Plágio, cópia e crítica na erudição histórica da Academia Real da História Portuguesa

July 24, 2017 | Autor: Pedro Silveira | Categoria: Early Modern History, Portuguese Studies, Portuguese History
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Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque de Castro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional de História da Historiografia: biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP, 2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

PLÁGIO, CÓPIA E CRÍTICA NA ERUDIÇÃO HISTÓRICA DA ACADEMIA REAL DA HISTÓRIA PORTUGUESA Pedro Telles da Silveira∗

I Seria interessante começar esta investigação não com as referências às passagens nas quais o problema do plágio ou da cópia aparece mais claramente – antes mesmo de questionar o significado destas mesmas palavras na época –, mas sim com aquelas nas quais se pretende enfatizar o aspecto inverso, qual seja, o da novidade das composições finalizadas pelos membros da Academia Real. De fato, se as menções às problemáticas aqui destacadas não se constituem em aspecto frequente dos textos, prólogos e censuras das obras estudadas, ao menos sua relativa recorrência parece indicar que estavam no interior do conjunto de preocupações aos quais os autores, censores e demais membros dessa mesma agremiação procuravam dar conta para si mesmos e para o público. Essas preocupações – veremos numa seção posterior deste estudo – adquirem maior relevância sob o pano de fundo das transformações por que passa a escrita da história desde finais do século XVII. Tendo isso em mente, é possível destacar o prólogo das Memórias da Ordem Militar de S. Joaõ de Malta, escrita pelo frei Lucas de Santa Catharina e impressa em Lisboa no ano de 1734. Para além do topos da modéstia, através do qual o autor afirma seu desmerecimento ao tratar de tão elevado tema, ele inclui a novidade de seu empreendimento no rol dos argumentos que seus leitores devem considerar para tê-lo em boa conta e julgá-lo favoravelmente: Esta Religiaõ taõ esclarecida, e taõ acredita, he o emprego da minha escritura, desigual assumpto, ainda a mais elevada penna, que a minha, a que só faz affouta o ver, que he a primeira, que a offerece, em fórma de Historia no nosso idioma; e onde se naõ acha caminho trilhado para o acerto, tem se quer esta resposta para satisfazer a Critica (CATHARINA, 1734: II-III; grifo meu)



Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, instituição na qual desenvolve a pesquisa intitulada “O cego e o coxo: crítica e retórica nas dissertações históricas da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724-1725)”, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi. A pesquisa à qual este texto está vinculado recebe apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (CAPES).

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Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque de Castro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional de História da Historiografia: biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP, 2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

O caráter inédito de seu empreendimento – ao menos em português – torna compreensíveis os eventuais defeitos da obra, embora também se possa entrever que a própria novidade é elemento a ser destacado nestas memórias. O parecer do acadêmico José Barbosa, por sua vez, ao seu colega Alexandre Ferreira por conta de seu Supplemento Historico, ou Memorias, e Noticias da Celebre Ordem dos Templarios, publicada um ano após as Memorias de Santa Catharina, permitem entrever que a novidade das composições podia ter um caráter dedicidamente mais positivo: (...) e posso dizer, que cada pagina, que lia, me confirmava mais no grande conceito, que sempre fiz deste illustre Escritor, porque observey, que para investigar as noticias, que pedia o seu assumpto, totalmente novo em Portugal, e para convencer os anachronysmos, em que cahiraõ alguns Authores, naõ perdoou o trabalho (...) (BARBOSA apud FERREIRA, 1735: I-II; grifos meus).

Percebe-se que o assunto totalmente novo da obra implica também na vontade de desfazer os erros e presunções comuns, com o que nos aproximamos do próprio objetivo das memórias históricas. Outro prólogo, agora o das Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem o governo delRey D. Joaõ o I, de autoria de José Soares da Silva, demonstra que, para aquele que compõe as memórias, nunca é o bastante estar atento apenas ao que sua pena origina ao encontrar o papel: (...) trabalho nesta parte invencivel, e inexcusavel, pelo que sempre se encontra de novo no que se acaba de escrever, (...) descobrindo-se Documentos legaes, e veridicos, com que se destroem opinioens assentadas, e envelhecidas, como tambem se póde ver no discurso destas Memorias, nas quais, embora tenha

tido sempre uma “exata diligencia em apurar, e estabelecer a verdade, com as opinioens mais solidas, mais constantes, e mais verossimeis”, é sempre possível haver mais o que ler, averiguar e acrescentar. (SYLVA, 1730: III-IV; grifos meus) A escrita de memórias, portanto, é sempre feita pela adição de alguma informação ou pela emenda de algum autor ou interpretaçaõ que já se conhece anteriormente. Os dois caminhos que se abrem para a execução desta tarefa são a leitura, a validação e a impugnação de autores que já tratarem do assunto discutido ou a descoberta, a transcrição e a avaliação de documentos inéditos. De qualquer forma, impõe-se sempre ao acadêmico Real a tarefa de “escrever mais do que está escrito”.1 1

“Noticias da Conferencia, que a Academia Real da Historia Portugueza fez em 14. de Agosto de 1721”, in Colleçam dos Documentos, Memorias, e Estatutos da Academia Real da Historia Portugueza, 1721, p. 5; como se tratam de coletâneas de textos diversos, em que cada um inicia com uma nova numeração,

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Mas porque estes problemas aparecem quando se trata da escrita de memórias? Um exame da cópia entre os membros da Academia Real irá nos fornecer a necessária entrada aos problemas que lhes assolavam. II De acordo com o dicionário de Raphael Bluteau, cópia, entre outros significados, indica “abundância” (BLUTEAU, 1712: 533) e é nesse sentido que a palavra é mais utilizada entre os membros da Academia Real da Historia Portuguesa. Para Jeronymo Contador de Argote, por exemplo, de modo a se escrever memórias é necessária uma “innumeravel copia de Documentos extrahidos dos Archivos deste Reyno” (ARGOTE, 1732: II); Diogo Barbosa Machado, por sua vez, repete quase que ponto por ponto a exortação: “Para huma Historia naõ ser notada de defeituosa, he necessaria grande copia de documentos” (MACHADO, 1736: VIII-IX). E, antecipando muito do que veremos na próxima seção, é este o sentido do termo quando Filippe Maciel expressa ter entendido, na conferência de 2 de novembro de 1724, do que se trata a escrita de memorias historicas: (...) o trabalho de escrever memorias, era dispor os materiaes para se formar huma Historia; e sendo certo que ao artifice naõ pertence cortar na pedreira o marmore, mas só animalo, era todo o seu cuidado o descobrir materiaes em tanta abundancia, que separados os uteis dos inuteis, pudesse offerecer huma grande copia daquelles ao artifice, a quem esta destinada a composiçaõ da Historia (...). (C.D.M.A.R.H.P, 2 de novembro, 1724: 1-2; grifos meus)

É também através do sentido de “abundância” que se chega aos termos-irmãos de cópia, o copioso e a copiosidade. Seguindo as entradas do dicionário de Bluteau, tem-se o mesmo significado para as três palavras (BLUTEAU, 1712: 533). Percebe-se, portanto, que é possível chegar ao coração mesmo do empreendimento crítico do qual resultam as memórias através do campo semântico definido pelos termos cópia e copioso, empreendimento do qual o padre André de Barros, na passagem a seguir, oferece uma viva e dramática representação: (...) tem que trabalhar a industria, que investigar, que suar. Tem que resolver as Historias alheas, por onde estaõ espalhadas noticias proprias nossas. Tem que

utilizamos a referência em rodapé, assinalando doravante apenas a abreviatura do título e a data da conferência, para além do ano e da página da citação.

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averiguar Chronologias, observar tempo, consultar Archivos, e até resolver pedra, e depois de bem cansados os olhos em ver, tem que chorar sobre as cinzas. (C.D.M.A.R.H.P., 22 de novembro, 1727: 23)

Com isso, podemos ver que, para os acadêmicos, compor memorias podia ser muito diferente de escrever historias. Se foi apenas três anos depois do início das conferências da Academia Real que Filippe Maciel se deu conta do que lhe cabia fazer enquanto trabalhava em suas memórias, pode-se perguntar o que é que apresentava tanta dificuldade neste gênero de composições para que os acadêmicos passassem tanto tempo procurando justificá-lo? III Segundo Mark Salber Phillips, aqueles que estudam a historiografia dos séculos XVII e XVIII muitas vezes o fazem com os olhos voltados para a evolução dos metodos eruditos, isto é, estudam esta historiografia “principalmente em termos de sua contribuição para uma metanarrativa do desenvolvimento disciplinar” (PHILLIPS, 1999: 9). Embora bastante frutífera, esta abordagem acaba por deixar de lado os problemas relacionados ao gênero textual e à própria atividade de escrita com os quais os historiadores e eruditas da época tinham de se haver. As consequências de se deixar em segundo plano esses aspectos se tornam mais graves quando se considera que, muitas vezes, os métodos de pesquisa e os sistemas de escrita não eram diferenciados como etapas ou procedimentos diversos e que, além disso, gêneros historiográficos diferentes implicavam em relacionamentos diferentes por parte do historiador com o material a partir do qual este compunha sua obra. Dito de outra maneira, a pesquisa para escrever uma história não era a mesma para escrever uma memória histórica. Somado a tudo isso, tem-se de pensar no gênero literário como uma estratégia comunicativa (PHILLIPS, 1999: 20-21) de onde se torna compreensível a preocupação dos membros da Academia Real da Historia Portuguesa em serem entendidos – e apreciados – corretamente. De uma forma ou de outra, todos esses aspectos aparecem, com maior ou menor grau de consciência, nos textos que viemos analisando. Dessa forma, já na conferência do dia 28 de agosto de 1721, Manuel Telles da Silva afirma que, embora todos concordem com os fins da escrita da história, há pouco consenso sobre os métodos através dos quais se devem alcançar estes fins; e, a respeito de seu objetivo de compreender a história eclesiástica do bispado de Elvas, ele chegara 4

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à conclusão de que há diferença entre “escrever memorias, e escrever Historia particular de vidas de Prelados”, porque a composiçaõ de memorias permitte disputas de origem de nomes, questoens, e provas de factos duvidosos, dissertações, e discursos, que se naõ admittem na narraçaõ historica de vidas dos Reys, Principes, Prelados, e Varoens insignes, porque deste se deve só escrever a patria, a familia, o nascimento, os empregos, as composições, as acções dignas de memoria, e de exemplo, e outras circunstancias semelhantes. (C.D.M.A.R.H.P., 28 de Agosto, 1721: 11-12)

Histórias e memórias compartilham um mesmo interesse pelo passado, mas o fazem a partir de perspectivas muito diferentes. Passagens como essas abundam nas discussões da Academia Real – das quais os prólogos e censuras fazem parte –, todavia por economia de espaço, trabalharemos apenas com uma passagem das Memorias para a Historia Ecclesiastica do Bispado da Guarda, de autoria de Manuel Pereira da Sylva Leal. Segundo este autor, o gênero das memórias históricas ou memórias para a história “era até agora pouco conhecido na nossa Hespanha, cujos Historiadores quasi sempre escreveraõ Chronicas, ou Annaes” e muito menos conhecidos eram os requisitos para este tipo de composição. Em contraste, é sabido que a história é a “escripçaõ mais difficultosa, a que se póde applicar”, sendo preciso, para escrevê-la, “grandes, e vastas noticias, paciencia, e exacçaõ; de estylo culto, e polido, e outras muitas qualidades no que a compoem, e de hum total reitor de todas as mais ocupações”; a escrita de memórias, contudo, chega a eclipsar as próprias dificuldades da história, pois além de observar todos os preceitos da escrita daquela, o historiador ainda precisa dar conta de realizar o trabalho de juntar as notícias e examinar os factos controversos, ponderar, e referir os fundamentos das opinioens, que achou, e declarar o juizo, que fez sobre elles; ao mesmo tempo, que o Historiador refere, sem ser obrigado a dar razaõ alguma do seu dito: só da ligadura do estylo seguido sem interrupçaõ, está dispensado; por ser este impraticavel na narraçaõ de huns factos, cuja verdade, ou falsidade se vay juntamente examinando: dependendo por esta causa em muitas partes de algumas digressoens. Em fim o Escritor de memorias, he o que junta com industria, trabalho, e vigilancia o cabedal, que o da Historia hade depois dispender a seu arbitrio, sem ter experimentado a molestia da sua aquisiçaõ; e todos sabem quanto mais custoso, e cançado he aquelle emprego, do que este (LEAL, 1729: VII). 5

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Torna-se claro, então, que enquanto a escrita da história requer apenas a ligação entre os fatos numa ordem, nas memórias é preciso reunir as informações, julgá-las e fornecer um veredito sobre as mesmas, ou ao menos os meios para que posteriormente o historiador possa julgá-las. As memórias se constituem, portanto, como gênero que antecede a escrita de uma história (MOTA, 2004). Se, por um lado, reforça-se a necessidade para aquele que escreve memórias de ter um grande conhecimento de tudo o que já foi dito a respeito de seu assunto, seja ele a história eclesiástica de Braga, Elvas ou da Ordem dos Templários, é possível afirmar, por outro lado, que a própria vitalidade do gênero ao escavar arquivos e livros de outros autores acaba por colocar o historiador em posição desvantajosa. De certa forma, é possível afirmar que a própria história savant, ou seja, a história erudita e/ou crítica, acaba por colocar o historiador em maus lençóis. Para sustentar esta afirmação, é preciso olhar para o quadro mais amplo da escrita histórica na qual a atividade erudita se inseria. IV A disputa que colocou frente a frente o padre Joseph Bastide e aquele que é considerado o fundador da ciência da diplomática, Jean Mabillon, é mais frequentemente lembrada por ter motivado a elaboração de uma resposta por parte do último que significou – ainda que temporariamente – o triunfo da erudição histórica por sobre os pré-conceitos baseados na fé ou na confissão religiosa. Pode-se pensar, entretanto, que no ataque de Bastide a Mabillon também estava em jogo os limites entre os diferentes gêneros historiográficos: Sabe-se que o primeiro dever de um historiador e a primeira lei da história é a de procurar e dizer a verdade: mas um homem que nunca escreveu história e somente fez prefácios (...) não deve usurpar o nome de historiador? (BASTIDE apud BARRET-KRIEGEL, 1996: 149).

Frente a este ataque, o golpe de mestre de Mabillon consistiu em afirmar-se enquanto historiador e, ao comparar a este o juiz, indicar de modo muito claro que entre as atividades do historiador se incluía a de escrever prefácios, dissertações e notas nas quais os fatos seriam mais examinados do que narrados (MABILLON, 1990: 104). A inscrição da história dentre as atividades do conhecimento – e não apenas do deleite – é inegavelmente uma defesa da história erudita, entretanto a posição adotada por Mabillon 6

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é apenas uma num amplo espectro de possibilidades existentes àqueles eruditos que procuram justificar suas atividades. Questão com múltiplas respostas: a que gênero e, por conseguinte, a que escritor pertence a composição da história erudita? Uma grande parcela do debate sobre o método passa por aqui. Uma dessas respostas é a dada por Sebastien Le Nain de Tillemont; ao advertir contra a leitura superficial de suas Memoires pour servir à l’Histoire Ecclesiastique des six premiers siecles, o erudito francês reporta também os problemas de gênero que sua obra coloca: L’Auteur aura plus de peine à se justifier dans l’esprit de beaucoup de personnes sur ce qu’il ne donne pas une histoire suivie & continue, comme on a accostumé de faire, mais divisée par titres, où l’on ne voit qu’une chose à la fois, sans qu’on sache ce qui se passoit en mesme temps dans le estre de l’Eglise, ni la liaison que les differens évenemets ont les uns avec les autres. Ainsi elle est assurément moins agreable, & moins avantageuse mesme pour les personnes qui veulent lire l’histoire ecclesiastique, & s’en instruire en peu de temps. Mais ou avoue que ce n’est pas proprement pour ces personnes que l’on a fait ce travail, quoiqu’elles fassent les plus grande nombre. On y a eu principalement en vue, comme on l’a marquée dans la preface des Empereurs, ceux qui veulent s’instruire des choses à fond, soit simplesment pour connoistre la verité & s’en nourri, soit pour composer ensuite quelque ouvrage plus important. (TILLEMONT, 1713: IV-V)

A passagem demonstra que Tillemont – autor que Manuel Pereira da Sylva Leal considera ser o modelo no que toca à escrita de memórias – compreende a defesa da erudição histórica como uma reavaliação dos objetivos da leitura histórica. Isso significa que as memórias não se endereçam ao leitor casual, mas sim a seus colegas eruditos e logo, enquanto gênero, as memórias têm de oferecer algo que atenda às expectativas deste leitor erudito. A composição dos diferentes gêneros historiográficos, portanto, condiciona ao mesmo tempo em que é condicionada por uma série de questões que vão desde a pesquisa até a recepção. A partir desta breve referência ao contexto francês do século XVII podemos perceber que a afirmação da história erudita e/ou crítica resultou – embora seu alcance possa ser questionada – numa transformação de algumas das características pelas quais as histórias eram avaliadas. Preocupações de estilo cederam lugar a problematizações de fontes e a necessidade de verificar os fatos fez o historiador se engajar num processo de prova que, se não era de todo inédito, ao menos foi perseguido de forma mais intensa. As memórias históricas surgem não como recuo no entendimento da história mas como 7

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coroamento dessas posições, afirmando num gênero de composição todo ele novo a primazia da discussão a partir de autores e documentos. Para retornarmos ao contexto português e ao campo de nossas preocupações, veremos como – um tanto quanto inadvertidamente – é a própria erudição que traz a ameaça do plágio, concluindo nosso percurso na presente reflexão. V Num dos inúmeros apanhados que comparam sua tarefa com a dos demais historiadores, o acadêmico Diogo de Mendonça Corte-Real afirma que o “Historiador naõ he Panegyrista, mas sim hum compilador, e instructor dos fatos antigos, para a liçaõ dos seculos vindouros”(C.D.M.A.R.H.P., 8 de fevereiro, 1730: 30). Praticamente a mesma distinção já havia sido feita pelo frei Bernardo de Castellobranco sete anos antes, embora a diferença nos parâmetros indique como, no decorrer de sua existência, os membros da Academia Real foram se acostumando com sua tarefa: (...) se è claramente que quem agora escreve mai vem a ser hum investigador, collector, e copilador de memorias para a Historia, que depois se ha de escrever, do que propriamente Historiador. (C.D.M.A.R.H.P., 13 de maio, 1723: 68)

Percebe-se que, para o frei Castellobranco, investigar e coletar não se colocam entre as tarefas ordinárias do historiador; Corte-Real, por sua vez, é de opinião contrária, o que demonstra a dificuldade que os membros da Academia Real tiveram de assimilar as posições adiantadas por Mabillon e Tillemont, por exemplo – em quem, nomeadamente, se inspiravam. Essas posições resultaram justamente na valorização do que Bastide critica em Mabillon, ou seja, que o historiador deixasse de ser aquele que compõe para ser aquele que coleta. Mesmo assim retorna a pergunta: como compor memórias históricas? No prólogo a suas Memorias, o frei Lucas de Santa Catharina resume numa frase o método que seguiu para escrever sua obra: “escrevo o que acho nas Historias, especialmente nas nossas, ainda que taõ disperso” (CATHARINA, 1734: VII). Embora breve, a passagem pode indicar quase que a totalidade de seu método: de uma parte, a organização de livros, de outra, a cópia e a transferência de anotações de um lado para o outro. Mesmo que à primeira vista simplória, este resumo do método ainda tem muito o que nos revelar. 8

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De acordo com as entradas do Vocabulario Portuguez, e Latino, de Raphael Bluteau, um segundo significado do verbo copiar é o de “Tirar copia. Tresladar” (BLUTEAU, 1712: 533). Como é de praxe, seu uso não possui uma uniformidade, havendo significados variantes. Nesse sentido, na censura que faz às Memorias de José Soares da Silva, Francisco Xavier de Menezes, o 4º Conde da Ericeira, elogia a grande cópia de documentos utilizada por este autor e que depois são passados a sua obra (MENEZES apud SYLVA, 1730: I) e é essa grande quantidade de documentos e autores trabalhados que inviabiliza uma crítica pormenorizada à própria obra, como o próprio José Soares da Sylva com bastante argúcia percebe (SYLVA, 1730: IV). Mesmo assim, ao se endereçar a seu leitor, Sylva toma o cuidado de demonstrar que seu trabalho não foi apenas o de jogar citações, passagens e trechos de um lugar para o outro: (...) se leres estas Memorias com a attençaõ que ellas pedem, acharás, que o que cheguey a compor, naõ foy so trasladar, nem de tudo o que está escrito deste Principe (...). Naõ duvido que se as vires sem esta reflexaõ, poderás abrir estes livros em parte, que digas contigo, isto já está escrito; porém se reparares com mais advertencia o como está escrito, e naõ foraõ factos assentados, e que naõ padecem duvidas na Historia, (que estes saõ muitos), tal vez, que os encontres com alguma novidade,já que o exame de fatos controversos é o que

justifica a escrita de memórias, caso contrário “era escusado escreverse, ou mandarse escrever estas Memorias, naõ se fazendo mais, que dizer o que está dito” (SYLVA, 1730: IV-V). A passagem se torna mais eloquente quando se considera que a palavra plágio nem mesmo consta no dicionário de Bluteau, demonstrando que o problema surge por uma dobra do conceito de cópia, que entre a positividade do copioso admite a negatividade do copiador – trabalho quase mecânico e servil.2 Tendo seguido nossa reflexão até este ponto, estamos aptos a identificar o paradoxo que assim aparece: através das memórias, isto é, através dos procedimentos da história erudita, o historiador assume o papel de um compilador, colhendo e organizando passagens, livros e, até mesmo, bibliotecas e arquivos – ainda assim, é necessário que ele chegue a algum resultado novo com relação a própria bibliografia que constituiu. A dificuldade que se entrevia – qual seja, o retorno das memórias a uma 2

No dicionário de Bluteau, plagiario possui dois significados, ambos derivados do latim: o primeiro, apoiado em Ulpiano, indica aquele que vende escravo por pessoa livre; o segundo, retirado de Marcial, denota “aquelles que se attribuem a si as obras de outros Authores” (BLUTEAU, 1727: vol. IX, 141). Com relação ao segundo significao de cópia, que viemos trabalhando aqui, ele transparece no terceiro sentido de copiador: “Aquelle, que traslada livros, cartas, &c” (BLUTEAU, 1712: vol. II, 533).

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história – encontrava seu corolário na seguinte pergunta: se o historiador é um mero compilador, como ele irá trazer qualquer novidade? VI Muito frequentemente se escreve a história da produção historiográfica entre os séculos XV e XVIII como uma narrativa do progressivo triunfo da disciplina historiográfica, na qual diferentes métodos e procedimentos são adquiridos uns em sequências aos outros e a figura do historiador termina por alcançar sua voz. No presente texto, contudo, procuramos reconstruir alguns dos debates em torno à escrita da história como uma alternativa a certos extremos daquela visão. Dessa forma, cremos que um dos resultados possíveis alcançados no presente texto foi o de compreender essa mesma narrativa não como uma de triunfo mas sim como de complexificação, uma na qual métodos, personagens, demandas e respostas em grande medida se sobrepõem mais do que se seguem; com isso, pudemos deixar claro que, se para uma historiadora como Isabel Ferreira da Mota resume a empresa crítica da Academia Real como a passagem da glosa à crítica (MOTA, 2003: 64), talvez não seja desmedido pensar na glosa dando origem à própria crítica.

Referências Bibliográficas ARGOTE, Jeronymo Contador de. Memorias para a Historia Ecclesiastica do Arcebispado de Braga. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1732. BARRET-KRIEGEL, Blandine. L'Histoire à l'Age Classie - La Défaite de l'Erudition. Paris: PUF, 1996, vol. II. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez, e Latino. Coimbra: Collegio das Artes da

Companhia

de

JESU,

1712,

vol.

II;

1727,

vol.

IX.

CATHARINA, Frei Lucas de Santa. Memorias da Ordem Militar de S. Joaõ de Malta. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1734. FERREIRA, Alexandre. Supplemento Historico, ou Memorias, e Noticias da Celebre Ordem, dos Templarios. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1735.

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LEAL, Manuel Pereira da Sylva. Memorias para a Historia Ecclesiastica do Bispado da Guarda. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1729. MABILLON, Jean. Breves reflexions sur quelques regles de l'Histoire. Paris: P.O.L., 1990, pp. 101-165; tradução para o português de autoria de Fernando Felizardo Nicolazzi. MACHADO, Diogo Barbosa. Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem o governo delRey D. Sebastiaõ. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1736, tomo I. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da Historia. Coimbra: MinervaCoimbra, 2003. PHILLIPS, Mark Salber. Society and Sentiment: Genres of Historical Writing in Britain, 1740-1820. Princeton: Princeton University Press, 1999. SILVA, Manuel Tales da. Collecçam dos Documentos, Memorias, e Estatutos da Academia Real da Historia Portugueza. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1721; 1723; 1727; 1730. SYLVA, Joseph Soares da. Memorias para a historia de Portugal, que comprehendem o governo delRey D. Joaõ o I. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1730, tomo I. TILLEMONT, Sebastien Le Nain de. "Avertissement". in: Memoires pour servir a l'Histoire Ecclesiastique des six premiers siecles. Paris: Carhles Robustel, 1713, tomo I, pp. III-XXI.

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