Platão neocon, resenha de livros sobre Platão, na Folha de São Paulo

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1 FUNARI, P. P. A. . Platão Neocon 11/05/2008. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 6 - 6, 11 maio 2008.

Bush e a atualidade de Platão Simon Blackburn, A República de Platão, uma biografia. Rio de Janeiro, Zahar, 2008, 194 pp. Platão, Diálogos. Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini. Bauru, Edipro, 2007, 320 pp.

Quando da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, sabia-se que um dos principais assessores de Donald Rumsfeld, então Secretário da Defesa, era o eminente classicista Victor Davis Hanson. Hanson notabilizou-se pelo livro O Modo Ocidental da Guerra, além de outros best-sellers, em particular sobre a Guerra do Peloponeso, no século V a. C., entre Esparta e Atenas e seus respectivos aliados. Formulou a teoria de que o erro de Atenas, campeã da democracia, foi não ter cuidado da exportação do seu modo de vida democrático. Esse erro os Estados Unidos não cometeriam e levariam a chama da liberdade e da democracia às terras do Oriente Médio. A aplicação dessa doutrina levou a um dos maiores desastres da política externa americana.

Agora, o filósofo da Universidade de Cambridge Simon Blackburn volta ao tema do papel dos estudos sobre a Antigüidade nos rumos e nas vidas dos homens em nossa época, em pleno século XXI. Estudo sobre a República de Platão, obra de quase 2.500 anos, livro de filosofia, tudo indicaria tratar-se de algo distante, no tempo, no espaço e no âmbito das preocupações quotidianas. Nada disso. Blackburn visa a mostrar como o movimento neoconservador se funda numa leitura da obra de Platão e direciona não apenas a política

2 externa agressiva dos Estados Unidos, como toda uma série de ações autoritárias. O pai fundador do moderno neoconservadorismo, Leo Strauss, teórico político e estudioso de Platão, pôde defender noções tão contemporâneas como a Blitzkrieg, terrorismo, adoração do livre mercado e da ética da escola de comércio como se surgissem das páginas do pensador grego antigo. A busca platônica pelo Estado ideal ignora os valores da democracia, do igualitarismo e da liberdade e mostra o caminho para um pesadelo. Blackburn não hesita em aciona Hitler e o regime nazista, cujo Estado autoritário e totalitário compartilharia muitos aspectos da politeia ideal de Platão. A única doutrina que permanece, expressa de viva voz por Sócrates ao final da obra, é aquela segundo a qual quem está no governo é levado a dizer nobres mentiras para o bem do Estado. Strauss e os neoconservadores aproveitaram-se disso para justificar ditaduras e plutocracias. O Platão “neocom” está distante da figura reconhecida por todos, inclusive por Aristóteles. Mas isso pouco importa, pois os usos reacionários de Platão, em nossos dias, não deixam de ter as mais nefastas conseqüências.

Edson Bini parte de outras preocupações, ao traduzir e comentar três diálogos platônicos. No Teeteto, em homenagem ao conceituado matemático morto em 369 a.C., o tema da conversa é a definição de conhecimento, a epistemologia. Em Protágoras, volta-se para a natureza da virtude, a areté. Mas é no Sofista que Platão questiona os conceitos de sofista, homem político e filósofo e a coletânea se aproxima, de alguma forma, da obra de Blackburn. Bush não aparece uma única vez, nem, menos ainda, os neoconservadores são mencionados. Já isto ressalta que Platão pode ser lido de outra forma, com outros objetivos. Nos três diálogos, o contraditório salta aos olhos e leva à admiração mesmo os menos interessados no mundo grego antigo. Perscrutar a alma, a educação, o certo e o errado, a

3 verdade e a mentira, estes são temas que se mostram atuais e, de certo modo, mais perenes do que as façanhas e desventuras militares americanas no Iraque e alhures.

Ambos livros conduzem-nos a um tema essencial: os usos do passado. Como o nome já diz, o passado já passou e não existe mais. Num país cujo lema na bandeira é o progresso, a fuga para o futuro, e num mundo que em que tudo fica obsoleto em pouco tempo, de maneira cada vez mais rápida, nem sempre parece relevante lembrar que o presente e o futuro não podem prescindir da reflexão sobre o passado. Quantos soldados americanos no Iraque leram Platão ou Tucídides, e sua descrição da Guerra do Peloponeso? Quantos conhecem Victor Davis Hanson ou Leo Strauss, que neles se fundaram? Quantos de nós nos questionamos sobre o que é o conhecimento? Os dois livros, em sua diversidade, completam-se para alertar que vivemos uma vida acrítica por nossa conta e risco. Ou perdemos a vida, sem saber porque.

Pedro Paulo A. Funari é professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp.

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