PLAYABLE MEDIA, COMO GERAR SISTEMAS E PLATAFORMAS

July 17, 2017 | Autor: Patricia Gouveia | Categoria: Digital Media, Video Games, Digital Culture, Digital Games
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GOUVEIA, P., (2010), ”Playable media, how to generate systems and platforms of cooperation online?” [Playable Media, Como Gerar Sistemas e Plataformas de Cooperação na Rede?”]. In [New Cultural Paths: Practices and Politics] Novos Trilhos Culturais: Práticas e Políticas, org. Santos, M. de L. Lima dos, José Machado Pais, Lisbon: Ed.: Imprensa de Ciências Sociais, ISBN: 978-972-671-264-0, pp.159 - 75. Book Chapter

PLAYABLE MEDIA, COMO GERAR SISTEMAS E PLATAFORMAS DE COOPERAÇÃO NA REDE? Patrícia Gouveia Professora Auxiliar na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa e investigadora efectiva do CICANT, Centro de Investigação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias da mesma Universidade [email protected] * http://mouseland.blogs.ca.ua.pt/

PALAVRAS-CHAVE: game studies, playable media, ficção digital, arte e entretenimento, jogos, gameart;

ABSTRACT: Neste artigo exploram-se possibilidades de “escrita” cooperativa em ambientes lúdicos, persistentes e cross media, gerados a partir da rede. Analisa-se a forma como o design de sistemas dinâmicos e a interacção humano-máquina pode ter em consideração e equilibrar mecanismos que fomentam tanto o altruísmo como a competição entre oponentes. Estratégias mistas que associam tendências próprias dos jogos-de-soma-nula, ou competição, versus jogos cooperativos do tipo dilema do prisioneiro. Considera-se importante estimular a participação activa na discussão e concepção de narrativas dependentes de diferentes processos de distribuição (internet, telemóveis, imprensa, etc.) e apresentam-se projectos que ajudam a contextualizar as tribos digitais contemporâneas.

Este artigo sugere algumas tendências que a arte e o design de sistemas interactivos podem considerar de forma a gerar uma maior colaboração e cooperação entre os diferentes agentes que actuam nos artefactos digitais. Assim, analisam-se algumas obras das artes lúdicas (playable media) que envolvem diversos participantes em happenings emergentes e em narrativas abertas à participação e ao comportamento altruísta. Considera-se que estas obras interpelam os jogadores numa relação simbiótica com a máquina e que assim se constrói parte da ficção e da obra interactiva. Em quatro palavras podemos resumir todo um sistema de relações mistas e realidades cruzadas que a cultura da simulação impõe: configuração, jogo, narração e acção! Compreender e investigar a forma como a autoria partilhada e colaborativa pode ser gerada na rede é fundamental para a implementação de ambientes dinâmicos nos quais várias pessoas participam e interagem1. Neste contexto, considera-se que é necessário estimular a participação activa na discussão e concepção das narrativas digitais cross media2 que possam depender de diferentes processos de distribuição (rede internet, telemóveis, imprensa, tv, cd-rom, dvd, software, vírus, mupis, t-shirts, entre outros suportes possíveis).

O activismo inerente ao design humano-máquina consiste na criação de livros de regras simples que geram uma maior complexidade consoante recebem os inputs de inúmeras pessoas. Estas estratégias levam-nos a ter em consideração algumas práticas lúdicas e subversivas: o hacker como modelo da cultura digital pode ser considerado como um elemento criativo na criação de lugares de jogo onde a prática lúdica permite o acesso a personagens “batoteiras”. Neste contexto, considera-se que “onde uma vez esteve a arte no centro da existência moral, parece agora possível que o jogo, com todos os seus significados, com todo o seu imaginário, tenha um papel central” (Sutton-Smith, 1997: 144). Os jogos e os espaços lúdicos de brincadeira para múltiplos participantes, pela sua inerente ambiguidade e riqueza na produção de sentidos possíveis, podem constituir ambientes propícios à “escrita” em conjunto.

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Sobre esta temática consultar também o texto da autora: “Paraísos artificiais: autoria partilhada na criação contemporânea e na era dos jogos em rede”, II Ibérico, Actas do Congresso de Ciências da Comunicação. In http://www.labcom.ubi.pt/livroslabcom/pdfs/ACTAS%20VOL%201.pdf, pp. 567-576, Covilhã, (Acedido em Dezembro de 2008), 2004. 2 Narrativas Cross-Media são histórias construídas para serem “lidas” a partir de diferentes plataformas. Saltitam de medium em medium e apenas seguindo os caminhos gerados a partir de blocos de texto dispersos se consegue compreender e seguir os pontos de enredo destas histórias fragmentadas.

Ao dar um evidente ênfase ao entretenimento, ao upgrade perpétuo e às mediações tecnológicas, a cultura digital remete-nos para uma constante necessidade de adquirir novos produtos e gadgets que devem ser configurados pelo próprio fruidor da experiência, e. g., o participante/jogador/leitor. Este aspecto leva-nos a considerar o conceito de interactividade enquanto configuração, ou seja, os artefactos deixam de ter um carácter cinemático, típico de práticas mais imersivas que implicam uma distância entre o espectador e a obra, para passarem a envolver activamente, na sua produção, um participante que não só configura à sua medida os sistemas3 como também produz as suas próprias narrações e ficções. Assim, sugere-se uma aproximação das artes digitais ao design sendo que este mais não é do que uma mediação entre arte e tecnologia (Flusser, 1999). A diluição de fronteiras entre as diferentes disciplinas e uma crítica evidente às categorizações modernistas permite afastar algumas dicotomias muito presentes no século XX, agora já ultrapassadas, tais como, arte popular e arte erudita; arte e entretenimento; arte e design; arte e artesanato, etc., numa deslocação do conceito de arte para o conceito de jogo. Assim, sugere-se a seguinte questão: o que existe de reificado nas narrativas provenientes das ditas culturas eruditas e o que existe de verdadeiramente original nas culturas das tribos actuais?

A frequente depreciação do ornamento e do espectáculo como formas por excelência da cultura popular e a valorização, em termos intelectuais, das artes ditas eruditas, promove uma noção recorrente que pressupõe que só os objectos de uma certa cultura sábia e profunda são passíveis de análise académica. Neste contexto, propõe-se uma “leitura” analítica dos artefactos e das superfícies presentes na cultura digital, assumindo que este(a)s podem ser tão ou mais interessantes do que aqueles provenientes das ditas artes eruditas. Acredita-se, com Michel Maffesoli, que a criatividade na rede é propensa à divagação e não valoriza os projectos e as ideias com carácter final mas antes privilegia o processo de trabalho e a divulgação dos conceitos, os quais são gerados de forma mutante e com grande plasticidade. Pode-se considerar que se privilegia na rede um 3

A título de exemplo consultar o trabalho do artista alemão Olaf Val e o seu Mignon Game Kit. Esta consola configurável permite que cada jogador faça o design, programe e construa o seu dispositivo. Alguns workshops e instruções on-line ajudam os jogadores a conceber os seus próprios jogos. Esta consola do estilo do-it-yourself permite fazer experiências com micro electrónica mas também pode ser usada como plataforma para a construção de jogos de computador e opõe-se aos tradicionais sistemas como a Gameboy da Nintendo. O jogador desenvolve uma relação pessoal com o dispositivo através de um processo de auto-produção que determina a própria programação dos jogos. Para mais informações consultar o site: http://www.olafval.de/mignon/english/ (acedido em Dezembro de 2008).

sentido de procura do que há de profundo na superfície das coisas (Maffesoli, 2008). O reconhecimento e a recepção da obra depende, diz-nos Sónia Rodrigues, do reportório, do horizonte de expectativa e leitura de quem lê. A recepção da narrativa trivial pode ser extremamente criativa e a recepção da literatura culta pode ser repetidora, confirmadora e passiva. Dizer que a produção das mercadorias populares é trivial esconde o facto de que por vezes trivial é a recepção destas obras por parte de pessoas pouco preparadas para as receberem (Rodrigues, 2004: 150). A cultura popular sempre foi “capaz de produzir “tipos” tão bem acabados que atravessam séculos” e esta constatação torna ainda mais difícil definir literatura culta. Ora: “se uma e outra são capazes de criar mais do que tipos, símbolos, o que realmente as distingue?” (Rodrigues, 2004: 146). Diz-nos Sónia Rodrigues: “Cultura de massa pressupõe economia de mercado, que permite o acesso de vários sectores sociais a uma pluralidade de mercadorias materiais e de consumo imaginário. Pressupõe também a superação da dicotomia ou polarização entre cultura superior e cultura popular e caracteriza-se pela integração das suas mensagens ao quotidiano social de forma inconsciente, independentemente da vontade das pessoas” (Adorno citado por Rodrigues, 2005: 143).

O artista digital é coagido a dominar um conjunto cada vez mais vasto de narrativas (economia, marketing, tecnologia e cultura4) e a teorização relativa à interacção humano-máquina produziu o termo jogabilidade, tema central a toda a experiência e estética digital. A cibercultura permite fazer da vida uma obra de arte, uma arte vivida no quotidiano (Maffesoli, 2008: 135). As interacções cooperativas que compõem uma “arte do dia-a-dia”, imediata e fluida, em rede, descentralizada e lúdica levam-nos ao retorno do dinamismo estético que parece prevalecer nos nossos dias, tudo é razão para vibrar em conjunto (Maffesoli, 2008: 96). Nas ecologias digitais existe uma relação recorrente entre competição, no sentido de uma descoberta em conjunto, e uma cooperação, realização de tarefas e objectivos através de interacções cooperativas. A forma como os media studies se articulam com os chamados new media studies pode ser resumida recorrendo a alguns pontos fundamentais na distinção entre ambos (Dovey & Kennedy, 2006). Assim, considera-se que no caso dos media studies os efeitos da tecnologia são socialmente determinados, as audiências são passivas, dá-se maior ênfase 4

Sobre as dinâmicas entre marketing, tecnologia e cultura na retórica digital contemporânea consultar, por exemplo, o livro Digital Play, The Interaction of Technology, Culture and Marketing, de Kline, Dyer-Witheford e De Peuter.

à interpretação e à representação, num processo que centraliza os espectadores e que os trata como consumidores e trabalhadores. No caso concreto dos new media studies pode-se considerar que a natureza da sociedade é tecnologicamente determinada. O consumidor dá lugar ao participante dos sistemas interactivos onde a experiência configurativa e a simulação impõem-se numa cultura onde os media são ubíquos, os participantes são co-criadores das obras e existe um evidente e recorrente sistema permanente de jogo.

Sem incorrermos em distinções que separam em grupos distintos os media studies dos new media studies opta-se por uma inclusão mais diluída entre ambos e por esta via considera-se que a world wide web, a realidade virtual e a computação gráfica não estão divorciadas dos media anteriores mas antes prestam homenagem, rivalizam e imitam os media que os antecederam. Existe, neste contexto, incorporação, “remediação”, onde a fotografia reinventou a pintura, o filme reproduziu aspectos teatrais, literários e fotográficos, a televisão incorporou o cinema, o vaudeville e a rádio. A simulação surge como o novo paradigma das artes visuais: “a mudança da ordem visual que se produziu entre o regime figurativo da representação e o da simulação e que afectou profundamente as artes visuais” (Couchot, 2003). A simulação como representação processual (happening) é um game of life onde efeitos imprevisíveis e narrativas emergentes podem ser despoletada(o)s por inúmeras pessoas em simultâneo a partir de localizações geográficas distintas. Ora, julga-se necessário estimular a capacidade dos sistemas gerarem um conhecimento partilhado por múltiplos agentes aplicando o conceito de emergência como variação e surpresa. Os artistas ou designers dos sistemas de ficção interactiva apenas constroem um conjunto de regras que depois são ampliadas, desenvolvidas e recriadas pelos participantes. A interacção processa-se não apenas com o tabuleiro ou mundo de jogo mas também com outras pessoas. Uma definição de emergência terá que ter em consideração que as funcionalidades chave do sistema emergente têm duas componentes fundamentais: abertura ao ambiente e habilidade para medir ou efectuar mudanças neste. Desta forma é fundamental gerar a capacidade para processar alterações adaptativas e considerar a autonomia emergente da máquina. Assim, conceber plataformas e interfaces dinâmicas que permitam o aparecimento de padrões não

planificados requer pensar em emergência como cooperação versus competição e dosear de maneira equilibrada a relação entre ambas as tendências. Em Field of Play5 de 2007, do artista australiano Troy Innocent, criou-se on-line um tabuleiro de jogo facilmente reconhecível como a clássica brincadeira de crianças da “tesoura, papel e pedra”. Participantes de várias localizações do globo podem jogar em conjunto e ver reflectidas as suas acções on-line numa galeria em Melbourne. Para Troy Innocent: “o jogo tornou-se uma parte integrante da experiência contemporânea” e Field of Play é um ambiente de arte urbana onde três linguagens iconográficas (símbolos laranja, azuis e verdes), inspiradas nas redes electrónicas, nos jogos digitais e nas culturas tribais, aparecem integradas de forma a gerarem uma interacção em dois espaços públicos diferentes – o espaço virtual da internet e o espaço real da galeria. Se em Field of Play se criou um sistema que integra participantes de diferentes localizações do globo, no projecto Ludea, de 2005, o artista cria um sistema que integra participantes numa mesma localização. Inspirando-se no clássico jogo de tabuleiro Ludo, Ludea é uma versão do mesmo jogo projectada para o século XXI. Nas ruas de Melbourne três culturas guerreiras lutam pela conquista de território. Segundo Troy Innocent: “Ludea é uma micro nação onde linguagem e cultura são geradas através do jogo. Nas ruas de Melbourne três culturas lutam pelo território: os neo-materialistas usam formas tradicionais de comunicação como palavras, os pós-simbólicos comunicam por via de imagens e os pós-humanos relacionam-se com máquinas que comunicam por eles. Cada tribo reúne recursos e está associado a uma cor (laranja, verde ou azul). A vitória pertencerá ao clã que conseguir conquistar o maior domínio6.” A ideia deste projecto baseia-se na construção de um espaço, Ludea, que explora três ideologias diferentes que por si só definem territórios e linhas de comunicação distintas e estão imersas na própria cultura digital lúdica. Afirma Innocent: “Os jogadores de Ludea vêm de uma geração que cresceu, como segunda natureza, com jogos, com máquinas abstractas, com processos digitais e para quem é fácil fazer abstracções da realidade em termos de sistemas, processos, fluxos e modelos. Ludea explora a condição pós-humana e a natureza instável da realidade contemporânea através 5

Para mais informações sobre este projecto consultar o endereço on-line: http://www.fieldofplay.net/ (acedido em Dezembro de 2008). 6 Depoimento de Troy Innocent disponível em http://www.boutwelldrapergallery.com.au/imagesart/bdg_Innocent_LUDEA_Text.pdf (acedido em Dezembro de 2008).

da construção de três experiências de lugar diferentes. Estas experiências ocorrem por via de signos e símbolos que são mapeados em localizações do mundo real. O objectivo é criar conexões com sentido e experiências entre três espaços públicos diferentes: virtual, em rede e físico. Ludea assenta nas teorias dos “mundos possíveis” gerados pela combinação entre Inteligência Artificial (IA), jogos digitais e a ideia de construção de um mundo através de uma linguagem e de uma cultura inventadas. Num sentido mais metafórico, o trabalho cria espaços e sistemas interactivos que manifestam experiências do mundo caracterizadas pela incerteza, multiplicidade, complexidade e conectividade. Desta forma somos confrontados com a natureza sempre em mudança da realidade”7.

Em LifeSigns de 2004 Troy Innocent construiu um jogo multi-player disposto em 4 ecrãs LCD individuais e numa projecção global no chão da galeria onde todos os elementos convergem. A sua investigação remete-nos para o questionamento da maneira como os mundos virtuais podem ser veículos para novas formas de comunicação e expressão. A codificação de processos associados à Vida Artificial, neste caso um software exploratório de criaturas digitais com vida própria, misturada com aspectos de semiótica computacional já tinha sido amplamente tratada pelo autor em Icónica8 de 2002. LifeSigns apresenta um estudo de sistemas e códigos de significação nos media digitais e nos seus jogos interactivos com ênfase em aspectos lúdicos e de manipulação do processo e do espaço. O resultado desta estratégia de recombinação é um híbrido que expressa uma forma, uma estrutura, dados relacionados com a cor, som, movimento, superfície e comportamento. Em LifeSigns: “joga-se um mundo e explora-se uma linguagem emergente, a ideia que novas significações podem ser geradas através da interacção entre humanos e agentes digitais”.9 A integração de participantes em diferentes localizações do globo numa interacção não só com o ambiente físico mas também no espaço digital está presente na maioria dos trabalhos da artista alemã Andrea Zapp10. Em The Imaginary Hotel11, de 2002, a autora constrói numa galeria uma instalação que simula um quarto de hotel. Neste quarto, visitantes on-line podem, através de um back office, mudar e configurar duas paredes distintas à sua medida, escolhendo a pintura ou o papel de parede, mudando os retratos

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Ibidem. Para mais informações sobre o projecto Icónica consultar o endereço: http://iconica.org/transforms/index.htm (acedido em Dezembro de 2008). 9 Para mais informações sobre o projecto LifeSigns consultar o endereço: http://iconica.org/lifesigns/index.htm (acedido em Dezembro de 2008). 10 O site de Andrea Zapp está disponível no seguinte endereço: http://www.azapp.de/ (acedido em Dezembro de 2008). 11 Para mais informações sobre o projecto The Imaginary Hotel consultar o endereço: http://www.azapp.de/tih_01.html (acedido em Dezembro de 2008). 8

nas molduras, ou mesmo telefonando para os visitantes do espaço físico para desta forma interagirem com eles. No site do projecto pode-se visualizar o espaço da exposição e assim ter acesso à distância ao ambiente gerado pela incursão dos visitantes que vão de facto visitar a galeria. Andrea Zapp tem formação em Cinema e Televisão e a sua obra caracteriza-se por uma necessidade de esconder ao máximo a tecnologia para dar maior realce à narrativa e a aspectos cénicos dramáticos. Em Unheimlich12, de 2005, Andrea Zapp co-colaborou na criação de uma performance telemática a partir da noção de “estranheza” (“uncanny”) como ponto de partida. Num espaço colaborativo deparamos com a seguinte narrativa: “É uma hora da manhã em Manchester, Inglaterra, mas duas enigmáticas irmãs ficaram acordadas até tarde para verem e, telematicamente, felicitarem o participante da performance com um beijo”13. Uma nova personagem pode entrar em tempo real no espaço onde estão as duas irmãs virtuais, a muitos quilómetros de distância delas. De qualquer forma as duas lá estarão à espera para a envolverem nos seus excêntricos jogos, rituais secretos e conversas. Tudo isto num espaço de paisagens fantásticas inspiradas nas imagens de jogos digitais ou em salas de estar tradicionais, ao sabor da vontade e dos caprichos das duas criaturas. Em Human Avatars14, também de 2005, Andrea Zapp criou uma instalação de media arte na qual foi gerado um diálogo entre o real e o virtual. Neste contexto, os visitantes da exposição descobrem uma pequena casa de madeira na qual são convidados a entrar. Uma imagem ao vivo do corpo do participante é projectada para uma versão modelo remota da mesma casa, mas esta com mobiliário, onde outros visitantes podem ver as filmagens geradas em tamanho pequeno e através de uma janela. A arquitectura e o cenário desta instalação são algo brincalhonas, mas a experiência interactiva imediata é controversa, pois consiste numa estratégia voyeur uma vez que por trás do aspecto idílico, numa atmosfera de casa de bonecas, está um sistema de mapeamento e vigilância que controla os movimentos e as acções do participante da experiência.

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Para mais informações sobre o projecto Unheimlich consultar o seguinte endereço: http://creativetechnology.salford.ac.uk/unheimlich/ (acedido em Dezembro de 2008). 13 Ibidem. 14 Para mais informações sobre o projecto Human Avatars consultar: http://www.azapp.de/ha_01.html (acedido em Dezembro de 2008).

A utilização da internet para gerar interpretações críticas e reflexões sobre a natureza da experiência contemporânea é evidente em projectos como o jogo Agoraxchange / make the game, change the world15, encomendado a Jacqueline Stevens e a Natalie Bookchin pela Tate Modern de Londres. Agoraxchange é uma comunidade on-line que se dedicou ao design de um jogo massive multi-player que tratasse de assuntos relacionados com a política global tendo como intenção desafiar a violência e as desigualdades que estão na base dos sistemas políticos actuais. O jogo foi inaugurado na Tate Online no dia 15 de Março de 2004 e desde então tem recebido o contributo de várias pessoas na construção das suas regras e ideias. De acordo com o manifesto on-line deste jogo: “agoraXchange foi construído no sentido de estimular a colaboração e desta forma desafiar um mundo no qual mitos associados aos direitos adquiridos à nascença resultam em violência e sofrimento no seio de nações e famílias16”. Os sistemas para múltiplos jogadores on-line podem ajudar a estimular a colaboração e a competição numa forma de diálogo que tenha em consideração algumas premissas básicas, a saber, a necessidade de estabelecer um debate prolífico e que gere comportamentos de acção e incorporação dotados de uma natureza sistémica onde a partir de regras simples se adquire mais complexidade. O comportamento emergente complexo surge como resultado de interacções relativamente simples. Dois exemplos possíveis provenientes dos game studies são o caso do Xadrez, comum nas sociedades ocidentais, e o seu equivalente, proveniente das sociedades orientais, o jogo Go. No Go as regras são em menor número, do que no caso do Xadrez, e alguns jogadores profissionais deste tabuleiro afirmam que se adquire uma maior complexidade conforme as regras vão sendo jogadas de acordo com as estratégias possíveis. Ora, como assinalámos anteriormente através do conceito de emergência, pode-se considerar que a partir de regras simples se gera maior complexidade.

O comportamento emergente complexo surge como resultado de interacções entre subsistemas relativamente simples e baseia-se num conjunto de modelações e sinergias directas e indirectas. O novo paradigma é modelar o mundo que se auto-organiza através de um processo de sinergia, fenómeno frequente na natureza e nas sociedades 15

O endereço do jogo Agoraxchange / make the game, change the world está disponível em http://agoraxchange.org/index.php?page=218 (acedido em Dezembro de 2008). 16 Para uma possível leitura de todo o manifesto consultar o endereço on-line: http://agoraxchange.org/index.php?page=233#233 (acedido em Dezembro de 2008).

humanas. Nas interacções directas, o indivíduo contribui em tempo real e em conjunto com outros indivíduos para o desenvolvimento do sistema e estas interacções podem ser consideradas um mecanismo de auto-organização biológico, sociológico, psicológico e físico. Nas interacções indirectas, existe uma interacção cooperativa em que um indivíduo contribui para a modificação de um ambiente, deixando em aberto a possibilidade de um outro indivíduo, mais tarde, responder a esse ambiente com um novo input (Ramos, 2002). A existência de um comportamento altruísta surge a par de um outro tipo de comportamento, também característico das sociedades e da biologia humanas, o comportamento competitivo. As ecologias artificiais lidam com dois problemas distintos, ou seja, a cooperação e a competição das criaturas virtuais que, à semelhança dos humanos, adoptam estratégias distintas de interacção. Se a organização cooperativa nos remete para a análise do comportamento altruísta, ou seja, comportamento que beneficia o “outro” organismo ou indivíduo, fenómeno importante tanto na natureza como nas sociedades humanas, também a competição foi identificada como um factor importante na estruturação biológica. O comportamento cooperativo normalmente depende de um certo altruísmo e pode ter uma importância fundamental para a compreensão das interacções em rede (Lindgren & Nordahl; 2000: 15) mas a competição gera igualmente novas configurações e estratégias pela disputa entre dois oponentes. A raiz da palavra competir remonta ao latim con petire, o que significa “encontrar em conjunto” (“to seek together”) (Salen & Zimmerman, 2004: 256). Assim, pode-se considerar que a competição é fundamental para fomentar e gerar novas configurações e estimular oponentes a produzir melhores resultados numa superação constante que gera efeitos não previstos no design do sistema de jogo. O artista israelita Uri Tzaig, referenciado por Janet Abrams no texto “Other Victories”17, remete-nos para um jogo de futebol onde são introduzidas duas bolas para assim alterar o foco de visão que normalmente está centrado apenas numa. Neste contexto, o artista constrói um novo jogo em que a estrutura é subvertida pela inclusão de dois elementos, redefinindo as regras dos jogos tradicionais como o futebol e o basquetebol, reinventando interacções sociais nas quais todo o comportamento da assistência passa a ser descentrado. Esta alteração das convenções do jogo, duas bolas dois focos de

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Abrams, Janet, “Other Victories”, If/Then Play, Netherlands Design Institute, pp 232- 247.

atenção, faz-nos perder o poder centralizador da bola. É a estrutura rígida que persiste nos nossos jogos desportivos que Uri Tzaig pretende estudar e desconstruir.

Existem dois tipos de comportamento identificados “no jogo” da economia global (Hampden-Turner & Trompenaars, 1997), os praticados na sociedade ocidental versus a oriental. Estes comportamentos podem ser explicitados pela diferenciação entre os chamados jogos finitos, ou jogos de soma nula, onde o objectivo do jogo é quem ganha ou quem perde, e jogos infinitos ou jogos colaborativos, do tipo jogo ou dilema do prisioneiro, onde o importante é a evolução do jogo em si. Se no primeiro caso, jogos de soma nula, estamos perante a metáfora darwinista de progresso em que a unidade de sobrevivência é o indivíduo e o tabuleiro é um espaço neutro, sendo que o que um jogador ganha é equivalente ao que outro perde, no segundo caso, e em oposição ao primeiro, estamos perante um comportamento que privilegia o indivíduo no jogo que é jogado. Pode-se então considerar que nos jogos finitos o objectivo é sobreviver, que os vencedores excluem os vencidos e que normalmente ganham tudo. Existe, nestes tabuleiros, uma relativa simplicidade e as regras são definidas antecipadamente. Por oposição, nos jogos infinitos, o objectivo do processo lúdico situa-se no desenvolvimento do jogo em si e os vencedores ensinam aos vencidos melhores formas de jogar. Existe, neste caso, uma vitória partilhada e uma relativa complexidade onde as regras podem ser alteradas. Conciliar as duas tendências lúdicas, cooperação versus competição, de forma equilibrada e que permita a aplicação de estratégias interessantes do ponto de vista da fruição estética tem sido um dos objectivos da autora deste texto. Neste sentido, foram já criados três projectos de arte e design distintos; uma instalação playable media chamada O Jogo ou Dilema do Prisioneiro18 (2008) que fez parte do Festival Interparla 200819 em Espanha (figura 1 e 2); um jogo para e-mail de nome JOV, Joga Outra Vez (2005), que contou com a participação de mais ou menos 20 pessoas e que estimulava a discussão de variados assuntos ligados à tecnologia e aos espaços virtuais (figura 3 e 4); um blogue de divulgação e escrita em colaboração chamado Mouseland (2006-08). Este 18

Este projecto foi concebido e produzido em parceria com Ivan Valadares da empresa Ydreams Portugal. Para mais informações sobre este engenheiro de software consultar, por exemplo, http://www.ydreams.com/ydreams_2005/index.php?page=44&view=team:Details&zepp_obj_id=242 ou o site da empresa http://www.ydreams.com (acedidos em Dezembro de 2008). 19 Para mais informações sobre este festival consultar: http://www.lamundial.com.es/interparla/ (acedido em Dezembro de 2008).

espaço de divulgação e debate crítico afirma-se como um lugar de discussão relacionado com aspectos associados à cultura digital nas suas vertentes lúdicas, cinematográficas e musicais. A Mouseland é um mundo persistente que conta com um colaborador a tempo inteiro localizado em Paris/França e com várias contribuições de visitantes que enviam conteúdos e respondem activamente aos jogos, charadas e textos ali disponibilizados com regularidade há dois anos e meio (figura 5 e 6).

Figura 1 - Ecrã da instalação Jogo ou dilema do prisioneiro Festival Interparla, Fevereiro de 2008 (Patrícia Gouveia e Ivan Valadares).

Figura 2 - Imagens da interface gráfica da instalação Jogo ou dilema do prisioneiro, Festival Interparla, Fevereiro de 2008 (Patrícia Gouveia e Ivan Valadares).

O primeiro projecto, O Jogo ou Dilema do Prisioneiro, apresentado na figura 1 e 2 foi concebido em parceria com Ivan Valadares e remete-nos para uma aplicação digital

jogável através de imagens projectadas numa parede e despoletadas a partir de um computador. A interacção é possível pela manipulação de dois joysticks e dois jogadores devem cooperar para concluir os três níveis disponíveis. Estes níveis consistem em três plataformas/mapas diferentes: fugir à polícia (labirinto), responder a um questionário e eliminar num combate o agente da autoridade por via da colaboração entre dois players. Esta aplicação foi inspirada no clássico jogo do prisioneiro introduzido pela teoria dos jogos e enfatiza aspectos relacionados com a lógica e a matemática permitindo compreender como a cooperação é fundamental para a progressão no tabuleiro de jogo. O Jogo ou Dilema do Prisioneiro surge como um jogo de soma diferente de zero onde o total dos pontos distribuídos entre os jogadores depende das acções escolhidas no jogo. As acções têm como resultado ou objectivo a maximização dos pontos e não tanto a questão de vencer o oponente. Este jogo tem a seguinte estrutura: deparamos com dois reclusos que foram aprisionados sob a suspeita de que cometeram um crime em conjunto, a menos que um deles confesse não há forma de lhes atribuir uma sentença. O responsável pela sua prisão oferece um prémio a quem confessar o crime. Se um dos prisioneiros confessar o crime o outro terá uma sentença pesada. Se ambos confessarem o delito serão aprisionados mas por menos tempo. Finalmente, se ambos se mantiverem calados serão libertados devido à falta de provas. O jogo é rápido e requer uma certa perícia diplomática. A aplicação digital está elaborada em três línguas à escolha: português, espanhol e inglês. “Joga Outra Vez” (figura 3 e 4) foi um jogo concebido no âmbito de uma tese de doutoramento com o mesmo nome e criado para e-mail. O conceito remete-nos para os jogos do Tour de Jeu20 explicitados no artigo, “Des jeux d’adultes? Corporéités et sociabilités dans les cyberespaces ludiques“, de Manuel Boutet21. Estes jogos de e-mail são herdeiros dos jogos por correspondência postal (JpC) que existem há imenso tempo de forma discreta e que permitem jogar uma partida de xadrez, batalha naval ou outro jogo, à distância e quando os jogadores estão em localizações geográficas diferentes. Assim, cada um deles envia, por correio, a sua jogada tendo um “tabuleiro” onde

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http://www.tourdejeu.net/ (acedido em Novembro de 2006). Boutet, Manuel (2004), “Des jeux d’adultes? Corporéités et sociabilités dans les cyberespaces ludiques“ editado em La Pratique du Jeu Vidéo: Realité ou Virtualité? (organizado por) Mélanie Roustan, Dossiers Sciences Humaines et Sociales. L’Harmattan, Paris, pp. 99-111. 21

assinala as jogadas dos dois ou mais participantes que jogam essa partida. Hoje em dia esta possibilidade é ampliada, em termos de velocidade, pela utilização da rede e do email sendo que os jogos propostos podem ser inúmeros: estratégia, jogos de roleplaying, simulação, etc., com temas históricos, humorísticos, realistas ou outros. O truque que possibilita estas interacções é que os jogadores não jogam em tempo real, ao mesmo tempo, mas à vez, tour par tour. As qualidades requeridas aos jogadores são explícitas: paciência e assiduidade. As principais vantagens apresentadas: liberdade (joga-se quando se tem tempo embora ao seleccionar o tipo de jogo no qual se entra se deva fazer uma estimativa do tempo de envolvimento que se pode dar a este) e ambiência (uma partida dura por vezes meses). O aspecto de conexão “à vez” dos jogadores, contrário à maioria dos jogos on-line, permite um maior tempo de reflexão e de expressividade criativa em que o jogador tem que mostrar regularidade, perseverança, paciência e bom senso.

Figura 3 – Carta de reflexão sobre o movimento sufragista / “Joga outra vez” (2005).

Figura 4 – Gráficos de pontuação e progressão dos dezoito anónimos em jogo / “Joga outra vez” (2005).

“Joga Outra Vez” (nomadismo e distância22) foi criado com o objectivo de construir 22

A estrutura de regras do jogo foi concebida tendo em consideração que a autora deste ambiente vivia entre Lisboa e São Paulo, daí a utilização dos termos: nomadismo e distância, emigrante e exilado. O jogo funcionava como um elo de ligação entre a autora e a sua comunidade de amigos e interesses. Para mais

diferentes corpos/personagens textuais: o corpo do gestor/emigrante/exilado (game master) e os diferentes corpos dos anónimos. Os anónimos estão em monólogo uns com os outros mas em diálogo com o corpo do gestor/emigrante/exilado. Os anónimos são correspondentes escolhidos a partir de uma base de dados muito reduzida de pessoas que podem partilhar interesses, discussões diversificadas e específicas. Inicialmente há uma ligação muito estreita entre o gestor e os anónimos mas conforme se vai progredindo a base de dados estende-se de forma a incluir novas ligações. Turbulência, caos (que implica, por definição, uma ordem estrutural) e liberdade de expressão são estimuladas mas o gestor do sistema exerce direitos de censura no sentido de ocultar a identidade dos anónimos e de forma a manter sigilo na base de dados. “Joga Outra Vez” (JOV) tem dez regras distintas e consiste no lançamento de cinco cartas (textos) que são posteriormente discutidas via e-mail. Estas cartas gerais permitem ao gestor atribuir sete cartas de pontuação (castigo, privilégio, motivação, prestígio, participação ou de ouro) e assim fazer evoluir o sistema. O gestor do tabuleiro gere as reflexões individuais dos participantes e atribui pontuações às diferentes prestações sendo que os participantes que suscitam mais reflexão por parte dos outros recebem mais cartas por serem mais comentados. O blogue Mouseland representado na figura 5 e 6 foi criado em Maio de 2006 e está instalado no servidor da comunidade de videojogos da Universidade de Aveiro em Portugal. Este lugar foi construído no intuito de estimular e divulgar os estudos académicos sobre jogos electrónicos e tem uma actualização frequente. Na blogoesfera a “mouselândia” tem sido um lugar elogiado e participado onde se discute sobre videojogos mas também sobre temas associados à cultura digital, cibercultura, ciberfeminismo, cinema, exposições e outros. Além de ser um espaço de divulgação da cultura digital a Mouseland organizou algumas edições de jogos de escrita em colaboração onde o objectivo era a construção de alguns argumentos interactivos, ou seja, a criação de histórias e narrativas em conjunto. O resultado pode ser consultado no blogue na área “scripts” e consiste em inúmeras “telenovelas” non sense.

informações sobre esta experiência consultar a tese de doutoramento inédita: Gouveia, Patrícia. Joga Outra Vez, um conjunto de objectos que contam histórias inteligentes, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tese de doutoramento inédita financiada pela FCT, Lisboa, 2008.

Figura 5 – “Mouseland” (2006)_área cibercultura;

Figura 6 – “Mouseland” (2006)_área game art;

As narrativas interactivas, segundo J. Yellowlees Douglas23, têm uma nomenclatura semelhante à que encontramos em algumas ficções avant garde e experimentais. São narrativas da multiplicidade e em mosaico com antecedentes na cultura impressa tradicional, que estão presentes, a título de exemplo, nos trabalhos o Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell, Rayuela de Julio Cortazar e o Prazer do Texto de Roland Barthes. São fragmentos narrativos, perspectivas em conflito, interrupções. Objectos por desvendar de forma dinâmica. Obras que espelham os nossos movimentos no sistema, o nosso processo de incorporação no espaço da obra. Ao contrário da rigidez espacial do texto impresso os “textos” presentes nos artefactos digitais sofrem sempre variações, nenhuma das suas versões é a final, pois podem ser constantemente alterados, recombinados, refeitos. Neste contexto, permitem um constante dinamismo ao possibilitar correcções, actualizações e modificações. Assim,

23

O texto acima referenciado está disponível on-line em: Douglas, J. Yellowlees (s/ data), “What Hypertexts can do that print narratives cannot” in http://www.nwe.ufl.edu/~jdouglas/reader.pdf (acedido em Dezembro de 2008).

ao perdermos a rigidez do texto perdemos também a sua unidade, o que nos permite escapar ao que Gérard Genette, citado por George Landow, denunciou como a idolatria e o fetichismo do trabalho escrito como um objecto absoluto, fechado e completo (Landow, 2001: 79). Os objectos digitais permitem ao leitor tomar vários caminhos através de um corpo fixo de lexias mas também construir os seus próprios elos narrativos. O hipertexto e a hiperficção solicitam-nos que abandonemos a noção de um texto unitário e adoptemos a ideia de uma escrita dispersa. A proposta de fragmentação do corpo do texto em inúmeros pedaços de palavras e imagens é explicitada por Roland Barthes em S/Z, citado por George Landow, da seguinte forma:

“(...) nós devemos começar por separar o texto, à maneira de um pequeno tremor de terra; os blocos de significação de cada leitura apenas tocam a superfície macia, imperceptivelmente solucionada pelo movimento das frases, o discurso fluído da narração, a naturalidade da linguagem corrente. O significante será cortado numa série de breves, contíguos fragmentos, a que deveremos chamar lexias, uma vez que são unidades de leitura” (Landow, 2001: 64).

Ora, argumenta-se, neste artigo, que é precisamente uma estrutura de deriva textual, contíguos fragmentos e estilhaços de frases e palavras, já presente no hipertexto e na hiperficção, que os jogos na rede podem recriar. Esta estrutura, aparece na génese da hiperficção, mas ainda numa versão fechada ao leitor do ponto de vista da criação e da configuração e apenas aberta a este do ponto de vista da interpretação. Os jogos na rede podem ampliar esta tendência através da possibilidade da inserção de excertos e blocos textuais provenientes e criados pelo próprio leitor/participante/jogador. Esta abertura do sistema lúdico, pela criação de jogos que servem para criar outros jogos, ou linhas narrativas que saltitam de plataforma em plataforma, amplia de forma expressiva o sistema

de

participação

e

colaboração

das

ficções

interactivas.

Este

leitor/participante/jogador pode gerar as suas próprias histórias a partir de narrações pessoais, personagens que constrói, mundos que habita e refaz, linhas de código que manipula e que insere num sistema já existente. Pode ainda convidar outros indivíduos a partilhar essas unidades de texto, de código, vídeos ou imagens, e permitir que estes as alterem, ampliem, reconfigurem.

O tempo da narrativa tripartida (o tempo da história, do narrador e do leitor) e o tempo implosivo do jogo (Juul, 1999, 2005), onde tudo sucede em simultâneo, isto é, onde a história acontece, é vivida e relatada de forma implosiva, permite conciliar estruturas

narrativas que juntam de maneira híbrida a acção do avatar ou jogador e a história que este conta “on the fly”. O designer do sistema, ou puppet master, figura invisível que concebe e divulga um livro de regras possíveis para que o participante subsequentemente junte as peças e resolva mistérios é o responsável por esta estrutura não linear de blocos textuais. A ficção interactiva prescinde do enredo narrativo para dar lugar a um livro de regras aberto à manipulação e à acção numa forma de narração emergente, que se vai definindo consoante se vive a história. Considera-se que “criar uma personagem jogável num mundo de ficção interactiva envolve colocar esta personagem numa situação que é motivadora para quem interage mas que não é necessário dar ao participante um enredo dramático pré-definido ou um papel a desempenhar” (Monfort, 2007). A imediaticidade da simulação e a possibilidade de misturar narrativas na primeira pessoa com relatos contados na segunda e na terceira pessoa (Douglass, 2007) permitem, nas histórias implosivas dos jogos de realidade alternativa, uma maior plasticidade e significação. O design de interfaces humanomáquina ao privilegiar o processo de masterização do sistema de jogo, por parte dos participantes, e a capacidade destes resolverem enigmas e charadas, incorpora ficções abertas e narrações que permitem aos jogadores criarem o seu próprio sentido e as suas experiências pessoais numa rede colaborativa onde estes actuam como actores no drama digital.

As narrativas cross media são, neste contexto, lugares de escrita fluida e em colaboração onde os diferentes suportes servem como matéria criativa à progressão do enredo e à definição da ficção digital, numa realidade alternativa em que os meios são usados para a produção de espaços partilhados e persistentes de entretenimento. Plataformas de jogo para vários participantes como o Second Life24 ou o World of Warcraft25 mas também ambientes de divulgação e comunicação como o MySpace, o H5, o Last FM, o Flickr ou o LinkedIn26, entre outras, podem ajudar a gerar extensões

24

Site disponível em http://secondlife.com/ (acedido em Dezembro de 2008). Site disponível em http://www.worldofwarcraft.com/index.xml (acedido em Dezembro de 2008). 26 No dia 10 de Fevereiro de 2007 foi deixada propositadamente uma Pen no Coliseu de Lisboa durante um concerto da banda americana Nine Inch Nails. Esta Pen foi posteriormente encontrada por um fã da banda e gerou um conjunto de mistérios e puzzles todos elaborados a partir de uma estrutura narrativa forjada e gerida em tempo real. A estratégia de marketing foi concebida por uma agência especializada em jogos de realidade alternativa e pelo mentor da banda, Trent Reznor, e contou com a colaboração do público desta. Foram construídos à volta de 30 sites e blogues temáticos, impressas t-shirts e usados telemóveis. A estratégia estimulou a participação e a colaboração numa ficção que implicou raptos de fãs, uma aparição da banda num armazém, etc. (Rose, 2008). 25

narrativas interessantes na criação de espaços cruzados, puzzles enigmáticos e derivas numéricas. O argumento interactivo partilhado ganha novas plasticidades e gera uma relação estética que repousa nas vibrações comuns onde tudo é ocasião para dinamizar o corpo colectivo, onde as representações se tornam porosas e os sistemas teóricos se fragilizam acentuando a criatividade no seu aspecto propenso à divagação e não finalizado. Como afirma Maffesoli, a ficção, na maioria das vezes, antecede a realidade (Maffesoli, 2008: 87-89). As ecologias e as criaturas digitais dos jogos, as narrativas cross media, a economia virtual dos Linden Dollars27 e a língua Simlich28 há muito que penetraram profundamente nas ecologias reais (cf. Castronova, 200529). Apenas através de uma atenção minuciosa em relação a estas dinâmicas da cultura popular on-line podemos compreender alguns factores sociais e comunicacionais frequentes nas diversas tribos contemporâneas.

27

Moeda usada no jogo Second Life. Língua artificial desenvolvida para o jogo The Sims. 29 Sobre intersecções entre a economia real e digital consultar o livro de Edward Castronova, Synthetic Worlds, The Business and Culture of Online Games, The Univ. Chicago Press, 2005. 28

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