Pluralismo e Diversidade nos meios de comunicação de massa: sobre consensos e contendas

June 3, 2017 | Autor: Miriam Wimmer | Categoria: Políticas De Comunicação, Radiodifusão, Direito das Comunicações
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PLURALISMO E DIVERSIDADE NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA: SOBRE CONSENSOS E CONTENDAS

Miriam Wimmer* Resumo O artigo chama a atenção para as contradições, para as ambiguidades e para a diversidade de premissas teóricas que se abrigam por detrás da ideia de pluralismo midiático. Nessa linha, sustenta que existe um amplo leque de abordagens regulatórias aptas a estimular diferentes formas de pluralismo, e que, em muitos casos, a perspectiva política subjacente ao termo condicionará a escolha do mecanismo jurídico-regulatório a ser utilizado para promovê-lo. Longe de ser um objetivo “neutro” e “consensual ” de política pública, a idéia de pluralismo midiático deve ser retomada em sua dimensão política. Abstract The article calls attention to the contradictions, the ambiguities and the different theoretical premises that hide behind the idea of media pluralism. In this sense, the paper argues that there is a wide range of regulatory approaches to stimulate different forms of pluralism, and that, in many cases, the underlying political perspective conditions the choice of mechanism used to promote pluralism. Far from being a “neutral ” and “consensual ” public policy aim, the idea of media pluralism must be rediscussed in it's political dimension. Resúmen El artículo llama la atención sobre las contradicciones, ambigüedades y la diversidad de los supuestos teóricos que se refugian detrás de la idea de pluralismo en los medios de comunicación. En esta línea, sostiene que existe una amplia gama de enfoques reguladores capaces de animar a las diferentes formas de pluralismo, y que en muchos casos, la perspectiva política determinará la elección del mecanismo jurídico-normativo que se utilizará para su promoción. Lejos de ser un objetivo "neutral" y "consensual" de la política pública, la idea del pluralismo de los medios de comunicación debe ser discutida en su dimensión política.

1.

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, os debates acerca da regulação dos meios de comunicação de *

Doutoranda em Políticas de Comunicação na Universidade de Brasília, mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bacharel em direito pela mesma instituição. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações – Getel/UnB.

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massa giram ao redor da ideia de que é importante dotar a estrutura de comunicação social de maior grau de pluralismo e diversidade. Também no Brasil essa é uma concepção que ganha força; de fato, resulta da própria sistemática constitucional, que estabelece a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal, veda o monopólio ou oligopólio e orienta a programação televisiva à promoção da cultura nacional e regional e ao estímulo à produção independente que objetive sua divulgação. As ideias de pluralismo e de diversidade não parecem encontrar oposição; tais palavras são, com frequência, citadas nas mais diferentes vertentes da teoria democrática, em conexão com valores como a livre escolha, procedimentos deliberativos equilibrados e direitos fundamentais. No campo da comunicação, pluralismo e diversidade são associados à liberdade de expressão e ao direito à comunicação, assim como a discussões acerca da concentração da propriedade da mídia e da necessidade de diversificar seu conteúdo. Apesar do aparente consenso em torno da aplicabilidade, à comunicação, das noções de pluralismo e diversidade, constata-se que não há claro acordo semânticoconceitual a seu respeito. De modo simples, as palavras são muito utilizadas, porém para cada interlocutor assumem significado diferente. Tal cenário dificulta a transição do debate de um patamar de senso comum para uma discussão estruturada acerca de maneiras de efetivar princípios conceitualmente bem definidos. Em outro plano, deve-se reconhecer que a vagueza inerente a tais conceitos lhes confere elevado grau de flexibilidade ideológica, de modo que têm servido para defender objetivos muitas vezes incompatíveis entre si. Como nota Karpinnen (2007:9), os termos incorporam objetivos progressistas em um momento e reacionários no momento seguinte; servem para fundamentar tanto a ideologia do livre mercado quanto a defesa de intervenção estatal e obrigações de serviço público. Este trabalho pretende contribuir para o aprofundamento da discussão em torno do pluralismo e da diversidade na mídia, explorando a extensão e a coerência do acordo que aparentemente existe em torno do tema. Para tanto, o artigo adota duas linhas de investigação. De um lado, com base em literatura internacional, são propostas algumas linhas orientadoras para um acordo semântico acerca dos termos diversidade e pluralismo, a partir do qual se possa proceder à categorização dos diferentes mecanismos jurídicoregulatórios para sua efetivação. Em um segundo momento, é aprofundada a discussão teórica acerca de tais conceitos, elucidando-se as diferentes premissas que podem se ocultar por detrás de

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termos aparentemente incontroversos. Nesse sentido, sem pretensão de oferecer definições fechadas, busca-se avaliar as contradições e as ambiguidades associadas às ideias de pluralismo e diversidade na mídia, assim como as suas potencialidades.

2.

CATEGORIZAÇÕES

E

MECANISMOS

JURÍDICO-REGULATÓRIOS

PARA

PROMOÇÃO DO PLURALISMO E DA DIVERSIDADE

A defesa do pluralismo e da diversidade na mídia pode ser reconduzida, grosso modo, a dois tipos de argumentos: um argumento de natureza “democrática” e um argumento de natureza “sócio-cultural”. Do ponto de vista da teoria democrática, argumenta-se que o debate político requer um livre fluxo de ideias apto a permitir a participação informada dos cidadãos; nesse sentido, aponta-se que as instituições midiáticas são de importância central para o funcionamento da democracia, ao viabilizar (ou inviabilizar) o direito de participação e o livre intercâmbio de ideias que são requisitos para a formação da “opinião pública” ou da “vontade do povo”. Sob o aspecto social e cultural, é salientado o relevante papel da mídia na consolidação da identidade nacional e na preservação da cultura e idioma locais, assim como na defesa de interesses de grupos minoritários; nesse sentido, as instituições midiáticas se prestam à realização (ou violação) de direitos fundamentais, especialmente aqueles ligados à identidade étnica, cultural e religiosa (às vezes chamados de “direitos à diferença ” e contextualizados no debate sobre o multiculturalismo). Embora os argumentos gerais a favor do pluralismo na mídia sejam relativamente incontroversos, verifica-se que não há o mesmo grau de clareza sobre o que é e como pode se concretizar esse pluralismo. De fato, os termos pluralismo e diversidade são usados, no contexto da comunicação de massa, com sentidos muito próximos. Contudo, podem se referir a cenários fáticos bastante diferentes e traduzem-se, muitas vezes, em medidas jurídico-regulatórias também diferenciadas. Leuven e outros (2009:5), por exemplo, caminham nessa linha ao definir o pluralismo da mídia como a diversidade de fornecimento, uso e distribuição de mídia, com relação a (i) propriedade e controle; (ii) tipos e gêneros de mídia; (iii) pontos de vista políticos; (iv) expressões culturais; e (v) interesses locais e regionais. Assim, chamam a atenção para a grande variedade de dimensões do pluralismo midiático, que pode se manifestar, dentre outras formas, como interno/externo, cultural/político, estrutural/de conteúdo, polarizado/moderado, organizado/espontâneo e reativo/interativo/pró-ativo.

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Hitchens (2006:8-10), por sua vez, identifica quatro diferentes situações (de fato ou almejadas pela política pública), geralmente associados aos termos “diversidade” e “pluralismo”: (i)

situação em que o ambiente midiático é estruturado de modo a assegurar que haja diferentes tipos de estruturas midiáticas, como, por exemplo, a radiodifusão pública e a radiodifusão privada;

(ii)

situação em que o ambiente midiático é estruturado de modo a assegurar que haja uma multiplicidade de proprietários dos meios de comunicação;

(iii)

situação em que o ambiente midiático viabiliza que uma diversidade de opiniões seja transmitida; e

(iv)

situação em que haja uma ampla gama de programação, incluindo programas informativos e de entretenimento.

As quatro situações descritas pelo autor têm sido divididas, tanto no campo acadêmico quanto no campo das políticas públicas, em duas grandes categorias, relativas, respectivamente, à forma como o ambiente da comunicação de massa é estruturado e ao conteúdo que é transmitido. Assim, fala-se em pluralismo externo para fazer referência às duas primeiras situações acima enumeradas, que retratam a ideia de que deve existir concorrência entre diferentes veículos, agentes e estruturas de comunicação. De outro lado, fala-se de pluralismo interno para fazer referência à ideia de adequada representação da diversidade no interior de um mesmo veículo, como ilustrado pelas duas últimas situações descritas por Hitchensi. Essa categorização tem sido adotada também em documentos de trabalho da Comissão Européia, com forte inspiração na tradição alemã de regulação da mídiaii. Vale notar que o termo “diversidade” é usado, por diferentes autores, tanto para se referir à ideia de multiplicidade de agentes/meios/estruturas (aqui chamado de pluralismo externo) quanto à ideia de variedade de conteúdo (aqui chamado de pluralismo interno). Não foi possível identificar um sentido unívoco para esse termo quando aplicado à comunicação social. A diferenciação entre pluralismo interno e externo, acima descrita, não é importante apenas para fins de didatismo; sobretudo, tem o mérito de tornar explícito que um mesmo fim – o pluralismo (em sentido amplo) na comunicação social eletrônica – pode ser buscado por meio de diferentes tipos de políticas públicas. No que tange ao pluralismo externo, variados instrumentos jurídico-regulatórios são passíveis de utilização para incentivar um ambiente de múltiplos prestadores,

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plataformas e meios. Pode-se elencar, entre tais instrumentos, o “pluralismo setorial”, mediante criação de diferentes setores de mídia (e.g. público vs. privado, comercial vs. não comercial, serviços comunitários, educativos, etc.); o controle estrutural do acesso ao mercado mediante regras de licenciamento (limitando, por exemplo, capital estrangeiro); a limitação da propriedade e do controle sobre a mídia (e.g. restrições quanto ao número de licenças a serem detidas por grupo empresarial); e a aplicação de regras gerais de defesa da concorrência, relativas tanto a estruturas quanto a condutas (e.g. quanto a fusões e aquisições, acesso à infraestrutura, acesso a conteúdo e canais de veiculação obrigatória – must-carry)iii.

Mecanismo

Funcionamento

“Pluralismo setorial”

Criação de diferentes setores de mídia, distintos entre si em razão de estrutura, modo de financiamento, titularidade, missão, entre outros critérios

Controle estrutural do acesso ao mercado

Formas de licenciamento privilegiando a participação de grupos representativos; licitações associadas a exigências específicas quanto a quem pode participar; restrição ao capital estrangeiro.

Limitação de propriedade e de controle

Limitação quanto ao número de outorgas que um mesmo grupo econômico pode deter; limitação quanto à participação de um mesmo grupo econômico em outros mercados correlatos ou em outras etapas da cadeia produtiva.

Aplicação de regras gerais de defesa da concorrência

Controle de estruturas (fusões e aquisições) e de condutas, incluindo regras relativas ao acesso e compartilhamento de infraestrutura, regras relativas à isonomia no direito de transmissão de determinados conteúdos e regras relativas à veiculação obrigatória de determinados conteúdos (must-carry).

Fonte: elaboração da autora

Já o pluralismo interno pode ser estimulado tanto por meio de mecanismos que assegurem o pluralismo na gestão, quanto por aqueles que visam a incidir diretamente sobre o próprio conteúdo transmitido. O pluralismo interno de gestão compreende mecanismos como conselhos consultivos, regras quanto ao tipo societário a ser adotado, mecanismos de controle social e regras formais de prestação pública de contas, entre outros. Busca assegurar, em síntese, que terceiros (e.g. grupos sociais representativos) possam exercer influência sobre a forma segundo a qual uma empresa de mídia é administrada e gerida. O pluralismo interno de conteúdo, por sua vez, contempla mecanismos que visam a assegurar a adequada representatividade de grupos sociais na própria programação televisiva. Assim, inclui tanto mecanismos de atribuição de tempos de programação a terceiros, não vinculados à empresa, quanto mecanismos que buscam assegurar que a programação geral da empresa represente de forma proporcional e equitativa os diferentes grupos sociais.

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Pela sua importância e escassez no cenário brasileiro, vale lançar um olhar mais detido sobre alguns diferentes mecanismos de pluralismo interno de conteúdo. Um primeiro mecanismo digno de nota é o “direito de antena”, expressão usada, em geral, para designar o direito de partidos políticos, organizações sindicais, profissionais e representativas das atividades econômicas, bem como de outras organizações sociais, a tempos de programação ( “tempos de antena”), em igualdade de condições, nos meios de comunicação de massa. O termo inclui, portanto, mecanismos como os horários de propaganda eleitoral gratuita, assim como outros mecanismos, não vinculados de forma imediata à dinâmica político-partidária, que visem a assegurar, a determinados grupos sociais, tempos de programação nos meios de comunicação de massa. Outro mecanismo de interesse, existente em países como a Espanha, é aquele que visa garantir a adequada “representação” de grupos sociais nos meios de comunicação de massa (e.g. por meio de noticiários, participação em entrevistas, etc). Note-se que embora tal mecanismo represente também uma forma de viabilização do acesso aos meios de comunicação de massa, difere significativamente do direito de antena em alguns aspectos centrais, quais sejam: (i) a forma de representação será determinada pela empresa de mídia; e (ii) não necessariamente permitirá aos diferentes grupos sociais “falar em nome próprio” na televisão e no rádio. Isso porque enquanto o direito de antena assegura ao titular a possibilidade de fazer uso de um determinado tempo de programação, que será empregado livremente da forma como melhor lhe aprouver, o direito de representação meramente assegura que informações acerca de determinado grupo social sejam veiculadas em uma parte da programação da empresa. Um terceiro mecanismo relevante de pluralismo interno de conteúdo é a cota de conteúdo (ou cota de programação) relativa à produção independente. Trata-se, em síntese, do estabelecimento de regras que determinam que determinada porcentagem da programação de uma prestadora de radiodifusão seja produzida por terceiros não vinculados à emissora principal. As cotas de conteúdo de produção independente podem, ainda, possuir outras características, como caráter regional, educativo, cultural, entre outros. Embora em muitos casos as cotas tenham viés eminentemente cultural (i.e. ligados à preservação da cultura local e nacional), deve-se reconhecer que determinadas modalidades de cotas de conteúdo independente podem assumir faceta política, em especial quando se trata de cotas de produção regional independente. Convém notar, contudo, que embora as cotas de programação também constituam um mecanismo de incremento do pluralismo interno na programação televisiva e radiofônica, assumem dinâmica diferente do direito de antena e do direito de representação, por dirigirem-se, em geral, não a grupos sociais específicos, mas a

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produtores de conteúdo com características determinadas. Quem fará uso do espaço oferecido é uma entidade intermediária, de natureza profissional, não vinculada ao emissor principal, que terá relativa autonomia na definição do conteúdo, observadas apenas as diretrizes gerais referentes à natureza da cota estabelecida.. Observa-se, portanto, que embora os três mecanismos visem a influenciar o conteúdo da programação transmitida, propiciando condições para que terceiros não detentores dos meios de comunicação possam a eles ter acesso, há diferenças estruturais entre os três instrumentos selecionados. A tabela abaixo ilustra, de modo bastante singelo, algumas características de tais mecanismos:

Direito de antena

Quem faz uso dos tempos de programaçã o

Funcionamento

Grupos sociais

Acesso direto a tempos de programação

Responsabilida -de pela produção e organização do conteúdo

Tipo de tempo concedido

Possibilidade de intervenção da emissora na organização e seleção do conteúdo

Grupo social

Tempos especificamente destinados

Nenhuma. A emissora apenas fornece o tempo e estrutura de produção, ficando o conteúdo a cargo do grupo social

Diluição na programaçã o rotineira da emissora

Grande. A emissora livremente organiza o conteúdo.

Tempos especificamente destinados

Em alguns casos, a emissora pode escolher a programação a ser veiculada, desde que seja independente. Em outros, apenas fornece o espaço para um terceiro independente previamente escolhido.

Direito de Grupos representasociais ção

Acesso indireto a tempos de Emissora programação, dentro da programação geral

Cotas de produção independente

Acesso direto a tempos de programação. Podem existir regras adicionais sobre as características do conteúdo (regional, educativo, etc)

Terceiro não vinculado à emissora

Terceiro não vinculado à emissora

Fonte: elaboração da autora

Apresentada essa proposta geral de categorização do pluralismo midiático, passase a lançar um olhar mais detido sobre as diferentes premissas que podem se associar ao aparente consenso em torno do termo.

3.

PREMISSAS TEÓRICAS PARA O PLURALISMO: O EMBATE SUBJACENTE AO CONSENSO FÁCIL

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Os termos pluralismo e diversidade indicam uma preferência pela multiplicidade e pela heterogeneidade e, simetricamente, a rejeição à unicidade, à uniformidade e ao pensamento único. Assim caracterizados e associados à ideia de democracia, são facilmente apropriados por uma ampla gama de linhas de pensamentoiv e, dessa forma, empregados para justificar a adoção de medidas muitas vezes contraditórias entre si. O amplo assentimento dado a esses conceitos indeterminados tem por efeito, na prática, ocultar as diferenças de premissas subjacentes a cada uma das linhas teóricas em contraposição. Assim, como mencionado na parte inicial deste trabalho, um mesmo conceito – pluralismo – pode ser invocado tanto para defender um mercado laissez faire quanto para fundamentar a necessidade de maior incidência regulatória sobre a mídia, seja sobre a estrutura de propriedade, seja diretamente sobre o conteúdo veiculado. Com certa simplificação, é possível associar as diferentes visões sobre pluralismo e diversidade às perspectivas republicana e liberal da democracia e do direito. Muito embora dentro de cada teoria existam divergências, nuances e posições intermediárias, é possível identificar algumas linhas de força de cada perspectiva, refletidas, também, sobre as diferentes concepções acerca do pluralismo e da diversidade no campo da comunicação de massa. De modo simples, costuma-se afirmar que o liberalismo é centrado, em primeira linha, no indivíduo, enquanto o republicanismo volta suas atenções primordialmente para a ideia de uma comunidade ética, que compartilha consensos fundamentais culturalmente estabelecidos. É em função dessa distinção central que o liberalismo se apresenta fortemente marcado pela ideia de liberdade negativa (i.e. a ausência de coação externa) e de autonomia privada, enquanto o republicanismo, em geral, focaliza a ideia de liberdade positiva (i.e. a possibilidade de participação política) e de autonomia pública. Assim, é comum que as teorias liberais atribuam uma importância maior à noção de direitos fundamentais ou direitos humanos, aptos a garantir as liberdades individuais do indivíduo (eventualmente mesmo contra a vontade do legislador político), enquanto o pensamento republicano associa a liberdade à ideia de autonomia de um povo soberano capaz de se autodeterminar. Interessante notar que para o pensamento republicano, a sociedade não é formada por meros “portadores de direitos ”, mas por cidadãos, cujos direitos de participação e de comunicação política constituem-se como direitos positivos que visam a assegurar a participação na prática deliberativa de uma comunidade de pessoas livres e iguais. A discussão sobre pluralismo e diversidade na comunicação social inevitavelmente traz, subjacente, determinada perspectiva política; como salienta Karpinnen (2007:14-15), embora pluralismo e diversidade sejam frequentemente apresentados como fins em si 8

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mesmos, devem necessariamente ser inseridos em um quadro de referência dentro do qual possam ser compreendidos. Existem, por exemplo, importantes distinções entre a perspectiva liberal de “liberdade de escolha” como fundamento para o pluralismo e a perspectiva republicana de que o pluralismo serve para assegurar a adequada reflexão das diferenças sociais e o acesso igualitário a diferentes pontos de vista. Karpinnen (2007:15) sintetiza bem a questão:

“O modelo de mercado e a abordagem da esfera pública, portanto, apóiam-se em racionalidades políticas muito diferentes ao interpretar diversidade e pluralismo como metas de políticas de mídia. Enquanto o primeiro é baseado na competição e na liberdade de escolha, o segundo enfatiza uma defesa mais ampla do 'pluralismo principiológico', uma tentativa de servir à sociedade inteira com variadas visões políticas e valores culturais”v.

Embora seja acurada a avaliação do autor, deve-se ter em mente que liberalismo e republicanismo, embora assentados sobre racionalidades bastante diversas, não são necessariamente antagônicos entre si. Muitos autores de peso, como Habermas, por exemplo, têm buscado conciliar as duas perspectivas por meio da abordagem da democracia deliberativa. Conforme a avaliação de Mouffe (2000:2-3), a maior parte dos defensores da democracia deliberativa não é antiliberal; sua meta não é abandonar o liberalismo, mas recuperar sua dimensão moral e estabelecer um forte vínculo entre valores liberais e democracia. Seu argumento central é de que é possível, graças a procedimentos adequados de deliberação, alcançar formas de acordo que satisfaçam tanto a racionalidade (compreendida como a defesa de direitos liberais) e a legitimidade democrática (representada pela soberania popular). Apesar disso, deve-se ter em mente que, em alguns casos, será justamente a perspectiva política oculta atrás do termo “pluralismo ” que condicionará a escolha do mecanismo jurídico-regulatório a ser utilizado para promovê-lo. Uma perspectiva liberal, assentada sobre a ideia de um “livre mercado de ideias”, onde os limites e critérios são estabelecidos pela competição e pela escolha do consumidor, dificilmente defenderá um sistema público de radiodifusão como mecanismo de incremento do pluralismo. Uma perspectiva republicana da esfera pública como principal quadro de referência, onde a necessidade de pluralismo de visões políticas e perspectivas sociais é categorizada como parte do processo público e democrático de deliberação, dificilmente acreditará que o pluralismo será atingido com simples instrumentos de mercado. Nesse sentido, Leuven e outros (2009:6) esclarecem:

“Essa dicotomia pode também ser compreendida em termos de abordagens

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regulatórias à diversidade da mídia: a abordagem da competição ou do mercado, endossando a regulação econômica para prevenir falhas de mercado, e a abordagem intervencionista ou de regulação pública, envolvendo uma política midiática ativa. A primeira abordagem equipara diversidade com liberdade de escolha e defende o ponto de vista de que a diversidade por melhor ser atingida quando as pessoas podem livremente ingressar no “mercado de ideias” sem qualquer restrição governamental, um conceito baseado na teoria econômica clássica de mercado. A segunda abordagem se apóia em outra interpretação da diversidade, salientando a importância de existência de várias visões políticas e valores culturais, que podem requerer intervenção estatal, mas que também podem ser atingidos por meio de uma gama de abordagens regulatórias complementares, incluindo co-regulação e auto-regulação”vi.

Karppinen se mostra bastante crítico à redução do conceito de pluralismo à ideia de mera diversidade de opções com vistas à escolha e satisfação de preferências individuais; de fato, seu texto parece ter por objetivo desconstituir dois argumentos comuns: (i) o argumento de que um simples aumento na quantidade de agentes ou canais seria suficiente para atender às exigências democráticas de pluralismo midiático ou que a multiplicidade de vozes seria capaz, por si só, de assegurar que os melhores argumentos prevalecessem frente à opinião pública; e (ii) o argumento libertário de que a melhor forma de atingir o “livre mercado de ideias” seria por meio da competição e da ausência de intervenção governamental. Diversos autores têm percorrido linhas de argumentação semelhantes. No que se refere ao primeiro argumento – o argumento de que o pluralismo externo é suficiente para que o conteúdo gerado seja heterogêneo e representativo – mesmo pesquisadores que associam teoricamente o pluralismo à liberdade de escolha têm ressaltado que tal liberdade de escolha deve ser qualificada, ou seja, deve ser contextualizada em processos institucionais de diálogo, embasados em direitos humanos e objetivos sociais e econômicos congruentes, e deve representar uma verdadeira opção entre alternativas diferenciadas. Um grande número de canais de televisão, por exemplo, não é garantia contra a homogeneidade de conteúdo que pode resultar da disputa pela audiência de um mesmo público. De fato, não parece ser viável demonstrar uma relação de causalidade direta e imediata entre pluralismo externo e pluralismo interno. Embora seja possível que um maior número de tipos, agentes e meios de comunicação (pluralismo externo) conduza a maior grau de diferenciação de conteúdo, essa não é uma condição necessária e suficiente para que isso ocorra. Como alertam Feintuck e Varney (2006:60), “(...) pode existir forte relacionamento entre diversidade de propriedade e diversidade de produtos, ou entre monopólio de propriedade e homogeneidade de produtos, em termos de perspectiva política ou falta de diversidade de programação, mas o relacionamento permanece eventual ao invés de

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necessário”vii .

Quanto ao segundo argumento – de que a melhor forma de atingir o “livre mercado de ideias” seria por meio da competição e da ausência de intervenção governamental – deve-se compreender que essa é uma alternativa de política pública voltada, primordialmente, ao pluralismo externo, que deve ser sopesada à luz das muitas outras medidas jurídico-regulatórias apresentadas na primeira parte deste trabalho. Também Feintuck e Varney (2006:103) fazem avaliação nessa linha: “Enquanto o papel da escolha nos mercados de mídia é, em determinado nível, incontroverso, no sentido de que a escolha deve ser maximizada para todos os cidadãos, em outro nível permanece uma questão crucial sobre como melhor viabilizar essa escolha. Um mercado laissez-faire seria a melhor forma de fornecer essa pluralidade ou diversidade, ou são necessários outros mecanismos alternativos, intervencionistas?”

Em verdade, aceitando-se que o conceito de pluralismo é de natureza multidimensional, torna-se necessário superar a visão um tanto simplista de que ele é suscetível de realização por meio de um único tipo de abordagem regulatória. Essa constatação é feita também pela Comissão Européia (2007:5), que salienta que: (i) pluralismo midiático engloba uma série de aspectos, como diversidade de propriedade e variedade nas fontes de informação e na gama de conteúdos disponíveis nos diferentes Estados Membros; (ii) embora o pluralismo de propriedade seja importante, trata-se de condição necessária mas não suficiente para assegurar o pluralismo midiático; e (iii) regras de propriedade necessitam ser complementadas por outras provisões aptas a garantir aos cidadãos o acesso a uma variedade de fontes de informação, opiniões, vozes, etc., de modo a evitar a excessiva influência de um único poder dominante na formação da opinião. Recorrendo-se novamente a Karpinnen (2007:16), o que se constata é que, de um lado, o simples aumento quantitativo de meios ou de canais de televisão não é, na verdade, muito relevante do ponto de vista de uma esfera pública pluralista; por outro lado os processos de representação política e social são, ainda, centrais para a justificação das políticas midiáticas e para a discussão do pluralismo na mídia. Tais considerações são úteis para tornar claro que se o pluralismo não pode ingenuamente ser reduzido à simples diversidade de opções, tampouco é possível acreditar que a adoção de mecanismos de pluralismo interno, por si só, sejam suficientes para garantir a visibilidade e representatividade das diferentes visões políticas e formas de expressão que integram uma sociedade complexa. A conclusão que parece emergir é de que mecanismos de pluralismo interno e externo devem ser combinados e calibrados entre si para que seja possível atingir o pluralismo midiático (em sentido amplo) em cada mercado, conforme suas características 11

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específicas. Mecanismos voltados a estimular o pluralismo interno podem, por exemplo, ser mais importantes em um cenário de poucos competidores, enquanto mecanismos relacionados ao estímulo ao pluralismo externo podem ganhar maior relevância em sistemas midiáticos caracterizados por grande homogeneidade de conteúdo. Modelos mais ou menos complexos podem ser desenhados conforme as prioridades políticas e as circunstâncias concretas de cada sistema midiático, tendo em vista a criação de espaços para a comunicação e mediação de pontos de vista diversificadosviii .

4.

CONCLUSÕES

As considerações precedentes tiveram por objetivo lançar luz sobre as premissas teóricas bastante distintas que se abrigam por detrás da ideia de pluralismo midiático, chamando a atenção para o fato de que o caráter aparentemente incontroverso atribuído ao conceito esconde importantes contradições e ambigüidades. Buscou-se argumentar, ademais, que existe um amplo leque de abordagens regulatórias aptas a gerar diferentes formas de pluralismo, e que, em muitos casos, a perspectiva política subjacente ao termo condicionará a escolha do mecanismo jurídico-regulatório a ser utilizado para promovê-lo. Entende-se, em suma, que longe de ser um objetivo “neutro” e “consensual ” de política pública, a idéia de pluralismo midiático deve ser retomada em sua dimensão política, abandonando-se o rasteiro consenso que, na prática, subtrai do debate público a sua dimensão antagônica e conflituosa.

REFERÊNCIAS

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HITCHENS (2006:9) adota convenção terminológica ligeiramente distinta da aqui delineada. Para esse autor, o termo “pluralismo” é usado para se referir ao “pluralismo externo”, enquanto o termo “diversidade” é usado para denotar o “pluralismo interno”. Trata-se de diferenciação terminológica que, contudo, não revela qualquer incompatibilidade conceitual. ii O sistema de radiodifusão alemão é caracterizado como uma “ordem dual”, com convivência e complementaridade entre a radiodifusão pública e a radiodifusão comercial. O serviço público alemão de radiodifusão esteve sempre submetido a rígidos mecanismos de accountability e supervisão interna, visando a assegurar o caráter diverso e equilibrado da programação, ou seja, o pluralismo interno da programação. Por outro lado, a radiodifusão comercial, embora submetida também a exigências quanto a um padrão básico de diversidade de conteúdo, foi submetida a regras adicionais quanto ao pluralismo externo, admitindo-se que programas individuais pudessem revelar um desequilíbrio, desde que o sistema de radiodifusão considerado em sua totalidade mantivesse seu compromisso com o pluralismo, equilíbrio e diversidade. iii HITCHENS (2006: 152) argumenta que uma forma de estimular a existência de uma ampla gama de programação é estrutura o ambiente de radiodifusão de tal forma que haja diferentes setores de

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radiodifusão, com diferentes fontes de financiamento e papéis ou responsabilidades. Assim mesmo, há o risco de que alguns programas sejam marginalizados ou que radiodifusores públicos sejam relegados ao papel de preencher as lacunas. iv Ou mesmo alçados a elemento central de teorias democráticas específicas, como é o caso do “pluralismo agonista” de CHANTAL MOUFFE, que advoga por um modelo democrático capaz de compreender a natureza do político. v Tradução livre de: “The marketplace model and public sphere approach, thus, rely on very different political rationalities in interpreting diversity and pluralism as media policy goals. While the former is based on competition and freedom of choice, the latter emphasizes broader defence of ‘principled pluralism’, an attempt to serve the whole society with various political views and cultural values”. vi Tradução livre de: “This dichotomy can also be understood in terms of regulatory approaches to media diversity: the competition or market approach, endorsing economic regulation to prevent market failure, and the interventionist or public regulation approach, involving an active media policy. The first approach equates diversity with freedom of choice and defends the viewpoint that diversity is best achieved when people can freely enter the ‘marketplace of ideas’ without any governmental constraints, a concept based upon classical economic market theory. The second approach relies on a different interpretation of diversity, highlighting the importance of various political views and cultural values, the support of which may require state intervention, but which may also be achieved through a range of complementary regulatory approaches, including co- and self-regulation”. vii Tradução livre de: “(...) there may be strong contingent relationships between diversity of ownership and diversity of output, or between monopoly of ownership and homogeneity of product, in terms of political perspective or lack of diversity in programme range, but the relationship remains contingent rather than necessary.” viii James Curran (2005:272-281), por exemplo, propõe sofisticado modelo de trabalho para “um sistema democrático de meios de comunicação”, composto por um núcleo de canais de televisão pública de interesse geral, alimentado pelos setores periféricos de meios de comunicação cívicos, profissionais, do mercado social e privado. Sua proposta “se organiza de formas diversas e se conecta com segmentos diferentes da sociedade a fim de ressaltar sua diversidade. Responsável perante o público de múltiplas formas, é pensado para que seja amplamente representativo da sociedade. Sobretudo, sua arquitetura é desenhada para criar espaços para a incubação e a comunicação de pontos de vista opostos, assim como um espaço comum para sua mediação”.

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