PLANEJAMENTO FAMILIAR E INTEGRALIDADE EM UM SISTEM A MUNICIPAL DE SAÚDE

July 11, 2017 | Autor: Thereza Coelho | Categoria: Políticas Públicas, Saúde Da Mulher, Anticoncepción
Share Embed


Descrição do Produto

ARTIGO ORIGINAL PLAN EJAM EN TO FAM ILIAR E IN TEG RALID AD E EM U M SISTEM A M U N ICIPAL D E SAÚ D E1

Tânia Cristina Fernandes de Freitas Santanaa Thereza Christina Bahia Coelhob Resumo O trabalho procurou analisar as concepções dos técnicos e dirigentes responsáveis pelo Planejam ento Fam iliare aspráticasporelesdesenvolvidas,em Feira de Santana – Ba,no ano de 2004, relacionando-as às teorias sobre integralidade. O estudo é de natureza exploratória, tendo sido entrevistado profissionais de saúde de três serviços onde são desenvolvidas ações de Planejam ento Fam iliar:a unidade de referência da Secretaria M unicipalde Saúde para o PAISM , um a U nidade Básica de Saúde e outra do Program a de Saúde da Fam ília. Os resultados dem onstraram que as concepções sobre a integralidade se apresentam de m aneira distinta para cada entrevistado,a dependerda categoria profissionalà qualpertence,e do espaço de produção das ações assistenciais. D e um a form a geral, os técnicos de nívelsuperior dem onstraram nas entrevistas um m aior grau de incorporação teórica que não era,necessariam ente,traduzida na prática.As evidências apontaram um m aiorcom prom etim ento da integralidade justam ente onde se concentram os recursos tecnológicos,relacionando-se em parte à percepção dicotôm ica,que, porrazõeshistóricase políticas,perm anece atrelada à form ação predom inantem ente biologicista, e,em parte,à dificuldade do usuário,de sabervalerseusdireitosde cidadão. Palavras-chave:Planejam ento Fam iliar,Contracepão e Integralidade.

1

Trabalho elaborado a partir da dissertação de m estrado de SANTANA,T. C. F. de F.,Ações e concepções de planejam ento fam iliar em um sistem a localde saúde apresentada a Universidade Estadualde Feira de Santana,Curso de Pós Graduação em Saúde Coletiva. a

Enferm eira do Departam ento de Saúde da Universidade Estadualde Feira de Santana-Ba. M estre em Saúde Coletiva. M édica,Doutora em Saúde Pública,Professora Adjunta do Departam ento de Saúde da Universidade Estadualde Feira de Santana -Ba. Correspondência para: Tânia Cristina Fernandes de Freitas Santana. NUSC/D epartam ento de Saúde. Universidade Estadualde Feira de Santana. KM 03 – BR 116 – Cam pus Universitário b

CEP:44031-460 Cidade:Feira de Santana

214

Telefone:(075)3224-8096/95. E-m ail:nusc@ libra.uefs.br

Revista Baiana de Saúde Pública

FAMILY PLANNING AND INTEGRAL CARE IN A MUNICIPAL H EALTH SYSTEM Abstract This research aimed at analyzing the conceptions and practices of the technicians and managers responsible for Family planning in Feira de Santana – Ba, from the point of view of integrality theories. The study, of exploratory nature, interview ed health professionals in three services w here Family planning actions are developed: a Municipal Secretary reference Unit of the Program for W omen’s Integral H ealth Care (PAISM), a Basic Unit, and a unit of the Family H ealth Program. Results show that the integrality conceptions are view ed in different w ays according to each subject interview ed, depending on the professional category involved and on the production environment w here care actions took place. Generally, university level technicians demonstrated higher degree of theoretical incorporation, not necessarily observed in their practices. Evidences pointed out a higher degree of integral care exactly w here technological resources are concentrated, partially due to the dichotomist perception, w hich, by historical and political reasons, became prisoner of the biologicist formation, and partially due to the user’s difficulty in demanding for his citizen’s rights. Keyw ords: Family Planning;Contraception;Integral Care. IN TRO D U ÇÃO A saúde reprodutiva dos brasileiros tem apresentado, ao longo das últimas décadas, uma série de problemas em decorrência das mudanças de comportamento sexual da população, dos padrões culturais que orientam esses comportamentos, e das respostas do campo médico e político a estas mudanças. Por outro lado, o avanço tecnológico da biomedicina não foi capaz de resolver de maneira efetiva antigos problemas de saúde que permanecem como causas importantes para morbi-mortalidade, ou com índices de ocorrência inaceitáveis, considerando-se o nível de conhecimento atual. No caso da mulher, a saúde reprodutiva diz respeito ao seu período fértil, cujos problemas podem ser reunidos, do ponto de vista da epidemiologia, ao redor de três questões principais: a regulação inadequada sobre sua fertilidade;as complicações sobre o ciclo gravídicopuerperal;e a elevada morbidade relacionada à sexualidade e à condição feminina1. Vieira et al

2

apontam como principais problemas da saúde reprodutiva: alta

prevalência de esterilizações cirúrgicas associadas a cesarianas desnecessárias;mortalidade materna incompatível com o nível de desenvolvimento; altas taxas de gravidez não desejada; aborto induzido ilegalmente; e aumento crescente da mortalidade por Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) entre mulheres. Porém as práticas de programas relacionados à reprodução apontam um componente de “controle” e de poucas opções em relação às escolhas dos métodos

v.29 n.2, p.214-225 jul./dez. 2005

215

contraceptivos usados pelas mulheres, limitado à pílula e à esterilização feminina. Esta predominância revela-se pela escassez de outros métodos reversíveis e a insuficiência do Planejamento Familiar no País. Analisando processos históricos, Carvalho3 conclui que as idéias sobre planejamento familiar evoluíram muito. Por muitos séculos, a precariedade sanitária e a de saúde foram fatores que provocaram a estagnação no crescimento demográfico. À medida que as populações se desenvolviam e se dava a evolução científica e tecnológica, melhoravam, de alguma maneira, as condições sociais de vida sociais. O crescimento demográfico entra em evidência e passa a ser tema de discussão em nível internacional, aprimorando-se dentro, desses aspectos, os principais relatos debatidos outrora pela teoria malthusiana 4, que atribuía ao processo de superpopulação os problemas socioeconômicos dos países pobres. Procurando evitar maiores distorções e conscientes das conseqüências que o descaso quanto ao crescimento demográfico poderia provocar, é que os países, em acordos internacionais e internamente, passaram a procurar, por meio de políticas sociais e econômicas, além de programas específicos, tratar com maior seriedade o planejamento familiar, aliando-se aos aspectos relativos à saúde e ao bem-estar da população. Durante os anos 60 e início dos 70, a posição do governo brasileiro tendia oficialmente ao “natalismo”, mas cabendo a entidades privadas e organizações nãogovernamentais as ações de controle do crescimento populacional no Brasil. Em 1974, o governo apresenta um programa na área de saúde reprodutiva, o Programa Materno-Infantil – PMI, e, em 1977, o Programa de Prevenção de Gravidez de Alto Risco – PPGAR, seguido do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde – PREVSAUDE, os quais praticamente não saíram do papel. As questões políticas relacionadas aos direitos reprodutivos ganharam destaque no Brasil através do movimento de mulheres, sendo que a segunda metade dos anos 80 marca um período fundamental de formulação e implantação de políticas públicas com perspectiva de gênero no Brasil5. Na época da criação do PMI, os programas de saúde caracterizavam-se pela verticalidade, com o estabelecimento de metas operacionais para o serviço a partir de definições centrais formuladas pelo Ministério da Saúde, sem qualquer relação com as necessidades identificadas por meio de avaliação da epidemiologia local. O planejamento das ações oferecidas era realizado de forma isolada e o desempenho de cada atividade avaliado per se, sem qualquer abordagem da eficiência para a saúde do grupo atendido. Os programas verticais sobrecarregavam Estados e municípios com uma burocracia ineficiente, resultando em baixo impacto nos indicadores de saúde6.

216

Revista Baiana de Saúde Pública

Na prática, o significado da segmentação dos programas de saúde reflete a ausência de uma visão integral de saúde e da mulher, e, ao mesmo tempo, consagra a tendência da especialização nas profissões médicas. Nesse contexto, aparentemente de forma surpreendente, surgiu, em 1983, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), anunciado como uma proposta diferenciada, baseada no conceito de atenção integral à saúde da mulher, o qual rompe com a visão tradicional e centralizadora acerca deste tema. Este Programa constituiu-se também na primeira vez em que o Estado brasileiro propôs e implantou, mesmo que de forma parcial, o planejamento familiar, ou seja, implantou um programa que contemplava o controle da reprodução7. O PAISM teve como principal diretriz na sua implantação o atendimento à mulher de forma integralizada, oferecendo assistência às mulheres de distintas faixas etárias, etnias ou classes sociais, incluindo as demandas específicas do processo reprodutivo, sendo considerado um marco para a saúde da mulher no Brasil, contemplada, até então, apenas na sua função de reprodução, expressa no binômio mãe-criança. A linha estratégica de intervenção do PAISM explicitava e aperfeiçoava o conceito de integralidade por meio da oferta de ações educativas, promocionais, preventivas e de diagnóstico e recuperação da saúde. As diretrizes gerais do programa previam: a capacitação do sistema de saúde para atender às necessidades da população feminina, enfatizando as ações dirigidas ao controle de patologias, estabeleciam uma nova postura dos profissionais de saúde ante a integralidade das ações de saúde, e pressupunham uma prática educativa para as atividades desenvolvidas. No entanto, têm-se enfrentado enormes dificuldades para implantar, efetivamente, a integralidade dentro de um sistema de saúde que tende a seguir um modelo de especialização na clínica e verticalidade dos programas8. A implantação do PAISM não ocorreu de forma efetiva em todo o território nacional e o descompasso entre as discussões, o planejamento e as medidas práticas, traduziu, na prática, a falta de compromisso político e social para esta implantação. Com a Reforma Sanitária9, o Planejamento Familiar foi tratado em três subcomissões e em duas comissões temáticas (a da Ordem Social e a da Família) da Constituinte de 1988, sempre como direito inalienável dos cidadãos brasileiros. O 7º Parágrafo do Artigo 256, fundamentado nos “Princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”, consagra que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

v.29 n.2, p.214-225 jul./dez. 2005

217

Entre as medidas adotadas estão: a inclusão de anticoncepcionais entre os medicamentos distribuídos pela Central de Medicamentos; a autorização para fabricação e comercialização do DIU (Dispositivo Intra-Uterino); a criação da comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução; a oficialização da política de planejamento familiar, através da Portaria 3.660, e da Lei n.º 9.263/96 que trata do planejamento familiar e regula o §7º do Art. 226 da Constituição de 1988. De acordo com esta lei de 12 de janeiro de 1996, é responsabilidade do Estado propiciar condições para que homens e mulheres tenham acesso a informações, meios, métodos e técnicas para a regulação da sua fecundidade. Segundo a lei, o planejamento familiar é o direito dos cidadãos de decidirem livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos. A implantação do PAISM no Estado da Bahia, não ocorreu, segundo diagnóstico realizado em 199610, em função das baixas coberturas assistenciais, da falta de integração entre as atividades complementares dos diversos níveis de atenção, do atendimento exclusivo à demanda espontânea por serviços de baixa qualidade e a insuficiência das ações educativas, indicando o comprometimento do princípio da integralidade. Em 2002, o Ministério da Saúde (MS) estimula a implantação do planejamento familiar nos serviços da rede pública, em especial no Programa de Saúde da Família (PSF), disponibilizando, às Secretarias de Saúde, métodos contraceptivos; distribui o manual Assistência ao Planejamento Familiar e Orientação Básica para Implantação e Implementação de Serviços de Planejamento Familiar; e passa a repassar recursos financeiros aos Estados e municípios para o pagamento de consultas relativas ao planejamento familiar, bem como a inserção de DIU e a colocação de diafragma11. Em maio de 2004, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, para o período de 2004 a 200712, tem, como uma das diretrizes relacionadas à Saúde da Mulher e ao Planejamento Familiar, a transformação da prática profissional, cabendo aos profissionais de saúde informar e orientar com relação aos métodos anticoncepcionais, sem juízo de valor, sem preconceitos e dando ao usuário liberdade de opção. Diante desse quadro, inúmeras questões surgiram com respeito ao modo como a saúde reprodutiva, âmbito local, é efetivamente pensada e praticada no SUS, orientando o objetivo deste trabalho que é analisar as concepções dos técnicos e dirigentes responsáveis pelo Planejamento Familiar e as práticas por eles desenvolvidas, relacionando-as às teorias sobre integralidade vigentes.

218

Revista Baiana de Saúde Pública

MATERIAL E MÉTODOS O termo integralidade tem sido utilizado para designar um dos princípios do SUS, porém, mesmo sendo consagrado pela Constituição, este princípio ainda encontra dificuldade de se concretizar na prática. Para Camargo Jr13, a integralidade seria “uma rubrica conveniente” para o agrupamento de tendências de conhecimento e políticas com uma ligação entre si. Ou ainda um conjunto de tradições com diferentes vertentes: a do discurso de organismos internacionais através da atenção primária e de promoção da saúde; a da demarcação de princípios existentes nas propostas oficiais de programas do Ministério da Saúde no Brasil; e, por fim, a que efetua críticas e proposições da assistência à saúde por autores acadêmicos. O autor interroga se é possível um tipo de atenção que se dirija à totalidade do ser humano, sem que com isso não se perca a autonomia, a partir de uma medicalização também integral. Além deste desafio, aponta para o fato de que o modelo teórico-conceitual é um forte obstáculo para a proposta de integralidade: [...] no interior dos elementos constituintes do complexo médicoindustrial, há importantes obstáculos à proposta da integralidade. O modelo teórico-conceitual que o articula – o da biomedicina – é um obstáculo epistemológico claro. A ênfase nos aspectos biológicos, a perspectiva fragmentada e fragmentadora, a hierarquização implícita de saberes, são quase que programaticamente opostas às idéias agregadas sob o rótulo “integralidade”. Além dos obstáculos sociais e institucionais. Práticas concretas também se opõem aos modelos da integralidade.

Desse modo, a noção de integralidade surge de uma lacuna, como uma expressão de insatisfação com as formas concretas das práticas de saúde para práticas são reflexos da formulação de políticas no nível macro, a partir do Estado e se concretizam no cuidado de saúde entre e para indivíduos específicos. Para atingir a integralidade nas ações de saúde, o mesmo autor resalta que o maior desafio seria encontrar o “caminho do meio”, entre a medicalização avassaladora que normaliza a vida dos indivíduos e a prática supostamente terapêutica que os desumaniza. Não há, portanto, uma via de regra, um manual a ser seguido, mas uma proposta a ser construída, no cotidiano, na prática de sujeitos que cuidam de outros sujeitos, numa perspectiva ética e emancipatória. Para outro autor, Mattos14, a integralidade no Brasil tem assumido três sentidos: a integralidade como um traço da boa medicina; como um modo de organizar as práticas; e como políticas especiais desenhadas para dar respostas a determinados problemas de saúde que afligem

v.29 n.2, p.214-225 jul./dez. 2005

219

grupos populacionais específicos. A Medicina Integral, de base flexeneriana, se consolidou como movimento constitucionalizado e organizado, mas, para produzir uma postura integral, seria necessário superar os limites da racionalidade médica (anátomopatológica). O autor separa as ações preventivas das assistenciais, que não são demandadas pelos usuários, e recomenda cautela na defesa da utilização de tecnologias de diagnóstico precoce ou incentivos de comportamentos supostamente mais saudáveis que se articulam às ações assistenciais, e que podem estar expandindo o consumo de bens de saúde e alimentando os dispositivos de sustentação social. Ou seja, é necessário um cuidado com a medicalização e com a invasão da vida do paciente como forma de atingir modos de vida mais saudáveis. Por fim, com respeito às configurações de certas políticas específicas, reflete que o PAISM materializou uma crítica ao modo como as questões e os problemas de saúde da mulher vinham sendo tratados pelas políticas e serviços de saúde, que não se inscreviam numa perspectiva de emancipação, ou seja, da superação das diversas dominações. Mas, se a integralidade, a acessibilidade, a eqüidade e a resolutividade dos serviços de saúde se encontram presentes nas propostas oficiais, o que se observa na prática dos serviços são ações isoladas, que negam os meios necessários para a autonomia e a liberdade reprodutiva das mulheres, ao restringir a integralidade e o direito à saúde15. Assim, a integralidade, em qualquer dos seus sentidos, implica uma recusa ao reducionismo e à transformação dos sujeitos em objeto e remete à afirmação da abertura para o diálogo. Diálogo este que remete aos sujeitos da assistência à saúde, aos seus modos de perceber e tratar outros sujeitos que procuram planejar as suas famílias, ou simplesmente ter acesso a métodos de contracepção. O estudo aqui relatado é de natureza exploratória e foi realizado no Município de Feira de Santana, no Programa de Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde, já que este funciona diariamente em nível central no município, tendo um caráter referencial para as outras Unidades de Saúde, além da Unidade Básica de Saúde e do Programa de Saúde da Família. Os dados foram obtidos, após o cumprimento de todos os procedimentos éticos previsto, através de duas técnicas: a pesquisa documental e entrevistas semi-estruturadas realizadas com 9 informantes-chave, a partir de um roteiro pré-elaborado e testado. Os sujeitos da pesquisa foram 3 médicos, 2 enfermeiras, 1 assistente social, 2 auxiliares de enfermagem e uma agente comunitária, sendo que um dos profissionais universitários era dirigente do Programa de Planejamento Familiar da Secretaria Municipal de Saúde de Feira de Santana. Os dados coletados transcritos foram classificados, codificados e categorizados, proporcionando identificar, através da análise e interpretação de documentos e entrevistas, as informações necessárias ao alcance dos objetivos propostos pelo estudo.

220

Revista Baiana de Saúde Pública

RESULTADOS A percepção da integralidade no atendimento médico do serviço público não atingiu uniformemente todos os grupos entrevistados, apresentando, naqueles que tinham noção do seu significado, pequenas variações nas formas de defini-la e praticá-la. O profissional da Unidade Básica de Saúde (UBS) considera que o atendimento ao paciente não se restringe à administração de métodos contraceptivos, mas envolve todo o funcionamento do corpo. [...] ele é visto como um ser que veio pra buscar um cuidado, então ele vai usar do auto exame das mamas, o preventivo, se ele tá apresentando alguma anormalidade, a gente pode detectar durante o programa uma hipertensão, ser encaminhado pro cardiologista, algum outro problema de saúde que elas relatam durante a consulta, ou seja, não fica só restrito à entrega.

O profissional do centro de referência de Planejamento Familiar do município de Feira de Santana, chamado “PAISM”, corrobora essa opinião, quando afirma que a integralidade nas ações da mulher é “a gente olhar a mulher como um todo” e se incomodar com a mulher “ser vista como um útero, ou como mama”. O profissional que atua no PSF considera que vários setores do sistema de saúde devem estar integrados para dar atendimento completo ao paciente que procura a unidade de saúde, sendo necessária a comunicação permanente entre estes setores, a fim de dar um retorno e completar o quadro do paciente de forma abrangente: Integralidade consiste no desenvolvimento de ações integrais à saúde. Então seria você permitir a ela um nível de resolutividade máxima do seu problema de saúde, mesmo que para isso você precisasse lançar mão da intersetorialidade, ou seja, mesmo que para isso você precisasse do desenvolvimento de ações de outros níveis que não estão no seu e que você tivesse esse feedback .

A concepção de integralidade, na visão dos médicos, diverge um pouco. O profissional do PAISM considera apenas os serviços prestados na unidade de saúde pelos profissionais disponíveis: Eu entendo que a integralidade seria a junção das funções, como mais ou menos a gente funciona aqui, ter uma assistente social, uma pessoa que receba a paciente, que saiba orientar ela pra onde ela deve passar, por onde, por quem ela deve passar primeiro, pra daí ela ter todo aquele projeto que deve ser seguido.

v.29 n.2, p.214-225 jul./dez. 2005

221

No caso acima, é interessante observar que a responsabilidade do cumprimento da integralidade deve, para muitos médicos, ser atribuída a outros profissionais, como a assistente social ou enfermeira. Esta perspectiva entra em conflito com a postura integral herdada da “boa medicina”. Para a adoção de uma postura integral, seria necessário superar os limites da racionalidade médica. Retomando Mattos, ao abordar a integralidade como uma dimensão das práticas, pode-se deixar ao profissional, quase que exclusivamente, a realização da integralidade, entretanto estas mesmas práticas estão em geral socialmente configuradas para dificultar a realização da integralidade, tanto no caso de consultas médicas, quanto no caso das visitas domiciliares de um agente comunitário de saúde. O profissional da USB entende como um atendimento aos diversos aspectos da saúde do paciente, encaminhando-o a outros profissionais, caso seja necessário: Eu acredito que seja assim como se fosse a preocupação da pessoa como um todo, não apenas você atender a, principalmente a mulher, a mulher quando procura a ginecologista, ela procura como se fosse um médico clínico em geral, então a gente a partir daí, desse atendimento básico que a gente dá, é que a gente vai indicar alguma especialidade pra ela, então às vezes elas vêm pra a gente, não tem nem queixa nenhuma da parte ginecológica, má a gente termina orientando.

Já o profissional do PSF vai além das fronteiras da unidade de saúde ou do paciente em si e engloba toda a administração pública, como educação, saneamento básico, boas condições de moradia, etc., tornando a concepção mais abrangente e, por conseguinte, mais difícil de ser praticada: A base se chama educação e saneamento básico, se você não tem educação, você não tem capacidade de entender o que o profissional de saúde, o que o grupo está querendo fazer, e, se você não tem saneamento básico, não adianta você “ta” tentando resolver problemas que estão na ponta, só que a origem é lá embaixo, e você não consegue resolver lá embaixo.

Talvez pela própria abrangência da proposta do PSF, a reflexão do profissional acima faz alusão à dificuldade que traz a prática do não reducionismo. Ou seja, ao buscar “olhar a mulher como um todo; e não como um útero ou como mama” , se estará assumindo implicitamente que o(a) paciente ou usuário(a) é um sujeito com diversos tipos de necessidades de saúde, algumas que necessitam de intervenções extra-setoriais e que devem ser de algum

222

Revista Baiana de Saúde Pública

modo respondidas ou encaminhadas. Esta questão foi levantada por Mattos, ao perguntar em que medida a resposta governamental incorpora ações voltadas para a prevenção e ações voltadas para a assistência. Enquanto política pública, a resposta que mais se aproxima do princípio da integralidade, para este autor, é a da AIDS, que consegue abarcar as duas perspectivas. No caso do PAISM e do Planejamento Familiar, cujas ações são incorporadas às diretrizes do programa, ainda que possam ser executadas em outros programas, a integralidade fica restringida na medida em que as ações se encontram fragmentadas. Alguns elementos ou necessidades são entendidos em um espaço institucional, enquanto outros só são contemplados em outro lugar, ou com outro tipo de profissional, resultando que não se oferecem assistência e prevenção de forma completa e integrada em um único local. Por outro lado, os profissionais Técnicos em Enfermagem ou Agentes Comunitários, apesar de não terem acesso à discussão do conceito de integralidade, pois dois dos entrevistados não sabiam o significado da palavra integralidade, demonstraram, como está expresso em uma das entrevistas, um conhecimento prático, às vezes mais acurado do que outros profissionais de nível superior que não conseguem traduzir o teórico para o cotidiano dos serviços: Nós aqui conversamos muito com elas, e elas querem saber tudo de si, e querem que nos explicamos tudo sobre elas, elas querem saber sobre o que se deve fazer com o parceiro, e o que não se deve fazer com o parceiro, aqui nós descobrimos muitos problemas de saúde das mulheres, nós descobrimos que as mulheres têm problema de pressão, e a bomba só cai aqui na mão da gente, porque já “ta” próximo de ter a criança, e quando chega aqui a pressão “tá” super alta e a glicemia “tá” pior, “tá” super alta também. Então é, nós temos que conseguir um leito “pra” essa paciente, ou no Cleriston, ou no Hospital da Mulher. Nós descobrimos de uma adolescente de 15 anos, que ela vinha aqui com os pés e as mãos inchadas, só que não se sabia o porquê, e de manhã ela queixava-se “tá” sempre enjoada e tonta, e quando nós descobrimos, ela “tá” com problema seríssimo de pressão arterial.

Dentro de uma perspectiva, que é a mais comum, impregnada do modelo médicoassistencial privatista, a tendência seria de considerar que problemas de hipertensão não deveriam encontrar algum tipo de encaminhamento ou resolutividade em um serviço de PF, ou mesmo de Saúde da Mulher (PAISM). Entretanto, o técnico de enfermagem compreende a importância de se identificar problemas de saúde, e graças à maior abertura que dá ao paciente, àquela que quer saber “tudo” de si, este profissional se constitui. A grande contradição é que justamente os técnicos de enfermagem e os agentes comunitários, por estarem mais próximos social, econômica

v.29 n.2, p.214-225 jul./dez. 2005

223

e culturalmente, consigam captar as necessidades e dar uma assistência mais integral. Esão justamente aqueles que contam com menos recursos tecnológicos. CONCLUSÕES As concepções sobre a integralidade se apresentam de maneira distinta para os profissionais do sistema de saúde de Feira de Santana que trabalham com o Planejamento Familiar, a depender da categoria profissional à qual pertence, e do espaço de produção das ações assistenciais. De uma forma geral, os técnicos de nível superior demonstraram nas entrevistas um maior grau de incorporação teórica que não era, necessariamente, traduzida na prática. Foi possível captar uma diferença significativa entre as percepções dos profissionais do PSF e da unidade de referência com relação a esta capacidade de traduzir a integralidade em ações concretas, ocupando a UBS, uma situação intermediária neste aspecto. Entretanto, os achados sugerem estar estes profissionais sujeitos a uma limitação na oferta de métodos de contracepção, ficando as respostas, muitas vezes, limitadas a ações educativas, que, por não se acompanharem da oferta sistemática e ampliada de métodos, como ocorre no centro de referência, também restringem o interesse dos usuários na procura dos serviços neste nível. Apesar das limitações oferecidas pela particularidade dos casos estudados e do escopo do trabalho, as evidências apontam na direção de uma situação paradoxal, estando a integralidade mais comprometida justamente onde se concentram os recursos tecnológicos, relacionando-se em parte à percepção dicotômica, que, por razões históricas e políticas, permanece atrelada à formação em saúde, e em especial à prática médica. Essas diferenças na percepção e tradução da integralidade em ações de saúde parecem também comprometer outros princípios e diretrizes do SUS, como a eqüidade e a resolutividade das políticas propostas pela gestão, tanto no nível nacional, quanto estadual e municipal. Outros estudos e análises poderão ser empreendidos para uma maior elucidação destas questões e, conseqüentemente, uma efetiva superação do obstáculo que representa a gravidez indesejada, ou, ainda a infertilidade, para o alcance da emancipação cidadã e saúde plena das mulheres usuárias do sistema único de saúde. REFERÊNCIAS BIBLIOG RÁFICAS 1. Correia L, McAuliffe J. Saúde Materno-Infantil. In: Rouquayrol MZ, Almeida Filho N (Ed). Epidemiologia e Saúde. Rio de Janeiro: MEDSI; 1999.p.373-403. 2. Viera EM, Badiane R, Fabbro ALD, Rodrigues Júnior AL. Características do uso de métodos anticoncepcionais no Estado de São Paulo. Revista de Saúde Pública 2002; 36, 3.

224

Revista Baiana de Saúde Pública

3. Carvalho WDP. Planejamento Familiar e Contracepção. São Paulo: ROCA; 1986. 4. Meira AR. Noções de Planejamento Familiar e do controle da natalidade. São Paulo: Serviços de Artes Gráficas da Coordenadoria das Atividades Culturais da Universidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994. 5. Pitanguy J. O movimento nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos. In: Costa, SH, Giffin K (org). Q uestões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1999. P. 19-38. 6. Costa AM. Desenvolvimento e implantação do PAISM no Brasil. In: Costa, SH, Giffin K (org). Q uestões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1999. P. 319-335. 7. Osis MJMD. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 1998; 14 Supl.1: P. 13. 8. Silver LD. Direito à saúde ou medicalização da mulher? Implicações para a avaliação dos serviços de saúde para mulheres. . In: Costa, SH, Giffin K (org). Q uestões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1999. p.299-317. 9. Costa AM. Planejamento Familiar no Brasil. Bioética 1996; 4 (3): P. 209-15. 10. Bahia, Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Plano Estadual de Saúde 19961999. Salvador: Coordenação de Desenvolvimento de Recursos Humanos/ Divisão de Comunicação e Documentação, 1996. 168 p. 11. Brasil. Ministério da Saúde. A Saúde no Brasil: indicando resultados 1994-2001. Série C projetos Programas e Relatórios. Brasília - DF: Editora MS, 2002. 12. Brasil. Ministério da Saúde. 2004. Disponível: http://portalweb02.saude.gov.br/saude 13. Camargo Júnior KR. Um ensaio sobre a (in)definição de integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (org.). Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO; 2003. 228p. 14. Mattos RA. Integralidade e a formulação de políticas específicas de saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA (org). Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO; 2003. 228p. 15. Coelho EAC, Garcia TR. Política de atenção à saúde da mulher: um jogo de luzes e sombras: Revista Toques de Saúde, João Pessoa; 2004; 3. Recebido e aceito em 03/07/2005

v.29 n.2, p.214-225 jul./dez. 2005

225

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.