«Plasma [‘Arrancar Penas A Um Canto de Cisne’, de Luís Quintais]», Café Com Letras, nº3, Junho de 2016.

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PLASMA Arrancar Penas A Um Canto de Cisne, de Luís Quintais PEDRO SERRA

O enigma sem enigma que pressiona a poesia de Luís Quintais tem figuras maiores tanto no fluxo de energia como no fluxo de informação, latência figural que admite diferentes actualizações nos vinte anos de poesia reunidos no recente Arrancar Penas A Um Canto de Cisne (2015). Neste enigma sem enigma – “Nada se esconde, tudo se revela” (640)1 – podemos interpelar uma espécie de substrato de figuras de que elejo, não como saldo que lhe perfaça a síntese mas como possível entrada por onde começar – outros começos são viáveis, trato apenas de começar outra vez –, o “plasma” que diferentes poemas aí coligados vão declinando. É como corpo sólido que o livro vem ao nosso encontro e golpeia, asa férrea que tem um gémeo na peça de Rui Chafes, “Crepúsculo” (2000), opaca imagem da capa, mas também translúcida, camuflando-se – dir-se-ia fóssil de um animal teratológico que ainda adeja, pairando para além da sua própria condição jacente. Atingem-nos, volume – livro de livros – e imagem, como massa crítica que fosse posteridade e promessa de uma demolição. Na aporética desse ‘depois’ que é também ‘antes’, o livro de livros congrega (apresentadas em ordem inversa à cronologia do tempo linear que acostuma fazer as contas de uma vida dedicada à poesia) as colectâneas publicadas até 2015 – recomeçando tudo pel’O Vidro (2015) e, na sintaxe consecutiva a que pode empurrar o códice e convenções de leitura, clausurando o conjunto com a ‘opera prima’ A Imprecisa Melancolia (2005). Gesto equívoco que sublinha com traço ainda mais grosso algumas determinações das retóricas espacial e temporal desta massa corporal, ambas certamente tendo na ‘fita de Moëbius’ uma produtiva analogia, indistinguindo

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Paginação referente a Luís Quintais, Arrancar Penas A Um Canto de Cisne, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015.

últimos e primeiros, colocações e deslocamentos. A assumida compulsão da experiência poética de Luís Quintais pela foz – “o que me interessa está sempre a jusante” e “A memoria faz-se ao contrário” (12), lemos no texto proemial do conjunto –, faz dela paradoxal fonte, muito embora tocada por uma irreparável condição exangue. Tudo isto, do meu ponto de vista, devolve-nos ares de família entre Arrancar Penas A Um Canto de Cisne, massa crítica que sonha o voo – no próprio título, o desnudamento implume é a revelação lírica –, e o próprio poema ou poeta, que haverá que entender não tanto como dínamos transformadores de energia – descrição possível, creio, do angelismo formal da poesia dita moderna –, mas sim como fantasmagoria – ou ecolália – substancial, contumaz na alucinação anti-física do mundo. Isto é, do verbo ou logos como improvável anti-física, precisamente. Daqui, então, dir-se-ia, a valência a um tempo singular e paradigmática do “plasma”, a sua condição de figura – enquanto signatura rerum, tatuagem incógnita do mundo, da escrita, do pensamento, da imaginação, da afecção melancólica sem remissão – da poesia de Luís Quintais. Não me detenho, agora, na acepção de “plasma” como figura, matéria ou mesmo ficção, destaco tão-sómente os valores semânticos do âmbito biológico, físico e tecnológico – respectivamente ‘líquido’ que acolhe quer glóbulos quer linfa, ‘meio gasoso’ condutor de electricidade ou, enfim, ‘quadro de projecção’. A amostra, para quem leia Luís Quintais, é suficiente de modo a perfazer a atracção de formas vocabulares e imaginistas principais da sua poesia. Refiro-me, em primeiro lugar, a uma colecção integrada pela ‘água’ ou o ‘sangue’ cuja modelagem, não raras vezes, comporta uma ‘espessura’ de carga quer física (material), quer metafísica (ontológica). Assim, esta ‘espessura’, no fundo imagem da substância infixa e obscura, é atribuição quer do mundo ou realidade, quer da escrita ou poesia, quer ainda do sujeito de cognição ou corpo sensível. Aludo, por outro lado, à hegemonia do ‘écran’ ou do ‘plasma’ como superfícies de mediação quer do real como sublime, quer da imaginação como abstracção sensível. É esta a ‘máquina’ do mundo, do corpo e da escrita, enfim, do duro e lábil impoder das palavras do

“animal melancólico” contumaz num exercício de vidência totalmente profana jogada entre o nojo e o pasmo: “Vejo, no mesmo amplexo, sofrimento e beleza / reunidos” (517). Esta vidência entristecida é uma das dimensões dos afazeres do poeta, que não resolve – não redime – o “sofrimento” e a “beleza” do mundo mas os reúne, os dispõe em relação agónica, isto é, apresenta na sua polarização violenta: “O que faz a poesia? Remir e remir e remir / como as asas espancando” (525).2 Este imperativo de uma visão que a um tempo esclarece e obscurece devolvenos a obsidiante ocorrência do “vidro” na poesia de Luís Quintais, figura que o título do livro anterior a Arrancar Penas A Um Canto de Cisne veio sublinhar com ênfase. Traz à retentiva, neste sentido, um conhecido lugar de Wallace Stevens a respeito de William Carlos Williams, de quem o primeiro dizia ser “um escritor para quem a escrita é a moagem de um vidro, o polimento de uma lente por meio da qual espera ser capaz de ver claramente”. Desordenado programa de uma incessante derrota, interessa bem mais por mostrar uma poesia – uma vida poética – predicada como necessidade, necessária actividade de continuar para além de todo e cada um dos actos derrotados. A contumaz espera – a ficção – de uma clara vidência supõe acumular cegueira, acrescentar negrume. Trata-se, assim, de “interrogar, de novo, a invisibilidade // das coisas que se iluminam por dentro” (647), inclemência que determina não propriamente uma tonalidade jovial, antes um modo melancólico “impreciso”. Nem consolo, nem desconsolo no fulgor imaginado do mundo, estoicamente aceite nos termos da falha que continuamente o desmancha e emaranha: para o sujeito do poema, a “realidade vem ter comigo através do ilusório legado / dos sentidos e da treva que por dentro os toca” (670). É por isto que o mundo é tenebroso – a poesia de Luís Quintais vai tematizando um “medo”, a maneira de um pensamento e uma sensibilidade que uma e outra vez se enfrenta ao desconhecido –, habitação inóspita por vezes com ressaibo lovecraftiano, pois a vida que nele se esvai, sempre tarde, cada vai mais tarde, é a sina, o signo – o

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Estes versos foram já destacados por Pedro Eiras no posfácio do volume, ensaio que tem por título “Inventar A Antiguidade do Som Mais Antigo”, op. cit., p. 832.

signum, a assinatura – de toda a criatura: “Nada veio mudar isso. Nem o que te atemoriza: / o diverso da natureza, as imaginadas formas / que descreves, os fetos gigantes, uma outra glaciação / sepultada sob a casa, esta tristeza que te cerca / do teu sono” (701). Eis aqui, por certo, e ainda, uma possível descrição do incomensurável Outro que é, em Arrancar Penas A Um Canto de Cisne, a Natureza, com especial recorte a ‘questão animal’ na poesia de Luís Quintais. O animal que pode ser, no fundo, o espelho partido da máquina: e ambos a obsidiante figura do cyborg a circular no écran desta poesia. O poeta como cyborg é assolação de diversas espécies de espaços – sábia da discriminação entre lugares, territórios, mapas, derivas e cartografias – localizações que congregam edifícios, casas, cidades, teatros ou bibliotecas, mas que talvez possam ser subsumidos por um aquário vazio – “O lugar do esquife. / O vazio metálico atrás. // Estranho aquário. Teatro” (591) – e que, neste contexto, escolho pelas possíveis ressonâncias cinematográficas que comporta. A páginas tantas, o inescapável exercício anamnésico da escrita poética transporta o sujeito do poema a “Swakopmund”, lugar austral onde se aprende, precisamente, a violência da habitação inóspita (do corpo, do mundo): “Isto foi o que vi. O que me conduzia à injustificável / estética do compromisso e da decadência. / Isto foi o que escolhi depois dos livros lidos, / depois da curiosidade saciada: este hotel de espectros / e vertiginosas sombras que o mar ia corroendo” (597). Swakopmund ou a hegemonização, no mundo da vida, de uma vida de hotel com que a poesia de Luís Quintais atrai o fabuloso texto “The Hotel Lobby” de Siegfried Kracauer. O lobby do hotel, igreja negativa, povoamento que nenhuma escala pode mensurar, convulsão das coisas do mundo não como “últimas coisas” mas como “penúltimas coisas”, diz-nos, no fundo, daquele plasma, daquela écranização, habitação inóspita que empurra a poesia à condição de filme negro, comoção detectivesca – a “vocação museológica / de um homem” (645) – em demanda de sinais do crime. A História é o crime (Holocausto, Twin Towers, a barbárie que empurra a escrever além ou aquém da ignominia que cobre a espécie humana),

precisamente. O cyborg ambulatório, enfim, não raro encontra opções imagéticas que lembram a ficção cyberpunk: “Tudo se apaga. / Como a admirável metrópole em blackout” (547). As palavras comburentes – potencial ímpeto ígneo, frio fátuo –, coligidas em Arrancar Penas a Um Canto de Cisne devolve-nos a vida de um lletraferit – bela voz catalã para letraherido –, uma vida tocada pelo vazio de uma qualquer origem – a alucinação sónica de ‘Ovídio’ no título O Vidro é uma ecolália, quero crer que revelação mesmo de que qualquer som é um eco, um eco que o hábito reflexo pode chegar a fazer esquecer: o som é um eco esquecido de si –, vida tocada pela inescapável perda do futuro e, com ela, da possibilidade de um sentido unívoco para o passado e de uma habitação do presente que não seja ‘desassossego’. Vão depositando-se ruínas incandescentes, sem princípio harmónico, tracejamento de uma vida vazada – a atracção pela “piscina” vazia, decerto genial lição de J. G. Ballard, afinidade electiva de Luís Quintais – também n’“A aniquilação do mundo num enorme desastre automóvel” (545) –, é a figuração que nos devolve, como estremecimento, a intuição do vazio, antecessor de tudo, sucessor do todo –, sintagma que nos proporciona uma espécie de resumo de que se vai fazendo tarde, cada vez mais tarde. Provisoriamente fica, enfim, um balanço crepuscular cifrado em palavras tardias cuja cadência, cujo ritmo, talvez venha a tocar os que cheguem depois, ainda mais tarde. Mesmo este potencial é finito, mas para a pausa da espera decerto valem os seguintes versos que vêm ao nosso encontro: “O sonho da linguagem desperta / misterioso espelho do que passa” (721). Velocidade especular, plasma ao encontro do plasma, plasma contra plasma.

«Plasma   [Arrancar Penas A Um Canto de Cisne, de Luís Quintais]»,   Café  Com  Letras,   nº3,  Junho  de  2016.

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