Pode a política ser salva pela razão? Um debate silencioso entre Arendt e Strauss

May 28, 2017 | Autor: Rodrigo Ponce | Categoria: Leo Strauss, Hannah Arendt, Filosofía Política
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O livro elogiado por Arendt é The Political Philosophy of Hobbes, publicado em 1936. O curso ministrado por Arendt na Universidade da Califórnia é "History of Political Theory" e encontra-se disponível em: http://memory.loc.gov/ammem/arendthtml/mharendtFolderP04.html (Último acesso: 17/10/2016).
As anotações de Arendt estão disponíveis em: http://www.bard.edu/arendtcollection/marginalia.htm (Último acesso: 02/08/2016).
Uma análise mais completa desse artigo encontra-se no segundo capítulo de minha dissertação de mestrado: Três estudos sobre a tensão entre filosofia e politica em Hannah Arendt (2013). Disponível em: https://ufpr.academia.edu/RodrigoPonce (Último acesso: 03/08/2016).
Uma série de outros argumentos a respeito do caráter não-socrático ou mesmo anti-socrático das doutrinas platônicas é fornecida por Heinrich Blücher em curso ministrado na New School for Social Research, em 1954. Disponível em: http://www.bard.edu/bluecher/lectures/socrates.htm (Último acesso: 05/02/2013). No mesmo ano, Arendt pronuncia a conferência de onde se extrai o artigo "Philosophy and Politics". Considerando a intensa comunicação intelectual entre o casal Arendt-Blücher nesta época (YOUNG-BRUEHL, 1982, p. 345), é bastante plausível que ela trazia em mente tais argumentos.
"A escolha final que eles [Arendt e Strauss] nos apresentam encontra-se (...) entre a mundanidade do bios politikos e a posição contemplativa do bios theoretikos" (VILLA, 1999, p. 176).
Dana Villa parte dessa distinção, afirmando que "Arendt fica ao lado do cidadão e Strauss com o filósofo", para então aproximá-los ao sugerir que: "Ambos apontam para a possibilidade de uma cidadania filosófica ou socrática, a qual escava a dicotomia entre filosofia e politica" (VILLA, 1999, p. 157). Não vamos explorar neste artigo as possibilidades de aproximação entre Arendt e Strauss, pois isto demandaria uma análise mais demorada sobre a imagem que cada um faz de Sócrates. Embora esta aproximação certamente possa ser defendida, parece-me mais produtivo – e mais coerente com o espírito do pensamento de ambos – ressaltar suas divergências.


Pode a política ser salva pela razão?
o debate silencioso entre hannah Arendt e leo strauss

Rodrigo Ponce Santos
Doutorando no PPGFIL – UFPR
[email protected]

Resumo: Considerando a história de suas vidas e os interesses que guiaram suas pesquisas, é curioso que Hannah Arendt e Leo Strauss nunca tenham estabelecido um debate público sobre suas ideias. Nosso esforço neste artigo será imaginar esse diálogo, tendo como interesse central a posição de ambos em relação ao papel da filosofia política. De fato, trata-se aqui de uma questão bem conhecida: qual deve ser a relação entre filosofia e política, entre o filósofo e o cidadão, entre o pensamento e a ação? Iniciaremos nossa investigação apresentando as posições de Hannah Arendt e Leo Strauss diante do diagnóstico, comum a ambos, de acordo com o qual a filosofia e a ciência moderna seriam marcadas pelas experiências da dúvida e da desconfiança, o que implicaria no desespero ou no desprezo pela atividade política. Trata-se então de recuperar a dignidade da política. O que conduz a uma espécie de retorno à Antiguidade. Contudo, é preciso discernir o que este retorno significa. O que faremos, primeiramente, considerando o papel que cada um atribui às virtudes. A consideração sobre o que significa agir de modo virtuoso deve nos levar ao centro da divergência entre Arendt e Strauss: suas considerações sobre a filosofia política e sobre a relação entre o filósofo e o cidadão comum. Finalmente, argumento que a posição de Arendt diante da tradição implica uma crítica da noção de governo e uma reposição da relação entre pensar e agir, lançando ainda a hipótese de que possamos encontrar um vínculo entre essas duas capacidades no exercício da imaginação.

Palavras-chave: política; filosofia; razão; pensamento; ação.


Considerando as semelhanças entre os temas de suas pesquisas, bem como coincidências que fizeram seus caminhos cruzarem-se tantas vezes, é curioso que Arendt e Strauss nunca tenham promovido um debate público sobre suas ideias e que nenhum deles tenha, em seus escritos, feito qualquer menção à obra do outro. É certo ao menos que Arendt foi leitora de Strauss. Em carta enviada a Karl Jaspers em 1954, ela indica "um bom livro sobre Hobbes" escrito por Strauss – livro, aliás, que ela usaria no ano seguinte em seu curso sobre a história da teoria política. Trata-se de um professor "altamente respeitado" nos Estados Unidos, um "intelectual verdadeiramente talentoso", continua Arendt, para então assinalar: "Eu não gosto dele" (ARENDT; JASPERS, 1992, p. 244). Aqui, deixaremos de lado as razões desta aversão pessoal, as quais podem ser verificadas em biografias e cartas. O que nos interessa é a divergência entre Arendt e Strauss no que diz respeito a um ponto específico: a filosofia política. De fato, trata-se aqui de uma questão bem conhecida pelos leitores de Arendt: sobre o papel da filosofia perante da política, sobre a relação entre o filósofo e o cidadão, entre o pensar e o agir.
Nosso esforço será imaginar o que Ronald Beiner chama "diálogo tácito ou latente" (BEINER, 1990, p. 138) entre Arendt e Strauss. Iniciaremos apresentando suas respostas diante do diagnóstico da falência ou crise da modernidade. Para ambos, o homem moderno seria marcado pela experiência da desconfiança, o que implicaria no desespero ou no desprezo pela política. Trata-se então de recuperar a dignidade da política. O que leva ambos a uma espécie de retorno à Antiguidade. Contudo, é preciso discernir o que este retorno significa para cada um deles, o que faremos, primeiramente, considerando o papel que se atribui às virtudes. A consideração sobre o que significa agir de modo virtuoso nos leva ao centro da divergência entre Arendt e Strauss: suas considerações sobre a filosofia política. Finalmente, argumento que a posição de Arendt diante da filosofia política implica em uma crítica da noção de governo e em uma reposição da relação entre pensamento e ação, a qual encontra seu vínculo na faculdade da imaginação.

a) A desconfiança moderna e o papel da virtude
Para ambos os nossos autores, o pensamento moderno é marcado pelas experiências da dúvida e da desconfiança. Assim como Descartes começa duvidando de seus próprios sentidos, escreve Strauss, "Hobbes começa interpretando o Estado e com ele toda a moralidade a partir da natural desconfiança entre os homens" (STRAUSS, 1963, pp. 56-57). O interesse de Hobbes pelo estudo da história seria também marcado pela desconfiança na efetividade dos preceitos fornecidos pela filosofia para a justa condução das comunidades humanas. "Esta falha", explica Strauss, seria "remediada" por uma investigação que busca na história "a descoberta das próprias normas" (ibid., p. 94). A teoria hobbesiana "torna-se histórica porque, para ele, a ordem não é imutável, eterna, existente desde o início" (ibid., p. 106). Na formulação que Hobbes apresenta no De Homine, "nós mesmos criamos os princípios – isto é, as causas da justiça" (HOBBES, 1972, cap. 10, art. 5).
O modo como o próprio Strauss compreende o estudo da história e sua relação com a lei é de todo diferente – o que se depreende, evidentemente, da diferente posição que ele próprio ocupa na história. Enquanto Hobbes encontrava-se naquilo que retrospectivamente podemos chamar de início da modernidade, Strauss escreve a partir de experiências que parecem indicar sua derrocada. "Os estudos históricos", diz ele, "são necessários por causa da falência do homem moderno. (...) [É] possível, afinal, que a verdade, ou a correta abordagem da verdade, tenha sido encontrada em um passado remoto e esquecida por séculos" (STRAUSS, 2006, p. 125). Trata-se então de encontrar aquilo que foi perdido, de recuperar a razão. O "novo racionalismo", o "retorno à sanidade", "a busca pelas verdades eternas e os padrões eternos" (ibid., p. 132) é um caminho de volta à antiguidade. Pois "o homem moderno tem saudade do que foi real na Grécia" (ibid., p. 135).
Em uma nota de seus cadernos de pensamento, escrita em 1953, Arendt também afirma – como o faria outra vez em A Condição Humana (ARENDT, 1998, p. 273) – que "a desconfiança é o começo da filosofia e da ciência moderna" (ARENDT, 2002, p. 393). Essa desconfiança – não apenas em relação aos outros homens e aos antigos preceitos, mas também em relação ao que nos é revelado pelos sentidos – levaria o homem moderno a um mergulho em sua interioridade, ao apego pela individualidade e, consequentemente, ao desprezo pela política. O diagnóstico apresentado por Arendt, como bem o sabemos, é o da crise da política na modernidade. Trata-se então de recuperar sua dignidade. Tarefa que, também para Arendt, passa por uma espécie de retorno à Grécia Antiga, em que se desenterram as experiências da polis e seus tesouros perdidos.
Mas é preciso distinguir cuidadosamente as posições de Arendt e Strauss. A diferença torna-se visível se pensamos o que significa a desvalorização da política para cada um de nossos autores. Para isso podemos perguntar: O que se entende como a atitude própria aos agentes políticos? O que é a virtude?
Para Strauss, o que se perde com a desconfiança moderna é a crença na objetividade das virtudes políticas, isto é, a ideia de que a coragem, a honra, o heroísmo são valores em si mesmos e expressam uma qualidade do agente; que elas dizem respeito ao lugar do homem no cosmo, àquilo que é verdadeiro, bom e justo. O que resta é a busca da virtude como relação inter-subjetiva, ou seja, como algo que depende inteiramente da posição do agente em relação aos demais. Mas não existe aí nenhuma relação com o que é a virtude verdadeiramente. Trata-se então de recuperar a dignidade da política como domínio da razão, de afirmar a moral e a virtude como motores de nossas ações.
Arendt também confere um papel especial às virtudes, mas as concebe de modo diverso: ela desvincula virtude e razão. É verdade que, assim como Strauss, ela encontra no desprezo de Hobbes pelas antigas leis e parâmetros que guiavam a ação humana a semente da catástrofe moderna, na medida em que a vontade (ou o desejo de poder) é transformada no único critério de um processo desprovido de finalidade ou sentido. No entanto, ela se afasta da solução conservadora de Strauss, para quem seria preciso recuperar os preceitos da filosofia clássica em um retorno à razão. Uma anotação de Arendt em sua cópia do livro de Strauss pode servir para ilustrar esse desacordo.
No capítulo final, Strauss avalia a moderna subordinação da lei ao direito nos seguintes termos. Diante da questão sobre quem ou o que deve governar, os antigos diriam: 'a lei'. Quando os filósofos não puderam mais aceitar a origem divina da lei para justificar essa resposta, eles buscaram outra razão: o racional deve governar o irracional, a mente deve governar o corpo, os velhos devem governar os jovens, os mestres devem governar os escravos, o homem deve governar a mulher, daí por diante. Apenas quando esta justificação também foi posta em jogo é que o direito substituiu a lei, fazendo com que a vontade entrasse em cena. O "problema da soberania", isto é, a substituição da lei natural pelo direito natural e o reconhecimento de que uma vontade soberana deve governar os homens, "emerge apenas quando é colocado em questão o direito da razão e de pessoas racionais governarem" (STRAUSS, 1963, p. 158).
Arendt marca dois grandes pontos de exclamação ao lado desta passagem e escreve: "Não! Quando a razão é colocada em questão!". Enquanto Strauss pretende recuperar o governo da razão (e de pessoas sensatas, isto é, aquelas que se importam com a filosofia), Arendt considera esta uma resposta inadequada. Aqui, curiosamente, ela se aproxima de Hobbes em sua crítica da filosofia, na medida em que recusa padrões e normas que se impõe aos assuntos humanos a partir de um ponto de vista exterior. "A política surge entre os homens;" escreve ela ainda em 1950, nos seus diários. E continua: "Hobbes o compreendeu perfeitamente" (ARENDT, 2002, p. 17). O que interessa são as experiências concretas. Não se trata, como defende Strauss, do "reconhecimento de princípios universais" a partir dos quais o homem deva "julgar a ordem estabelecida, ou aquilo que é verdadeiro aqui e agora, à luz da ordem natural ou racional" (STRAUSS, 1965, p. 13). Arendt não pensa as virtudes como padrões objetivos de excelência, mas a partir das relações que os homens estabelecem entre si. Posição que, como veremos adiante, está diretamente relacionada à sua crítica da filosofia política.

b) Filosofia ou política?
Em artigo sobre o "diálogo não iniciado" entre Arendt e Strauss, Ronald Beiner sustenta que – para além da semelhança na crítica que ambos dirigem ao liberalismo, em seu diagnóstica da modernidade e no retorno ao pensamento grego – a diferença mais gritante estaria na preocupação de Strauss com a filosofia antiga e o interesse de Arendt por sua política. De fato, uma leitura que busque comparar os dois pensadores não pode ignorar a crítica que Arendt dirige à filosofia política.
Em uma série de conferências ministras em 1954, das quais trechos foram publicadas postumamente sob o título "Philosophy and Politics", Arendt analisa o surgimento do que ela chama de abismo entre a atividade filosófica e a política. A separação teria sua origem histórica na condenação de Sócrates. "Nossa tradição de pensamento político começou quando a morte de Sócrates levou Platão a desesperar da vida da polis e, ao mesmo tempo, a duvidar de algumas bases dos ensinamentos de Sócrates" (ARENDT, 1990, p. 73; ARENDT, 2008a, p. 47). A resposta de Platão fornece uma solução para o conflito entre o filósofo e a cidade que, ao contrário do pretendido por Sócrates, acirra definitivamente a tensão. O erro de Sócrates, na interpretação platônica que nos foi transmitida pela tradição, foi ter insistido em debater com os juízes como fazia entre seus companheiros, a fim de que também eles chegassem, por si mesmos, a uma concepção mais verdadeira. Erro, porque a liberdade de pensamento só poderia ser exercida entre filósofos, os quais Platão temia serem novamente condenados pela ignorância dos vulgos. Sua escola constitui-se assim como uma instituição à parte da vida pública, a fim tanto de proteger os filósofos quanto de torná-los capazes de governar racionalmente a cidade.
O que Arendt rejeita na filosofia política é justamente aquilo que Strauss tenta recuperar: a hierarquia entre vita contemplativa e vita activa, isto é, a superioridade da nobre atividade intelectual sobre as demais atividades e assuntos humanos, incluindo-se a atividade política. Assim, suas respostas à crise da política na modernidade divergem de acordo com a diferença mais marcante entre eles: a ênfase na filosofia ou na política – e por conseguinte, a relação que cada um estabelece entre o filósofo e o cidadão comum.
Para Strauss, a interpretação da polis fornecida pela filosofia antiga é "a mais razoável e a mais satisfatória", isto é, a ordem política esboçada por Platão e Aristóteles "é a ordem política perfeita" (STRAUSS apud BEINER, 1990, p. 242). Ora, o que é esta ordem senão a hierarquia entre vita contemplativa e vita activa? É a experiência filosófica que nos dá acesso à verdade e esta não estaria à disposição de todas as pessoas. O filósofo straussiano "conversa apenas com aqueles que não são pessoas comuns, aqueles que de um modo ou de outro pertencem à elite" (STRAUSS, 1989, p. 154). É verdade que a filosofia deve partir do senso comum, mas ela consiste no abandono das opiniões em direção ao conhecimento da verdade. As opiniões que formam o senso comum são apenas "fragmentos da verdade" (STRAUSS, 1965, p. 124). Portanto, trata-se de garantir a superioridade do sábio sobre o vulgo.

Pode-se dizer que a premissa básica da filosofia política clássica seria a ideia de que a desigualdade natural dos poderes intelectuais é, ou deve ser, de importância política decisiva. Daí que o governo ilimitado do sábio (...) apareça absolutamente como a melhor solução para o problema político (STRAUSS apud BEINER, op.cit., p. 245).

A verdade que se observa através da história é a "natural desigualdade" dos homens em relação às suas capacidades intelectuais. Este fato deveria ser automaticamente traduzido em uma organização política em que os mais sábios governem os demais ou, nos casos em que isto não seja possível, que o governo seja exercido pelos mais nobres (pois a virtude do nobre seria um reflexo da sabedoria filosófica). As modernas democracias de massa seriam justamente o governo da única classe desprovida de conhecimento e, portanto, de virtude: a dos homens comuns.
É no mínimo questionável, diz Beiner, que a disparidade intelectual deva automaticamente ser traduzida como uma diferença política. "Parece mais razoável dizer que dotes intelectuais e dotes políticos representam simplesmente duas capacidades humanas bastante distintas" (ibid., p. 246). Esta seria a posição de Arendt, para quem a inteligência não se confunde com a capacidade de julgar ou agir politicamente. Neste ponto, o diálogo silencioso com Strauss se faria presente nas Lições sobre a Filosofia Política de Kant, curso ministrado por Arendt no fim de sua vida e publicado postumamente. Para Kant, ensina ela, o filósofo não tem um acesso privilegiado à verdade, mas esclarece as experiências comuns a todos os homens e mulheres. Esta capacidade do filósofo estaria presente em toda e qualquer pessoa disposta a pensar. Mais uma vez, em A Vida do Espírito, Arendt recorda Kant ao dizer que a "antiga distinção entre os muitos e os 'pensadores profissionais' (...) perdeu sua plausibilidade" e que, agora, "devemos ser capazes de 'demandar' (...) a capacidade de dizer o que é certo e errado (...) de toda pessoa sã, não importa quão erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida ela possa ser" (ARENDT, 1981, p. 13). Ao contrário do que afirma Strauss, qualquer pessoa poderia se reunir para discutir e deliberar os assuntos que dizem respeito à vida comum.
Nos termos da discussão que Arendt leva a cabo em "Philosophy and Politics", podemos dizer que Strauss também compreende o abismo, aberto a partir da condenação de Sócrates, entre o filósofo e o cidadão. Curiosamente, ambos citam a passagem em que Pascal descreve Platão e Aristóteles divertindo-se com a filosofia política "como se estivesse estabelecendo regras para um manicômio" (PASCAL apud BEINER, 1990, p. 247). Enquanto para Strauss este é por definição o papel do filósofo, Arendt busca transformar esta relação e inaugurar uma "nova filosofia política". Esta não deve buscar fora da vida política as regras e padrões que irão governá-la; não se deve entendê-la como a saída da caverna platônica, a ascensão da opinião à verdade. A nova filosofia política deve antes ser capaz de dirigir um novo olhar à própria experiência política, isto é, de considerar com dignidade a experiência que homens e mulheres comuns tem entre si. Uma filosofia política deve então se espantar com a pluralidade humana e fazer dela, verdadeiramente, uma questão.

c) A crítica do governo e o novo papel da razão
Em "Philosophy and Politics", Arendt argumenta que o governo da cidade tornou-se objeto da filosofia a partir da tragédia socrática. Daí a imagem do rei-filósofo, que deve regular os assuntos humanos a partir de parâmetros absolutos. A teoria platônica que inaugura nossa tradição estaria assim marcada pela tentativa de se escapar do múltiplo ao universal, da ação – sempre plural e imprevisível – para o governo, da política à filosofia.
A passagem da ação ao governo foi acompanhada por uma transformação no próprio conceito de ação, no qual as capacidades de iniciar e conduzir (archein e prattein) deixaram de ser compreendidas como momentos correlatos para serem tomadas como atividades completamente distintas. A antiga concepção grega de que um ato se desdobra entre o impulso de seu líder e a realização coletiva foi esquecida, na medida em que o líder passou a ser pensado como mestre ou governante de todos aqueles que devem apenas seguir o que ele começou. Em outras palavras, o platonismo nos ofereceu a ideia de que a ordem é derivada de uma norma absoluta, um princípio fundamental que deve dirigir e explicar a diversidade dos eventos humanos.
Mais do que uma separação, o conflito entre filósofo e cidadão estabeleceu uma hierarquia, uma relação de comando e de governo que invadiu o imaginário político. Este seria um dos grandes obstáculos no caminho de uma "nova filosofia política", a qual deve assumir a forma de uma crítica da própria ideia de governo. Um pensamento que pretende encontrar princípios para a vida comum sem recorrer a padrões absolutos deve desfazer a relação hierárquica entre governantes e governados, sábios e vulgos, filósofos e cidadãos, pensamento e ação. Mas isto significa que a própria política se torna um problema, na medida em que não é mais possível explicá-la e governá-la a partir de parâmetros absolutos. Apesar de seu desprezo pela vida pública, a filosofia havia prestado "um relevante serviço ao homem ocidental (...) fornecendo parâmetros e regras, padrões e medidas com os quais a mente humana pôde pelo menos entender o que acontecia na esfera dos assuntos humanos." (ARENDT, 1990, p. 102; ARENDT, 2008a, pp. 82).
O anúncio nietzscheano da 'morte de Deus', assim considerado, não deixa de espantar aqueles que o tomam em toda sua gravidade. Mas o espanto não deve nos fazer recuar – aliás, para onde? É a partir dele que um verdadeiro pensamento sobre nossa atual situação é possível. Arendt não ignora o perigo. Ela escuta as "vozes estridentes" dos "defensores da metafísica", as quais "nos alertam sobre o perigo do niilismo" (ARENDT, 1981, p. 10). Sim, diria Strauss. Com que critério governar o mundo?
Para Arendt, não se trata de recuperar a hierarquia entre a vita contemplativa e a vita activa, recorrendo novamente à razão como caminho para o conhecimento da verdade. Tampouco devemos abraçar a irracionalidade, a desmedida, a falta de sentido. Existe ainda um lugar para a razão na nova filosofia política esboçada e cultivada por Arendt. Para compreendê-lo, podemos atentar para a distinção kantiana entre razão e intelecto, a qual "coincide com a distinção entre duas atividades mentais completamente diferentes, pensar e conhecer, e a duas preocupações também distintas, significado e cognição" (ibid., p. 14). Não se trata, portanto, de retornar à razão e sim de atribuir a ela um novo papel.
O próprio Kant, diz Arendt, não prestou atenção a isto na medida em que esteve aferrado às noções de certeza e evidência, os quais são característicos da cognição, isto é, da atividade intelectual através da qual o homem conhece a verdade. Esta é, por exemplo, a atividade que nos mostra que dois mais dois são quatro. Não é possível alcançar tal conhecimento a respeito de Deus – ou do critério conforme o qual a vida humana deve ser guiada. Mas se o pensamento e a razão, tal qual Arendt os concebe a partir de Kant, devem "transcender as limitações da cognição e do intelecto (...) então devemos supor que o pensamento e a razão não se preocupam com aquilo que é preocupação do intelecto. (...) A exigência da razão não é inspirada pela questão da verdade, mas pela questão do sentido. Verdade e sentido não são o mesmo" (ibid., p. 15, ênfase no original). Sendo assim, a busca por um novo princípio político não deve assumir a forma de um conhecimento da verdade. Não se trata de saber a verdade que deve guiar a ação, mas de compreender a ação em si mesma, de compreender o seu sentido.
Em outras palavras, a crítica da filosofia política deve libertar o pensamento da necessidade de estabelecer critérios para a ação, assim como liberta a ação dos critérios que lhe eram impostos. Nessa dupla liberação, diz Eduardo Jardim de Moraes, "estaria dada a possibilidade de se elaborar em novas bases uma Filosofia da Política (...) um novo caminho, que buscará considerar, já não digo apenas a vizinhança, mas a verdadeira comunidade entre pensar e agir, entre pensamento e política" (MORAES, 2003, p. 46). Mas o que significa a comunidade entre pensamento e ação se para Arendt, como sabemos, pensar e agir não são o mesmo?
A solução encontra uma enigmática formulação em "Understanding and Politics", ensaio escrito nos anos cinquenta. "Embora tenhamos perdido os metros para medir, e as regras de subsunção do particular, um ser cuja essência é o iniciar pode trazer dentro de si origens suficientes para compreender sem categorias preconcebidas e julgar sem o conjunto de regras habituais em que consiste a moralidade." (ARENDT, 2008, pp. 344-345). Lembrando a prece em que o rei Salomão pede a Deus um "coração compreensivo", ela afirma que o "coração humano" – cuja atividade distingue-se do intelecto mas também, e em igual medida, da mera sentimentalidade – "o coração humano é a única coisa no mundo que toma a si o fardo que nos foi atribuído pela divina dádiva da ação, de ser um início e, portanto, ser capaz de dar início" (ibid., p. 345). Revela-se assim a comunidade entre pensamento e ação, na medida em que agir é iniciar algo novo e pensar é compreender esta novidade.
Como conclusão, cabe ainda lembrar que ambas as faculdades operam por uma espécie de deslocamento. Assim como a ação desfaz a realidade tal qual nos é dada e a constrói de uma nova maneira, a compreensão, ao decifrar a novidade que a ação traz ao mundo, faz com que ocupemos um novo lugar dentro do mundo. Agir e compreender são formas de imaginar as coisas de modo diferente.

[A] dávida do 'coração compreensivo' corresponde à faculdade da imaginação. Distinta da fantasia, que sonha com algo, a imaginação diz respeito às sombras do coração humano e à densidade que cerca todo o real. Sempre que falamos da 'natureza' ou da 'essência' de alguma coisa, referimo-nos a esse cerne mais íntimo, de cuja existência nunca podemos ter certeza (...). A verdadeira compreensão não se cansa do diálogo interminável nem dos 'círculos viciosos', porque ela confia que a imaginação acabará por obeter pelo menos um vislumbre da luz sempre assustadora da verdade " (idem).




Referências bibliográficas

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