública, que emergiu em diferentes lugares, reflete seus respectivos contextos nacionais. Houve algo em torno de vinte a vinte e cinco simpósios. Eles podem ser encontrados em meu website pessoal3. É uma longa resposta para sua pergunta. Então, ainda há um grande interesse. E eu acho que a Sociologia Pública deve ser engajada com as questões do dia a dia. Ela tem se tornado cada vez mais importante. Revista Plural  É possível dizer, então, que o projeto da newsletter Diálogo Global é uma iniciativa desse tipo de Sociologia? Michael Burawoy  Ora, eu criei a Diálogo Global porque, ao me tornar presidente da ISA [International Sociological Association], – eu havia sido o vice-presidente nos quatro anos anteriores, – então, eu tinha várias ideias sobre o que eu poderia fazer caso eu fosse eleito presidente. Era um absurdo que essa Associação Internacional de Sociologia, que existia desde 1949, não possuísse uma newsletter. Era um absurdo! Foi a primeira coisa que eu disse, que eu queria uma newsletter. Nós começamos com algo relativamente pequeno, em três ou quatro idiomas, e então ela se transformou rapidamente em algo mais ambicioso, em que mais pessoas se envolveram. Então, pensei: “O que é isso?”. Quer dizer, eu pensei que ela tinha se tornado cada vez mais uma revista. Ela deveria ser uma newsletter, e todos pensaram isso, mas isso era mais ou menos controverso. Ela é uma espécie de fábrica de Sociologia. Ela tem uma espécie de abordagem política. Na próxi3 Consultar: .

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ma edição, há um grande debate sobre a Sociologia, se ela deve ser estrita e profissional, e é sobre isso que Piotr Sztompka escreveu. Nós temos um grande debate na Sociologia contemporânea, que pode ser encontrado no American Journal of Sociology. Ocupamos um grande espaço nessa revista, discutindo se deveriam existir associações nacionais de Sociologia, ou seja, se há uma ou várias sociologias. Esse é o debate atual. Eu acho que ela está se tornando cada vez mais uma revista de Sociologia Pública, e, ao mesmo tempo, há esses debates dentro da profissão, que também dizem respeito ao ISA. A Diálogo Global tem crescido de forma incrível. Nós a temos traduzida em onze idiomas, e há mais uma a caminho, que é a edição polonesa – então, serão doze. Eu acho que ela tem potencial. Claro, leva certo tempo, mas acho que as pessoas vão lê-la, mesmo que tenhamos que forçá-las [risos]. Revista Plural  Além disso, a iniciativa da Diálogo Global traz uma questão que é o papel da internet na atualidade, a exemplo de movimentos como o Occupy Wall Street e as manifestações em Madrid e na Praça Tahrir. Em sua opinião, qual é a importância da internet como mecanismo de mobilização, informação e disseminação? Michael Burawoy  Obviamente, ela tornou possível esse diálogo global. De forma alguma, poderíamos imaginar fazer isso em doze idiomas. Poucas pessoas podem ir a Buenos Aires, Gotemburgo ou Yokohama, onde fizemos nossos congressos. Nós precisamos ser capazes de conversar com os sociólogos que não podem ir ao local do evento, e o mundo digital permite isso. Mas você também está perguntando sobre uma questão maior, que é o significado da mídia digital para os movimentos sociais nacionais e transnacionais. Bem, não nos restam dúvidas de que ela facilita esses movimentos. O caso mais interessante foi no Irã, antes e depois das eleições. Ficou claro que o Estado iraniano não conseguia lidar com essa interconexão incrível entre os manifestantes, e isso estava ocorrendo claramente também no Egito e na Tunísia. A cada minuto, eu fico sabendo sobre ocupações aqui e ali. Então, o conhecimento sobre tais movimentos tem se movido rapidamente: se há crise, você consegue rapidamente saber o que está acontecendo. Eu não acho que ela é a motivação ou o núcleo desses movimentos. Ela os facilita, apenas. Nós tivemos movimentos sociais antes da conexão digital. Acho que a mídia digital é uma facilitadora, mas não a causadora.

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Revista Plural  Em seu ponto de vista, esses movimentos representam uma nova forma de resistência ao capitalismo ou exigem apenas a inserção dos excluídos no capitalismo? Michael Burawoy  Bem, pode ser que ambos. Eu acho que, em primeiro lugar, eles se apresentam muito diferentes, em lugares também diferentes. Quando eu estava na Espanha, eu fui a Barcelona, estava assistindo ao que estava acontecendo lá nas praças – as montadoras, a auto-organização de grupos de pessoas, havia um monte de estudantes, jovens desempregados, havia uma ou duas pessoas idosas. Nós tínhamos uma visão de democracia participativa. Isso me lembrou alguns dos movimentos – os movimentos estudantis dos anos 1960, em que existia uma raiva similar –, sobretudo quando via tudo aquilo na Praça Tahrir. Hoje não mais. Você tinha uma sensação semelhante lá, talvez houvesse mais pessoas excluídas ali. Na Espanha, os conservadores foram ganhando popularidade, então, a atual oposição foi se tornando cada vez mais insignificante em termos de números, porém mais radical, ao mesmo tempo em que era uma oposição que, de algum modo, não foi uma clara oposição às medidas de austeridade; ao passo que, no Egito, na Índia, na Líbia ou na Tunísia, eles tinham algum tipo de oposição. No Egito e na Tunísia, por exemplo, o neoliberalismo desempenhou um papel, mas, basicamente, isso foi feito contra um regime autoritário. Enfim, eu pretendia enfatizar que elas assumem diferentes formatos, mas acho que a coisa mais interessante é a “comunalidade” (communality). E como se pensa a “comunalidade”? Claro, eu me perguntava sobre essa questão todo o tempo, enquanto viajava – eu tinha que ser um especialista em Occupy Wall Street, quando vinha ao Brasil. Quero dizer, eu, felizmente, visitei Occupy Wall Street e tenho algo a dizer, graças a Deus. Revista Plural  Sim, foi apenas uma coincidência... Michael Burawoy  Mas, na verdade, comecei a desenvolver uma teoria sobre o que está acontecendo. Eu penso no mundo capitalista atual como se ele estivesse preso, por um lado, em uma relação de exploração e, por outro, de exclusão e expropriação. E, nos mercados de outrora, esse campo de desapropriação da acumulação primitiva é o que pôs o capitalismo em marcha. Na verdade, vemos que essa expropriação e exclusão são características permanentes do capitalismo moderno. E podemos ver isso mais claramente aqui no Brasil. Mas você também vê na China, na Índia, na África do Sul, enfim, a exclusão do mercado de trabalho, da terra, de água, de ar puro. E, assim, há uma miríade de privações acontecendo ao redor do mundo. Por exemplo, você tem, por um lado, a exploração ao modo

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antigo, em indústrias capitalistas que empregam trabalhadores, explorando-os, e, por outro lado, existe também o processo de exclusão. Entre os dois, há o que poderíamos chamar de “população muito precarizada”. Eu acho que esses movimentos são o reflexo da crescente importância da precariedade no mundo social. Temos dado atenção renovada à quantidade crescente de precarização que está ocorrendo no mundo. Assim vemos na Europa, nos países em industrialização, no sul do Globo e também em países menos desenvolvidos. Acho que, em países menos desenvolvidos na África, as pessoas são tão excluídas que nem sequer participam. Então, essa é a maior das lutas daqueles que temem a exclusão. É isso que noto na Europa de hoje. Eu estava na Espanha, e um de meus amigos de lá estava fazendo uma pesquisa sobre a precarização. Então, ele fez uma descoberta: 20% da população espanhola está na pobreza, e 65% está em um estado de precariedade. Eles sentem que vão perder o emprego ou cair na pobreza – de uma forma ou de outra, não há escapatória. Mas tudo isso está em um contexto: o capital industrial, em certo sentido, tornou-se muito menos significativo do que o capital financeiro. É por isso que Occupy Wall Street pegou, porque era claramente uma luta simbólica contra os banqueiros, contra o capital financeiro, que é o outro lado do topo. Que diabos é esse capital financeiro? Ora, é muito difícil lutar contra o capital financeiro – para você lutar contra o capital industrial, bastava retirar seu trabalho, você entrava em greve, organizava um sindicato. É isso aí. Como diabos você luta contra o capital financeiro? Isso, em algum sentido, é simbolizado pela forma como esses grupos se recusam a fazer exigências políticas. Mas isso não vai tocar a questão do capital financeiro, pois ele está se espalhando pelo mundo. Revista Plural  Está acontecendo em toda a parte. Isso também ocorre na China, na Índia... Michael Burawoy  Olha, eu acho que a Europa é o foco do momento, embora ache também que existe o outro lado da moeda – é preciso saber muito mais sobre o capital financeiro, embora saibamos que ele seja quase invisível. Ele se move rapidamente. Você pode ter prédios de Wall Street, mas isso não é propriamente onde o capital financeiro está – porque ele está se movendo em torno do céu tão rapidamente. Mas você não pode ocupar tudo – quero dizer, é uma luta simbólica. Revista Plural  E você disse à Folha de São Paulo, em uma entrevista, recentemente, que esses movimentos são muito fluidos e que é sua força e sua fraqueza ao mesmo tempo. Poderia explicar isso?

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Michael Burawoy  De fato. Eles são bastante efêmeros. Quero dizer, eles aparecem hoje, voltam amanhã. O [movimento] espanhol desapareceu, mas nós sentimos que poderia justamente ressurgir amanhã. Não é como se fosse um sindicato, com uma estratégia clara como a que a Solidariedade construiu4. Você sabe, essas são lutas simbólicas que não necessariamente conseguem ganhos. Quer dizer, eu estive observando os alunos em Berkeley lutando contra o aumento das taxas de mensalidade. É impossível lutar contra aumento das mensalidades – eles não conseguem –; eles falham. Logo, esses movimentos não são capazes de se sustentar porque seus ativistas necessitam de alguns ganhos, alguns sucessos. E é difícil obter qualquer ganho e sucesso nesse contexto – no contexto da dominação do capital financeiro. Então, em essência, eles aparecem em levas e depois desaparecem. Nós vimos um exemplo extremo na Bahia. Estava chovendo, mas, ainda assim, eles se conglomeraram e, de algum modo, moveram-se de uma parte da Bahia para outra, apenas para formar um grupo de cerca de vinte pessoas. Por um lado, eles desapareceram, porém, logo eles podem reaparecer. Portanto, há uma fluidez contínua. Quer dizer, é uma fraqueza e também é um ponto positivo. Na Inglaterra, também assim ocorreu, e foi outra história interessante sobre insurgências que não teve o mesmo caráter político daqueles da França, por exemplo, ou da Espanha. Eles também evaporaram do nada; contudo, podem voltar amanhã, porque o sentimento de ressentimento, despojamento e não ingresso no mundo não vai embora nunca. Não há concessões que estão sendo feitas por todos os lados. Isso não vai se desvanecer, já que o impulso continua a existir. Revista Plural  Inclusive, eles foram fortemente associados ao vandalismo pela mídia. Michael Burawoy  Certo, eles eram “vandálicos”. Acho que reflete a peculiaridade da sociedade civil na Inglaterra – Thatcher e Blair, juntos, durante cerca de trinta anos ou mais –, onde a sociedade civil foi praticamente minada. Então, é isso que nós vimos como seu resultado; enquanto a Espanha tem uma sociedade civil ainda sustentável com projetos políticos dentro dele e possuem um partido socialista. Você pode imaginar isso? Não há partido socialista na Inglaterra! É como nos Estados Unidos, onde você só tem dois partidos, que, de um jeito ou de outro,

4 Solidariedade (Solidarność) foi um movimento social polonês que surgiu no início dos anos 1980. O movimento era composto por uma federação de organizações sindicais e por setores mais radicais da Igreja Católica Apostólica Romana. Foi o primeiro movimento sindical polonês anticomunista e viria posteriormente a desempenhar um papel relevante no curso do processo de abertura política polonesa, no final dos anos 1980. [Nota dos tradutores.]

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não representam algo muito diferente. Eu acho que os países que lutaram contra o autoritarismo tendem a ter uma politização muito mais profunda, sobretudo nesse momento. Revista Plural  Há uma última pergunta sobre sua percepção da Sociologia no Brasil. É uma questão ampla. Mas como você vê a produção sociológica brasileira e os problemas? Você vai participar da Anpocs [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais] na próxima semana. Então, como você espera conversar e dialogar com os sociólogos brasileiros? Michael Burawoy  É muito complicado. Eu não me sinto em casa aqui, no sentido de que eu não tenho um conhecimento muito bom de Sociologia brasileira. Quero dizer, quem é meu intérprete o tempo todo, vinte e quatro horas por dia? Quero dizer, a estada na Bahia foi simplesmente fantástica para vislumbrar que eles têm essa questão especial para entender a precarização. Então, obviamente, esse é um tema de importância pública grande, e eles estavam tentando fazer contribuições em torno da Sociologia, da Sociologia mundial da saúde, por exemplo. Eu não posso dizer em que medida isso é representativo dentro da Sociologia brasileira – o Brasil é um país grande –, pois há uma diversidade enorme de sociologias, e diferentes departamentos tendem a ter uma aparência muito diversa entre si. O Rio não é como São Paulo. Portanto, é muito difícil para mim avaliar quais são os pressupostos e preconceitos que as pessoas têm sobre um sociólogo que vem dos Estados Unidos – e que não fala português. Eu gostaria de saber mais ou gostaria também de que fosse mais acessível em inglês – na verdade, gostaria também de ler em português. É claro, uma de minhas missões como presidente da ISA é trazer a Sociologia latino-americana para a ISA, porque todo o continente se envolveu em discussões e conversações, durante tantas décadas. Por volta de 1950 ou 1951, algo assim, e desde então, presumivelmente antes também, houve debates e discussões sobre o que a Sociologia deveria ser. Houve também muitos debates sobre o período das ditaduras na América Latina, o que gerou uma Sociologia muito distinta aqui e grandes contribuições, como as teorias sobre o subdesenvolvimento. E continuaram a fazê-lo: teorias sobre a colonialidade, os movimentos indígenas, o MST, que são movimentos realmente importantes sobre os quais a Sociologia deveria se debruçar mais, porque têm muito a dizer. Minha esperança é que a América Latina não precise do mundo, porque eles têm sua própria língua – quero dizer, vocês têm o português e o espanhol –, vocês têm justamente sua própria comunidade. Só acho que poderíamos aprender muito – quer dizer, nós, o resto do mundo

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– com a América Latina, e, talvez, de alguma forma, vocês podem aprender algo conosco também. O que é interessante aqui no Brasil é o pensamento francês. É incrível. É espantoso como, se você arranhar um sociólogo brasileiro, encontra um francês. É realmente interessante isso. Enfim, espero que eu seja uma influência importante na Sociologia brasileira. É claro que a Sociologia francesa é muito distinta, ou pelo menos tem elementos distintivos. E é isso que faz com que haja interesse em conversas sobre Bourdieu aqui – ontem foi a primeira conversa que tive. De qualquer forma, sim, estes são alguns dos meus pensamentos sobre brasileiros. Claro que a Sociologia brasileira domina a América Latina, como o sul-africano domina a África; isso é outro fator importante. E, claro, os sociólogos brasileiros têm sido cada vez mais ativos em associações internacionais de sociólogos. É sempre um exército. De longe, o Brasil é o terceiro ou o quarto país mais popular a participar da ISA. Então, eles têm uma visão internacionalista, apesar de terem sido treinados muitas vezes [fora] – alguns deles foram treinados na França –, e, por isso, têm uma [visão] internacional. A sociologia brasileira é muito fascinante, e eu gostaria de saber mais sobre ela, pois tive uma impressão melhor. Ora, eu também sou um etnógrafo, então, sinto que tenho que gastar muito mais tempo do que apenas alguns dias no Brasil. Mas, afinal, aqueles eram apenas alguns pensamentos aleatórios. Sim! Revista Plural  Muito obrigado. Ok. É isso, então. Michael Burawoy  Muito bom! Ótimo! Bem feito! O prazer é meu! Boa sorte! Agora temos debates mundiais. Revista Plural  Você é sempre bem-vindo aqui no Brasil.

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Resenha

Para uma compreensão da sociedade situacional: inter-relações do controle do comportamento em lugares públicos Rafael Mantovani*

A relação entre o psiquismo e o social é sempre uma questão difícil. Marcel Mauss, Margareth Mead, os interacionistas e diversas outras correntes do pensamento social e antropológico tentaram equacionar essa relação, mas nem sempre o resultado foi satisfatório. Em determinados casos, a Psiquiatria e a Psicanálise se firmaram com grande êxito formas de interpretação tidas como corretas: trata-se dos casos em que se acredita que há uma disfunção psíquica como causadora do fenômeno social analisado. Contudo, aquilo que a Psiquiatria chama de esquizofrenia e a Psicanálise de psicose não pode ter outra abordagem de investigação? Diz-se de uma investigação em que a relação social surja como elemento detonador de um mal-estar situacional – na rua, em um teatro ou em qualquer local público –, em que alguém não apresente os requisitos pessoais considerados necessários por nossa sociedade para o convívio em grupo. Pergunta-se ainda: o que é chamado de esquizofrenia e psicose deve, necessariamente, ser pensado como um distúrbio mental? Não há fatores sociais na produção desses tipos de “anormalidades”? Goffman pensa que sim. E também tinha a impressão de que usar uma terminologia importada da Psiquiatria e da Psicanálise para explicar fenômenos sociais não seria prudente. Erving Goffman (1922-1982), canadense, firmou-se como respeitado intelectual das Ciências Sociais nos Estados Unidos, especialmente com a obra A representação do eu na vida cotidiana (1956), momento em que se tornou o principal representante do chamado “interacionismo simbólico”, trazendo a linguagem

* Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), mestre em Antropologia pela mesma Universidade e doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

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do teatro para as análises sociológicas e antropológicas. Sua análise teórica se soma, principalmente, à sua prática na luta antimanicomial. Traduzido para o português no ano de 2010, pela editora Vozes, o livro de 1963, originalmente intitulado Behavior in public places: notes on the social organization of gathering (Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos) pode agora ser lido pela lusofonia em seu próprio idioma. A obra é pautada em suas anotações de campo das Ilhas Shetland (norte da Península Antártica), de uma “instituição total” – termo pelo qual ficaram conhecidos, por exemplo, conventos, prisões, manicômios –, o Instituto Nacional de Saúde Mental (Saint Elizabeths Hospital), tendo sido também utilizadas referências de autores literários como Herman Melville, Charles Dickens e Samuel Beckett. O grande esforço do livro é fornecer uma caixa de ferramentas teóricas para um estudo da interação face a face. Goffman parte do pressuposto de que aquilo que é considerado sanidade ou insanidade mental pela Psiquiatria pode ser entendido e explicado de outra forma pela Sociologia e Antropologia: em cada encontro de duas ou mais pessoas, criam-se propriedades situacionais que exigem atenção, e, em geral, o considerado esquizofrênico pela Psiquiatria e psicótico pela Psicanálise é um infrator de regras sociais. Tais regras podem ser encontradas nos manuais de boa conduta, como uma espécie de catálogo. Entretanto, mais do que uma fonte de sugestões para alcançar o sucesso, a boa conduta minuciosamente cuidada, como recomendam tais manuais, é o meio mediante o qual o indivíduo pode se defender da retirada compulsória do espaço público. Para se fazer compreender, Goffman descreve de forma bastante detalhada alguns motivos de comportamentos que as Ciências Sociais ignoram, como, por exemplo, por que falar sozinho é um mau sinal, mas falar sozinho como resmungo ou começar a falar sozinho quando se está fazendo uma atividade muito minuciosa e entra outro ator em cena é, mais do que permitido, necessário. Em suas descrições, pode-se notar a importância exercida pelas coerções invisíveis no trato tête-à-tête; afinal, ninguém é capaz de não emitir nenhuma informação no contato social: basta lembrar-se de que a forma de se passar despercebido é respeitar os comportamentos convencionais e esperados, ou seja, exercê-los, por mais que seu exercício possa significar permanecer calado, sem movimentos – o que também é fonte de informações. Por tratar de temas que praticamente todas as pessoas em sociedade conhecem muito bem, Goffman cria diversos conceitos para nomeá-los e diferenciá-los. Para citar aqui os principais, convém ressaltar “ajuntamento” (conjunto que envolve todas as pessoas presentes e não apenas os imediatamente envolvidos em deter-

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minado momento), “situação” (espaço físico limitado do ajuntamento), “ocasião social” (evento social limitado no espaço e no tempo com um contexto estruturante) e “ambiente de comportamento” (local onde podem ocorrer “ajuntamentos”). Em um “ambiente de comportamento”, por exemplo, na biblioteca, estabelecem-se ocasiões sociais com propriedades situacionais específicas, como, por exemplo, de um lado, homens da manutenção aos quais é permitido usar roupas profanas e falar em voz alta, enquanto, por outro lado, há os leitores aos quais essas possibilidades não são permitidas – fator que pode gerar conflito. As propriedades situacionais surgem, então, como coações, no exato momento em que entra em cena outra “pessoa”. Os relaxamentos a que alguém se permite quando sozinho passam a ser controlados. Convém lembrar que, para diversos agrupamentos nos quais as criadas da corte podem entrar e sair sem serem apresentadas ou mesmo alertarem de sua presença, crianças, loucos e domésticos tampouco mudam o comportamento de outros (chefes, senhores), o que, logicamente, impede sua classificação como “pessoas”. Por outro lado, Goffman não faz uso da linguagem psiquiátrica para analisar os constrangimentos situacionais que podem levar ao enclausuramento. Como tenta demonstrar no transcorrer do livro, não se trata de entender os motivos profundos que acarretam determinados comportamentos, mas apontar que a reclusão ocorre porque há uma infração das regras sociais. Com efeito, expressões como “alucinação” serão rechaçadas. O fio conceitual que conduz ao comportamento em questão (a “alucinação”) se inicia com a ideia de “distante”, ou seja, quando o ator não está de acordo com a “atividade ocasionada” (atividade específica de uma ocasião social), mas (1) pode responder prontamente ao estímulo, caso requisitado (quando se chama a atenção desse que está distraído, ele responde de forma socialmente adequada à atividade ocasionada) ou, ao contrário, (2) está em um “envolvimento oculto”, ou seja, está em outra atividade e não corresponde àquilo que socialmente lhe é requisitado e/ou não consegue se justificar de forma socialmente coerente. A alucinação corresponde ao item 2, sendo um dos principais motivos de reclusão. Esse exemplo traz à baila as duas principais ofensas às situações sociais: a falta de prontidão para estímulos (caso se demore ou se ignore a abordagem de outra pessoa) e a incapacidade de respeitar o imperativo da coerência (caso não se consiga fazer entender as razões de suas ações). Aparece como ponto reflexivo a arbitrariedade social para o conceito de sanidade e insanidade, que é, em realidade, determinado basicamente pelo número de indivíduos que compartem ou podem compartir de determinada crença social. Em

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diversas sociedades, por exemplo, é extremamente comum e justificável conversar com espíritos, assim como o é em reuniões espíritas, já que há um número significativo de indivíduos que compartem tais crenças. Entretanto, se exatamente o mesmo comportamento é exibido por apenas um indivíduo, a probabilidade de acusação de insanidade cresce. Exatamente o mesmo princípio rege o comportamento cauteloso de um indivíduo que comparece a uma festa sozinho, tendendo a se comportar com reserva e mais zelo do que se estivesse acompanhado de outra pessoa, pois, caso acompanhado, a companhia poderia oferecer a prova de sua sanidade. Portanto, a importância da participação de outros na classificação de comportamentos é importante não só para a reclusão ao hospital, mas também à prisão, principalmente por ser capaz de definir também o estatuto criminal de uma ação: depredações podem ser vistas como “jogo”, caso realizadas por um grupo; todavia, exatamente a mesma depredação se torna um “crime” caso realizada por um único indivíduo. A possibilidade de compreender a que se dedica um indivíduo com suas ações é também um tema importante. As roupas situacionais, o tônus de interação (prontidão controlada que denota uma consideração respeitosa) e a necessidade de demonstrar algum envolvimento social são algumas das principais características para a interação não infringida. Caso se pretenda não fazer nada, ou seja, permanecer indolente, é necessário dirigir-se aos locais reservados para tal, como, por exemplo, cafés, com toda a liberdade para não se fazer nada que é aí permitido, ou praias (no caso das praias, contudo, é necessário vestir o uniforme situacional adequado, que institucionaliza a inatividade: da mesma forma que opressões se estabelecem se biquínis forem usados em locais públicos, o mesmo ocorre se roupas sociais forem usadas na praia). Em locais públicos urbanos de interação, é necessária a vestimenta rigorosa (esconder o eu para expor a devida compreensão das regras situacionais), assim como provar constantemente que há orientação para os atos realizados. Muito mais do que a importância do comportamento daquele que aguarda a chegada de um companheiro em uma rua deserta que, ao surgir um desconhecido, passa a olhar no relógio e observar a esquina para atestar a lógica em sua aparente inação e possivelmente sentirá vergonha, caso se suspeite que ele está à toa, a indolência merece ação legal. Todos têm o direito de ir e vir na rua, mas ninguém tem o direito de ficar parado nela. Em Londres e em diversas cidades dos Estados Unidos, pessoas paradas em espaço público são obrigadas a circular (estar parado não demonstra coerência). E, circulando, têm a necessidade de justificar a ação (circular sem objetivo ou destino

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tampouco demonstra coerência). Trata-se de outra das internações clássicas: pessoas que perambulam sem destino aparente. Não compreender as razões do comportamento de um ator é ter sua “confiança no outro” abalada em razão das impressões perturbadoras que ele traz. Em uma situação ameaçadora (uma ameaça contra si pode ocorrer em um ambiente de comportamento), o que se imagina necessário fazer é defender-se contra as dúvidas levantadas pelos infratores situacionais. A internação nada mais é do que a defesa contra essas dúvidas. E aquilo que é chamado de sintoma psiquiátrico é uma infração situacional da qual o infrator não consegue se livrar. Da mesma forma como prisões são criadas para proteger a vida e a propriedade, os manicômios são criados para proteger as situações sociais. A exclusão simbólica daquilo que é uma ruptura das atividades cotidianas é fundamental para a reprodução das práticas institucionalizadas e para a tentativa de minimizar ou impedir o surgimento de ansiedades coletivas. Contudo, qual é o custo social desse controle? Faz-se necessária, assim, a criação de uma Sociologia das Situações; afinal, convém perguntar se tais regras são, de fato, naturais, invioláveis e naturalmente corretas. Dessa maneira, a “caixa de ferramentas conceitual” para análise sociológica ou antropológica passa a apresentar outra importância, quando compreendida a junção de todos os conceitos rigorosamente criados por Goffman: trata-se, nessa medida, de uma crítica eloquente à Psiquiatria em sua tarefa de proteger a sociedade por meio da reclusão daqueles que foram arbitrariamente classificados como insanos. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Goffman, Erving. Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.167-182

Teses Alessandra Teixeira Orientador  Sergio França Adorno de Abreu Título  Construir a delinquência, articular a criminalidade. Um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo Resumo  O objeto deste estudo situa-se no campo poroso das práticas ilícitas e sua repressão, no contexto da cidade de São Paulo, a partir da década de 30 do século XX. Através da categoria de análise ilegalismo e sua gestão diferenciada, investigou-se de que maneira práticas de controle social remotas e prolongadas, marcadas pelo arbítrio policial e pela desativação seletiva da lei, como as detenções correcionais, conectaram-se a economias criminais urbanas que, até meados da década de 60, se estabeleceram sobretudo em torno da prostituição, bem como estiveram implicadas em seu declínio. As detenções correcionais, enquanto modos de se imiscuir nas atividades criminais pelas forças policiais, associadas ainda a padrões exagerados de violência institucional, se revelaram cruciais à emergência da delinquência urbana, na década de 70, como fenômeno atinente à criminalidade patrimonial de massa, difusa, de rua. Já nos anos 90, a consolidação de uma nova economia criminal urbana, o comércio varejista de drogas ilícitas, ao lado do intenso recrutamento daquela criminalidade avulsa e patrimonial à prisão, contribuiu à emergência de um fenômeno atribuído neste trabalho como articulação da criminalidade, para o qual, uma vez mais, a gestão dos ilegalismos, em uma renovada versão, desempenha um papel central. Por último, a fim de retratar a dinâmica mais atual da gestão do crime ordinário na cidade, este estudo analisou dados estatísticos sobre as prisões em flagrante na cidade, na tentativa de estabelecer uma espécie de cartografia do crime urbano e sua gestão. Ainda nessa perspectiva, buscou-se recompor, a partir das trajetórias de adolescentes envolvidos na base da estratificação social do crime, do articulado e disciplinar tráfico de drogas ao avulso e violento roubo, as lógicas acionadas à manutenção e reprodução dos mercados criminais urbanos, os renovados papéis desempenhados na trama dos ilegalismos, anunciando-se, por derradeiro, mudanças na divisão do trabalho policial que tendem a acentuar a militarização como princípio organizador não apenas da gestão desses ilegalismos, mas das formas mais contemporâneas de governamentalidade.

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Amelia Siegel Correa Orientador  Leopoldo Garcia Pinto Waizbort Título  Alfredo Andersen (1860 - 1935): retratos e paisagens de um norueguês cabloco Resumo  Partindo dos confrontos que os estudos de sociologia do gosto atravessam na Europa e na América do Norte, essa tese trata dos processos de distinção social pelo gosto, com ocupantes das mais altas posições na hierarquia social da cidade de São Paulo. Em um primeiro momento, aborda os itens simbólicos das hierarquias culturais legítimas e as técnicas da sociabilidade mundana, tal como se manifestam em manuais de etiqueta, crônicas da vida mundana e críticas culturais, passando em revista algumas estatísticas de dispersão social dos bens culturais e certas representações do consumo encenadas no material da imprensa paulistana contemporânea. Em um segundo momento, o estudo se encaminha para a investigação de como frações das classes altas de duas áreas residenciais de São Paulo (a dos Jardins e a de Alphaville), marcadas por disparidades associadas à estrutura e, sobretudo, à evolução no tempo do volume total do capital, reagem a esses apelos de estilização da vida. A análise de seus confrontos de preferência, realizada com base em entrevistas semidiretivas, permite afirmar que os processos de distinção e estigmatização seguem se revigorando com as classificações conflitivas que explicitam habitus de classe e se atualizam por suas práticas e escolhas estéticas.

Anderson Ricardo Trevisan Orientador  Paulo Roberto Arruda de Menezes Título  Velhas imagens, novos problemas a redescoberta de Debret no Brasil Modernista (1930 - 1945) Resumo  O presente trabalho investiga como a obra do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi redescoberta no Brasil nas primeiras décadas do século XX, especialmente entre os anos de 1930 e 1945. Artista de formação neoclássica, Debret viveu no Brasil entre os anos de 1816 e 1831, época em que criou uma infinidade de imagens sobre o país, desde pinturas históricas para a monarquia até pequenas aquarelas contemplando a vida cotidiana. Tendo sido pouco lembrado pelos brasileiros durante o século XIX, Debret seria especialmente valorizado no século XX. Partindo de sua fortuna crítica oitocentista, passando pelos colecionadores e pela crítica modernista, bem como pelo mercado editorial da época (com destaque para a Revista da Semana), o trabalho pretende compreender os eventos mais significativos dessa redescoberta, bem como suas implicações. 168

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Arlene Martinez Ricoldi Orientadora  Eva Alterman Blay Título  Paraíba mulher macho gênero, cultura e política na educação jurídica popular em João Pessoa-PB Resumo  O presente estudo teve como objetivo analisar as abordagens de gênero em experiências de Educação Jurídica Popular em João Pessoa-PB. Difundidos por todo o país, esses cursos de educação jurídica popular possuem experiências voltadas somente para mulheres (de orientação feminista) ou mistos (sob a perspectiva dos Direitos Humanos). Adotou-se a abordagem dos frames, concepção elaborada para dar conta dos aspectos culturais do ativismo político, por meio da sua delimitação - quadros interpretativos que sintetizam e condensam visões de mundo, orientando diagnósticos e prognósticos. Na análise dos movimentos sociais, auxiliam na análise da influência de valores e crenças no ativismo político. Os procedimentos metodológicos contaram com pesquisa bibliográfica e documental, pesquisa de campo e entrevistas semiestruturadas. A tese percorreu três níveis de discurso: um mais geral, ligado à constituição do Nordeste como terra de cabra macho e da paraibanidade; os valores e missões enunciados pelas agências financiadoras de organizações de Direitos Humanos, que serviram para delimitar os master frames de Gênero e Direitos Humanos, assim como os frames da Fundação Margarida Maria Alves e do Centro da Mulher 8 de Março, ONGs que realizaram, respectivamente, o curso de Juristas Populares (para homens e mulheres) e o curso de Promotoras Populares de Cidadania (só para mulheres); e, por fim, um nível microdiscursivo, no qual a fonte de dados foram entrevistas com pessoas formadas pelo curso de Juristas Populares. A análise revela como Gênero pode ser utilizado de formas bastante diversas. No interior do master frame de Direitos Humanos, pode-se dizer que a preocupação é com a desigualdade social das mulheres pobres. Já no master frame de Gênero, o foco principal continua sendo as mulheres, porém, com a preocupação principal de provocar mudanças nos papéis tradicionais femininos. Nesse último, há lugar para questões como direito ao corpo e livre exercício da sexualidade.

Camila Caldeira Nunes Dias Orientador  Sergio França Adorno de Abreu Título  Da pulverização ao monopólio da violência expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista

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Resumo  O presente trabalho visa compreender o processo de expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema prisional paulista e a figuração social que se constituiu nas prisões como resultado da monopolização das oportunidades de poder pelo PCC. Para tanto, conceitos e concepções teóricas de Norbert Elias são utilizados como ferramentas analíticas para o tratamento do material empírico colhido a partir de fontes diversas. O trabalho é composto por dois eixos de análise: eixo horizontal/processual e eixo vertical/figuracional. O eixo de análise horizontal ou processual aborda o fenômeno de um ponto de vista macrossociológico, em que se focaliza o processo social de desenvolvimento do PCC tendo em vista fatores sociais, políticos e administrativos que direta ou indiretamente estão atrelados a ele. Ainda como parte desse eixo de análise, o processo de expansão do PCC é considerado em termos das várias etapas que o compõem, tendo em vista o papel da violência física direta no exercício do seu poder. O eixo de análise vertical ou figuracional tem como objetivo a compreensão da dinâmica social produzida a partir deste processo. Considerando uma figuração social como ponto de partida da análise, denominada figuração pré-PCC, procurou-se apresentar as transformações ocorridas no universo prisional e que constituíram uma nova figuração social. A nova figuração social produzida a partir da hegemonia do PCC é constituída por uma teia de interdependência individual mais longa e complexa, com uma maior divisão funcional e integração social entre os seus componentes. Diante desta nova forma de dependência, os controles sociais sobre o comportamento individual foram ampliados e centralizados na posição ocupada pelo PCC. A estrutura e organização do PCC, sua dinâmica política e o controle social que adquire a forma de imposição do autocontrole individual, são questões centrais nesta parte do trabalho. O eixo vertical é finalizado com uma discussão sobre a relação de dependência do PCC em face da administração prisional, em que o dispositivo do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é central na manutenção do equilíbrio de poder que garante a hegemonia do PCC e a estabilidade da ordem social do universo prisional. Uma reflexão que perpassa todo o trabalho e que é desenvolvida no capítulo final coloca em discussão a pacificação social que é vista como o efeito mais expressivo do processo de consolidação do poder do PCC. Neste sentido, a fragilidade deste processo é apontada a partir da sua natureza conjuntural e das bases precárias nas quais está apoiado o poder hegemônico do PCC.

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Daniel Pereira Andrade Orientador  Jose Carlos Bruni Título  Paixões, sentimentos morais e emoções. Uma história do poder emocional sobre o homem econômico Resumo  Esta tese faz uma genealogia da concepção de homem econômico emocional, tal como ele aparece no discurso do management americano a partir dos anos de 1990. Para tanto, fez-se uma história de longa duração com a finalidade de compreender como esse sujeito de interesse que estava associado à temática das paixões nos séculos XVII e XVIII pôde se vincular à temática das emoções, surgida apenas no século XIX, advinda da psicologia física e da biologia evolucionista. Para realizar essa história, a tese foi dividida em duas partes. Na primeira, foi abordada a emergência do homo oeconomicus clássico no âmbito da governamentalidade liberal britânica dos séculos XVII e XVIII e foram diferenciadas as três formas de problematização e governo da vida emocional do sujeito de interesse: as paixões, no âmbito da vertente utilitarista-radical do liberalismo, os sentimentos morais, no âmbito da reação do conservadorismo, e as emoções, no âmbito da psicologia física e do evolucionismo. Cada uma dessas três temáticas surgiu ainda no discurso antropológico do sujeito de interesse, mas se desenvolveu em sentidos diferentes: as paixões resultaram no homo oeconomicus, os sentimentos morais, no homo socialis e as emoções, no homo psychologicus. Na segunda parte da tese, demonstra-se como essas três temáticas adentraram as ciências da administração americanas no século XX, caracterizando o controle emocional sobre o trabalho e o consumo. Ainda no discurso do management, essas temáticas se transformaram, em virtude da reação às contestações antidisciplinares da contracultura, dando origem a uma nova concepção de emoções que reúne características das três temáticas anteriores. O discurso do management e, posteriormente, o da teoria econômica neoliberal vinculou essa nova temática das emoções à noção de homem econômico, caracterizado agora pela ideia de capital humano. Constituiu-se, assim, o homem econômico emocional, formando uma distinta concepção antropológica e uma inédita coerência dos dispositivos de poder emocional.

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Eliane Alves da Silva Orientadora  Vera da Silva Telles Título  Governar o ingovernável: gestão da irregularidade urbana em áreas de mananciais em São Paulo Resumo  Esta pesquisa propõe a análise das práticas políticas que se conformam em torno da problemática que relaciona habitação irregular precária e preservação dos recursos hídricos em São Paulo, a saber, as remoções e os processos de reurbanização/regularização. As práticas são analisadas a partir de pesquisa etnográfica realizada no distrito do Grajaú, região sul da cidade, marcado pelo alto crescimento populacional irregular em áreas de mananciais. Em uma abordagem que se afasta daquelas de avaliação de políticas, busca-se compreender as formas pelas quais a gestão dessas áreas produz e lida com situações que chamo de ingovernáveis.

Fábio Cardoso Keinert Orientador  Sergio Miceli Pessoa de Barros Título  Cientistas sociais entre ciência e política (Brasil, 1968-1985) Resumo  A tese reconstitui a experiência do grupo geracional que se alçou à condição de elite das ciências sociais no Brasil, entre 1968 e 1985. A análise parte das condições de viabilização dos novos projetos institucionais, considerando o caráter adverso da conjuntura autoritária. As trajetórias dos cientistas sociais são analisadas, em função de seu enraizamento numa fase de transição, no que se refere às chances de que um domínio mais autônomo de práticas acadêmicas pudesse se constituir. Trata-se de observar o modo como as mudanças estruturais da sociedade brasileira impactaram os arranjos da vida intelectual, tanto no plano do recrutamento de classe de seus praticantes e dos critérios de acesso à carreira, como nos termos de sua inscrição no mundo da política.

Fernando Lima das Neves Orientadora  Maria Arminda do Nascimento Arruda Título  O indivíduo restrito reflexos biográficos da estrutura social brasileira Resumo  Efetuamos uma aproximação (nem tanto exaustiva, mas buscando certos fundamentos e dissensões em cada caso) entre a enorme produção da sociologia francesa sobre o tema juventude e o aumento mais recente dos

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debates e publicações nesse domínio de pesquisa no Brasil. Muitas questões adensaram-se diante de nós, o que contribuiu para delinearmos o passo seguinte da investigação: o fortalecimento de um paradigma individualista em segmentos da sociologia, significativamente atrelado às manifestações juvenis contemporâneas. A partir de dois estudos de caso realizados no estado de Goiás, com vinte jovens de classes populares, destacamos, contudo, que, em se tratanto de sociedades mais hierarquizadas, como a brasilera, cujos processos históricos mais específicos forjaram, nos meandros da lei, das instituições e das percepções sociais, uma modalidade específica de indivíduo, o indivíduo restrito, pautada em um conceito igualmente estreito de cidadania, é necessário ponderar os problemas e as dificuldades de se limitar a análise sociológica aos artefatos subjetivos, sob o risco de se perder de vista a interdependência imanente entre o todo e as partes. Para isso, concentramos a reflexão nas vicissitudes do mercado de trabalho, seus antigos e novos percalços, sua configuração mais recente em cada contexto. Essa dimensão, central quando se trata das novas gerações, expõe mais diretamente os conflitos sociais prementes, forçando outras considerações sobre as trajetórias biográficas, opiniões, experiências e percepções individuais. Por essa via, pensamos ser possível, então, expor os nexos entre os inúmeros indivíduos, com vistas a compreender e a problematizar a intricada paisagem encoberta pela reclusão analítica nas unidades sociais.

Flavio Rosa de Moura Orientador  Sergio Miceli Pessoa de Barros Título  Obra em construção: a recepção do neocentrismo e a invenção da arte contemporânea no Brasil Resumo  O neoconcretismo ocupa posição singular no panorama das artes plásticas no Brasil. O discurso hegemônico sobre o grupo, compartilhado por críticos de formação e extração diversas, enfatiza o caráter de ruptura e seu papel determinante para desprovincianizar a arte brasileira e inseri-la em linha de continuidade com as vanguardas construtivas européias. A proposta deste trabalho é acompanhar como o discurso a respeito do grupo, forjado inteiramente por seus membros, ganha consistência e transforma-se em guia para os intérpretes da geração seguinte, que tratarão de erigi-lo em mito fundador, com conseqüências importantes para a narrativa em torno da arte no país. A tentativa é investigar as condições de formulação desse discurso por parte das

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lideranças teóricas e em seguida indagar os motivos capazes de transformá-lo numa linha interpretativa vitoriosa na fortuna crítica sobre arte no Brasil.

Francisco Raul Cornejo de Souza Orientadora  Maria Arminda do Nascimento Arruda Título  As formas da forma. O design brasileiro entre o modernismo e a modernização Resumo  Empreendendo uma análise sobre a história da inserção social das atividades do designer no universo cultural brasileiro de meados do século XX, procuro iluminar algumas das particularidades que vieram a marcar essa trajetória. Partindo de uma apreciação breve de seus rudimentos e precedentes históricos oriundos de contextos internacionais diversos àqueles do período privilegiado em âmbito local, procuro também traçar os contornos das condições que favoreceram a inclusão do design nas linguagens modernas que vicejavam neste segundo momento mais cosmopolita do modernismo, ainda que à sombra das conquistas da arquitetura. E, finalmente, ao enfocar a perspectiva analítica em dois de seus maiores expoentes, Alexandre Wollner e Aloísio Magalhães, e delinear seus percursos de êxito na profissão desde aquela época, pretendo ressaltar algumas das vicissitudes seminais que vieram a caracterizar a frágil consolidação do design no ambiente cultural e profissional brasileiro até os dias atuais.

Idenilza Moreira de Miranda Orientador  Alvaro Augusto Comin Título  Brasil em busca de um novo padrão de desenvolvimento Resumo  Nas últimas duas décadas, o Brasil passou por importantes mudanças. Consolidou a democracia, abriu ainda mais a economia ao comércio e investidores internacionais, privatizou grande parte das empresas públicas, adotou uma política rígida de controle inflacionário e, pela primeira vez na história, cresce com redução da pobreza e desigualdade de renda. Esse conjunto de mudanças transformou o país. O Estado, a sociedade, o tecido industrial, todos foram impactados e modificados pelas alterações no regime de concorrência, na composição patrimonial e na estrutura social. Sobre essas novas bases, o país procura consolidar um novo padrão de desenvolvimento. Da perspectiva deste trabalho, o Brasil experimenta a transição para um modelo de crescimento

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puxado pela inovação. Dois conjuntos de indícios dão sustentação à nossa hipótese: de um lado, a evolução recente das políticas industrial e de ciência e tecnologia, que além de mais articuladas, passaram a dar relevo à inovação empresarial em suas respectivas agendas; de outro, a atividade empreendedora de um grupo de empresas industriais, responsável por elevar o padrão de competitividade da economia brasileira nos últimos anos, ao apostar em estratégias como desenvolvimento tecnológico, inovação e internacionalização dos negócios. Este novo cenário abre novas possibilidades para o reposicionamento do país no mapa da economia global.

Joana El-Jaick Andrade Orientador  Ricardo Musse Título  O Marxismo e a questão feminina: as articulações entre gênero e classe no âmbito de feminismo revolucionário Resumo  As profundas transformações sociais, políticas e econômicas em processo na Europa no final do século XIX e início do século XX, decorrentes da expansão das relações de produção capitalistas, afetaram indelevelmente inúmeros aspectos da vida privada, trazendo à lume as contradições insertas no modelo de família reproduzido pela sociedade patriarcal burguesa. O relevante papel desempenhado pelos teóricos marxistas neste período histórico possibilitou o desenvolvimento de um movimento feminino organizado com vistas à concretização de um projeto emancipatório socialista, capaz de colocar fim à opressão de gênero e classe. O trabalho em questão pretende analisar a visão de mundo, organização e estratégias de ação formuladas pelos membros da social-democracia no tocante às novas mulheres revolucionárias, bem como a sua repercussão sobre as futuras gerações de feministas socialistas, a fim de questionar a possibilidade de articulação entre as categorias de gênero e classe social no âmbito da teoria marxista.

José Cesar de Magalhães Júnior Orientadora  Vera da Silva Telles Título  Normalização social e o neoliberalismo Resumo  Esta tese analisa um conjunto de noções formuladas por Michel Foucault em seus cursos no Collège de France da segunda metade da década de 1970. Os cursos serviam ao autor como espaços de experimentação teórica e

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histórica para diferentes abordagens que, em parte, foram trabalhadas em seus livros sobre as relações de poder. A invenção de novos níveis, recursos e objetos de análise nestes cursos é, contudo, bastante mais ampla e abre perspectivas para o tratamento de fenômenos políticos mais gerais como o liberalismo e o neoliberalismo para além da interpretação que lhes é tradicionalmente atribuída como doutrinas filosóficas ou econômicas. Liberalismo e neoliberalismo são pensados como racionalidades e tecnologias políticas que franqueiam aos indivíduos certo espaço de liberdade no interior do qual suas condutas podem ser dirigidas em conformidade às normas sociais estabelecidas. É para forçar os limites desta liberdade consentida e dirigida pelos governantes liberais que a crítica de Foucault filia-se ao desejo excessivo e incondicional de mais liberdade dos governados. As noções desenvolvidas nos cursos permitiram, mais recentemente, o desenvolvimento de novas abordagens críticas no campo da sociologia política, como aquelas que ficaram conhecidas como “estudos de governamentalidade” no mundo anglo-saxão. Esta tese parte das diferentes definições da noção de normalização social em Michel Foucault, como em estudos mais recentes, para analisar certas práticas políticas contemporâneas que têm levado a um desbordamento de normas de extração empresarial para âmbitos não-econômicos da experiência social, bem como a um estreitamento do espaço político da crítica no quadro daquilo que se chamou a racionalidade política do neoliberalismo.

Liana de Paula Orientadora  Maria Helena Oliva Augusto Título  Liberdade assistida punição e cidadania na cidade de São Paulo Resumo  Esta tese discute as possibilidades de exercício da cidadania de adolescentes pobres a partir da análise dos discursos e práticas da liberdade assistida na cidade de São Paulo. A proposta de inclusão na cidadania por meio da liberdade assistida, que é uma medida socioeducativa e, portanto, uma punição aplicada aos adolescentes autores de ato infracional, emerge com a redemocratização do país, nos anos 1980, e a mobilização social em torno da formalização dos direitos das crianças e dos adolescentes. Resultando dessa mobilização, o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990, propõe a liberdade assistida como um espaço possível de garantia de direitos e exercício da cidadania. Porém, as práticas dessa medida, incorporadas recentemente pela política de assistência social, traduzem a garantia de direitos em

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esquemas formais de intervenção que se apóiam nas relações familiares e na inserção na escola e no mundo do trabalho, desconsiderarando os conflitos e tensões sociais inerentes aos contextos vividos pelos adolescentes. Terminam, assim, por reiterar situações que limitam e inviabilizam o exercício pleno de sua cidadania.

Lilian Alves Sampaio Orientador  Sergio Miceli Pessoa de Barros Título  Vaidade e ressentimento dos músicos populares e o universo musical do Rio de Janeiro no início do século XX Resumo  Esta pesquisa teve como objeto as condições sociais de produção da música popular no Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX e se desdobrou em três dimensões distintas: os significados culturais da música popular na sociedade da época, a organização do espaço de produção dessa música e as experiências profissionais de alguns músicos que se destacaram no período, como Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Catullo da Paixão Cearense, Eduardo das Neves, Sinhô e Pixinguinha. O estudo sobre as representações que os escritores registraram em romances, contos, crônicas, palestras, críticas e artigos de jornal mostram certa ambigüidade nos significados atribuídos à música popular. Se por um lado esse universo de produção cultural revela-se, já no início do século XX, um espaço de produção de um bem simbólico que vai ser a base para a construção da auto-representação dos músicos como merecedores da admiração e consideração pública, por outro lado, não oferece uma base legítima para o reconhecimento social de seu valor pelos agentes da cultura dominante, que vão enfatizar a vaidade e a presunção desses músicos. Mas essa convicção definitiva de seu próprio valor sugere o início de uma transição na ordem estabelecida pela cultura legítima e que vai se tornar evidente apenas nas décadas seguintes. Ao mesmo tempo, o estudo do espaço de produção da música de divertimento mostra um universo pouco autônomo e pouco estruturado, mas com capacidade de oferecer diferentes tipos de recompensas aos seus músicos: recompensas materiais nos circuitos que concentram as novas mídias e eventos culturais de massa, como o Disco e o Carnaval, e recompensas simbólicas nos circuitos próximos aos espaços legítimos de produção cultural, como o Teatro e a Literatura. Este estudo pretende contribuir para o conhecimento do universo musical do período, ainda pouco explorado, bem como contribuir para a reflexão sobre os modos como

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os condicionantes desse universo foram vivenciados e agenciados de diferentes maneiras por alguns dos músicos mais famosos do período.

Marta Mourão Kanashiro Orientador  Marcos Cesar Alvarez Título  Biometria no Brasil e o registro de identidade civil novos rumos para a identificação Resumo  O tema geral desta pesquisa são as tecnologias que permitem o controle de acesso, vigilância, monitoramento e identificação de pessoas, e que se aliam a construção de bancos de dados e perfis sobre a população. Neste amplo universo, a tecnologia biométrica para identificação foi focalizada a partir de um estudo de caso sobre o novo documento biométrico de identidade brasileiro: o Registro de Identidade Civil. Retomando o conceito de dispositivo em Michel Foucault, buscou-se trazer a tona os discursos, as instituições, as leis, o debate legal, as medidas, decisões, e enunciados científicos que configuram o funcionamento do poder na atualidade. No âmbito das ciências, a biometria hoje distancia-se da antropometria e das formas de identificação do século XIX, vinculando-se a um exercício do poder que não é mais aquele para disciplinar os corpos (Michel Foucault), mas para gerir os fluxos de dados, um corpo de dados. As novas tecnologias focalizadas apontam para um exercício do poder mais próximo do que Gilles Deleuze chamou de sociedades de controle.

Rodrigo Luiz Medeiros da Silva Orientador  Brasilio Joao Sallum Junior Título  Modelos, contramodelos e seu contexto: as respostas sul-coreana a argentina à crise da dívida como evidência da complexa interação entre o processo político e as forças da economia internacional Resumo  No fim dos anos 1970, dois choques externos — o segundo salto nos preços do petróleo e o reajuste na taxa básica de juros norte-americana — marcam o início de tendências econômicas divergentes entre o Leste da Ásia e a América Latina. Para os prósperos “tigres”, a próxima década seria uma janela para o chamado “catching up”, culminando com a promoção simbólica de seu prodígio, a Coréia do Sul, ao status de país desenvolvido quando da realização dos Jogos Olímpicos em Seul. Na América Latina, inversamente, os anos 1980 são geralmente apelidados de “Década Perdida”, inaugurando uma

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era de regressão econômica e instabilidade política. A Argentina, provavelmente a menos dinâmica dentre as economias que então se industrializavam, é geralmente evocada como um “desastre” que tipifica a sina regional. A vasta maioria das investigações acerca desta divergência se concentra nas políticas econômicas domésticas e em seus resultados objetivos. Não obstante, tais políticas foram formuladas e aplicadas sob uma combinação de circunstâncias internacionais e políticas que podem variar consideravelmente de país para país ao longo do tempo. O objetivo deste texto é examinar em que medida algumas das particularidades destes dois casos naquilo que concerne ao processo político interno e à evolução da economia internacional moldaram a reação de cada qual ao cenário adverso.

Silvia Viana Rodrigues Orientador  Jose Carlos Bruni Título  Rituais de sofrimento Resumo  No dia 25/07/2010 o programa Pânico na TV levou ao ar uma brincadeira realizada ao vivo com seus próprios humoristas. Logo que chegaram ao aeroporto de Guarulhos vindos da África do Sul, onde cobriram a Copa da FIFA, foram recebidos pela produção que lhes ofereceu uma carona merecida, já que a equipe estava exausta da viagem e, segundo o próprio programa, havia trabalhado sem descanso e em péssimas condições. Ao invés de irem para casa, conforme o prometido, passaram horas rodando por São Paulo sem destino, até que foram deixados no aeroporto de Congonhas. Lá chegando, um colega humorista os recebeu afirmando que se tratava de uma brincadeira, mas o cansaço do passeio seria apenas a primeira, pois eles deveriam se encaminhar ao estúdio para enfrentarem uma lutadora profissional de vale-tudo. Já muito irritado, um técnico da equipe disse: “Eu sou câmera, eu não tenho que tá participando desse negócio aí (...) tô cansado, porra, são quarenta dias, doze horas, comendo mal...”. Todos os outros protestaram e, transtornados, se recusaram a participar: “É uma falta de respeito isso com o cara que tá trabalhando, quero ir embora, quero ir para minha casa”. O produtor do programa interveio e, com um celular em riste, ameaçou: “tem uma ordem que é do Emílio e do Alan [diretores] pra todo mundo entrar no carro agora e ir todo mundo pra lá”. Não obstante o ódio generalizado, eles retornaram ao carro. O humorista encarregado da piada tentou inúmeras vezes fazer os outros rirem até que, já constrangido, falou em tom de brincadeira: “não fica bravo comigo, tô aqui

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trabalhando, cumprindo ordens”, o outro respondeu: “Brincar... a gente até compartilha com vocês, só que a gente tá sem comer, sem dormir, entendeu? É desumano isso, prá caramba”. O câmera, irado, completou: “Eu tenho uma puta consideração com você, mas como você consegue ver graça nisso, ver seus amigos de trabalho se fodendo (...) uma situação que não tem graça (...) O cara lá em casa vai olhar para mim e achar engraçado ‘há há, o câmera man tá fodido’”. Quando chegaram ao estúdio, aquele que ainda tentava piadas, mas cujo olhar traduzia tristeza, disse com seriedade: “Vem, por favor, eu também tô cansado, desculpa aí.” Como essa coisa pôde ser televisionada sem a menor vergonha? O que sustenta a ameaça dos diretores? Por que a equipe voltou ao carro? Como o humorista suportou “ver seus amigos de trabalho se fodendo”? Por que a piada continuou?

Stefan Fornos Klein Orientador  Ricardo Musse Título  A universidade e a sociologia segundo Max Horkheimer teoria, pesquisa e crítica Resumo  Esta tese versa sobre o modo como o entrelaçamento de sociologia e crítica molda a teoria da sociedade de Max Horkheimer. Para tanto, o presente trabalho foca, sobretudo, os escritos, as falas e o material de arquivo de uma década e meia, de 1948 quando, após o exílio nos EUA, volta à Alemanha, reassume sua cátedra na Johann Wolfgang Goethe- Universität, em Frankfurt am Main, e, logo após, ocupa o cargo de reitor por dois mandatos até 1962, quando se torna professor emérito. O trabalho é composto de quatro capítulos, além de um interlúdio acerca da relação entre formação (Bildung) e ciência (Wissenschaft) no contexto alemão e um excurso que aborda algumas críticas endereçadas à teoria de Horkheimer. No percurso desse empreendimento, a tese reconstrói o contexto histórico e os fundamentos científico-filosóficos da concepção alemã moderna de universidade, bem como localiza o surgimento da sociologia como disciplina científica. Volta-se, ainda, à emergência do tema do conhecimento nos trabalhos horkheimereanos desde a década de 1920, para recuperar a miríade de artigos dos anos 1930 onde desenvolve sua interpretação do materialismo histórico, subjacente aos diagnósticos teóricos elaborados no âmbito do Institut für Sozialforschung. Após focar as obras da década de 1940, Dialética do esclarecimento e Eclipse da razão, ao mesmo tempo em que se aponta as mudanças interpretativas de Horkheimer, enfatiza-

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-se a continuidade em seu pensamento, para concluir debruçando-se sobre as palestras, anotações e material arquival tanto do arquivo pessoal quanto da universidade no intuito de iluminar o seu pensamento no pós-guerra, sistematicamente deixado em segundo plano em variados estudos sobre este autor. Assim, aprofundando aspectos de sua atuação como reitor e o envolvimento no desenho do primeiro curso de sociologia em Frankfurt, quando paralelamente problematiza o espaço que cabe ao ideal de formação no âmbito da sociedade industrial avançada, discute-se, aqui, mais detidamente o modo como, em suas falas públicas do período, Horkheimer aborda os papéis da sociologia, da formação e da universidade no contexto de uma sociedade crescentemente administrada, que se vê às voltas com um ser humano heterônomo condicionado pela razão instrumental.

Stella Christina Schrijnemaekers Orientadora  Maria Helena Oliva Augusto Título  A casa e seus objetos construções da identidade em famílias de camadas populares Resumo  Esta tese apresenta uma análise das relações das pessoas de camadas populares com a casa em que moram e os objetos que a compõe para compreender como se dão os processos de construção da identidade para essa camada da população tomando como objeto suas relações com a moradia e seus objetos. A hipótese do trabalho é a de que o espaço da casa expressa processos de construção da identidade. Esta pesquisa entende que os membros de uma mesma casa não se relacionam com o espaço da mesma forma. Na verdade, acredita-se que o espaço da casa seja negociado, renegociado e apreendido, de acordo com os projetos individuais. Para tanto foram pesquisadas quatorze casas cujas famílias moram numa favela da cidade de São Paulo.

Wataru Kikuchi Orientador  Mario Antônio Eufrasio Título  Relações hierárquicas do Japão contemporâneo: um estudo da consciência de hierarquia na sociedade japonesa Resumo  O tema deste trabalho é a hierarquia na sociedade japonesa contemporânea. Partindo de contribuições de autores clássicos como Ruth Benedict e Nakane Chie, a presente tese pretende fornecer uma descrição e análise das

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relações sociais japonesas. A análise é embasada na teoria da estruturação, principalmente na concepção de consciência discursiva. Para tanto, a família, a escola, as empresas japonesas, a relação sempai-kohai, assim como relações com a classe social e a estratificação são enfocadas. A conclusão é a de que a relação sempai-kohai é a principal referência, e também que a família tem perdido a importância para definição da hierarquia na sociedade Japonesa.

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PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.1, 2012, pp.183-194

Dissertações Catalina González Zambrano Orientadora  Angela Maria Alonso Título  De negros a afro-colombianos. Oportunidades políticas e dinâmicas de ação coletiva dos grupos negros na Colômbia Resumo  Nesta dissertação analisamos as dinâmicas de ação coletiva dos grupos negros na Colômbia, desde a abolição da escravidão a meados do século XIX até a Colômbia contemporânea. Este foco sócio-histórico tem como objetivo observar as mudanças nas oportunidades políticas que permitem, ou não, a ação coletiva de um grupo social. Na medida em que as oportunidades políticas oferecidas pelo Estado são favoráveis para a mobilização, nos interessamos em compreender as estratégias de mobilização e os recursos usados pelos ativistas, assim como as alianças e a especialização do ativismo. A dinâmica da organização do Movimento Afro-Colombiano mudou na ultima década do século XX, quando promulgada a nova Constituição Política nacional e mais uma vez na primeira década do século XXI, quando a população negra colombiana se torna alvo do conflito armado que vive o país.

Ilan Lapyda Orientador  Ricardo Musse Título  A “financeirização” no capitalismo contemporâneo uma discussão das teorias de François Chesnais e David Harvey Resumo  A dissertação procura compreender o fenômeno da financeirização no âmbito do capitalismo contemporâneo. Uma série de transformações iniciadas nos anos 1970 assinalou o declínio do regime de acumulação fordista e a provável emergência de uma nova fase do capitalismo. Sua característica fundamental consiste em um movimento de financeirização, decorrente em parte de mudanças desenvolvidas na esfera financeira. Seus traços mais destacados são o aumento exponencial das transações, tanto em termos absolutos como em relação às atividades produtivas; a liberalização e desregulamentação de mercados e das atividades financeiras em todo o mundo; o surgimento de novos agentes e instituições ligados às finanças. Processo este que desembocou no aumento da importância do capital financeiro nos circuitos de valorização. O caráter recente deste fenômeno ainda não permitiu que fossem estabelecidos

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consensos teóricos sobre a questão. Por conta disso, a dissertação debruça-se sobre as obras de dois pensadores marxistas, François Chesnais e David Harvey, buscando estabelecer semelhanças, diferenças e, sobretudo, as complementaridades de suas contribuições. A escolha de Chesnais se impõe pelo papel destacado que o assunto ocupa em sua obra. Harvey, por sua vez, concede primazia à discussão das relações das finanças com os demais aspectos que caracterizam o capitalismo na atualidade.

Jayr de Andrade Pimentel Neto Orientadora  Sylvia Gemignani Garcia Título  Os pioneiros da desigualdade digital entre membros das classes médias na cidade de São Paulo Resumo  Este estudo teve como objetivo entender os modos de uso de computadores por diferentes membros das camadas sociais médias na cidade de São Paulo, em um momento histórico de aumento do consumo das classes menos privilegiadas. Levando-se em conta a teoria dos campos de Bourdieu, a hipótese central deste estudo é a de que os diferentes modos de uso dos computadores são originados a partir da distribuição desigual dos capitais econômico e cultural entre membros dos diferentes grupos sociais pesquisados. Através da etnografia dos usos, foi possível observar e comparar diversos modos de uso do computador e da internet que colaboram com a hipótese central. Esta pesquisa apresenta as barreiras que a desigualdade digital impõe às classes menos privilegiadas assim como também apresenta algumas estratégias de superação dessas barreiras que essas classes adotam

Jefferson Belarmino de Freitas Orientador  Antonio Sérgio Alfredo Guimarães Título  Desigualdades em distâncias - Gênero, classe, humilhação e raça no cotidiano do emprego doméstico Resumo  Nesta pesquisa, enfatizamos que o cotidiano do emprego doméstico funciona, em grande medida, com base em desigualdades, que se ancoram em diferentes graus de distância social fortemente enraizados em gênero, classe e raça, e se expressam cotidianamente em gestos, palavras e atitudes em geral, mediante um jogo de ação e reação entre patroas e empregadas domésticas. É a condição de classe da empregadora que marca, em primeira instância, a

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distância social mais categórica entre ela e a sua contratada; para sobreviver enquanto profissão, o emprego doméstico necessita, inclusive, reforçar a distância social baseada na classe, posto que é tal distância a primeira a definir, de modo mais preciso, quem é a “empregadora” e quem é a “doméstica. Em um segundo momento, chamaremos a atenção para o papel central que a humilhação exerce no cotidiano do emprego doméstico. A humilhação se fortalece quando formas de desigualdade são extremas, expressando-se, principalmente, por meio de atitudes ríspidas postas em prática pelas empregadoras. Enfatizaremos, por fim, que o emprego doméstico é também centro de desigualdade racial. Isso ocorre porque raça, enquanto categoria construída e manipulada socialmente, ganha força na esfera privada, local onde o emprego doméstico acontece por excelência. A distância social baseada na raça abre caminho para a discussão sobre o papel que o preconceito e, sobretudo, as discriminações raciais apresentam no cotidiano da ocupação. Embasam esta pesquisa, além de uma extensa revisão bibliográfica: dez entrevistas com trabalhadoras (colhidas no contexto da Região Metropolitana de São Paulo), análise de material jornalístico e ficcional e apreciação de documentos de instituições nacionais e internacionais que discutem os caminhos dos direitos humanos em sociedades contemporâneas.

Jefferson Gomes Teixeira Guedes Orientador  Paulo Roberto Arruda de Menezes Título  Formas de produção da “Realidade” no modo de representação observacional uma análise do cinema direto norte-americano dos anos 1960 e de filmes brasileiros dos anos 2000 Resumo  O presente trabalho busca analisar como certos filmes do modo de representação observacional são capazes de incitar no espectador a impressão de vislumbrar a própria realidade na tela, dividindo-se a pesquisa em dois períodos e contextos particulares: nos anos 60, quando surgiu o Cinema Direto nos Estados Unidos em torno da Drew Associates, e nos anos 2000, a partir de dois documentários brasileiros.

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Juliana de Oliveira Carlos Orientadora  Maria Celia Pinheiro Machado Paoli Título  Experimento de exceção: política e direitos humanos no Brasil contemporâneo Resumo  Esta pesquisa procura discutir tensões existentes entre direitos, democracia, igualdade e Estado de Direito no Brasil, valendo-se do estudo do caso de Champinha – jovem autor de ato infracional que transitou de uma medida socioeducativa para uma internação psiquiátrica compulsória. O trabalho procura destacar o aspecto de exceção que marca o caso analisado, ao mesmo tempo em que busca situá-lo em um cenário mais amplo, de criação de outras modalidades de exceção no Brasil contemporâneo. Através dessa discussão, espera-se contribuir para uma sociologia política que articule esses fenômenos ao modelo de democracia brasileira e suas consequências para as possibilidades de política democrática.

Leonardo de Oliveira Fontes Orientador  Brasilio Joao Sallum Junior Título  Raízes do neoliberalismo brasileiro uma análise sociológica do processo de abertura comercial Resumo  O objetivo deste estudo é realizar uma análise em torno do processo de abertura comercial brasileira, transcorrido no início dos anos 1990 e inserido no contexto da crise política vivida com a conclusão da transição para a democracia e a crise econômica advinda dos anos 1980. Dessa forma, buscou-se examinar, de uma perspectiva sociológica, este processo que é comumente analisado apenas a partir do campo econômico. O intuito, então, é compreender o arranjo sociopolítico engendrado pela abertura comercial e que, de acordo com a hipótese aqui defendida, será fundamental para a articulação de um novo arranjo hegemônico no Brasil. Nosso enfoque estará, portanto, na correlação de forças sociais presentes naquele momento, tanto em termos materiais quanto ideológicos, procurando compreender o sentido empreendido pelos atores envolvidos neste processo.

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Lucas Coelho Brandão Orientador  Brasilio Joao Sallum Junior Título  Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 19871988: entre a política institucional e a participação popular Resumo  A dissertação analisa a interação entre a dinâmica da participação popular e a dinâmica político-legislativa a partir do exame da mobilização social ocorrida ao longa da elaboração da Constituição de 1988. Defendo a hipótese de que, no período da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), essa interação foi intensificada e requalificada em função: primeiro, do contexto de crise do estado desenvolvimentista e de crise político-institucional que possibilitou o processo de transição democrática e favoreceu a mobilização social; segundo, do uso, até então inédito no mundo, de instrumentos de democracia direta (como a emendas populares) já no processo de elaboração da nova Constituição, o que criou novas oportunidades para a mobilização social na ANC. Utilizando um arcabouço conceitual e analítico das teorias sobre movimentos sociais (especialmente a Teoria do Processo Político), construo e analiso um banco de dados das ações coletivas realizadas ao longo da Constituinte. Demonstro, por meio desta análise, que esses instrumentos populares geraram uma institucionalização da interação entre os parlamentares e os atores extraparlamentares. E isto produziu impactos significativos tanto na dinâmica político-legislativa quanto na dinâmica da participação popular, influenciando a mobilização social, o jogo político e os resultados da Assembleia Nacional Constituinte.

Luciana de Jesus Dias Orientadora  Marcia Regina de Lima Silva Título  Dinâmicas de raça na periferia: a experiência de jovens da região de M’Boi Mirim Resumo  Nesta dissertação, analiso as diferentes percepções de jovens negros moradores da região periférica de M’boi Mirim acerca de sua condição racial e os modos como a articulavam com outros marcadores sociais tais como, local de moradia e condição social . A partir da revisão dos estudos sobre juventude busco situar os jovens negros na literatura sobre a juventude brasileira. Toma-se o debate acerca da vulnerabilidade social e da heterogeneidade das situações de pobreza nas periferias para caracterizar as condições sociais da região em que os jovens entrevistados estão inseridos. Verificou-se que as percepções e construções acerca da cor ganham contornos diversos ao longo

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das trajetórias de vida dos jovens bem como de seus trajetos urbanos que os colocam em diferentes contextos de interação.

Maria Juliana Konigame Orientador  Leonardo Gomes Mello e Silva Título  O local e o global na comunidade nipo-brasileira um exercício sociológico sob o prisma dos jovens na cidade de São Paulo Resumo  O enfoque deste trabalho é a análise da comunidade nipo-brasileira da cidade de São Paulo (o local) e o impacto do movimento decasségui (o global) nessa comunidade no Brasil. Para tanto, separamos a análise entre grupos externos à comunidade (a sociedade brasileira e o estereótipo positivo no Brasil, e a sociedade japonesa e o estereótipo negativo no Japão) e os grupos internos (a população decasségui, e as gerações mais novas de nipo-brasileiros). Ambos os grupos atuam como forças externas e internas na comunidade, de modo que o que está em jogo em todas essas relações de forças, do ponto de vista de parte da comunidade nipo-brasileira, é a manutenção de seu estereótipo positivo formado no Brasil ao longo de décadas desde o início da imigração japonesa ao Brasil em 1908. Dentro desse quadro, optou-se por fazer uma análise mais voltada para os grupos internos, pois o que realmente interessa são as tensões internas à comunidade, ou seja, o modo como a comunidade lida com essas tensões tentando manter ou preservar seu estereótipo positivo no Brasil. Em relação aos grupos internos, estes possuem terminologias próprias que provam a existência de tensões e diferenças internas que formam o todo conhecido como comunidade nipo-brasileira, de modo que a questão terminológica se torna essencial para compreender as relações entre os grupos.

Nicolau Dela Bandera Arco Netto Orientadora  Sylvia Gemignani Garcia Título  Esforço e ‘vocação’ a produção das disposições para o sucesso escolar entre alunos da Escola Técnica Federal de São Paulo Resumo  Esta dissertação tem como objetivo principal explicar a posição paradoxal de um colégio público de ensino médio em São Paulo considerado de excelência, a Escola Técnica Federal, e a produção social das disposições que sustentam o sucesso escolar de seus alunos. A Federal possui características institucionais híbridas que se traduzem nas oscilações profissionais e peda-

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gógicas dos próprios professores, tais como: o laxismo pedagógico; um corpo docente altamente qualificado; autonomia relativa na docência; ritos acadêmicos típicos das universidades públicas; ausência de um projeto pedagógico unificador. O vestibulinho para ingresso, principal característica institucional da escola, produz tanto uma seleção rigorosa de um público altamente suscetível à ação pedagógica da instituição como um sentimento de eleição entre os jovens aprovados. Os jovens da Federal herdam de suas famílias um capital cultural inicial que possui alto rendimento escolar, principalmente por estar associado à outra herança: a narrativa mitológica do passado familiar. A hipótese explicativa, construída a partir da teoria de Bourdieu, para o alto investimento escolar estabelece que a propensão para investir na educação escolar varia de acordo com o grau em que a manutenção ou a possibilidade de ascensão social da família depende da escola. Para transpor as barreiras que separam as frações das classes médias das frações das classes dominantes, os alunos manejam um repertório simbólico que inclui a história de sucesso da família, valores ascéticos e a crença no mérito necessário para justificar e impulsionar as conquistas escolares e sociais. Busca-se nesta dissertação, portanto, conciliar duas abordagens sobre o sucesso escolar: de um lado, a explicação a partir de fatores estruturais, tais como a posição social das famílias e a posição da instituição no espaço das escolas de ensino médio de São Paulo e, de outro, a interpretação das motivações e representações dos estudantes a respeito dos estudos e de algumas identidades produzidas em interação no interior do próprio colégio, tais como os rótulos dos nerds e do prodígio. Por fim, esta dissertação mostra como o passado escolar e social dos alunos da Federal delimita o campo de possíveis em relação à escolha das carreiras do ensino superior. Esta pesquisa foi realizada a partir da observação do cotidiano da escola, da aplicação de 257 questionários com os alunos do terceiro ano e da realização de entrevistas em profundidade com 21 estudantes, quatro professores e duas mães de alunos.

Pedro Felipe de Andrade Mancini Orientadora  Maria Helena Oliva Augusto Título  O mito da “segunda vida” sociabilidade virtual no Second Life Resumo  O presente estudo visou investigar as estratégias interativas, de manipulação de impressões e de gerenciamento de identidades vigentes no ambiente de sociabilidade de Second Life, um mundo virtual determinado. Nele, indi-

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víduos munem-se de inúmeras ferramentas para administrar a exposição de informações pessoais, o que proporcionaria elevado controle sobre a impressão causada nos demais. A pesquisa compôs-se de uma observação participante em um primeiro momento e posteriores entrevistas com adeptos, selecionados a partir de uma metodologia do tipo bola-de-neve. A análise das regras e táticas de sociabilidade do ambiente em questão deu-se à luz de interpretações sociológicas de Erving Goffman, Georg Simmel e, em menor medida, Pierre Bourdieu. Por meio delas, conceitos como o de manipulação de impressões, cuidado com a face, sociabilidade e coquetismo foram aplicados e adaptados para a compreensão do fenômeno. Após a etapa exploratória, buscou-se situar os valores e mecanismos sociais percebidos em Second Life com relação à sociedade contemporânea fora das telas do computador, conforme apreendida por proeminentes autores atuais como Ulrich Beck, Mike Featherstone e Kenneth Gergen. A partir deles, aplicou-se a visão da liberdade precária, a noção de sociedade de consumo e suas implicações para o gerenciamento de identidades, além da suposta situação de saturação do self notada por Gergen (1991) como dominante em sociedades ocidentais do fim do século passado. Como objetivo norteador do estudo, buscou-se questionar a validade da ideia, propagada por desenvolvedores e adeptos desse mundo virtual, que o percebe como uma alternativa significativa às formas de existência típicas das sociedades ocidentais contemporâneas. Tal abordagem, nem sempre exposta clara e diretamente pelos próprios desenvolvedores desse programa de computador, está implícita em seu próprio Título  segunda vida. Em suma, após uma exploração das regras de sociabilidade típicas do ambiente em questão, contesta-se até que ponto é possível confirmar a existência da produção de identidades e realização plena de liberdade quando da imersão dos indivíduos em mundos virtuais.

Rogério Jerônimo Barbosa Orientador  Lisias Nogueira Negrao Título  A caridade e o interesse a construção da plausibilidade da idéia de “gestão” no catolicismo brasileiro Resumo  A proposta deste trabalho é apresentar uma explicação para a adoção de práticas administrativas e econômicas modernas pela Igreja Católica no Brasil. O objetivo é compreender como os atores religiosos justificam para si mesmos o envolvimento naquilo que anteriormente consideravam absurdo e oposto ao ideal da caridade (cf. Bourdieu, 1996a; Durkheim, 1989; Weber,

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1982). Constata-se a existência de um conjunto amplo de fatos e acontecimentos recentes que indicam a entrada e a ampla difusão de conceitos econômicos e empresariais no interior do catolicismo. Esses fenômenos não parecem ter recebido explicações muito adequadas. O modelo de Bourdieu (1996) sobre a Economia dos Bens Simbólicos leva à um paradoxo insolúvel entre interesse e desinteresse, encerrando-se em uma duplicidade que não explica o movimento crescente de modernização das Igrejas. Também as teorias do mercado religioso não fornecem uma base para a compreensão. Para Berger (1985), a modernização leva ao enfraquecimento das igrejas, o que ocorre. Stark e Iannaccone (1994) não tratam de questões sobre administração e organização (cf. Frigério, 2008). O modelo explicativo adotado foi então o de Boltanski e Thévenot (1999; 2006), que permite fugir ao problema da duplicidade e compreender como são feitas críticas e associações entre ordens de valor. As análises empíricas se procederam em dois planos. Primeiramente, diacrônico, através da identificação das alterações dos formatos da crítica e compromisso entre os universos eclesial e secular. Foi feito então um histórico da idéia e das práticas de planejamento pastoral, desde 1890. Em segundo lugar, uma análise dos discursos contemporâneo daqueles atores que visam difundir, no meio católico, o pensamento e as práticas administrativas modernas. As análises corroboram a explicação proposta, de que a adoção de práticas empresariais se torna possível quando há um deslocamento da ênfase crítica para a ênfase nas figuras de compromisso entre os princípios de valor religiosos e seculares. A construção da plausibilidade da adoção de práticas econômicas capitalistas contemporâneas pela Igreja Católica se realiza quando os religiosos, ao invés de apontarem as atividades seculares ligadas aos bens temporais como expressões de egoísmo, individualismo e declínio dos valores tradicionais, passam a se apropriar delas como reforços para justificar seus objetivos organizacionais. Ou seja, administração moderna é justificada como um meio para evangelizar, promover o bem comum e a justiça; em suma, realizar a missão.

Sílvia Gaban Orientador  Iram Jácome Rodrigues Título  Saber mais, para lutar melhor: concepção e prática da formação sindical no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista e as novas estratégias sindicais no período 1999-2009 Resumo  A formação sindical tem sido considerada um elemento essencial

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para a formação política dos trabalhadores e associada historicamente a um movimento operário forte. Nesse sentido, esta pesquisa tem como principal objetivo estudar a concepção e prática do programa de formação sindical do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, no período de 1999-2009. Há uma concentração nessa década em razão da implantação do novo programa formativo em 1999, por decisão do 3º Congresso dos metalúrgicos, o qual aconteceu em um período de profundas transformações no capitalismo e no mundo do trabalho, cujos impactos se fizeram sentir no sindicalismo desde o início dos anos 1990, indicando uma necessidade de qualificação dos dirigentes e militantes. A pesquisa envolveu trabalho de campo em São Bernardo do Campo, estado de São Paulo, com ênfase no material empírico do Departamento de Formação, onde foram analisados relatórios, planos, dados quantitativos, material didático, associados a entrevistas com formadores profissionais e voluntários com experiência no programa. Foram estudados os seus dois principais eixos temáticos, traduzidos nos cursos Sindicato na Fábrica e Sindicato e Sociedade, bem como o tema voltado à formação dos dirigentes educadores, Formação de formadores. Esse material de pesquisa teve como eixo de análise o conceito de construção da experiência de classe em E.P.Thompson, e ao de socialização em Claude Dubar e Dubet & Martuccelli, associado aos autores do debate sobre essas transformações, como também aqueles que discutem novas possibilidades de identidades sindicais e novas estratégias. Os resultados desta pesquisa apontam não só para a construção de uma experiência consistente e qualitativa de discussão dessas transformações no mundo do trabalho, como para a qualificação de seus dirigentes para a ação sindical, indicando uma resistência dos trabalhadores por meio de novas estratégias em um cenário desfavorável. Entretanto, apesar dos avanços, desafios são postos a esse coletivo.

Tulio Augusto Samuel Custodio Orientadora  Marcia Regina de Lima Silva Título  Construindo o (auto) exílio trajetória de Abdias do Nascimento nos Estados Unidos, 1968-1981 Resumo  A presente dissertação trata sobre a trajetória de Abdias do Nascimento durante o período de seu autoexílio nos Estados Unidos, entre 1968 e 1981. Na pesquisa, verificamos a hipótese que preconiza ser esse momento decisivo para mudança da autoimagem do autor, que sai do Brasil como artista e retorna como liderança do ativismo negro internacional. Investigamos os fatos e expe-

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riências do autor no período, passando pelas atividades, redes pessoais e sua participação em diversos congressos e seminários internacionais. A pesquisa é delineada em dois eixos: discurso e imagem. Discurso envolve a abordagem de Nascimento acerca de cultura negra e sua crítica à democracia racial, que articulariam uma interlocução com elementos conceituais transnacionais, presentes no discurso negro no âmbito internacional. Em relação à imagem, tentamos abordar como o autor, a partir de sua discurso ideológico e atuação, reconstrói sua autoimagem, projetando em seu retorno a posição de liderança negra do ativismo internacional e de pensador da diáspora. Para tanto, analisamos as obras artísticas e políticas do período, bem como elementos anteriores tratados pela literatura sociológica, para evidenciar as formas dessa reconstrução.

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