\"Pode queimar, tá legalize.\" Uma antropologia sobre o uso recreativo de drogas na cidade.

May 23, 2017 | Autor: Fabiano Santos | Categoria: CIDADE, Política De Drogas, Uso De Drogas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA DOUTORADO

FABIANO CUNHA DOS SANTOS

“Pode queimar, tá legalize!” Uma antropologia sobre o uso recreativo de drogas na cidade.

Salvador, Bahia 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA DOUTORADO

FABIANO CUNHA DOS SANTOS

“Pode queimar, tá legalize!” Uma antropologia sobre o uso recreativo de drogas na cidade.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Antropologia. Orientador: Edward John Baptista das Neves MacRae

Salvador, Bahia 2017

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S236

Santos, Fabiano Cunha dos “Pode queimar, tá legalize!” uma antropologia sobre o uso recreativo de drogas na cidade / Fabiano Cunha dos Santos. – 2017. 176 f. :il. Orientador: Prof º Drº Edward John Baptista das Neves MacRae Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2017. 1. Uso de drogas – Salvador (BA). 2. Espaços públicos. 3. Antropologia urbana. 4. Drogas – Abuso – Aspectos sociais. 5. Lazer. I. MacRae, Edward John Baptista das Neves. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDD: 362.29 _____________________________________________________________________________

FABIANO CUNHA DOS SANTOS “Pode queimar, tá legalize!” Uma antropologia sobre o uso recreativo de drogas na cidade. Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, para a obtenção do título de Doutor em Antropologia. Salvador, 09 de fevereiro de 2017.

Banca Examinadora

_________________________________________________ Edward John Baptista das Neves MacRae - Orientador Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, USP. _________________________________________________ Urpi Montoya Uriarte Doutora em História Social (área de História da Cultura) pela Universidade de São Paulo, USP. _________________________________________________ Marcelo Magalhães Andrade Doutor em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia, UFBA. _________________________________________________ Heitor Frugoli Junior Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, USP. _________________________________________________ Roselene Cássia de Alencar Silva Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, UFBA.

Resumo:

Esta pesquisa antropológica tem como objetivo descrever e analisar o uso coletivo de drogas ilegais em equipamentos urbanos. Para isso, a metodologia do trabalho de campo voltou-se para a observação e participação no circuito de lazer do Centro Antigo de Salvador, no intuito de entender os rituais, códigos e agenciamentos relacionados ao consumo público e explícito de drogas ilícitas praticado frequentemente em determinados espaços do local. A lógica de ocupação dos usuários de drogas no circuito de lazer envolve a delimitação de territórios específicos para o consumo livre destas substâncias proibidas. A categoria nativa que caracteriza esses territórios é “legalize”, a qual é ponto de partida para a problemática deste trabalho, qual seja: Como é possível a consolidação de espaços de uso de drogas em um contexto de proibição? Assim, é possível perceber a produção de pedaços, manchas e circuitos próprios dos usuários de drogas, o que levou a identificação do circuito das drogas ou circuito legalize. A pesquisa tentou perceber os trajetos e as estratégias que os usuários de drogas constroem para driblar os representantes das sanções formais. Os resultados indicaram que o circuito das drogas tem fortes relações com o circuito do lazer na cidade e que é fundamental para a Antropologia Urbana compreender os saberes ocultos ou agenciamentos existentes nestes espaços urbanos para entender a cidade de forma geral. Pretendemos, com esta pesquisa, compreender mais sobre os circuitos urbanos e a cidade propriamente dita, através do lazer e do uso de drogas, tão presente nas sociedades urbanas. Por fim, trazemos a reflexão para as políticas públicas de drogas que, ao criminalizar os usuários, não respeitam as liberdades individuais e os direitos humanos, além de não se demonstrarem eficazes em seus propósitos originais. Desta forma, afirmamos que o uso de drogas é também uma forma de ocupar a cidade.

Palavras-chave: Uso público de drogas; Cidade; Circuito; Lazer; Território.

Abstract:

This anthropological research aims to describe and analyse the collective use of drugs in urban structures. In order to do this our fieldwork consisted of participant observation in the leisure circuit of the Historic Centre of Salvador with the purpose of understanding the rituals, codes, and agencies related with the public and explicit use of drugs, frequently practiced on specific places. The drug users occupation logic in this leisure circuit involves the delimitation of specific territories for the free use of prohibited substances. The emic term used for these territories is “legalize”, and this provided the starting point for this research: How is the consolidation of spaces of drug use possible in the context of prohibition? Therefore, it is possible to detect the production of pedaços, manchas e circuitos by the drug users themselves, which led us to the identification of the drugs circuits or legalize circuits. Our research tried to perceive the trajectories and the strategies that the drug users construct to dribble the agents of formal sanctions. It is important to highlight that the drug circuit bears a strong relationship with the recreational circuit and it is essential that urban anthropology understands the hidden knowledge that circulates in those urban spaces so as to understand the city in general. With this research, we hope to understand more about the urban circuits as well as the city, through the leisure activities and drug use, that are so present in the urban societies. Lastly, we bring the reflection about the public policies on drugs that criminalize the drug users and do not respect the individual freedoms and human rights, besides not being efficient in accomplishing their declared purposes. Thus, we affirm that drug use is also a way of occupying the city.

Key-words: Public use of drugs; City; Circuit; Recreation; Territory.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mapa do Centro Histórico de Salvador................................................................ 118 Figura 2 - Solar do Unhão. Museu de Arte Moderna de Salvador........................................ 118 Figura 3 - Escadaria do Passo................................................................................................ 129 Figura 4 - Escadaria do Passo................................................................................................ 134 Figura 5 - Largo Tereza Batista............................................................................................. 140 Figura 6 - Largo Tereza Batista............................................................................................. 143 Figura 7 - Largo Quincas Berro D'água................................................................................. 146 Figura 8 - Largo Pedro Arcanjo............................................................................................. 149 Figura 9 - Praça das Artes...................................................................................................... 150 Figura 10 - Museu de Arte Moderna Salvador....................................................................... 153 Figura 11 - Museu de Arte Moderna Salvador....................................................................... 154 Figura 12 - Jam no MAM....................................................................................................... 155 Figura 13 - Bong..................................................................................................................... 156 Figura 14 - Baseado................................................................................................................ 156

SUMÁRIO: Introdução................................................................................................................................ 08 Justificativa da pesquisa................................................................................................. 16 Objetivos e metodologia................................................................................................. 18 O campo.......................................................................................................................... 21 A problemática................................................................................................................ 22 1. Capítulo - A questão das drogas: pressupostos teóricos...................................................... 27 1.1 - O desvio, os usuários e os empreendedores morais............................................... 27 1.2 - Controles e sanções formais e informais................................................................ 34 1.3 - Pânico Moral: análise do discurso antidrogas........................................................ 46 1.4 - Políticas proibicionistas e os seus danos................................................................ 53 1.5 - O neoliberalismo a expansão da criminalização da pobreza em todo o mundo............................................................................................................................. 58 2. Capítulo - A questão das drogas e a Antropologia Urbana................................................. 64 2.1 - A cidade como objeto antropológico..................................................................... 65 2.2 - A questão do espaço.............................................................................................. 71 2.2.1 - O pedaço............................................................................................................. 75 2.2.2 - As manchas........................................................................................................ 77 2.2.3 - Trajeto................................................................................................................ 78 2.2.4 - Circuito.............................................................................................................. 79 2.3 - Territórios e territorialidades................................................................................. 81 2.4 - Espaços legalize no âmbito da Antropologia Urbana........................................... 88 3. Capítulo - Circuitos legalize: descrição e analise da categoria.......................................... 93 3.1 - A categoria êmica “legalize”................................................................................ 93 3.2 - O consumo público de drogas no Brasil: do diambismo aos dias atuais............. 106 4. Capítulo - O circuito legalize no Centro Antigo de Salvador........................................... 116 Conclusão.............................................................................................................................. 161 Referências............................................................................................................................ 172

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Introdução. Um dos fenômenos sociais mais antigos e mais difundidos entre todas as sociedades humanas é o consumo de drogas e seus derivados. As formas de uso variam entre religiosos, industriais, recreativos e medicinais, de acordo com as diferentes culturas, ao longo da história. A busca do ser humano em alterar o estado da consciência é reconhecida pelas ciências sociais como um fenômeno constante e regular no convívio social. Nas mais diversas sociedades e culturas estudadas por antropólogos e por outros cientistas sociais e historiadores, é comum encontrar algum tipo de situação, ou algum momento em que não só é permitido, como pode ser inclusive valorizado, um tipo de alteração de comportamento, ou alteração de atitude em relação a uma rotina. Essa alteração pode ou não estar associada ao uso de substâncias chamadas no senso comum de drogas. (SODELLI, 2010) O uso das substâncias hoje culturalmente classificadas como ilícitas se manifestou de diferentes formas ao longo da história humana, de acordo com os seus respectivos contextos, épocas e condições sociais, raramente sendo percebido como ameaça à sociedade. Segundo A. Escohotado (1999), “[...] o fulcro de inúmeros cultos era o que se percebia em estados de consciência alterada [...]” (p. 11) O autor salienta que as práticas xamanísticas, originalmente difundidas em todo o mundo, re-ligaram sempre as fronteiras entre o comum e o extraordinário, servindo tanto para adivinhação mágica, como também para cerimônias religiosas e terapias. “[...] As primeiras hóstias ou sacramentos eram substâncias psicoativas, como o peyot, o vinho, certos cogumelos ou cannabis.” (ESCOHOTADO, 1999, p. 11) O cânhamo industrial, nome da fibra que se obtém da cannabis, tem, entre outros, usos têxteis. Além de roupas, ele é utilizado na fabricação de papel e como forragem animal. Os chineses desenvolveram principalmente a produção de artigos têxteis e médicos. Outros povos, como os africanos, indianos e árabes aproveitaram as qualidades da planta como alimento, combustível ou fumo. Entre os anos de 1000 a.C. até meados do século XIX, a indústria do cânhamo produzia a maior parte destes derivados destes manufaturados. Por outro lado, seu uso recreativo parece igualmente antigo e disseminado. O ópio sempre teve suas utilidades terapêuticas reconhecidas. Até hoje, a medicina utiliza os alcalóides que ele contém (morfina e papaverina) como sonífero analgésico. No passado, os árabes, que recolhiam o ópio no Egito, levavam-no para vender tanto no Oriente como no Ocidente. Posteriormente portugueses, ingleses, holandeses e outros povos europeus

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desenvolveram grandes empreendimentos disseminando o seu uso recreacional na Ásia, principalmente na China. A América e o Oriente integraram-se ao mundo moderno fornecendo suas riquezas vegetais e sofrendo a empreitada colonizadora que buscou regulamentar o consumo das plantas. O tabaco que era traficado com o aval do Estado e da Igreja pelos jesuítas foi aceito e valorizado, juntando-se ao álcool, ao açúcar, ao café, ao chá e ao chocolate para constituírem o universo das drogas oficiais da vida cotidiana moderna. O cigarro, por exemplo, incorporouse, desde a guerra da Crimeia à ração dos exércitos e aos hábitos do povo. O chá e o ópio à dieta da Inglaterra vitoriana, e o álcool, na forma do vinho, da cerveja e dos destilados, continua sendo a bebida nacional de muitos povos. Apesar da sua importância e utilidade, o uso de algumas substâncias psicoativas foi cada vez mais restringido por serem consideradas danosas e viciantes. Os cactos e cogumelos alucinógenos foram proibidos pela Igreja católica dominante durante o século V ao XV em diversas culturas colonizadas e exploradas por ela. Os derivados do ópio, da coca, do álcool e da maconha, a partir do século XX, conheceram o estatuto da proscrição em diversas formas de proibicionismo. A nova ordem biomédica tendo controle sobre a esfera religiosa mudou o enfoque sobre a questão e passou a se concentrar nos aspectos farmacológicos. A abrangência da proibição foi mundial e cada vez mais acentuada, intensificando de forma global o financiamento de forças de repressão militares para combater o tráfico e o uso destas substâncias. Assim, a partir do segundo pós-guerra, foram elaboradas listas de substâncias controladas e proibidas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas como legislação internacional impositiva. O proibicionismo, enquanto modelo político de criminalização e repressão ao uso e comércio de determinadas substâncias psicoativas, determina todo o contexto do consumo contemporâneo de drogas, inclusive a expansão das formas mais degradadas, adulteradas e destrutivas. Embora sempre tenham existido, em todas as sociedades, mecanismos de regulamentação social do consumo das drogas, até o início do século XX não existia o proibicionismo legal e institucional internacional. (CARNEIRO, 2002) Da mesma forma, apesar da política repressora, o consumo de drogas no século XX alcançou a sua maior extensão mercantil de todos os tempos. Sendo assim, atualmente o uso de drogas ilegais é apresentado como uma grande ameaça à sociedade e à saúde individual. A “guerra às drogas” é costumeiramente apresentada como a única maneira capaz de enfrentar e erradicar os problemas sociais associados ao uso

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destas substâncias. "Viciado", em particular, contém toda uma acusação moral que assume explicitamente uma dimensão policial e política. Vítimas de tal estigmatização, os drogaditos são considerados como "desviantes" e transformam-se, a partir daí, em excluídos da convivência social pacífica, em função de princípios rígidos, impostos, mantidos e manipulados ideologicamente. Dessa forma, incita-se uma "cruzada antidrogas" que só acaba por encobrir os verdadeiros fatores que atuam decisivamente para a expansão do fenômeno. (BUCHER, 1994) O estatuto do proibicionismo separou a indústria farmacêutica, a indústria do tabaco, a indústria do álcool, entre outras, da indústria clandestina das drogas proibidas. Este contexto criou um gigantesco mercado ilegal, circundado por circuitos criminosos de comércio de substâncias proibidas. A experiência da Lei Seca, de 1920 a 1933, nos Estados Unidos, fez surgir as poderosas máfias na exploração dos lucros de um comércio proibido, dos quais nasceram muitas fortunas norte-americanas. As máfias tomam hoje em dia dimensões gigantescas de um comércio de altos lucros, gerador de uma violência crescente. Dito isto, o consumo de drogas ilícitas cresce exatamente devido ao mecanismo do proibicionismo, que cria a alta demanda de investimentos em busca de lucros “fáceis”. Amparada em lastros morais e em saberes médico-sanitários, a luta contra o narcotráfico é acionada politicamente, no entanto, o próprio Estado se alimenta de atividades relativas ao tráfico de drogas, patrocinando diversas manifestações da criminalidade organizada. Isso acabou por corromper a vida social e institucional dos Estados em escala global. (RODRIGUES, 2002) Ao invés de analisar o consumo de drogas como manifestações culturais para chegar a propostas preventivas pertinentes e prometedoras de eficácia, os Estados Nação limitam-se a preconizar uma repressão implacável, restringindo sua atenção quase exclusivamente ao consumo e tráfico das drogas ilícitas. Outras substâncias, como álcool e tabaco não sofrem esse tipo de repressão, apesar de muitas vezes proporcionarem maiores danos sociais e individuais do que as outras. Da mesma forma, o proibicionismo deixa de atentar para a eficácia dos controles informais, assim como do aprendizado social desenvolvido entre os usuários a respeito das substâncias e seus modos de uso, que poderíamos chamar de cultura da droga. (ZINBERG, 1984; BECKER, 2008) Os limites científicos estabelecidos pelo saber médico no século XX foram usados para justificar a necessidade de se proibir o “uso indiscriminado” de certas substâncias psicoativas. Mas o julgamento científico da legitimidade ou não destas foi arbitrariamente estabelecido. Os princípios médicos e de saúde pública muitas vezes são ignorados, pois

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justamente algumas das substâncias mais perigosas são permitidas devido ao seu uso tradicional no Ocidente cristão. A atual lei de drogas brasileira 11.343, de outubro de 2006, é considerada um avanço em comparação com a lei anterior, pelo menos em tese. O maior destaque seria o artigo 28 que trata da despenalização (mas não descriminalização) da posse de drogas para uso pessoal e prevê apenas com medidas alternativas, e atribui a competência para os Juizados Especiais Criminais. No que tange, porém, ao tráfico de drogas, previsto no artigo 33, a nova lei deu tratamento penal bastante rigoroso com significativo aumento de pena e vedando a substituição por penas alternativas, ainda que o acusado fosse primário, de bons antecedentes e sem envolvimento com o crime. A Lei de 2006 pode ser considerada um avanço na perspectiva da prevenção, porém é uma normativa bastante contraditória, pois traz para um mesmo texto legal paradigmas e modelos opostos, fruto do acordo político feito em 2006. "Nota-se igualmente uma disputa interpretativa na aplicação prática de seus dispositivos pelos tribunais até hoje, tendo prevalecido uma interpretação repressiva e ortodoxa na jurisprudência." (BOITEUX, 2016, p. 371) No caso de jovens, apesar de manter a maioridade penal aos dezoito anos, o número de adolescentes privados de liberdade pelo crime de tráfico mais do que triplicou. "O universo total de adolescentes nessa condição passou de 4,5% em 2002, para 10,6% em 2011, enquanto que o número deles nessa condição por atos infracionais análogos ao tráfico de drogas passou de 7,5% em 2002, para 26,6% em 2011." (SDH 2012 APUD BOITEUX, 2016, p. 376) Verifica-se, portanto, que a política proibicionista, além de não atingir os seus fins declarados – redução da oferta e da demanda de drogas ilícitas – ainda traz danos sociais bastante significativos ao priorizar a intervenção penal, apesar da existência de uma lei considerada bastante avançada na perspectiva da garantia de direitos. (BOITEUX, 2016, p. 376)

Como aponta a Professora de Direito Penal da UFRJ Luciana Boiteux, a política proibicionista brasileira tem se revelado paradoxal, na medida em que encarcera usuários de drogas pobres e negros como traficantes e não aplica o dispositivo da despenalização previsto no artigo 28 da lei 11.343/2006. Na análise crítica das respostas jurídicas à questão das drogas ilícitas no Brasil, o que se percebe é que, como em outros países latino americanos, o foco está no aspecto simbólico, na lei, e não na possibilidade concreta desta alterar comportamentos ou na implementação real de políticas públicas, ou

12 seja, segue-se a política do senso comum, que vai na linha da proibição, da criminalização, tanto para o usuário como para o traficante. Embora o usuário tenha sido despenalizado em 2006, na aplicação concreta do dispositivo pelos operadores jurídicos a realidade é seletiva e preconceituosa, havendo indícios de que usuários pobres podem estar sendo presos como traficantes. (BOITEUX, 2016, p. 372/373)

Apesar de proibido por lei, o consumo de algumas drogas persiste nas grandes metrópoles brasileiras abarcando diversas classes, idades e gêneros. As políticas públicas antidrogas não conseguiram conter o consumo, seja privado ou coletivo, e o desenvolvimento deste fenômeno urbano, ainda hoje criminalizado. No Brasil, como explicam E. MacRae e J. Simões, o consumo de maconha se concentrou inicialmente nas camadas pobres da sociedade e foi associada ao costume dos negros escravizados. Mas depois se difundiu para as camadas médias urbanas de classes econômicas mais favorecidas. A força reivindicatória que exerceria a ‘revolução cultural’ dos anos 60 sobre o simbolismo do uso da maconha, em quase todo o Ocidente, marcou a inclusão do ‘jovem’ num mundo até então concebido quase exclusivamente como habitado pelos bandidos denunciados pela imprensa. A partir dessa década, o costume de fumar maconha deixou de ser apanágio das camadas pobres e marginalizadas e ganhou amplitude entre segmentos da classe média urbana. Nos anos que se seguiram à implantação do regime militar autoritário no país, o uso da maconha adquiriu a conotação de busca por um estilo alternativo de vida, uma expressão de liberdade de pensamento e sensações, praticada por grupos de jovens. (MACRAE; SIMÕES, 2004, p. 22)

Assim, o consumo de drogas ilícitas existe e se mantém, mesmo num contexto proibicionista. A repressão não é fator para a extinção deste hábito, mas pode servir como motivo de resistência cultural ao regime de restrição de comportamentos. Além de obterem as drogas para o consumo pessoal em lugares privados ou em grupos restritos, os usuários também as consomem em público de forma explícita, como forma de lazer e recreação coletiva. Neste sentido, eles delimitam espaços e tempos para o uso social, construindo diferentes maneiras de usá-las. Em grande parte dos espaços urbanos de lazer, os usuários mantêm o uso controlado e pacífico de drogas, como a maconha e o álcool, sem perturbar a ordem e o equilíbrio social. Ao contrário do que imagina o senso comum, o uso coletivo de drogas produz relações sociais entre pares, ou seja, as drogas proporcionam sociabilidades nos circuitos de lazer urbano. Dito isto, esta tese se propôs a investigar os contextos de uso recreativo de drogas em espaços públicos, concebidos aqui como espaços legalize. A categoria nativa “legalize” tem referência direta a alguns circuitos urbanos de lazer no Brasil e representa simbolicamente o

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contexto (ou setting) de uso público e coletivo de maconha e outras drogas. A dinâmica entre os controles e sanções formais e informais se manifesta de forma peculiar, já que a prática permeia o rótulo da ilegalidade. Neste sentido, a depender da substância e do local, seu uso pode ser mais ou menos explícito, mas nunca se esgota. Ao arrepio do Estado proibicionista repressivo, os circuitos legalize constituem uma exceção no contexto amplo de guerra às drogas. Em tais territórios, o consumo é relativamente livre de controles formais, e em alguns locais privilegiados da cidade, sem qualquer tipo de transtorno ou repressão direta. Assim, também podemos pensar nos circuitos legalize como territórios não-marginais ou até mesmo manchas e circuitos urbanos de alto padrão econômico e em perfeitas condições de saúde e segurança. Desta forma, os usuários de drogas denominam estes locais como “legalize”, que geralmente são espaços públicos de lazer e entretenimento frequentados por pessoas socialmente integradas, tanto de classe média alta, quanto das classes menos privilegiadas. A polícia está ciente da existência desses ambientes (privados ou públicos) e do uso ordeiro de drogas que aí ocorre. Os usuários de uma forma geral estabelecem suas redes sociais e se disponibilizam no território de forma controlada, construindo regras e sanções informais entre si. A organização espacial se dá de acordo com os próprios usuários e sua dinâmica é construída conforme sua ocupação social. Estes elementos compõem o que chamamos nesta pesquisa de agenciamento do uso de drogas. Neste trabalho adotaremos, portanto, as linguagens próprias e nativas do contexto social e cultural produzida e reproduzida nestes espaços para tornar a pesquisa mais condizente com a realidade simbólica dos campos de pesquisa estudados. A intenção é contribuir para o que E. MacRae e J. Simões sinalizaram também como importantes para o estudo e análise do uso de drogas. Fica aberto, assim, um espaço para se considerar as diferentes modalidades de uso da maconha e os significados culturais atribuídos à sua utilização. (...) cabe perguntar de que modo o cenário sociocultural influencia a formação e a conservação de um padrão de consumo regular da maconha e de que modos se desenvolvem, entre os usuários regulares, mecanismos que possibilitam o uso controlado da substância. (MACRAE; SIMÕES, 2004, p. 30) (grifo nosso)

Segundo estas considerações, foram observados alguns circuitos urbanos para realizar a pesquisa de campo deste trabalho. Os territórios escolhidos têm em comum a oferta de lazer e entretenimento, tanto para turistas, como também para os moradores da cidade. O campo

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etnográfico foi a cidade de São Salvador, mais especificamente no Centro Antigo da capital baiana. O Centro Histórico, conhecido como Pelourinho, foi tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade e o planejamento estatal visou implementar políticas de revitalização do espaço para oferecer opções de lazer e turismo, além de aquecer o comércio e a economia do local. Os eventos culturais, algumas vezes gratuitos, acontecem entre a região do Terreiro de Jesus e o Largo do Pelourinho, onde se localizam os largos ou praças de show, os bares, restaurantes e pousadas. Nesta localidade, as habitações são majoritariamente de caráter comercial e não residencial, justificando-se ai a preferência de investimento público. As políticas de revitalização criaram alguns espaços onde diversas bandas e grupos culturais se apresentam nas diferentes estações do ano. São eles: o Largo Quincas Berro D´água; o Largo Pedro Arcanjo; a Praça das Artes; o Largo Tereza Batista; além da praça Terreiro de Jesus. Durante toda a semana o Pelourinho oferece diversas atrações musicais locais e de fora da Bahia, aquecendo a economia da região e garantindo o comércio e os serviços turísticos planejados para o espaço público. Os eventos são gratuitos ou pagos e a população que frequenta é bastante diversificada em termos de gênero, idade, estilo e classe social. A depender dos eventos e do público, o consumo de drogas, especialmente a maconha, é bastante presente nestes espaços de lazer. Outra região frequentada para o consumo público de maconha e outras drogas é o Carmo, mais especificamente a Escadaria do Passo. Ao subir a Ladeira do Carmo, antes da Igreja do Carmo, chega-se à escadaria, que foi palco para os shows semanais do cantor Gerônimo Santana e sua banda Mont´ Serra. Todas as terças-feiras, esse ícone do axé baiano se apresentava para o grande público de graça no local, bem em frente à Igreja do Santíssimo Sacramento. Um dos fenômenos sociais muito frequente na região é o uso de drogas ilegais, principalmente para fins recreativos, em meio às aglomerações de pessoas. Apesar da presença ostensiva da polícia, os usuários se organizam informalmente para consumir substâncias psicoativas proibidas por lei. Um outro espaço público tradicional de consumo que foi objeto de etnografia é o Museu de Arte Moderna de Salvador, que também é tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade. Aos sábados, o local é utilizado para um evento de jazz onde grandes músicos da cidade e de fora se apresentam de forma improvisada para um público “alternativo”. A segurança do evento é feita por uma empresa privada, possibilitando aos frequentadores usarem drogas à vontade sem a repressão estatal típica do combate ao uso de drogas. O local

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compõe um dos circuitos de uso de maconha, muito conhecido em toda a capital baiana pelo consumo da droga ilegal. O recorte aqui dado será o do lazer, enquanto ambiente simbólico e cultural da vida urbana das modernas cidades e que caracteriza bastante da cultura citadina. Segundo J. G. Magnani: (...) o lazer esta nos antípodas daquilo que se considera o lugar canônico da formação da consciência de classe, ocupa uma parte mínima do tempo do trabalhador e não apresenta implicações políticas explícitas. Atividade marginal, instante de esquecimento das dificuldades cotidianas, lugar enfim de algum prazer - mas talvez por isso mesmo possa oferecer um ângulo inesperado para a compreensão de sua visão de mundo: é lá que os trabalhadores podem falar e ouvir sua própria língua. (2003, p. 30)

Mais específico ainda será o foco dado ao consumo de drogas ilícitas em ambientes públicos. Estes espaços/territórios serão caracterizados nesta pesquisa pelo conceito êmico de espaços legalize. A contradição entre a proibição/repressão de todo o ciclo comercial e de consumo das drogas tornadas ilícitas e o explícito uso em espaços públicos é a grande questão motivadora e a problemática fundamental desta pesquisa. Este trabalho antropológico, portanto, propôs investigar esses circuitos urbanos de lazer, onde o uso público e generalizado de drogas é comum e recorrente. Desta maneira será analisada a relação do uso de drogas e o circuito de entretenimento urbano. Através de uma pesquisa de cunho qualitativo propomos entender como se dá a dinâmica social nestes espaços públicos e o comportamento dos atores envolvidos na cena. Neste sentido, o objeto desta pesquisa será o uso recreativo de drogas em circuitos de lazer na cidade. A ocupação e produção destes territórios implica na construção de estratégias (agenciamentos) específicas com o objetivo de driblar as sanções formais repressoras. Diante deste contexto sociocultural, surge a problemática desta pesquisa: Como se dá a organização social destes espaços durante os eventos de lazer? Como os usuários de drogas se dispõem no território diante das outras redes de grupos e quais as suas estratégias para driblar as sanções formais e estabelecer um uso resguardado de drogas ilícitas? Como a comunidade ao redor lida com os eventos? Qual a participação do Estado em relação aos usuários desse espaço urbano? Quais as diferenças do consumo de drogas entre os locais e as peculiaridades próprias que cada espaço proporciona? Para responder a questões como essas, optamos por realizar uma análise etnográfica dos equipamentos urbanos delimitados, onde o consumo de

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drogas é frequente, no intuito de elucidar os aspectos concretos e simbólicos que constituem o circuito legalize. Justificativa da pesquisa. Explorar os contextos de uso de drogas ilegais foi de considerável relevância porque se elucidou muito sobre sua relação com a cidade e seus circuitos. Diante do exposto sobre o cotidiano contemporâneo sociopolítico mundial, defrontamo-nos com a necessidade de um estudo qualitativo antropológico sobre o lazer na metrópole. As políticas públicas também devem ser consideradas para se entender como se dá a relação entre usuários desse espaço urbano, incluindo os usuários de drogas ilegais. O modelo proibicionista visa solucionar a questão através do controle das vontades individuais dos cidadãos, resultando, porém na incitação à violência, à criminalização da pobreza e à guerra contra minorias sociais. Implantada a partir de uma ótica rígida e preestabelecida, tais políticas enfatizam o combate ao uso e ao comércio das drogas, apesar do histórico de fracassos dessa empreitada, e deixam de atentar para a eficácia dos controles informais e da cultura da droga. (ZINBERG, 1984) Surgem assim posturas alarmistas, repressivas e violentas que se mostram ineficazes para a resolução dos reais problemas relacionados ao uso e abuso das substâncias psicoativas. O discurso divulgado pelos meios de comunicação que se valem do sensacionalismo, instaura também o chamado “pânico moral” (COHEN, 1972; BUCHER, 1996) que consiste em uma simplificação da questão e um apelo ao emprego de medidas repressivas e violentas para uma suposta resolução da questão. O predomínio e a intensificação de manchetes sobre violência nas cidades impulsiona o medo coletivo e a sensação de insegurança frente a criminalidade organizada. O "pânico moral" serviria como instrumento político e ideológico dos meios de comunicação e da elite política para manter, com princípios conservadores, o controle social. Generaliza-se o pânico entre as famílias e os cidadãos, abrindo caminho para propostas extremistas. O Estado, por sua vez, é levado a investir em força bélica militar, supostamente para combater a marginalidade e o crime organizado. Mas esse modelo de política do medo acaba por só trazer mais violência e desassossego para as metrópoles contemporâneas e não resolve o problema de forma eficaz. Evidência disso é o aumento constante da disseminação do comércio e uso de substâncias ilícitas, apesar de medidas cada vez mais draconianas de repressão e encarceramento.

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Apesar do alarme instaurado e reforçado, tanto pelo Estado, quanto por iniciativas privadas, a guerra às drogas parece não atingir certos espaços urbanos onde o consumo das substâncias psicoativas é frequente, especialmente da maconha. A cultura das drogas sofre muitos preconceitos morais, político e religiosos que ignoram a sua complexidade, eficácia e diversidade. Isso tem impedido um registro mais amplo e adequado de seus elementos e desdobramentos, além de impossibilitar o aproveitamento de suas potencialidades medicinais e industriais, conhecidas pela humanidade há algum tempo. Nesse sentido, um dos pontos que a presente pesquisa pretende aprofundar é voltado para controvérsia a respeito da alegação de que o consumo público e coletivo de drogas seria gerador de violência e causa de desordem social. Nos aqui denominados circuitos legalize observamos a persistência do uso de substâncias ilícitas, apesar das políticas proibitivas. Neles, os usuários de drogas driblam as imposições legais e mantêm seus hábitos, mesmo marginalizados pelos padrões impostos pela sociedade. Nem mesmo a política oficial de enfrentamento ao uso de drogas consideradas especialmente perigosas, como o crack, não consegue erradicar o seu consumo nesses espaços públicos. Assim, entendemos que o uso coletivo e explícito de drogas, que ocorre atualmente nos equipamentos urbanos, faz parte do cotidiano social e cultural das relações urbanas contemporâneas estabelecidas em inúmeros espaços da nossa sociedade. Desta forma, este estudo se demonstra importante para elucidar o contexto sociocultural de consumo público de drogas ilícitas, em geral e para identificar as características simbólicas que adquire tanto entre os usuários, quanto para os outros grupos que ocupam estes espaços. Noções de ordem política e social, como a do “mito do maconheiro” (BUCHER, 1996) que associa os usuários de maconha à criminosos, subversivos e indivíduos preguiçosos, sem motivação para o trabalho e o desenvolvimento social, têm levado à criação de bodes expiatórios, apontando os usuários como inimigos públicos, utilizando-os para explicar o malestar na sociedade e para justificar os esforços de controle e repressão da população excluída como maneira de garantir a segurança pública. (MACRAE, 2006) Porém, na atualidade, começa-se a ouvir vozes que se levantam contra essas políticas, alegando que elas, em si, seriam responsáveis pelo maior dano social, na medida em que criminalizam hábitos culturais que não costumam prejudicar terceiros, fomentam intervenções políticas radicais em sua brutalidade, aumentando, assim, os números dos envolvidos em crimes e violência e, por último, dificultam ainda mais o contato de parte considerável da população carente com as instituições oficiais de saúde e segurança pública.

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Esta situação chama atenção para o fato de que, para além do consumo de drogas ilícitas fazer parte do uso do espaço urbano, existe a necessidade das políticas públicas levarem mais em consideração as reais dinâmicas socioculturais, ou agenciamentos do uso de drogas. As políticas de Estado e suas leis, em tese, são criadas de acordo com a realidade prática para poderem promover um melhor convívio social entre as instituições públicas e a sociedade. Apesar disso, o modelo proibicionista não corresponde aos aspectos socioculturais que envolvem o consumo de substâncias ilícitas e ainda reforça os estigmas que recaem sobre aqueles que têm o uso cotidiano das mesmas como parte de suas vidas. Pretendemos, assim, ampliar e diversificar o debate examinando alternativas ao simples proibicionismo. Pesquisas sobre as condições e modelos de consumo de drogas são fundamentais para habilitar usuários a estabelecer e manter um controle autogestionado e sustentável sobre as drogas. Segundo N. Zinberg, a evolução no conhecimento permitiria às futuras gerações fazerem distinções entre as drogas e suas formas de uso, que ainda estão sendo feitas, hoje em dia, por uma pequena parcela das famílias e das instituições. É possível inclusive que o aprendizado social relacionado ao uso de drogas seja transmitido através dos familiares como é o caso do uso de álcool agora. Por fim, estabelecer o debate sobre o uso recreativo de drogas em espaços públicos está entre as pautas políticas nacionais contemporâneas. Algumas propostas legislativas estão discutindo a possibilidade de reprimir o uso de drogas em espaços de aglomerações de pessoas, inclusive espaços abertos. Saber sobre a dinâmica e o contexto onde se consomem as drogas em público e sua relação com os ambientes de lazer é fundamental para somar ao debate sobre as políticas restritivas de direitos para os usuários destas substâncias. Da mesma forma, esta pesquisa também servirá para discutir uma possível regulamentação e delimitação de locais para o consumo público de drogas tornadas ilícitas. O cotidiano e a tradição do uso social estabelecem uma série de códigos e regras sociais que as políticas públicas poderiam levar em consideração antes de aplicar restrições. Objetivos e metodologia. O objetivo geral desta pesquisa foi investigar e descrever qualitativamente o uso público e coletivo de drogas ilícitas em circuitos de lazer urbanos com miras a repensar a política proibicionista. Para isso, o trabalho de etnografia buscou descrever as sociabilidades

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encontradas das redes de grupos observadas e analisar a dinâmica de ocupação social e apropriação dos seus respectivos territórios. Outro objetivo foi observar e entender a produção e organização dos equipamentos urbanos que oferecem lazer, seja de forma privada ou pública e gratuita. A observação participante também teve a oportunidade de investigar o uso de drogas lícitas e ilícitas em eventos, como, shows, festivais, ou outros realizados em centros culturais, universidades, praças publicas, praias e até eventos secretos exclusivos para garantir uma melhor explicação e abrangência sobre o conceito chave legalize. Através do trabalho de campo, foi possível analisar a atuação de agentes de controle, tanto formais, quanto informais em contextos de uso público e explícito de drogas, assim como, sua importância e efetividade. Em se tratando de um estudo do contexto de uso de drogas ilícitas, em especial a maconha, foi fundamental a contribuição de Edward MacRae ao levantar importantes questões de ordem metodológica. Segundo o autor, a utilização de drogas, sejam elas legais ou ilegais, é uma prática altamente complexa, carregada de conotações socioculturais que exercem importante influência nas motivações do usuário. Tais complexidades e significados simbólicos somente podem ser devidamente avaliadas através da inserção etnográfica direta e prolongada no campo a ser pesquisado. (MACRAE, 1994) Segundo ele, assim se obtém uma visão mais complexa das questões pesquisadas, inacessível a estudos exclusivamente quantitativos. Dito isto, E. MacRae considera crucial a observação participante para interpretar a cultura da droga que se desenvolve em torno de uso de substâncias psicoativas. Esta cultura, já discutida por Howard Becker, entre outros cientistas sociais e da saúde, articula maneiras de uso e de obtenção (os chamados agenciamentos), assim como lida com a repressão e outros problemas com os órgãos institucionais. Por isso, o pesquisador deve ir ao campo, estabelecer relações pessoais com os sujeitos, através de uma participação direta no meio cultural. Na medida do possível, o observador deverá aprender o linguajar e as normas de convivência social nos referidos espaços para atingir o maior grau de profundidade e inserção em campo. A observação pode, então, incluir levantamentos das categorias que os “nativos” utilizam para organizar o seu mundo, fórmulas ritualísticas, expressões típicas, etc.. (MACRAE, 2004) Isto envolve o estudo detalhado de práticas, de risco ou não, a busca de novas variáveis importantes que possam ter passado despercebidas, e a contextualização desse uso em relação ao estilo de vida do usuário e suas relações sociais, dando especial destaque aos significados atribuídos por ele.

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Ao longo do processo etnográfico, novos dados vão sendo apurados, novas hipóteses podem surgir e novas questões vão se apresentando. O trabalho de campo requer uma abordagem lenta e aberta, assim como negociações para lograr o estabelecimento de relações de confiança com nativos praticantes de atos ilícitos. (MACRAE, 1994) A pesquisa em campo serve, portanto, para estabelecer um conhecimento básico dos circuitos e ambientes frequentados pela população-alvo. Os diálogos devem voltar a atenção para as opiniões expressas pelos sujeitos e por outros protagonistas para entender o que pensam e entendem sobre este assunto e a observação ajuda a interpretar os comportamentos e relações, contextualizando as verbalizações. Entre os tópicos a serem considerados estão: carreira enquanto usuário de substâncias ilegais; ambientes de uso; função da droga na vida do sujeito; seus efeitos; suas consequências sociais; etc.. Com isso, é possível construir uma tipologia de estilos de vida, onde se poderá avaliar o significado das drogas na vida dos indivíduos, como a usam e em que quantidade. Outro método utilizado para recrutar interlocutores é baseado no chamado ”método da bola de neve” e na análise de redes (MACRAE, 1994). Esta técnica ajuda na localização de interlocutores e para obter informação de certos aspectos importantes das redes dos consumidores. O objetivo é levantar dados a respeito de comportamentos ritualizados relacionados e possíveis implicações sanitárias dos rituais, tendo como base descrições do comportamento cotidiano de usuários ativos. Da mesma forma, é importante para entender determinados comportamentos, as dificuldades que usuários pensam que teriam de confrontar em alguns casos inesperados, e que alternativas vislumbram para o uso público de drogas. As interlocuções, de caráter informal, foram feitas de forma natural e espontânea, para que fossem as mais realistas possíveis e que seu conteúdo refletisse adequadamente o cotidiano normal do local. Neste sentido, em campo me apresentei como usuário de drogas e um morador da cidade em busca de lazer e entretenimento, assim como meus interlocutores ocupavam os espaços urbanos. Por conseguinte, esta pesquisa investigou como se dá a organização social entre os grupos e suas redes nos espaços legalize. A análise etnográfica pretendeu, portanto, descrever e interpretar como se manifesta o consumo de drogas nestes espaços sociais e seus desdobramentos positivos e negativos. Desta forma, tentamos interpretar tais modos culturais de ocupação dos espaços urbanos para uma melhor reflexão sobre as atuais políticas públicas de drogas no país.

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Nesta pesquisa, foram escolhidos os seguintes equipamentos urbanos que compõem o Centro Antigo de Salvador. São eles: O MAM, Museu de Arte Moderna de Salvador, localizado no Solar do Unhão, na Avenida Contorno e de frente à Baía de Todos os Santos. Lá, todos os sábados do ano, a partir do pôr do sol, há a apresentação da sessão de jazz intitulada Jam no MAM, onde se apresentam instrumentistas renomados no Brasil e no mundo; O outro campo de pesquisa, por sinal, muito importante para a economia e história de Salvador, foi o Pelourinho, ou o Centro Histórico da cidade, onde são oferecido shows e eventos culturais pagos ou gratuitos, nas diferentes praças ou largos como a Teresa Batista, a Quicas Berro D´água e o Largo Pedro Arcanjo. Além destes locais, outros espaços no Pelourinho são ocupados pelos usuários de drogas como a Escadaria do Passo, a Praças das Artes, a Rua das Flores, a Rua dos Passos e até mesmo a praça Terreiro de Jesus. O campo. A história do Centro Antigo de Salvador guarda uma tradição de hábitos sociais das classes menos favorecidas e criminalizadas. No período de sua decadência, habitavam no local usuários de drogas injetáveis, prostitutas, traficantes de drogas e profissionais de baixa remuneração, o que provocou um crescimento da criminalidade e da ilegalidade na região. Hoje, apesar da sua revitalização arquitetônica e da expulsão dos seus moradores antigos, o Pelourinho não perdeu totalmente suas relações informais e marginais. O consumo e o tráfico de crack, por exemplo, se dispersaram para outras regiões adjacentes do Centro Antigo, como o Gravatá, a Rua 28 de Setembro, o Mercado de São Miguel e em menor proporção o Terreiro de Jesus e a Praça da Sé. A instalação de câmeras de seguranças nas ruas e o policiamento ostensivo afastaram os usuários da camada turística do Centro Antigo. O “circuito do crack” (MALHEIRO, 2013) se caracteriza por ser reconhecido pelos seus moradores locais como espaço de sua venda e consumo. Prostitutas, recicladores, vendedores de objetos roubados e moradores de rua dividem os espaços degradados alimentando atividades de comércio, distribuição e consumo de crack. No Gravatá, os centros de reciclagem, onde os catadores vendem as latinhas, e a rua estreita cheia de carros facilitam a concentração dos usuários proporcionando a venda e consumo de crack ao lado do módulo policial. O acordo estabelecido entre polícia e usuários caracteriza a região como a “crackolândia” de Salvador. Outros locais de consumo e venda da droga são os casarões abandonados e mofados, ruas sem pavimentação e nada higienizadas,

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usadas como depósito de lixos e restos, como no Taboão e o Mercado de São Miguel. (OLIVEIRA, 2013) Estas localidades formam um circuito contínuo que se interligam pelos trânsitos constantes dos usuários da droga que tentam retornar ao local para manter suas atividades econômicas e seus sustentos diários, apesar da repressão ser constante. O Estado e a iniciativa privada tentam exterminar toda esta tradição popular que fez parte do Centro Histórico e reconfigurar a ocupação deste espaço para os seus fins comerciais e lúdicos, a serviço daqueles que podem consumir produtos mais caros. Tais problemas sociais parecem justificar uma pesquisa que investigue o cotidiano social e cultural dos usuários desse espaço e suas relações com as instituições políticas. Essas relações ilícitas são manifestações e fenômenos culturais característicos do espaço e de seus usuários, que racionalizam estratégias de enfrentamento às sanções formais policiais e se organizam socialmente de forma ordenada para ocupar o local. O Centro Histórico de Salvador, depois de ser transformado em um espaço urbano de lazer e turismo, reservou seus estabelecimentos e equipamentos urbanos basicamente para o comércio e serviços de entretenimento. Alguns largos ou praças foram reservados para as apresentações musicais de artistas e bandas conhecidas ou em revelação. Alguns destes espaços são fechados e seu acesso é cobrado em algumas ocasiões, mas também se oferecem shows gratuitos para a população em geral. A segurança é feita tanto por policiais militares do Estado, como também monitorada por seguranças ocupados em preservar o patrimônio público do local. A programação e produção dos eventos é bastante diversificada, portanto, ao longo do ano, o perfil social que frequenta o Pelourinho é bastante variado. A problemática. Atualmente, cada vez mais pesquisadores consideram que a posição repressiva radical traz mais estragos do que benefícios, pois adota uma visão unidimensional inapropriada para o trato do fenômeno em toda sua complexidade. (CARLINI-COTRIM; PINSK, 1989 APUD BUCHER, 1994) Ao invés de estabelecer um sistema de regulação da produção, distribuição, venda e consumo, a partir do século XX ocorre a criminalização formal de algumas substâncias e a aceitação de outras obedecendo a injunções culturais e econômicas. A discussão sobre a “guerra às drogas” primeiramente assumiu posição de destaque nas agendas dos Estados Unidos, no plano das políticas de segurança nacional, mas tomou rapidamente a

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agenda dos Estados nacionais em todo o mundo. A competição imperialista estadunidense com a Inglaterra no século XIX, que fomentou a estigmatização do tráfico de ópio realizado pelos britânicos na China, foi também razão importante para a promoção de políticas como a “cruzada civilizadora internacional contra bebidas e drogas.” (ESCOHOTADO, 1999) Nos Estados Unidos do século passado, os chamados “Empreendedores Morais” (BECKER, 2008) passam a reverberar nas altas esferas políticas. O puritanismo organizado conseguira, então, levar seus representantes às instâncias legislativas que viam com desconfiança as massas de imigrantes, atribuindo seus comportamentos marginais ao uso de determinadas substâncias próprias de suas culturas. “As diferentes drogas associam-se agora a grupos definidos por classe social, religião ou raça.” (ESCOHOTADO, 1999, p. 91) O ópio era relacionado aos chineses, a cocaína aos negros, a marijuana aos mexicanos, o álcool aos irlandeses. Grande parte das etnias que foram para os Estados Unidos para realizar o sonho americano, sofreram controles sociais da cultura puritana dominante no país. Como estes grupos imigrantes saíam de condições subumanas de seus países de origem e se dispunham a trabalhar em troca de muito pouco, isto atiçou a rivalidade dos americanos em relação a eles, alimentando sentimentos xenófobos e racistas. Para os americanos, os estrangeiros representavam competição econômica, crise dos valores da família e da moral cristã. A proibição das drogas, assim, tomou rumos mais políticos no sentido de se pautar por problemas culturais e sociais mais do que por fundamentações científicas concretas. A princípio a preocupação maior do discurso político americano da época era a manutenção da democracia, a proteção da família, o “fortalecimento das instituições”, a “defesa dos direitos humanos” e a “liberalização dos fluxos comerciais e financeiros.” 1 Na esfera global, o Estado americano promoveu tratados visando explicitamente o rastreamento de hábitos e a disciplinarização de condutas relacionadas ao uso de psicoativos. Mas de fato o que se fazia era disseminar por todo o mundo medidas de controle social sob o pretexto do combate ao uso de drogas. O Brasil seguiu essa tendência, culminando com a criação do Conselho Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), em 1945. As tentativas de exterminar tanto os “vícios elegantes” das classes sociais mais abastadas, como também a “sóciose deselegante”, o uso da diamba ou maconha, incluíam absurdas associações entre a criminalidade e o uso das drogas (estas classificadas como ilegais pelo próprio Conselho). 1

Ao pensarmos no regime de discriminação racial imperante até hoje naquele país, fica difícil levar esses anseios democráticos de forma acrítica.

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As ideias propagadas seguiam análises como as do médico e político José Rodrigues Dória, muito considerado no início do século XX e cujo discurso relacionava os valores culturais das práticas dos negros de fumar maconha a um problema público. Segundo o historiador J. C. Adiala (1986), o chamado “Problema da Maconha no Brasil” foi justificado em nome de valores racistas para controlar e disciplinar a população negra, tradicionalmente excluída dos benefícios do desenvolvimento da sociedade brasileira. Em seu trabalho, o autor salienta: [...] A CNFE se valeu de um mito racial, o que possibilitou a articulação discursiva do consumo de maconha como um problema público e orientou a ação do sistema punitivo disciplinante para as áreas sociais ocupadas pela população negra e mestiça [...]. (ADIALA, 1986, p.9)

Atualmente, o aparato burocrático-repressivo contra o uso e tráfico de drogas ilícitas cresce desmesuradamente sob o pretexto de tentar dar conta de atividades ilegais e de pessoas lançadas nos ambientes de marginalidade. No plano internacional, os EUA mantêm a postura de enunciadores de políticas repressivas que são, em linhas gerais, tomadas como base dos tratados internacionais. (RODRIGUES, 2002) Segundo L. Wacquant, as medidas neoliberais para sanar as crises econômicas atuais enfatizam um direcionamento encarcerador no setor judiciário e policial-repressivo ao invés de garantir serviços sociais de educação, saúde e moradia. Para ele, o modelo de tratamento penal, adotado por outros Estados Nacionais do mundo, segue diretamente os padrões norte-americanos de criminalização da pobreza e das camadas étnico-raciais excluídas. (WACQUANT, 2001) Dito isto, acreditamos que o combate às culturas de uso das substâncias psicoativas, hoje ilícitas, tem como pressuposto implícito o controle social. Segundo alguns autores, está implícita na proposta de erradicação destas substâncias a intenção de mascarar as contradições da sociedade e reprimir ou eliminar de forma violenta as camadas mais pobres da sociedade. O renomado estudioso da drogadição, Richard Bucher explica a função da droga na “disfunção” da sociedade em geral. Para ele, “a questão das drogas não é tratada em si, mas enquanto mito construído, usado para combater uma série de desvios da ordem social vigente.” (BUCHER, 1994, p. 1) O Estado se apresenta como protetor dos "bons cidadãos", cujos comportamentos correspondem às expectativas de "normalidade", e perseguidor dos "viciados e traficantes" entre outros desviantes de normas, cujos comportamentos são considerados ameaçadores da "ordem social".

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Discriminando como desviantes aqueles cujos comportamentos fogem da norma, criase todo um sistema de acusação, podendo funcionar como estratégia para a manutenção de certos poderes discriminatórios. Implicitamente isso acaba pondo em dúvida não apenas a cidadania, mas a própria humanidade do usuário de drogas ilegais. Ao ser rotulado como "maconheiro" ou "marginal", passa a ser visto como alguém que atenta contra a moral e os bons costumes, mas também contra as próprias instituições, o que faz dele um ser anti-social. Diante do que afirmamos, o uso das substâncias psicoativas é antigo e se perpetua na contemporaneidade, apesar das políticas públicas atuais em relação a determinadas drogas adotarem uma postura de combate e guerra ao seu tráfico e uso, de forma essencialmente repressiva. Em consequência dessa perseguição oficial, os usuários de substâncias ilícitas acabam produzindo e ocupando espaços para consumi-las de forma pública e coletiva e para fins recreativos. Sobre esses lugares, não há preocupações maiores dos meios de comunicação de massa e nem do Estado, na medida em que não envolvem a segurança pública mais pesada e repressora e não mobilizam os órgãos de saúde competentes para educar os usuários. Neste sentido, o Estado tem conhecimento dos espaços legalize, mas não interfere na dinâmica social do uso de drogas. Desta forma, este trabalho etnográfico se define a partir da seguinte problemática: Como entender o consumo explícito de drogas em equipamentos urbanos, apesar da política de criminalização e repressão? Como se consolida o hábito cultural de consumir drogas, mesmo que as implicações sociais sejam desqualificadoras e estigmatizantes? Como se dão as sociabilidades do usuário de drogas nos circuitos de lazer na cidade? Estes são questionamentos importantes para a análise sugerida aqui porque envolvem as redes sociais e as representações culturais no espaço e tempo urbano que devem ser investigadas para uma melhor adequação entre as políticas públicas de segurança e a realidade sociocultural. A guerra às drogas, enquanto modelo político do Estado, mais parece, de fato, servir para o controle social e a criminalização da pobreza e não para a melhora da saúde e segurança públicas. Assim como os projetos urbanísticos de revitalização e requalificação dos centros urbanos contemporâneos, a política de enfrentamento às drogas e seus usuários corresponde aos interesses neoliberais da globalização capitalista que acaba excluindo e eliminando a grande maioria da população pobre. (WACQUANT, 2001) O entendimento desta problemática é essencial para adequar as políticas públicas aos interesses e necessidades sociais. Neste sentido, esta pesquisa investigou os grupos sociais que frequentam os espaços legalize e a forma como agenciam o uso recreativo de drogas

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nestes equipamentos urbanos. Com base nessa problemática, serão apresentadas no capítulo final as descrições do campo que levaram a entender o uso de substâncias psicoativas como parte das sociabilidades de alguns grupos sociais e suas redes. Diante de uma realidade tão complexa, acreditamos que muito ainda deve ser investigado neste e em outros circuitos para se conseguir um melhor entendimento sobre a questão das drogas em geral. A seguir, iremos apresentar as bases teóricas que fundamentam esta tese para, em seguida, descrever e analisar os dados observados em campo. O primeiro capítulo faz um apanhado teórico sobre a questão das drogas e em específico sobre os controles, rituais e sanções formais e informais relacionados ao seu uso. No segundo capítulo a ênfase é na problemática urbana, elencando o referencial teórico relacionado à questão do espaço, território e circuito para fundamentar como se dá a ocupação nos equipamentos urbanos. O terceiro capítulo dedica-se especialmente para descrever e analisar a categoria nativa legalize, onde iremos discutir como se manifesta, quais os agenciamentos dos grupos de usuários de drogas nos seus espaços, e como eles produzem tais territórios. O quarto capítulo dedica-se à descrição e análise do campo de pesquisa delineado para este trabalho. A intenção foi identificar os pedaços, manchas e trajetos do circuito legalize no Centro Antigo de Salvador. Por fim, a conclusão traz pontos importantes para analisar sobre a atual política de drogas e a forma criminalizadora de tratar os usuários de drogas em seus territórios. Para basear o ponto de vista e os pressupostos teórico-metodológicos elencados aqui, apresentaremos algumas pesquisas já consagradas na literatura que fundamentaram o tema, os objetivos e a proposta deste trabalho. O pesquisador que ora realiza este trabalho também é um consumidor de drogas ilícitas e também um militante da causa antiproibicionista, a favor da legalização de todas as drogas. Neste sentido, devemos antecipadamente alertar para as possíveis tendências subjetivas, e pelos juízos de valor implicados na escrita desta tese de doutorado, mas também devemos reforçar que os pressupostos são fundamentados e justificados pelos trabalhos de pesquisadores como Norman Zinberg, H. Becker, R. Bucher, L. Waquant, M. Foucault, entre outros. Dito isto, nos identificamos com o posicionamento dos autores aqui citados e também devemos admitir antecipadamente que corroboramos com os ideais antiproibicionistas, apesar de tentar a todo o momento aplicar as normas de objetividade científica que este trabalho exige.

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1. A questão das drogas: pressupostos teóricos. 1.1 O desvio, os usuários e os empreendedores morais. O uso de algumas drogas, seja em espaços públicos ou privados, tem sido normativamente perseguido e reprimido. Tal fenômeno, que faz parte do cotidiano regular da história da humanidade (ESCOHOTADO, 1999), a partir da era moderna foi considerado como um desvio e, desta forma, muito perigoso para a saúde e segurança social. A associação direta entre o consumo (recreativo, medicinal ou até religioso) de algumas drogas e o comportamento desviante é bem analisado por Howard Becker em seu livro Outsiders (2008), e é sobre suas considerações que me deterei no momento. Ao rotular um comportamento como “desviante”, está implícita a função de estabelecer regras sociais. Desta forma, o consumo ilícito de maconha significa infringir as regras morais e legais, apesar dos usuários manterem a possibilidade de convívio harmônico entre seus pares na sociedade. O sociólogo H. Becker foi um dos pioneiros do estudo sociocultural do uso de drogas. Seu argumento indica que a experiência resultante de diferentes usos depende do grau de conhecimento que é disponível aos usuários. Já que a divulgação desse saber é função da organização social dos grupos onde as substâncias são usadas, os seus efeitos irão, portanto, se relacionar ao convívio social e cultural entre os pares. Como exemplo ele cita o desenvolvimento do uso massivo da maconha entre a juventude americana na década de 1960. (BECKER, 1977) O tipo de “conhecimento" cotidiano sobre o uso de certas substâncias difundido entre alguns setores da população, faz parte do que o autor chama de "cultura da droga” e que é importante para se saber sobre o uso controlado destas substâncias. Ao apresentar sua concepção sobre o desvio e criticar as formas de análise nas pesquisas anteriores, H. Becker desenvolve e aprimora o que seria a Sociologia do Desvio, uma de suas grandes contribuições para as Ciências Sociais. Segundo ele, alguns sociólogos “rotulam esses processos como desviantes ou os identificam como sintomas de desorganização social. Discriminam entre aqueles traços da sociedade que promovem estabilidade (e são portanto ‘funcionais’) e os que rompem a estabilidade (e são portanto ‘disfuncionais’).” (BECKER, 2008, p. 20) No entanto, o autor de Outsiders chama a atenção de que o desvio é criado pela sociedade. “Grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como

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outsiders.” (BECKER, 2008, p.21/22) Portanto, o desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele. Gilberto Velho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e especialista em Antropologia Urbana e das Sociedades Complexas na Universidade do Texas, analisa a categoria em sua obra Desvio e Divergência. O ‘desviante’, dentro da minha perspectiva, é um indivíduo que não está fora da sua cultura mas que faz uma ‘leitura’ divergente. Ele poderá estar sozinho ou fazer parte de uma minoria organizada. Ele não será sempre desviante. Existem áreas de comportamento em que agirá como um cidadão ‘normal’. (VELHO, 1975, p. 27)

Assim complementa, H. Becker: “O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras.” (BECKER, 2008, p. 25) Assim, seguindo este raciocínio, as regras são determinadas também pelas questões de raça, gênero, classe, idade, religião, nacionalidade, etc.. Como sinalizam R. Castell e A. Coppel: A dificuldade da sociedade em lidar com os toxicômanos atuais é que estes usos, principalmente quando protagonizados por pessoas de baixa classe social (não tem os recursos para lidar com os problemas causados pelo uso periféricos, ‘minorias’ étnicas e outras) são considerados anômicos, isto é, fora do contexto, uma fratura da ordem social. (CASTELL; COPPEL, 1991, p. 2)

Desta forma, conclui H. Becker, o desvio: (...) é antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento. O mesmo comportamento pode ser uma infração das regras em um momento e não em outro; pode ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra; algumas regras são infringidas com impunidade, outras não. (BECKER, 2008, p. 26)

As regras sociais são criação de grupos sociais específicos. Em quase todas as sociedades, e principalmente nas modernas, não existem organizações simples em que todos concordam quanto ao que são regras e como elas devem ser aplicadas em situações específicas. Sempre haverá desacordo quanto ao tipo de comportamento apropriado. Em Outsiders, H. Becker chama a atenção para o fato de que quem obriga outros a aceitar suas regras o faz por uma questão de poder político e econômico.

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Para explicar melhor o fenômeno, o autor aconselha ao pesquisador se concentrar naquele que providencia para que o a rotulação ocorra, nas circunstâncias em que ela aparece, e como as aplica. Geralmente as regras criadas socialmente são específicas de um grupo particular e também defendidas apenas por sanções informais. “As regras são produtos da iniciativa de alguém e podemos pensar nas pessoas que exibem essa iniciativa como empreendedores morais. Duas espécies relacionadas - criadores de regras e impositores de regras - ocuparão a nossa atenção.” (BECKER, 2008, p. 153) A iniciativa, gerada pelos primeiros e reforçadas pelos segundos, se arma com publicidade para a imposição da regra que pode ser corporificada em leis. Isso significa que o empreendedor moral, em algum momento do desenvolvimento de sua cruzada, requer muitas vezes os serviços de um profissional capaz de formular as regras apropriadas de forma adequada. “O desvio é produto de empreendimento no sentido mais amplo; sem o empreendimento necessário para que as regras sejam feitas, o desvio, que consiste na infração da regra, não poderia existir.” (BECKER, 2008, p. 167) No entanto, o sociólogo aponta as contradições dessa imposição: Aqueles grupos cuja posição social lhes dá armas e poder são mais capazes de impor regras (...) Devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não são universalmente aceitas. Ao contrário, constituem objeto de conflito e divergência, parte do processo político da sociedade. (BECKER, 2008, p. 30)

Assim, o impositor tanto precisa decidir quando e como impor a regra, quanto definir que pessoas devem ser rotuladas como desviantes. Algumas pessoas têm influência política ou know-how suficiente para serem capazes de evitar tentativas de imposição, o que já caracteriza um fenômeno complexo e variável. Os impositores aplicam as regras e criam outsiders de uma maneira seletiva, escolhendo como critérios as características físicas, os momentos e principalmente determinados lugares para caracterizar um “desvio”. Se uma pessoa que comete uma infração será de fato rotulada de desviante depende de o agente da lei e também do infrator mostrar ou não a devida deferência ao impositor. Segundo H. Becker, para compreender plenamente o comportamento desviante é necessário levar em conta tanto as pessoas que infringem regras, quanto aquelas que as criam e impõem. “Cumpre ver o desvio, e os outsiders que personificam a concepção abstrata, algumas das quais, a serviço de seus próprios interesses, fazem e impõem regras que apanham outras - que, a serviço de seus próprios interesses, cometeram atos rotulados de desviantes.” (BECKER, 2008, p. 167/168)

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Quando se concretiza o estabelecimento de organizações de impositores das regras, que originalmente são morais, as mesmas tornam-se institucionalizadas em uma organização dedicada à sua imposição, feita basicamente pelo Estado. “Desse modo, para compreender como as regras que criam uma nova classe de outsiders são aplicadas a pessoas particulares, precisamos compreender os motivos e interesses da polícia, os impositores das regras.” (BECKER, 2008, p. 160/161) Em suma, todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento classificando-as como “certas” e outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu é encarada com um outsider, e por isso é vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Em toda sociedade existem diversos grupos que criam seu próprio conjunto de regras. As pessoas pertencem a muitos grupos ao mesmo tempo de forma que uma mesma pessoa pode infringir as regras de um grupo pelo próprio fato de ater-se às regras de outro. “Nesse caso ele é desviante?”, pergunta H. Becker. O estudo do desvio, enquanto fenômeno social, implica em conhecer a fundo as entrelinhas implícitas contidas na cultura humana. “Trata-se de reconhecer nos atos, aparentemente ‘sem significado’, ‘doentes’, ‘marginais’, ‘inadaptados’, etc., a marca do sociocultural.” (VELHO, 1975, p. 28) Para G. Velho, “o estudo do ‘comportamento desviante’ poderá ser fértil para a Antropologia Social, na medida em que for capaz de perceber através dele aspectos insuspeitados da lógica do sistema sociocultural.” (1975) Da mesma forma, esta pesquisa analisa a cultura do uso público de drogas para justamente demonstrar que tal fenômeno faz parte da cultura humana e, em específico, do lazer urbano. Em geral, o senso comum concebe os desvios de maneira mais estrita. “O comportamento de um homossexual ou de um viciado em drogas é visto como o sintoma de uma doença mental, tal como a difícil cicatrização dos machucados de um diabético é vista como um sintoma de sua doença.” (BECKER, 2008, p. 19) No entanto, o aspecto mais importante é que o desvio pode ocorrer porque outras normas podem se impor à moral estabelecida e à lei, ou porque são consideradas, mesmo que informalmente, mais prementes ou envolvendo maior lealdade entre seus pares sociais. Assim, o desvio, ao desenvolver rotinas ilegítimas, é “consequência da reação pública, não um efeito das qualidades inerentes ao ato desviante.” (BECKER, 2008, p. 45)

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Nesta perspectiva, como as regras podem ser formais ou informais, a pessoa que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders e que seu comportamento é, na verdade, socialmente aceitável. Esta foi a grande contribuição de H. Becker, na obra em que desenvolveu a Sociologia do Desvio. “No extremo, alguns desviantes (homossexuais e viciados em drogas são bons exemplos) desenvolvem ideologias completas para explicar por que estão certos e por que os que os desaprovam e punem estão errados.” (BECKER, 2008, p. 16/17) A questão é muitas vezes política. A função do grupo ou organização, portanto, é decidida no conflito político, não dada na natureza da organização. Da mesma forma apontam R. Castell e A. Coppel: Também a cannabis passou da fascinação à indiferença ou à banalização. Exigindo uma iniciação, fumar a maconha implica em troca de percepção e interpretação na eternidade de um momento. Equivale a uma rejeição da sociedade e de todos os seus valores e contra-valores o que exige um ataque frontal por parte dos países ocidentais. (CASTELL; COPPEL, 1991, p. 5)

Muitas vezes, o sujeito marginalizado se vê impelido para outros tipos de atividade ilegais porque a própria sociedade condena sua presença no meio social. “Portanto, o tratamento do desvio do drogado situa-o numa posição em que será provavelmente necessário recorrer à fraude e ao crime para sustentar seu hábito.” (BECKER, 2008, p. 45). Muitos tipos de atividades desviantes e seus vocábulos provêm de motivos socialmente aprendidos e seus usuários os adquirem na interação com outros desviantes. H. Becker até pontua que “um dos passos mais decisivos no processo de construção de um padrão estável de comportamento desviante talvez seja a experiência de ser apanhado e rotulado publicamente de desviante.” (BECKER, 2008, p. 41/42) Assim: Membros de grupos desviantes organizados têm, claro, algo em comum: o desvio. Ele lhes dá um sentimento de destino comum, de estar no mesmo barco. A partir desse sentimento de destino comum, da necessidade de enfrentar os mesmos problemas, desenvolve-se uma cultura desviante: um conjunto de perspectivas e entendimentos sobre como é o mundo e como se deve lidar com ele - e um conjunto de atividades rotineiras baseadas nessas perspectivas. O pertencimento a um grupo desse tipo solidifica a identidade desviante. (BECKER, 2008, p. 47/48)

Em suma, o que o livro Outsiders chama a atenção é que os grupos desviantes tendem a racionalizar sua posição, desenvolvendo uma justificativa histórica, legal e psicológica. Ao invés de os motivos desviantes levarem a comportamentos desviantes, ocorre

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o contrário; o comportamento desviante acaba por produzir motivação desviante. Ele é transformado em padrões definidos de ação por meio da interpretação social de uma experiência complexa. Em outra obra, o autor enfatiza: Para utilizá-las (as drogas), os chamados consumidores desenvolvem algumas noções sobre a quantidade e a maneira de tomá-las, quer por experimentação do tipo ensaio e erro, quer pela adoção de ideias sugeridas por fontes que eles consideram de confiança (cientistas, médicos, ou consumidores de drogas mais experientes. (BECKER, 1977, p. 183)

Na verdade, o que Howard Becker buscou compreender em relação ao uso de drogas ilícitas foi a sequência de mudanças na atitude e a experiência que leva ao uso de maconha por prazer. Se não houver esta associação sujeito/substância, a relação será extinta. “Sem o uso de alguma técnica desse tipo, a droga não produzirá qualquer efeito, e o usuário será incapaz de entrar no barato.” (2008, p. 55) Para que o uso continue, é necessário não apenas usar a droga de modo que produza efeitos, mas também aprender a perceber esses efeitos quando eles ocorrem. Dessa maneira, a maconha adquire sentido para o usuário. Em resumo, um indivíduo só será capaz de fumar maconha por prazer quando atravessa um processo de aprendizagem para concebê-la como um objeto que pode ser usado dessa maneira. Ninguém se torna usuário sem (1) aprender a fumar a droga de uma maneira que produza efeitos reais; (2) aprender a reconhecer os efeitos e associá-los ao uso da droga (aprender, em outras palavras, a ter um barato); e (3) aprender a gostar das sensações que percebe. No curso desse processo, o sujeito desenvolve uma disposição ou motivação para usar maconha que não estava e não poderia estar presente quando começou, pois envolve concepções da droga que só seria possível formar a partir do tipo de experiência real antes detalhado, e depende delas. Ao construir esse processo ele está desejoso e é capaz de usar maconha por prazer. (BECKER, 2008, p. 67)

Segundo H. Becker, não são as leis proibicionistas e repressoras que cessam a vontade do usuário de consumir drogas. Por mais que tentem reprimir e inibir física e moralmente, “o ato só se torna impossível quando se perde a capacidade de desfrutar a experiência de estar no barato, por uma mudança na concepção do usuário sobre a droga, ocasionada por certos tipos de experiência que viveu com ela.” (BECKER, 2008, p. 67) Ou seja, depende muito mais do usuário, e somente dele, através de suas experiências próprias, deixar ou não de consumir as drogas. Não são as leis que vão conseguir diminuir ou extinguir o consumo e os consumidores das drogas, e muito menos as próprias drogas.

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Tal análise se comprova com o próprio exemplo do surgimento e perpetuação dos espaços legalize. Apesar das leis imporem a proibição do consumo de drogas ilícitas, os usuários continuam e persistem no consumo das mesmas, seja em ambiente privado/secreto ou público/explícito. Nos capítulos de descrição de campo, será demonstrado que a repressão policial não é suficiente para que o consumo cesse nos espaços de consumo. Quando H. Becker estudou o uso da maconha em alguns grupos de músicos, descobriu que este comportamento desviante “é uma função da concepção que o indivíduo tem dela e dos usos a que ela se presta, e essa concepção se desenvolve à medida que aumenta a experiência do indivíduo com a droga.” (BECKER, 2008, p. 51) Da mesma forma, as análises de campo demonstraram também que a experiência dos usuários que o sociólogo aborda implica ainda em um conhecimento de como se consumir determinada droga em algum espaço, privado ou público, rural ou urbano. Para H. Becker, os consumidores têm disponível, “sob condições ótimas de produção de conhecimento, respostas de relativa confiança e precisas para questões sobre a droga que utilizam.” Esse conhecimento, segundo o autor, seria usado pelos próprios usuários para maximizar os benefícios que desejam da droga, “quaisquer que possam ser estes benefícios, e para minimizar efeitos colaterais.” (BECKER, 1977, p. 191) No caso dos espaços legalize, soma-se a esse conhecimento/aprendizado social um conhecimento geo-espacial do local e também um conhecimento sobre a “lógica” de atuação das patrulhas policiais. Em outras palavras, quando o consumo de drogas é feito em espaços públicos urbanos (ou mesmo não urbanos), os usuários precisam calcular quais são as melhores posições geográficas no interior dos equipamentos urbanos para driblarem a possibilidade de repressão. Isso faz parte do que entendemos como os diferentes agenciamentos do uso público de drogas. Dito isto, consumir drogas de forma explícita na cidade depende de uma série de regras distribuídas em rede de grupos. Essas regras implicam saberes para além da carreira do usuário de maconha, descrita por H. Becker. Aqueles que fazem uso explícito de drogas, em espaços de lazer urbano, também precisam conhecer quais são as possíveis sanções formais e onde elas podem ocorrer. O interessante é entender por que em determinados espaços da cidade tais regras se mantêm mais ou menos sólidas em relação ao consumo explícito de drogas. Uma característica peculiar do consumo de drogas em espaços públicos é a iminente preocupação dos usuários de drogas com a presença/ausência do poder repressor da policia. Para conseguir levar, preparar, consumir (em grupo ou individualmente) e ainda sentir os

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efeitos das substâncias ilícitas, os usuários têm que desenvolver um conhecimento espacial, para se localizar privilegiadamente no local. Em outras palavras, as sanções e rituais de consumo de drogas também implicam na produção de um conhecimento sobre a dinâmica espacial dos locais escolhidos para o uso público das mesmas. Em Outsiders, H. Becker levanta uma pergunta: Como uma pessoa se torna capaz de levar adiante o uso de alguma droga ilícita, apesar dos elaborados controles sociais que funcionam para evitar tal comportamento? O autor interpretou que a entrada e permanência no mundo das drogas é constituída de uma sequência de eventos e experiências pela qual o usuário necessariamente tem que passar. Se as experiências com drogas de alguma forma refletem ou estão relacionadas com o cenário sociais, devemos especificar os cenários nos quais as drogas são tomadas e o efeito específico desses cenários nas experiências daqueles que deles participam. Esta análise sugere que é útil olhar para o papel do poder e do conhecimento naqueles cenários, conhecimento de como tomar as drogas e do que esperar quando alguém o faz, do poder sobre a distribuição da droga, conhecimento sobre ela e sobre a decisão de tomá-la ou não tomá-la. Isso varia muito, dependendo do caráter da organização dentro da qual as drogas são usadas. No uso ilícito de drogas, os efeitos da experiência com drogas depende dos laços sociais e entendimentos culturais que surgem entre aqueles que usam a droga. (BECKER, 1977, p. 202) (grifo nosso)

1.2 Controles e sanções formais e informais. Assim como H. Becker, Norman Zinberg também pesquisou o consumo de drogas ilícitas. Apesar de médico, enfatizou em sua obra o fator social como bastante influente no controle ou compulsividade dos respectivos usuários. Em seu Livro Drug, Set and Setting (1984), observando a diferença entre os dependentes ingleses e americanos, ele começa a atribuir significativa importância aos diferentes contextos sociais. Na Inglaterra de sua época, onde o uso de heroína não era ilícito e dependentes poderiam adquirir suporte legal, estes não necessariamente seriam rotulados como desviantes. Desta forma, N. Zinberg conclui: “Estava ficando óbvio que, para entender a questão da droga, eu teria que levar em conta não apenas a farmacologia da droga e a personalidade do usuário (set), mas também o contexto físico e social no qual ocorre.” (ZINBERG, 1984) O psiquiatra psicanalista americano N. Zinberg desenvolveu suas análises sobre a distinção entre o usuário controlado e o compulsivo. A diferença entre estes dois perfis sociais corresponderia à representação da droga para o usuário. Se este tem a substância como fim último ou como elemento central da sua vida, diz-se que faz um “uso compulsivo”. O “uso

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controlado” vai se caracterizar por uma série de fatores de ordem pessoal, social e farmacológica, incluindo normas, regras de conduta e rituais sociais aos quais grande parte dos consumidores de substâncias ilícitas se submete, não provocando riscos a terceiros, violência, nem degradação social. Segundo N. Zinberg (1984), os efeitos do uso das substâncias ilícitas dependem das atitudes e personalidade do usuário (set), do meio físico e social onde ocorre o uso (setting) e da droga propriamente dita. Isso significa, por exemplo, que o uso controlado de maconha depende: dos efeitos farmacológicos da erva no indivíduo; da sua relação pessoal com a substância; e dos controles sociais implicados nos rituais de uso. Os controles sociais se organizam em sanções sociais e rituais sociais que representam tanto as normas e as leis políticas formais que definem se e como determinada droga deve ser usada, como também, os valores e regras de conduta compartilhadas informalmente por grupos de maneira não explicitada. (ZINBERG, 1984) Regido por regras, valores e padrões de comportamento, esses controles sociais funcionariam de quatro maneiras: definindo o que é uso aceitável e condenando os que fogem a esse padrão; limitando o uso a meios físicos e sociais que propiciem experiências positivas e seguras; e identificando efeitos potencialmente negativos. Apesar disso, faz parte da política proibicionista ignorar a eficácia do saber dos usuários e, só recentemente, quando o proibicionismo começa a ser posto em questão, a academia tem se aberto ao estudo desses controles informais. Uma das categorias fundamentais para a análise do consumo público de drogas é o de ritual social, pois demonstra elementos de elaboração simbólica. A construção e o uso de certos equipamentos de acordo com uma ordem correspondem a uma funcionalidade instrumental que sinaliza o início de uma sequência ritual, acentua a experiência do efeito da droga e reduz a ansiedade. (ZINBERG, 1984) Segundo E. MacRae, os rituais sociais são padrões estilizados de comportamento recomendado em relação ao uso de uma droga. Eles seriam aplicados aos métodos de aquisição e administração da substância, à seleção do meio físico e social para usá-la, às atividades empreendidas após o uso, e às maneiras de evitar efeitos indesejados. Dessa forma, esses rituais reforçariam e simbolizariam as sanções sociais. Os controles sociais para todas as drogas, lícitas ou ilícitas, atuariam em diferentes contextos sociais, indo desde grupos muito grandes, representativos de uma cultura como um todo, até pequenos grupos específicos e sua vigência se aplicaria de maneira variada em diferentes momentos. Assim, certos tipos de uso, em ocasiões especiais, envolvendo grandes números de pessoas, apesar de sua diversidade cultural, tornar-se-iam tão aceitáveis que mesmo

36 uma legislação restritiva poderia ser momentaneamente posta de lado. (MACRAE, 2001, p. 2)

São nos rituais sociais que se produzem os controles sociais e consequentemente o aprendizado social do uso público de drogas. Sobre isso, E. MacRae acrescenta:

Os controles sociais informais, as técnicas de uso, a percepção e apreciação dos efeitos e a elaboração de conceitos que justificam e mantém, para o indivíduo, o seu padrão de consumo constituem a chamada “subcultura da maconha”. Essa subcultura tende a ser o resultado de experiências através de redes informais de comunicação entre usuários. Portanto, para que essa informação circule, é necessário que os consumidores estejam ligados entre si por um determinado período de tempo e mantenham um sistema de relações, através do qual se articulam uma série de entendimentos comuns sobre determinada substância e as melhores maneiras de utilizá-la. (MACRAE, 2003, p. 5)

Segue, portanto, a necessidade de se compreender a noção de “setting” (ZINBERG, 1984) que é justamente o palco onde se dão os rituais sociais, controles formais e informais, ou seja, o aprendizado social relativo ao consumo público e explícito de drogas ilegais. Segundo N. Zinberg, a dimensão sociocultural (social setting) possibilita a utilização de psicoativos segundo um determinado padrão, através do desenvolvimento de sanções sociais – valores e regras de conduta – e de rituais sociais – estilos de comportamento -, os quais, juntos, constituem os controles sociais informais. As sanções sociais indicariam se e como certa substância pode ser usada; essas sanções podem ser informais e compartilhadas por um grupo, ou então formalizadas por leis e regulamentos. Os rituais sociais seriam os padrões estilizados de comportamento prescritos em torno do uso de determinada substância. Estão incluídos nesses rituais os métodos de aquisição e consumo, a escolha do meio físico e social para o uso, as atividades associadas ao consumo e as maneiras de evitar e lidar com efeitos negativos. Dessa forma, esses rituais serviriam como reforços e símbolos das sanções sociais. (1984) Em outras palavras, as sanções formais e informais permitem a produção e reprodução dos rituais de uso de drogas e seus controles informais. N. Zinberg faz a ressalva de que a existência dessas sanções e controles não significa que serão eficazes e nem significa que todas as sanções e rituais tenham sido criados como mecanismos para ajudar o controle. O autor, afirma também, que nem sempre a existência ou aplicação dos controles sociais significa que o uso seja moderado, segundo os padrões sociais locais.

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O psicólogo holandês J. P. Grund, professor visitante da Universidade de Amsterdam e chefe do Departament of Addiciology do Hospital Geral da Universidade também contribui para esse debate ao enfatizar a importância da disponibilidade da substância psicoativa como variável para entender os circuitos legalize. Com base em considerações a respeito da via de consumo adotada por heroinômanos (injeção, aspiração, etc.), a depender da quantidade e da qualidade da substância disponível, ele conclui que diferentes níveis de disponibilidade de droga estão associados a diferentes rituais de administração. Para que uma droga seja ritualizada ela deve ter sua importância reconhecida pelo grupo. Substâncias psicoativas que se têm mostrado de importância para o homem através da história, quando colocadas na ilegalidade, tornam-se fortes promotores de ritualização. Neste sentido, o autor complementa: As funções sociais desses rituais são mais evidentes no constante compartilhar de drogas. O compartilhar tem também funções instrumentais, como por exemplo evitar a síndrome de abstinência. Quanto mais um grupo desviante (desviante dos comportamentos, normas e valores dominantes) é segregado e pressionado, mais ele se apresentará como um grupo desviante. Os comportamentos, normas e valores mais desviantes serão então enfatizados e reforçados, resultando então em uma subcultura altamente separada, intradependente e monofocal, cujos integrantes terão muita desconfiança em relação à cultura dominante. Isso implica novamente que a ritualização seja um processo sujeito às reações da cultura dominante. (GRUND, 1993, p. 25-6)

Nesses termos, conforme assinala o J. P. Grund, o ritual não seria determinante nem teria um sentido muito expressivo como N. Zinberg aponta, justamente por ter uma condição estática e se desenvolver através de um processo gradual e dinâmico relacionado à disponibilidade. A ritualização também pode variar segundo condições sociais e fatores idiossincráticos. Entre os membros de um grupo haverá uma diversidade na maneira como um evento é percebido como ritual. Além disso, o aprendizado social produz mudanças na estrutura e função da personalidade. Cada indivíduo socialmente integrado tem a capacidade de balancear os inputs dos instintos humanos com as pressões do meio social. Esta capacidade de adaptação posta na experiência social, a partir do nascimento, se pulveriza nas diversas formas de relação social existentes até a contemporaneidade. Claro que indivíduos com diferentes características biológicas lidam diferentemente com suas respectivas oportunidades criando diferentes estruturas de personalidade e capacidades adaptativas, estas limitadas às possibilidades do ambiente social. Isso sugere que as diferenças e limitações provêm da vivência humana em diferentes ambientes físicos e sociais.

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Fica claro então que o impacto do contexto social no desenvolvimento da personalidade é um processo contínuo. Isto tende a sustentar o ponto de vista de N. Zinberg de que estes dois elementos são interdependentes. O processo é estável, mas continuamente balanceado pelas condições intersubjetivas (que variam pelas diferentes formas de vida) e o ambiente externo (que constantemente processa as mudanças). Assim, a relação entre a personalidade e o contexto social envolve um contínuo equilíbrio. Mudanças nesse equilíbrio resultam em mudanças de atitude social em determinados padrões de comportamento. Da mesma forma, padrões de comportamento que foram em determinado momento percebidos como desviantes ou como efeito de conflitos emocionais, podem se tornar gradualmente socialmente aceitos e normatizados. (ZINBERG, 1984) A partir deste ponto de vista, três determinantes devem ser considerados: a droga; o set que seriam as atitudes pessoais de cada indivíduo no momento do uso, incluindo a estrutura da personalidade; e o setting, que significa a influência do contexto físico e social onde o uso acontece. N. Zinberg destaca o setting como o foco de investigação de sua pesquisa e enfatiza que, apesar de ser o mais importante dentre os três elementos no fenômeno social das drogas, tem recebido o mínimo de atenção e reconhecimento pelas pesquisas da área até então. E como hipótese fundamental de sua análise o autor descreve que o contexto social, através do desenvolvimento das sanções e rituais sociais garantem controle para o uso de drogas ilícitas. (ZINBERG, 1984) As chamadas sanções sociais (social sanctions) conduzem os padrões de comportamento, chamados de rituais sociais (social rituals), estes conhecidos como controles sociais

informais (informal social controls). As sanções sociais, compartilhadas

informalmente em grupo, definem se e como qualquer droga é usada. Rituais sociais são padrões estilizados e prescritos nos comportamentos ao redor do uso de drogas. Eles têm a ver com métodos de procura e administração da droga, a seleção do contexto físico e social de uso, as atividades posteriores à administração da droga e as maneiras de prevenir efeitos indesejados das mesmas. (ZINBERG, 1984) Jean-Paul C. Grund, ao problematizar as pesquisas de N. Zinberg acrescenta: Uma característica proeminente dos rituais e regras é que eles visam controlar ou regular a experiência de uso de drogas. Isto é mais aparente nas sequências comportamentais estereotipadas ao redor da auto administração de drogas pelo usuário individual, porém ele também desempenha um papel distinto em muitas inter-relações observadas (ritualizadas) por exemplo no constante compartilhar de drogas. (...) Ultimamente os próprios usuários regulam seus usos de tóxicos através de processo de aprendizagem social dos seus pares no qual rituais específicos e regras são desenvolvidas como

39 adaptações para os efeitos das interações entre drogas, set e setting. (GRUND, 1993, p. 1)

Assim, os rituais reforçam e legitimam as sanções sociais através do aprendizado social (social learning). Da mesma forma interpreta H. Becker: Podemos entender melhor o contexto social das experiências com drogas mostrando como seu caráter depende da quantidade e tipo de conhecimento a que a pessoa que toma a droga tem acesso. Desde que a distribuição do conhecimento é uma função da organização social dos grupos nos quais as drogas são usadas, as experiências com drogas variam de acordo com variações na organização social. (BECKER, 1977, p. 181)

Passado de forma horizontal entre a rede de pares, o aprendizado social é transmitido entre os usuários de drogas, compondo um conjunto de elementos simbólicos da cultura da droga. Este conhecimento é transmitido entre os pares de outros grupos através de gerações e diferentes rituais sociais. Atualmente muito do aprendizado social e talvez a maior parte dele é intrageracional. O grupo de pares é principalmente responsável pela divulgação de informação sobre trabalho, relacionamentos e costumes. Certamente a maior parte da informação sobre uso de drogas, incluindo especialmente sanções e rituais está sendo transmitida através de grupos de pares, embora o conteúdo informacional específico pode variar enormemente de um grupo para outro. (ZINBERG, 1984) J. P. Grund também interpreta dessa forma e acrescenta: O uso da droga é, contudo, uma atividade rara e isolada. Entrelaçado com muitos outros aspectos da vida, é normalmente uma atividade social. Padrões de uso de drogas - quais e como usadas - são sujeitos a múltiplos determinantes sociais tal como: oferta, tendências padronização cultural. Portanto, o uso de drogas não pode ser isolado de seu contexto social. (GRUND, 1993, p. 20)

Pensando em uma genealogia da formação de grupos de usuários de drogas ilícitas, N. Zinberg desenvolve seu raciocínio: A primeira geração de usuários de drogas ilícitas é sempre vista como desviante. Eles tem motivos pessoais fortes para procurar uma droga como a maconha

e a usam com grande ansiedade. Gradualmente, ao passo que a atividade

desviante se torna moda, (como aconteceu com o uso de maconha em meados da década de 1960) o conhecimento aumenta, concepções erradas são corrigidas e os usuários tornam-se mais confiantes e tendem a deixar de se verem como desviantes. A segunda geração de usuários não tenta experimentar drogas primeiramente porque quer se rebelar contra a sociedade convencional, mas sim por curiosidade ou porque existe o interesse nos seus

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efeitos. Há mais deles; suas origens são mais diversas e suas motivações parecem ser menos pessoais e antagônicas à cultura dominante, tornando-se mais aceitáveis para a sociedade. Esse mesmo raciocínio é compartilhado por H. Becker: Na medida em que os consumidores estejam ligados, mesmo que muito indiretamente, durante um longo período de tempo, um grande número de experiências circula através do sistema relacionado e produz o que pode ser chamado de uma ‘cultura da droga’ (um conjunto de entendimentos comuns sobre a droga, suas características, e a maneira como ela pode ser melhor usada). O desenvolvimento do conhecimento sobre a maconha é provavelmente o que melhor se aproxima desse modelo, com os muitos anos de amplo uso de maconha nos Estados Unidos tendo produzido um vasto corpo de tradições acumuladas que não varia muito segundo a região ou o grupo social. (BECKER, 1977, p. 189)

Com o passar do tempo, até a sociedade convencional já saiu de sua posição rígida de antes a respeito da maconha, tornando-se em geral confusa a respeito. Essa confusão encoraja outros no contexto social mais amplo que não estão motivados primariamente a experimentar a substância nem por uma fome da droga, nem por uma rebeldia social. Seus relatos tem um efeito ainda maior sobre a sociedade mais ampla e, além disso, a nova diversidade da população usuária torna possível o desenvolvimento de diversos estilos de uso que funcionam melhor e causam menos problemas. Em relação a isso, complementam A. Henman e O. Pessoa “(...) É evidente que os processos de ritualização no consumo da diamba se acham presentes em todas as camadas e classes sociais, fornecendo evidências de uma aculturação da cannabis sativa que vem ocorrendo há séculos no Brasil.” (HENMAN; PESSOA, 1986, p. 12) R. Bucher, professor Emérito da Universidade de Brasília e pesquisador, fundador e coordenador do Centro de Orientação sobre Drogas e Atendimento a Toxicômanos é autor de uma série de publicações sobre drogas. Em seu livro Drogas e drogadição no Brasil de 1992, ele comprova essa assertiva quando analisa a história do consumo da maconha no país. “Uma tal evolução é nítida nos últimos trinta anos, também no Brasil. Nos anos sessenta, a contestação hippie deu o tom aos movimentos alternativos, a busca do belo, do prazeroso, do flower-power na terra.” (1992, p. 28) Segundo ele, o contexto de fé nos ideais de pureza e bondade, as experiências psicodélicas, o ambiente de efervescência intelectual, a abertura de novos caminhos cosmopolíticos serviu para o entendimento de que o uso de drogas significava mais como meio de interação entre grupos distintos, do que meio desagregador. A droga aí participava pois, não como um elemento desintegrador e destrutivo, mas como uma oportunidade de experimentar, em grupo, novas sensações e chegar-se a novas percepções do universo, da vida, da

41 interioridade humana. Assumiu, simultaneamente, as funções de cimento e de símbolo da vida alternativa propagada, garantia da exploração aventurosa de um mundo colorido, contrastando singularmente com as cores cinzentas do modelo competitivo proposto pelo sistema vigente. (BUCHER. 1992, p. 28)

E dai por diante, o consumo de drogas se expandia: No rastro do movimento hippie, a diamba chegou aos adolescentes das classes média e alta onde seu uso, apesar ou, precisamente, por ser reprimido, deriva de ponta de lança para todas as contestações endereçadas às ‘autoridades constituídas’. Sem evocar a possibilidade da maconha constituir porta de entrada para a escalada rumo as drogas mais pesadas - o que nem é tão certo - é fato que a perseguição dos jovens fumando maconha cria uma série de injustiças que correm o risco de pesar pesadamente em seu equilíbrio psicossocial futuro. (BUCHER. 1992, p. 106)

Os impactos do aprendizado social (social learning) não se limitam ao comportamento. Este também afeta a percepção interna e a capacidade de ativar os controles internos. Na pesquisa que fez entre os usuários de maconha, N. Zinberg revelou que as técnicas e saberes sobre os efeitos da substância são usufruídos pelos novos usuários, que se beneficiam das experiências passadas. Os usuários regulares desenvolvem controle sobre o barato de forma que podem amenizar os efeitos se quiserem, não porque se tornam mais tolerantes aos efeitos farmacológicos das substâncias psicoativas, mas sim porque mudam suas relações simbólicas em relação às mesmas. N. Zinberg destacou naquela época que quando o uso de drogas é uma atividade reservada, escondida e ilegal, o usuário está sujeito a se associar a grupos de usuários compulsivos e problemáticos. Alguns deles, por conviver em determinados grupos tornam-se usuários dependentes interferindo em suas habilidades funcionais. Quando eventualmente tornavam-se usuários controlados, era porque se religavam a outros grupos que garantiam um contexto (setting) adequado de uso destas drogas. Assim podemos imaginar qual situação seria melhor para a questão: a proibição e repressão, que promovem um consumo escondido e informal, ou a legalização, que promove regulamentação e controle ao uso de drogas? (ZINBERG, 1984) N. Zinberg estudou viciados em heroína que mantinham seu uso controlado de forma autônoma e racional. Este padrão de uso classificado de forma inovadora e original na ciência, apontou que, até mesmo drogas pesadas poderiam ser ministrada de forma controlada. O contexto social incluindo seus controles formais e informais, sua capacidade de desenvolver novos rituais e sanções sociais informais e a transmissão de informação de forma numerosa são fatores cruciais para entender o uso controlado de intoxicantes. No entanto, isto não

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significaria que as propriedades farmacológicas das drogas e as personalidades dos usuários fossem irrelevantes, seria necessário entender todo caso como a droga e a personalidade do usuário interagem e são modificados pelo contexto social e seus controles. (ZINBERG, 1984) A obra de N. Zinberg é muito importante para demonstrar que são os controles sociais, (os rituais e as sanções juntos) que permitem o uso de todas as drogas. A ideia de que o uso de drogas implica necessariamente uma desestrutura social ou desordem na personalidade do indivíduo ignora os contextos sociais e a própria realidade. Representadas pelas pesquisas científicas, o posicionamento antidrogas corriqueiro não leva em conta que uma parte dos usuários de drogas ilegais mantêm, em grau considerável, uma disciplina própria para o uso das mesmas. Ignoram também que o consumo de drogas varia no tempo/espaço. (ZINBERG, 1984) Alta disponibilidade de heroína, por exemplo, parece significar alta prevalência de seu uso, mas isso somente não explica porque alguns indivíduos se tornam viciados e outros não. Da mesma forma, ela também não é suficiente para explicar a diferença entre o alcoólatra e o simples usuário de álcool pela disponibilidade e acesso a esta droga legal. Já em relação às drogas ilícitas, apesar das oportunidades de aprender a controlar o seu consumo serem limitadas, existe uma variedade de rituais e sanções sociais de grupos e culturas de usuários de drogas que promovem tal controle. “O controle do usuário de drogas começa pela quantidade de modo que drogar-se começa pelo aprendizado da dose. Manter-se na linha da crista exige auto-disciplina e o uso depende do usuário/traficante e da capacidade do usuário controlar sua dose (...).” (CASTELL; COPPEL, 1991, p. 4) Os integrantes da sociedade sempre são constrangidos pela ordem social e não podem fazer tudo o que querem, principalmente os toxicômanos que devem, para o seu próprio bem, “administrar a aquisição e o consumo do psicoativo bem como os relacionamentos sociais ligados à droga e às outras instâncias da vida; trabalho, família, etc. Se este auto-controle em relação à droga ilícita não se efetiva, o indivíduo pode ser preso, internado ou até morrer.” (CASTELL; COPPEL, 1991, p. 3) Segundo a pesquisa de N. Zinberg, os controles sociais funcionam em quatro bases sobrepostas: Primeiro, as sanções definem o uso moderado e condenam o uso compulsivo; Segundo, sanções conduzem o uso para um contexto físico e social positivo ou seguro de experiência com a droga; Terceiro, sanções identificam potencialmente os efeitos indesejados das drogas. Os rituais implicam em precauções a serem tomadas durante o uso; Quarto, sanções e rituais operam para agregar o uso das drogas e dar suporte aos usuários em suas

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obrigações e relações sociais em geral. Os rituais específicos desenvolvidos para expressar as sanções a respeito de qual seria a melhor hora para se consumir uma droga, como ela deve ser usada, com quem, qual a melhor forma de voltar à normalidade, etc., variavam de grupo para grupo, embora alguns se propagassem entre estes. (ZINBERG, 1984) Contudo, conforme aponta J. P. Grund, a teoria de N. Zinberg não explica devidamente a variação dentro do grupo na habilidade de efetivamente utilizar estes controles sociais, nem leva em conta a natureza multidimensional dos processos de auto-regulação. Tornou-se claro também que a habilidade para auto-regular o uso da droga não está igualmente disseminado por todos os usuários. (...) a auto-regulação é mais do que limitar o consumo de alguém. Ela refere-se igualmente à prevenção e administração dos problemas relacionados com a droga e deveria, portanto, ser percebido como um processo multidimensional. A eficácia de regras e rituais em exercer o controle sobre o uso de drogas é aparentemente moderada por fatores adicionais com impacto sobre a habilidade do indivíduo para agir de acordo com esses processos sociais reguladores. (GRUND, 1993, p. 1-2)

Para complementar a teoria de N. Zinberg, J. P. Grund enfatiza que devem ser incluídos “os relacionamentos pessoais, compromissos, obrigações, responsabilidades, metas, expectativas, etc., relacionamentos e aspirações que são exigentes e simultaneamente tem valor social (afetos) ou econômicos (salários)” já que são determinantes e igualmente importantes para a estrutura de vida. “Contatos regulares com usuários controlados e não usuários são portanto de considerável importância, assim como a participação nas estruturas e atividades não motivadas (primariamente) por incentivos relacionados às drogas.” (GRUND, 1993, p. 9) J. P. Grund propõe que “a disponibilidade da droga tem portanto um impacto fundamental no dia a dia de usuários regulares de drogas. Limitar artificialmente a oferta de drogas pode limitar seus consumos de drogas até certo ponto.” (GRUND, 1993, p. 8) Neste sentido, o autor explica que restringir a oferta induziria um processo psico-social que multiplica o valor ritual das drogas induzindo, assim, um estreitamento de foco no usuário. Disponibilidade da droga, rituais e regras e estrutura de vida precisam assim ser considerados em conjunto. A continuidade da disponibilidade da droga depende da estabilidade da estrutura de vida resultante de uma conformidade estrita a rituais e regras que regulam os padrões de uso da droga. (...) Disponibilidade da droga, rituais e regras e estrutura de vida são uma trindade - fatores interativos em um processo circular coerente internamente no qual estes fatores são eles mesmos modulados (modificados, corrigidos, reforçados, etc.) por seus resultados. É portanto um circuito de realimentação que determina a força de processos de auto-regulação controlando o uso da droga. (GRUND, 1993, p. 13)

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Ainda seguindo o raciocínio de J. P. Grund, rituais e regras determinam e constrangem os padrões de uso da droga prevenindo uma erosão da estrutura de vida. Um alto grau de estrutura da vida possibilita o usuário a manter uma disponibilidade estável da droga, essencial para a formação e manutenção de regras e rituais eficazes. “A auto-regulação do consumo da droga e seus efeitos (não intencionais) é portanto uma questão de equilíbrio (precário) de uma cadeia de reforço circular.” (GRUND, 1993, p. 14) O processo através do qual rituais e sanções controladores são adquiridos varia de sujeito a sujeito. A maioria dos indivíduos chega a eles gradualmente no decurso de suas carreiras de usuários de drogas. Sem dúvida, a fonte mais importante de preceitos e práticas de controle é o grupo de pares do usuário. O grupo de pares fornece instruções e reforça o uso adequado e, apesar da imagem popular a respeito da pressão do grupo de pares como uma força corrompedora que empurraria indivíduos fracos em direção ao mal uso de drogas, muitos segmentos da cultura das drogas tomam posições fortes contra o seu abuso. (ZINBGERG, 1984) Em outras palavras, as sanções sociais formais são anuladas pelos próprios controles estabelecidos entre os usuários nos contextos grupais ou entre pares. No entanto, mais importante que saber se as sanções e rituais originalmente foram criados como mecanismos de controle, é a forma como os usuários lidam com os conflitos entre as sanções. Quando se fala em drogas lícitas o mais óbvio conflito é entre as sanções formais e informais, ou seja, entre a lei e a cultura de uso. No caso de drogas ilícitas, o conflito ocorre entre controles sociais formais e informais, ou seja, entre as leis contrárias ao uso e a aprovação do uso pelo grupo social. (ZINBERG, 1984) Da mesma forma explica H. Becker: “Os consumidores geram conhecimento sobre as drogas que os interessam baseando-se amplamente em suas próprias pesquisas, (...) técnicas leigas disponíveis, muita auto-experimentação e observação introspectiva.” (BECKER, 1977, p. 189) A confiabilidade desse conhecimento construído depende da eficiência dos canais de comunicação e da adequação dos mecanismos para organizá-la. Numa situação de controle do consumidor, como o uso ilícito de drogas por prazer, o consumidor toma quanto deseja na hora que deseja; sua dosagem é auto-iniciada e auto-regulada. Ele se baseia no conhecimento gerado nos grupos consumidores para organizar suas atividades de consumo e interpretar suas experiências com drogas. (BECKER, 1977, p. 188/189)

H. Becker também enfatiza o aprendizado social para manter um ato ilícito em espaços públicos:

45 O citadino exibe sua reserva mais acentuadamente em áreas públicas anônimas - os Times Squares e State Streets -, onde pode sentir que nada do que acontece é responsabilidade sua e que há agentes da lei presentes, com a obrigação de lidar com qualquer coisa extraordinária. O acordo de ignorar infrações de regras repousa em parte no conhecimento de que a imposição pode ser deixada a cargo desses profissionais. (BECKER, 2008, p. 131) (grifo nosso)

No caso dos espaços legalize, os usuários fumam de forma explícita em equipamentos urbanos por causa de diversos fatores (abordados nos capítulos seguintes), um deles seria a frequente ausência de policiais, contexto que garante certa liberdade aos usuários. Outro motivo observado em campo foi a falta de “reserva” (BECKER, 2008) de certos (ou até da maioria dos) usuários, que persistem em fumar em locais públicos. Isso garante ainda mais um “clima” confortável para se consumir explicitamente com segurança nos espaços legalize. Voltando ao raciocínio de Howard Becker, as pessoas limitam seu uso de drogas ilícitas em proporção ao grau de medo que sentem, real ou não a qualquer forma punitiva da lei proibitiva. Esse tipo de controle (a sanção formal de repressão) perde a força quando o usuário descobre que seus medos são excessivos e irreais, ou quando passa a conceber a prática como algo que pode ser mantido em segredo. Cada estágio na carreira do usuário só pode ocorrer depois que a pessoa reviu sua concepção dos perigos envolvidos nele. O mesmo raciocínio se dá para R. Castell e A. Coppel: “Os auto-controles são, em parte, a internalização dos controles sociais e legais das drogas ilícitas; nele, cada usuário privilegia, segundo suas aspirações e seus meios, um ou outro aspecto dos hetero-controles.” (CASTELL; COPPEL, 1991, p. 5) Certas concepções de cunho moral sobre a natureza do consumo de drogas e os usuários influenciam o desviante. “A proibição afeta a formação de rituais e regras à medida que ela obstrui e interfere com os processos de aprendizado social natural através do qual é normalmente transmitida a maioria dos aspectos do comportamento social (apropriado).” (GRUND, 1993, p. 18) Se o usuário de drogas for incapaz de invalidar ou ignorar essa concepção, o uso não ocorrerá de maneira alguma. Todavia, quando estas deixam de ter influência, os usuários de drogas as substituem por racionalizações e justificativas correntes entre seus pares. Assim, como aponta H. Becker: (...) a pessoa se sentirá livre para agir de forma desviante à medida que passe a considerar as concepções convencionais ideias mal fundamentadas e, posteriormente, as substitua pela visão ‘inside’ que adquiriu por meio de sua

46 experiência com a droga na companhia de outros usuários. (BECKER, 2008, p. 87)

1.3 Pânico Moral: análise do discurso antidrogas. A partir do final do século XIX, a ciência e diversos outros empreendedores morais assumiram que o uso prolongado e regular de determinadas drogas tornadas ilícitas necessariamente causa sérios problemas. Tal pressuposto se fundamentava apenas nas propriedades farmacológicas destas substâncias psicoativas. Por muito tempo também, foi bastante difundida a ideia de que estas eram consumidas apenas por pessoas com profundas desordens psicológicas. Muitas destas pesquisas, divulgadas de forma sensacionalista, foram fortemente influenciadas pela ideia moralista de que todas as drogas ilícitas são más, inevitavelmente danosas, ou até mesmo física e psicologicamente viciantes. Além disso, ainda hoje, apesar de críticas contundentes, acredita-se que a abstinência, mediante internação (in)voluntária é a única alternativa. É irônico que a sociedade aceite o uso de álcool, quando o uso de outros intoxicantes seja condenado, sendo que os propósitos são os mesmos: a recreação. Para além da ironia, é muito perigoso confundir o uso de pequenas doses de LSD ou heroína com o consumo abusivo das mesmas. Qual a medida certa entre aquele que bebe socialmente e aquele que abusa da bebida? Será que isso também não serve para os usuários das drogas ilícitas? Este erro lógico de raciocínio é fundamentado pelo preconceito moral e por interesses econômicos e gerou consequências muito caras para a sociedade atual. Um exemplo seria a colocação de um conhecido militante antidrogas, Cel. Ferrarini: Ao moralismo e os seus preconceitos, associam-se certos propósitos de controle social às vezes nem sequer mascarados, com que novos mitos se criam para combater ‘a terrível tentação da maconha’, o ‘flagelo que ameaça a sociedade ocidental’, sendo a maconha ‘o carro-chefe neste cordão, cujo samba-enredo é: sanatório, cadeia ou cemitério.' (BUCHER. 1992, p. 110)

Segundo A. Henman e O. Pessoa: A explicação está toda na palavra maconha, ou melhor, na percepção da falsa consciência decorrente do uso dela pelo poder autoritário. Graças a um obscurantismo secular, já todos devemos saber que o uso da maconha é vício horrível, que leva à completa perdição. (HENMAN; PESSOA, 1986, p. 7)

O proibicionismo das drogas é representado atualmente pela política de “tolerância zero” fundada nas diretrizes da política policial e jurídica de Nova York e que fez desta o

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modelo de doutrina para a maior parte do mundo. Tal política pública passa “às forças da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente a pequena delinquência e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados.” (WAQUANT, 2001, p.25) Isso significa uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, ou até simples ameaças. Da mesma forma enfatiza R. Bucher: Entre as diversas abordagens da ‘questão das drogas’ nas sociedades modernas, destaca-se aquela que enfatiza o seu ‘combate’, apresentando a luta policial e jurídica como a única maneira capaz de enfrentar e erradicar o ‘grave flagelo’. De teor rigorosamente condenatório, essa concepção se caracteriza pela veemência das suas justificativas, mais emotivas e alarmistas do que serenas e objetivas, mais sensacionalistas do que científicas, mais moralistas do que isentas de juízos valorativos. Dessa forma, incita a uma ‘cruzada antidroga’ no melhor estilo das exortações medievais, fixando como meta a conquista de uma terra santa livre de tóxicos. No entanto, essa beligerância, ostentando apelos patrióticos ou pseudo-religiosos, encobre uma série de fatores que, decerto, contribuem decisivamente para a expansão do incômodo fenômeno. (BUCHER, 1996, p. 27)

Abordar a questão através de um enfoque criminalizador e militarizante significa, ainda, não tratar como uma realidade a ser investigada, mas sim transformá-la em um mito fabricado para cumprir determinadas funções sociais, relacionadas com a defesa do sistema hegemônico vigente. Esse mito implica em imputar ao consumo de drogas, nitidamente, a função de “bode expiatório”, fazendo-o aparecer como responsável por grande parte dos revezes sociais. N. Zinberg também acredita nessa tese quando afirma que no caso dos meios de comunicação em massa, a maioria da informação difundida seria contrária à possibilidade do uso de drogas ser controlado. Nos anos 1980, os usuários de drogas foram os únicos vilões dos filmes e seriados mostrados na televisão. (ZINBERG, 1984) Apesar dos riscos e danos, apresentados aos usuários tanto de droga lícita como ilícita, corresponderem a um conjunto de variáveis (dosagem; uso crônico e a saúde do usuário), o aspecto mais enfatizado pela postura antidrogas é em relação aos efeitos fisiológicos das substâncias, o que reduz bastante a interpretação do fenômeno. As definições do termo original “adicção” sem sombra de dúvida se ligam à opinião moral e médica. “O drogado seria, por definição médica, um doente. A partir daí, constrói-se todo um discurso sobre a anormalidade do consumo de drogas e sobre as consequências nefastas para o indivíduo e para a sociedade desse hábito, vício, dependência, etc..” (VELHO, 1981, p. 61) Ao associar ansiedade ao significado do termo, conota-se um senso de fraqueza e desespero

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que levaria ao comportamento anti-social e criminoso. Além disso, está implícita também a ideia de tolerância, que indica um “necessário” aumento do consumo da substância. (...) Drogado é uma acusação moral e médica que assume explicitamente uma dimensão política, sendo, portanto, também uma acusação totalizadora. (...) [isso significa que] (...) contaminam toda a vida dos indivíduos acusados, estigmatizando-os de forma talvez definitiva. (...) percebe-se que nesse caso o aspecto de doença já é dado, faz parte da própria categoria. (VELHO, 1981, p. 60)

Segundo G. Velho, o drogado é visto como “o indivíduo que foge às suas obrigações ou as cumpre mal, sendo, portanto, um elemento improdutivo e parasitário.” (VELHO, 1981, p. 63) Isso porque, em geral, acreditava-se que a droga incapacitaria ou diminuiria a vontade e a competência. No entanto, N. Zinberg atesta que, em sua pesquisa, apesar do fato de todos os usuários experimentarem uma tolerância fisiológica maior com o tempo de uso, os indivíduos diferem consideravelmente nas suas capacidades de lidar com diferentes quantidades de substâncias sem desenvolver tolerância, o que torna difícil entender como a complexidade deste fenômeno não foi detectada pela comunidade científica. (ZINBERG, 1984) Das causas de óbito relacionadas com drogas, mais de 95% são devidas a drogas legais, como álcool e fumo. No entanto, as manchetes da mídia demonstram predileção por matérias sobre as ilegais, usando de hipérboles sensacionalistas que enfatizam a violência em torno do narcotráfico, ou até mesmo a violência supostamente decorrente das drogas e os poucos casos de mortes por overdose. Apesar dos danos relacionados ao consumo de álcool, fumo, psicofármacos e solventes serem socialmente relevantes, a impressão transmitida é de que só a droga ilegal é problemática. Ao transmitir a ideia de que existem duas categorias de substâncias, as perigosas (ilegais) e as outras benignas, a indústria dos psicofármacos beneficia-se diretamente. Além disso, ao acusar desviantes, cria-se todo um sistema de imputação punitiva, que funciona como estratégia para a manutenção de controle social por parte do Estado. Os discursos antidrogas usam recursos de retórica como a persuasão, reiteração e argumento de autoridade capazes de promover o discurso como consensual. Fazendo isso, o Estado, enquanto empreendedor moral, além de promulgar um conjunto de alegações duvidosas e mistificadoras, impede seu dimensionamento correto produzindo uma cortina de fumaça ao redor do pretendido flagelo. “Exercem uma função corroborativa, pois criam um ‘efeito verdade’, números e dados estatísticos. É comum a referência a números ou a

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proporções de grande porte, de forma a alarmar mais do que informar.” (BUCHER, 1996, p. 35) Ao incentivar as intervenções nas diversas áreas institucionalizadas pela ameaça de drogas, é consenso entre os autores aqui citados que a cegueira da posição repressiva radical traz mais estragos do que benefícios, por fazer prevalecer uma visão unidimensional, inapropriada para o trato do fenômeno em toda a sua complexidade. (...) Chega-se a tratar o ‘problema das drogas’ de maneira demasiadamente reducionista, por falta de uma visão abrangente no tocante à dimensão social, histórica e antropológica que o determina. O reducionismo, impregnando em particular as abordagens das numerosas militâncias ‘antidrogas’, constitui-se, assim, em um equívoco grave que resulta na ineficácia quase que total das intervenções idealizadas para ‘resolver’ o problema. (BUCHER, 1996, p. 11)

A maioria das discussões difundidas publicamente focam especificamente o abuso de drogas e as respectivas perdas funcionais tanto na saúde individual, como social. Enquanto alguns usuários sofrem, outros muitos são capazes de consumir periodicamente substâncias “pesadas” de forma moderada e não destrutiva. Além disso, o termo “abuso de drogas” é aplicado continuamente para todos os estilos de uso de drogas, e pouco ou quase nunca tem sido distinguido o abuso do uso controlado. Cientistas, assim como a grande mídia, usam o termo sem definição explícita, nem precisa, ressaltando os valores morais conservadores. A ideologia antidroga age de forma intolerante, servindo como uma plataforma para se implantarem medidas de controle para nivelar as diferentes camadas sociais econômicas e culturais. Os empreendedores dessa ideologia, ademais, projetam-se como benfeitores da moral pública, como protetores dos costumes saudáveis contra a “epidemia das drogas”. Os argumentos utilizados para sustentar a guerra são baseados no reducionismo a um inimigo só que tem toda sua auréola social negativada. O inimigo, usuário ou traficante, continua sendo alvejado com todo aquele reforço retórico que caracteriza tanto o discurso autoritário, quanto as manipulações propagandísticas condicionadoras da opinião pública. O próprio ‘mito do maconheiro’ constitui um paradigma tenaz, resistente a mudanças, apesar de todas as mudanças constatadas nos padrões internacionais de consumo. Ele tem funções bem delineadas, representando uma das peças-chave da tristemente célebre pedagogia do terror, ainda hoje aplicada em uma série de intervenções apresentadas como ‘preventivas’. (BUCHER, 1996, p. 61)

A questão subjacente a essas visões é: será que as drogas são uma epidemia a ser combatida, ou será que elas perfazem um mito fabricado por certas instâncias interessadas em

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mistificá-las, com o intuito de obscurecer outros problemas sociais mais prementes? Tal estratégia política utiliza argumentos de ordem emocional, passional, moralista ou sensacionalista, ressaltando aspectos chocantes e alarmantes. Estes, além de serem co m frequência exagerados, tornam-se inverídicos na medida em que extrapolam a realidade prática. Encetadas por determinados formadores de opinião, tais campanhas contribuem então para disseminar pânico ao invés de lucidez; rejeição ao invés de compreensão, solidariedade e novas formas de assistência; preconceito ao invés de enfrentamento racional e corajoso; aproveitando-se dos equívocos que sustentam tais investidas religiosobelicistas, elas misturam e condenam drogas e Aids, apresentados sob o espectro da ameaça ao equilíbrio do sistema social, se não da paz entre os povos. (BUCHER, 1996, p. 88)

Segundo N. Zinberg, drogas geram problemas, porém não devemos atribuir-lhes capacidade de dano social maior ou menor do que os provenientes do suicídio, doenças cardíacas, prostituição, jogo, acidentes de trânsito ou uso de armas de fogo, por exemplo. As drogas têm sido vistas como causa de qualquer problema. Ou seja, há uma espécie de "satanização" do uso de certas drogas. Como se o papel do usuário de drogas na atualidade fosse semelhante ao das bruxas em séculos passados. (1984) No ocidente, o surgimento das primeiras políticas proibicionistas ocorreu de forma mais intensa no momento em que o consumo de drogas passou a ser reconhecido pela comunidade médica como algo perigoso à saúde humana. A cruzada puritana foi muito determinante para se consolidar a ideia de um constante aumento do uso maléfico de determinadas substâncias em detrimento do importante lugar de Deus. O anuncio amedrontador proposital resultou na intensificação da repressão e do controle sobre as drogas por meio de políticas criminalizadoras que restringiam o consumo de algumas substâncias alteradoras do estado de consciência. O objetivo do Estado criminalizador sempre foi reorganizar a (infra e a) estrutura da polícia contra o inimigo que no caso é o pobre. “O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias e superiores - as que votam - por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.).” (WACQUANT, 2001, p. 26) A doutrina da “tolerância zero”, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. O incentivo à guerra às drogas proporciona aos políticos de cada um dos países importadores autorizar o Estado “(...) punir os ‘distúrbios’ e, ao mesmo tempo, isentar [o

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Estado] de suas responsabilidades na gênese social e econômica da insegurança para chamar à responsabilidade individual os habitantes das zonas ‘incivilizadas’.” (WACQUANT, 2001, p. 30) (grifo do autor) Na medida em que se tornou um tema vinculado à noção de risco, o consumo de drogas passou a ser controlado, sobretudo, pelos saberes médicos tradicionais que produziam os discursos com maior alcance nas sociedades modernas. Esse controle foi denominado por M. Foucault de governamentalização que significa justamente esta institucionalização do modo intensificado de controle por parte do Estado em relação a toda sua população. “Segundo M. Fiore (2008), o debate público sobre o uso de drogas acabou incorporando a noção de risco como ameaça e perigo, mesmo no momento em que este assunto já estava sendo dominado pela perspectiva da medicalização.” (ROSA, 2014, p. 376) Foi a partir da intensificação desse discurso jurídico decorrente de certo saber sobre a saúde do corpo que o discurso médico passou a conquistar espaços cada vez maiores, sobretudo, quando, por lei, se destinou a ele um papel fundamental na solução de problemas sociais do país. Assim, certos casos que hoje são vistos como desvio social produzidos pela própria sociedade passaram a ser tratados como patologias. Com isso, se iniciou uma série de experiências sobre diferentes tipos de tratamento ao longo da década, com forte atuação de comunidades terapêuticas de fundamentalismo religioso. Esse processo de intensificação do controle sobre as drogas liderado por setores religiosos e pela medicina, que passou a exercer influência na elaboração e implementação de políticas públicas, acabou resultando na criminalização da produção, do comércio e do consumo de uma variedade de substâncias psicoativas, justificadas pelos possíveis danos que causam não apenas a saúde física, do corpo, mas a saúde da sociedade, uma vez que não são apenas responsáveis pelos prejuízos e doenças fisiológicas, mas também são culpados por variados conflitos sociais, a exemplo do chamado tráfico de drogas. As análises dos mecanismos de poder envolvidos no discurso de combate às drogas indicam formas de um processo disciplinar referentes a um contexto autoritário, discriminatório e repressivo. Esta ideologia antidrogas investe na sujeição do cidadão a um determinado ideário falacioso de harmonia social, ajudando a encobrir as contradições inerentes às sociedades modernas e sustentando relações de força estabelecidas entre certos grupos sociais. Nesse sentido, J. C. Adiala enfatiza que a presença da droga na sociedade não se deve somente às propriedades químicas especiais dessas substâncias, “mas sim às suas

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propriedades simbólicas, seu efeito cultural.” (ADIALA, 1986, p. 01) Em O Problema da Maconha no Brasil, o autor aponta “a estreita relação existente entre a construção do uso da maconha em um problema público e a mitologia racial que permeia as relações sociais no Brasil.” (ADIALA, 1986, p. 2) Segundo o autor, a maconha seria o grande mal para a sociedade da época, destacando as origens dessa crença como mais culturais do que farmacoquímicas. Ao analisarmos em detalhe a construção do ‘problema da maconha no Brasil’, veremos que a sua existência atesta exatamente o sucesso da campanha anti-entorpecentes, ao possibilitar o desempenho de uma estratégia de ‘normalização’ social, implementada a partir do investimento de uma parcela específica da população no sistema punitivo disciplinar, expondo-a ao tratamento dos hospícios e das penitenciárias. (ADIALA, 1986, p. 5)

Assim, o Problema da Maconha no Brasil é visto pelo prisma da manutenção de esteriótipos racistas. “A construção do problema, assim visto, prestou enorme contribuição à consolidação de uma posição de dominação política e econômica da população negra.” (ADIALA, 1986, p. 20) Por exemplo, ao proibir o “pito do pango”, um traço cultural e um costume frequente entre negros e grupos de mestiços que habitavam os espaços urbanos do século XIX (DE SOUZA, 2012), tornava esse seguimento da população automaticamente suspeito e potencialmente sujeito à arbitrariedades policiais. Denta forma enfatizam A. Henman e O. Pessoa: “Enfim, existia a possibilidade de se criar um consenso monolítico em torno da repressão à maconha, já que as vítimas seriam os sem-voz e sem-vez - as ‘camadas mais baixas’.” (HENMAN; PESSOA, 1986, p. 9) A. Henman destaca que o objetivo desta proibição foi “minimizar o sentido cognitivo que o costume de ingerir uma determinada droga pode ter para o seu usuário, reservando-se para este o papel passivo de um ‘problema’ a ser tratado pelos especialistas do ramo.” (HENMAN, 1986, p. 93) Segundo M. Foucault, a cultura do perigo imperaria nos serviços públicos, na saúde e na doença, campos que incidem diretamente sobre os usuários de drogas (APUD ROSA, 2014). O antropólogo A. Henman raciocina de maneira similar: “No fundo, não se procura solucionar um problema de saúde pública, e sim assegurar a representação de uma ‘verdade’ científica, monolítica e intolerante, que ao mesmo tempo reflete e justifica o autoritarismo da estrutura política no plano maior.” (HENMAN, 1986, p. 109) Deste modo, esta cultura do perigo levaria os indivíduos à aceitação de um controle externo, mesmo que sejam intervenções governamentais de modo autoritário. No caso das

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drogas atualmente consideradas ilícitas, que foram sendo progressivamente responsabilizadas pelas mais variadas formas de violência física e simbólica, é perceptível a violação de direitos referentes às práticas culturais milenares, em nome dos direitos humanos. Refletindo sobre esse fenômeno, o antropólogo Anthony Henman aponta: Não foi por mera coincidência que essa proibição acabou sendo promulgada justamente naquele momento, quando uma crescente demanda pela maconha nas cidades vinha encorajando muitos pequenos produtores a aumentar sua produção bem além do padrão tradicional de auto-suficiência. (HENMAN, 1986, p. 96)

No caso do Brasil, em 1934, o uso da maconha no Rio de Janeiro já ocupava bastante tempo e esforço da polícia. A associação da maconha com a criminalidade e a “escória da sociedade” inaugurou uma nova época para a campanha antitóxicos. Em 1936, com o Decreto-Lei nº 780, foi criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), presidida por Roberval Cordeiro de Faria. (ADIALA, 1986) A partir dos anos 40, a maconha passa a ser alvo da campanha antitóxicos e a CNFE a principal promotora dessa campanha no Brasil. A descoberta do tóxico das populações pobres fez com que a CNFE elegesse a maconha como a ‘droga’ por excelência, aquela que confirmava as preocupações eugenistas. Sua disseminação entre as classes criminosas alienadas era o testemunho de que as medidas preventivas adotadas foram realmente necessárias. Ao eleger a maconha como a ‘droga’, a CNFE criou a oportunidade de unificar, em nível nacional, a luta contra os entorpecentes. (ADIALA, 1986, p. 23)

1.4 Políticas proibicionistas e os seus danos. Apesar do fenômeno de uso de drogas ilícitas ser frequente em ambientes de lazer dos centros urbanos, o Estado encara o uso dessas substâncias psicoativas como um grande risco. A ideia de que o consumo de cocaína, crack e até mesmo maconha é em si danosa para a ordem harmoniosa da sociedade implicou em adotar-se uma política proibitiva e repressora. Esta metodologia de combate e enfrentamento à circulação destes bens de consumo (de valor de mercado elevado) significa uma forma de governamentalização da sociedade analisada por P. O. Rosa, em seu livro. Ele propõe analisar os diferentes dispositivos de poder que operam sobre as drogas por meio das políticas de redução de danos sintetizados pela genealogia foucaultiana que procura captar as diferentes forças que se encontram em conflito no jogo da história.

54 Neste trabalho defendo a tese de que as diferentes tecnologias de poder que incidem no controle sobre as drogas são operadas por meio de um dispositivo diplimático-militar, sobretudo, por um dispositivo político de polícia que atua através da medicina, do direito, da moral, da economia, da política etc. Por conseguinte, parto do pressuposto de que a circulação das drogas incide não apenas na segurança pública, mas também em outras instâncias que a relacionam, amparadas na saúde, nos viveres e nos objetos de necessidade, atuando sobre a própria população por meio da governamentalização de verdades sobre esta questão. (ROSA, 2014, p. 274)

M. Foucault, quando analisou a governamentalização do Estado, percebeu certa tendência à alteração de tecnologias de poder que estavam deixando de disciplinar os corpos dóceis e iniciando um processo de investimento do controle sobre os indivíduos. Segundo ele, estratégias de saber-poder foram sendo utilizadas pelo Estado propiciando uma nova arte de governar cuja finalidade era a população que, através de dispositivos de segurança, era controlada. No século XVIII, o Estado começou a se incumbir do bem-estar físico dos cidadãos, tratando a saúde e a medicina como problemas econômicos. Esta política da medicina, segundo M. Foucault, evidencia a ascensão não de uma teocracia, mas de uma somatocracia que emergiu de um regime que tinha como finalidade a intervenção estatal fundamentada no cuidado do corpo, na saúde corporal, na relação entre doença e a saúde etc. Com o desenvolvimento dos antibióticos, a medicina tornou-se mais eficaz contra certas doenças infecciosas. Este progresso tecnológico proporcionou uma mudança política, econômica, social e jurídica da medicina, na medida em que foi a partir deste momento que se pôde constatar a manifestação simultânea de dois fenômenos: o avanço tecnológico, que desencadeou um progresso significativo na luta contra determinadas doenças, e um novo funcionamento político e econômico da medicina. Por mais que tivesse se desenvolvido intensamente, os seus benefícios decorrentes da emergência destas novas tecnologias da saúde pública permaneceram estagnados para a maior parte da população. Com a expansão farmacológica alavancada pela alta produção de drogas no século XIX, surgiu a necessidade de se controlar e regulamentar a venda e consumo das mesmas. No entanto, é importante destacar que o controle sobre a circulação desses produtos tão importantes na história da humanidade perpassa por interesses econômicos, políticos, culturais e, sobretudo, morais. “Refletindo sobre a proibição do consumo de determinadas drogas ao redor do planeta, é possível constatar que ela não decorre necessariamente da restrição ou controle do efeito dessas substâncias específicas, mas da forma com que são

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utilizadas.” (ROSA, 2014, p. 61) (grifo nosso) Assim, o controle sobre determinados hábitos de parcela da população passou a ser de corporações policiais, teorias médicas, psicólogos industriais, administradores científicos, dentre outros. Ao se defrontar com o socialismo e com o welfare-state, o capitalismo promoveu uma forma ‘democrática’ de intervenção estatal que fez com que o neoliberalismo e a difusão inevitável deste modelo de democracia, baseada na economia livre de mercado, intervisse governamentalmente, criando a autoritária política de tolerância zero responsável pela intensificação do controle, dos encarceramentos, confinamentos e ameaças, deixando de garantir aqueles direitos sociais contemplados no Estado de Bem-Estar Social. (ROSA, 2014, p. 400)

No âmbito da saúde, dentre as diversas verdades e saberes, sobretudo a medicina moderna, também utilizou-se de dispositivos de poder com a criação de tecnologias de controle sobre a população. “As tentativas de homogeneizar um modelo único de saúde, as ideias referentes ao consumo saudável, qualidade de vida e autocontrole sobre os corpos e almas, talvez sejam exemplos deste processo de subjetivação que engendraram governamentalidades.” (ROSA, 2014, p. 342) Uma das estratégias mais eficazes para o controle social é a proibição das drogas. A situação de ilegalidade de uma variedade de substâncias psicoativas é um acréscimo tático à roda totalizadora do sistema punitivo contemporâneo. “Ao agregar recursos e potencialidades de ações ao Estado, o ‘proibicionismo registrou um rápido desenvolvimento, sendo hoje o padrão mundial no tratamento legal das drogas psicoativas’” (RODRIGUES, 2004: 134 APUD ROSA 2014), resultando na consolidação da proibição e seus componentes políticos, econômicos e, sobretudo, morais. No caso do Brasil, o Estado alinhou seu discurso aos diversos empreendedores morais para tentar eliminar o costume do uso de drogas. A. Henman e O. Pessoa destacam muito bem a importância do discurso do médico Rodrigues Dória, no início do século XX, para legitimar a necessidade de políticas proibicionistas no país. Aproveitando o clima médico de hostilidade ao uso livre de drogas e à automedicação em geral, Rodrigues Dória simplesmente transferiu à figura do diambista o quadro patológico do viciado em ópio. A transferência foi muito bem aceita no Brasil por dois motivos: primeiro, não existia na época setor letrado algum que defendesse ou mesmo compreendesse os padrões de consumo popular da diamba (...) e, segundo, a associação da diamba com os ex-escravos fornecia à elite social nordestina a mais perfeita ocasião para manifestar os seus sentimentos racistas, fazendo eco à anterior proibição do uso do ‘pito-do-pango’ por negros no Rio de Janeiro, em 1830. (HENMAN; PESSOA, 1986, p. 8)

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Nessa mesma linha de raciocínio, P. O. Rosa explica numa perspectiva foucaultiana o domínio do discurso médico e paralelamente a mudança de governamentalidade do Estado na modernidade. Esta perspectiva é interessante para esta tese na medida em que mostra as transformações das políticas publicas e o aumento do controle do corpo dos indivíduos pelo Estado. A proibição da produção, do comércio e do uso de drogas está permeada muito mais por questões morais do que por questões referentes à saúde e a segurança pública. “Trata-se de uma governamentalização das drogas, de uma biopolítica que apresenta verdades que devem ser elucidadas à população e não mais reproduzidas de forma com que ocorrem hodiernamente.” (ROSA, 2014, p. 52) Já há algum tempo, o uso de drogas tem sido tratado pelas sociedades ocidentais como uma questão restrita à medicina. Apesar do desenvolvimento de diferentes teorias explicativas e de práticas de redução de danos, existe o domínio do discurso médico sobre o assunto. Por mais que existam consideráveis tentativas de compreender os fenômenos relacionados às drogas através de certas tradições teóricas ligadas às questões culturais, os discursos médicos acabam sendo reconhecidos como as únicas verdades porque são legitimados pelo Estado. Estas tecnologias de poder são utilizadas pelos profissionais de saúde, sobretudo por médicos e psiquiatras quando diagnosticam e propõem aos pacientes certas terapias “contaminadas” por suas visões de mundo e juízos de valor incorporados como verdades e que ficam aquém da proposta de tratamento. As sociedades capitalistas ocidentais contemporâneas, designadas por M. Foucault de sociedades de segurança ou de normalização, surgiram a partir do momento em que todas as suas atividades “passaram a ser tratadas como possíveis formas de se obter ganhos financeiros, ou seja, a partir do momento em que os usuários de drogas passaram a ser tratados como capital humano.” (ROSA, 2014. p. 395) As relações da saúde e da medicina com a economia instauraram uma verdadeira economia política da medicina que passou a formular um novo direito e uma nova política do corpo. A meu ver, para a história do corpo no mundo ocidental moderno, deveriam ser selecionados esses anos 1940-1950 como datas de referência que marcam o nascimento desse direito, dessa nova moral, dessa nova política, dessa nova economia do corpo. Desde então, o corpo do indivíduo se converte em um dos objetos de que o próprio Estado deve encarregar-se. (FOUCAULT, 2010d: 171 APUD ROSA, 2014, p. 179)

O uso abusivo de drogas, que tem sido assumido pela medicina como um problema médico há bastante tempo, reforça a disciplina e controle sobre os corpos, conforme essa

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análise (FOUCAULT, 1997 APUD ROSA, 2014, p. 65) Portanto, estas tecnologias de poder acabam propondo que os sujeitos deixem de ter responsabilidades sobre suas vidas na medida em que passam a aceitar inquestionavelmente as prescrições médicas não apenas sobre a saúde de seu corpo, mas sobre suas ações diárias. “Assim a política passou a encontrar-se na condição de biopolítica, no momento em que tomou a saúde e a vida como objetos de intervenção preventiva plena.” (ROSA, 2014, p. 66) No século XIX, houve uma forte escalada intervencionista em todo o mundo onde o Estado preocupou-se em intensificar a disciplinarização dos corpos através da medicalização das populações. Dados estatisticamente analisados buscavam então a eugenia social, assim como a higiene social e moral, na medida em que procuravam evitar a deterioração racial causada supostamente pelos degenerados hereditários e pelas drogas. Assim, o surgimento da biopolítica, como empreendedor moral influente sobre as políticas de drogas, só foi possível através do controle epidemiológico proveniente do aparecimento da estatística, que operava por meio de dispositivos de normalização responsáveis pelo controle das condutas e dos comportamentos em sociedades. (ROSA, 2014) A governamentalização da razão de Estado e da necessidade das práticas policiais, tanto no campo da saúde, quanto da segurança pública institucionalizada, resultou em certa incorporação e reprodução da necessidade do disciplinamento, do controle e da normalização das ações humanas. Como a governamentalização da razão do Estado pressupõe a assimilação de verdades, a questão do bem viver, que hoje passa a ser pensado em termos daquilo que chamamos de qualidade de vida, acaba abarcando também a questão da proibição e do controle de certas substâncias psicoativas. (ROSA, 2014) Em agosto de 1986, o presidente R. Reagan declarou publicamente que as “drogas eram o problema número um do país” e que “a guerra deveria começar dentro de casa”. Buscando solucionar este problema, ele apresentou um programa, que objetivava eliminar as drogas dos Estados Unidos, pautado em seis princípios: Eliminar as drogas ilegais dos locais de tratamento efetivos para os consumidores crônicos; melhorar a cooperação internacional para evitar a entrada de drogas ilegais, intensificando a aplicação da lei; ampliar a punição destes crimes, e aumentar o conhecimento do público sobre as políticas de prevenção do abuso de drogas. O poder investido na saúde da população por meio de uma polícia médica possibilitou o desenvolvimento de determinadas práticas de segurança pública baseadas em aspectos repressivos que procurava restringir e controlar a ação de certos grupos em nome da

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ciência. Em outras palavras, foi através da governamentalização da saúde que determinadas práticas repressivas emergiram em nome da segurança pública, incidindo intensamente sobre a vida das pessoas e sobre quaisquer ações por elas provocadas. (ROSA, 2014) Portanto, a polícia médica foi um importante dispositivo de poder desenvolvido e utilizado nos primórdios da medicina social que passou a exercer um controle intenso sobre os corpos por meio de tecnologias instauradas pelo Estado que foram incorporadas, assimiladas e reproduzidas pela população como verdades. Para a polícia, a saúde deixou de ser um problema epidêmico, tratado somente em casos de doenças contagiosas, na medida em que atingiu cotidianamente as pessoas através de intervenções permanentes sobre a população; a polícia passou a incidir não apenas sobre tudo o que possa evitar doenças, mas sobre tudo o que proporcionasse uma melhoria nas necessidades da vida. Deste modo, a saúde cuidada por este dispositivo político de polícia se ocupará das cidades, do ar, do arejamento, da ventilação, etc., proporcionando uma alteração política do espaço urbano promovida por diversas mudanças que atingem a largura das ruas, a dispersão dos elementos que podem produzir miasmas e envenenar a atmosfera, os açougues, os matadouros, os cemitérios; ou seja, esta política do espaço urbano ligará a polícia ao problema da saúde. (FOUCAULT, 2008a: 436 APUD ROSA, 2014, p. 273)

A medicina tem se apropriado e utilizado de forma autoritária e normalizadora para além da existência das doenças e da demanda do doente. No século XX, os médicos promoveram uma visão da sociedade fundada não na lei especificamente, mas na norma. “Portanto, o que rege a atual sociedade não são apenas os códigos, mas a perpétua distinção entre normal e anormal e o perpétuo empreendimento de restituir o sistema de normalidade.” (ROSA, 2014, p. 180/181) Para M. Foucault, essa nova arte de governar passou a se tornar uma das funções da soberania. “Contudo, ela consistirá não em restituir e manter certa essência fidedigna, mas em manipular, manter, distribuir e restabelecer relações de força em um espaço de concorrência que implica em crescimento competitivo.” (FOUCAULT 2008a APUD ROSA, 2014, p. 270/271) 1.5 O neoliberalismo e a expansão da criminalização da pobreza em todo o mundo. A guerra às drogas, lançada por Ronald Reagan, e ampliada desde então por seus sucessores, se traduz pelo abandono do ideal da reabilitação e a multiplicação dos dispositivos ultra-repressivos. Ao mesmo tempo que o modelo contemporâneo capitalista se configurava, diversas mudanças no âmbito jurídico penal também foram implantadas como: generalização

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do regime das penas fixas e irredutíveis; elevação do limite de execução das sentenças pronunciadas; perpetuidade automática no terceiro crime; além de punições mais rigorosas para os atentados à ordem pública. Tais mudanças foram adotadas pela grande maioria dos países do mundo e levaram a uma explosão carcerária na Europa e posteriormente no Brasil. Propaga-se na Europa um novo senso comum penal neoliberal, articulado em torno da maior repressão dos delitos menores e das simples infrações, o agravamento das penas, a erosão da especialidade do tratamento da delinquência juvenil, a vigilância em cima das populações e dos territórios considerados ‘de risco’, a desregulamentação da administração penitenciária e a redefinição da divisão do trabalho entre o público e o privado, em perfeita harmonia com o senso comum neoliberal em matéria econômica e social, que ele completa e conforta desdenhando qualquer consideração de ordem política e cívica para estender a linha de raciocínio economicista, o imperativo da responsabilidade individual e o dogma da eficiência do mercado ao domínio do crime e do castigo. (WACQUANT, 2001, p. 136)

As teses de segurança inculcadas nos Estados Unidos, a partir da década de 1970, a fim de “educar” o cidadão na disciplina do novo mercado de trabalho, encontram anuência das autoridades dos diversos países, incluindo o Brasil. Um novo ethos punitivo é necessário para justificar a escalada do Estado penal para o estabelecimento da (nova) ordem “depois de terem se convertido aos benefícios do mercado (dito livre) e à necessidade de ‘menos Estado’ (social, é claro).” (WACQUANT, 2001, p. 52/53) A lógica neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social. O curioso e intrigante é que “a comparação internacional mostra que não existe nenhuma correlação entre nível de crime e nível de encarceramento.” (WACQUANT, 2001, p.12). Em outras palavras, não é através do aumento da punição e consequentemente dos índices de encarceramento que será resolvido o problema da criminalidade. A manobra aplicada pelo Estado neoliberal, em nenhum momento, não é percebida como “a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do primeiro, como do segundo mundo.” (WACQUANT, 2001, p. 7) Para o autor de As Prisões da Miséria, isso não seria uma “simples coincidência”. A conversão ideológica das elites europeias ao mercado-total, inspirada nos Estados Unidos, “sugere” que “é preciso aumentar e reforçar suas missões em matéria de ‘segurança’, subitamente relegada à mera dimensão criminal.” (WACQUANT, 2001, p. 7) Por outro lado, para os países ditos em desenvolvimento, a situação é um pouco diferente. Por ter sido escrito há uma década, e em outro contexto, a tese levantada por L. Wacquant de uma mundialização

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da criminalização da pobreza deve ser comprovada em relação a sua pertinência ao Brasil atual, já que a teoria levantada na época da sua escrita se confirma na realidade do país anos após a sua elaboração. Segundo L. Boiteux, a intensificação da repressão teve como consequência a superlotação carcerária em virtude do endurecimento marcante e intencional da resposta penal ao comércio de drogas, provocando um aumento da população carcerária no país nos últimos anos. "(...) conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (2014): em 2014 cerca de 27% da população estava presa por este crime, enquanto que, em 2005, antes da entrada em vigor da Lei n.º 11.343, este percentual era de apenas 9,10% (...)" (BOITEUX, 2016, p. 373/374) Além disso, esse modelo de política penal confirmou ser bastante útil em países onde a desigualdade social é consideravelmente elevada. No entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século. (WACQUANT, 2001, p. 7)

Essa mudança de objetivo e de resultado configura o abandono do ideal de reabilitação e de sua substituição por uma nova penalogia, cujo objetivo não é mais nem prevenir o crime, nem tratar os delinquentes visando o seu eventual retorno à sociedade uma vez sua pena cumprida, mas isolar grupos considerados perigosos mediante uma forma específica de gestão da sociedade. Mas como uma medida policial desprovida de justificação plausível consegue se generalizar em todo o mundo? Segundo Loic Wacquant, através do pretexto “‘sucesso’ dos outros na matéria para adotar uma técnica de vigilância e extensividade que, embora fracasse por toda parte, encontra-se de fato validada em virtude de sua própria difusão.” (WACQUANT, 2001, p. 56) É através de intervenções e publicações de caráter universitário e intelectual que são reformuladas essas categorias. Apesar de não terem bases empíricas, são suficientemente atraídas pelas esferas de decisão políticas e manchetes jornalistas. Dito com outras palavras, diante da insegurança vendida de forma sensacionalista pelos meios de comunicação, ratificase a deserção do Estado social e legitima-se o fortalecimento do Estado penal nos bairros. (WACQUANT, 2001) Em período de dificuldades fiscais (causada pela forte baixa dos impostos para as empresas e as classes superiores), o aumento dos orçamentos e do pessoal destinado ao sistema carcerário só foi possível quando foram cortados os benefícios sociais de saúde e

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educação. De fato, construiu-se para os pobres casas de detenção em lugar de creches e escolas. Ou seja, a criminalização da pobreza, enquanto política indireta de Estado, ocasionou um forte crescimento das taxas de encarceramento em todo o mundo. A quantidade de condenados por contenciosos não violentos reclusos nas casas de detenção e nos estabelecimentos penais rompeu sozinha cifras históricas. Para exemplificar a tendência mundial, L. Wacquant faz uma curiosa estimativa: “Se fosse uma cidade, o sistema carcerário norte-americano seria hoje a quarta maior metrópole do país.” (2001, p.81) Assim, a industria da carceragem torna-se atualmente um empreendimento próspero e de futuro radioso. Além disso, o modelo de política de tolerância zero atinge quase que exclusivamente jovens, negros, de periferia e de baixa escolaridade e instrução. Penalizar a miséria significa tornar invisível o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval do Estado. “Nas prisões dos condenados, seis penitenciários em cada 10 são negros ou latinos; menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades e dois terços provinham de famílias dispondo de uma renda inferior à metade do ‘limite de pobreza’.” (WACQUANT, 2001, p. 83) Em outro momento, L. Wacquant enfatiza: “(...) temos o ‘escurecimento’ contínuo da população detida, que faz com que, desde 1989 e pela primeira vez na história, os afro-americanos sejam majoritários entre os novos admitidos nas prisões estaduais, embora representem apenas 12% da população do país.” (WACQUANT, 2001, p. 93) Um homem negro tem mais chance de purgar na prisão que um branco. Essa desproporção racial é ainda mais pronunciada entre os jovens, primeiro alvo da política de penalização da miséria. Nas grandes cidades, essa proporção aumenta nas regiões de gueto. Com efeito, o aumento rápido e contínuo da distância entre brancos e negros não resulta de uma súbita divergência em sua propensão a cometer crimes e delitos. Ele mostra acima de tudo o caráter fundamentalmente discriminatório das práticas policiais e judiciais implementadas no âmbito da política ‘lei e ordem’ das duas últimas décadas. (WACQUANT, 2001, p. 94/95)

Desta forma, a política de tolerância zero apresenta duas fisionomias diametralmente opostas: o alvo (negro) de um lado; e do outro o beneficiário (branco). (...) Em vários estados, como no de Nova York, o contingente de prisioneiros de cor é hoje nitidamente superior ao dos estudantes de cor inscritos nos campi das universidades públicas. O controle punitivo dos negros do gueto pelo viés do aparelho policial e penal estende e intensifica a tutela paternalista já exercida sobre eles pelos serviços sociais. E permite explorar e alimentar ao mesmo tempo - a hostilidade racial latente do eleitorado e seu

62 desprezo pelos pobres, com um rendimento midiático e político máximo. (WACQUANT, 2001, p. 95)

Longe de resolver os problemas de desregulamentação e falência do setor público, o projeto neoliberal garante a irreversível ascensão do Estado penal em todo o mundo. Isso significa a implementação de uma política de criminalização da miséria que é complemento indispensável da imposição do trabalho assalariado precário como obrigação cívica, assim como o desdobramentos dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo. O peso financeiro do encarceramento em massa como política de luta contra a pobreza mostra-se exorbitante, em virtude do aumento contínuo e do envelhecimento acelerado da população penitenciaria, assim como do elevado custo unitário da detenção. (WACQUANT, 2001) Segundo M. L. Karam, a política proibicionista, criminalizadora de condutas relacionadas à produção e de punição à distribuição e ao consumo de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas conhecidas é hoje um dos mais poderosos instrumentos utilizados nesta ampliação do poder do Estado de punir. (2003) A previsão do que se costuma chamar de bens jurídicos de controle, que apelam para expressões vagas, como ordem pública, paz pública e outras do gênero, ignora esta indispensável vinculação a direitos concretos dos indivíduos, desviando a atenção do direito penal para a criminalização de condutas que atingem tão somente a mera afirmação da vontade ou da autoridade do Estado. Vinculando-se unicamente a razões do Estado e, assim, desvinculando-se da função maior de garantia dos direitos individuais, esta previsão de bens jurídicos de controle mostra-se incompatível com o Estado Democrático de Direito. (KARAM, 2003, p.51)

Assim, o sistema penal contribui para regular os seguimentos inferiores do mercado de trabalho. A proliferação das casas de detenção contribuiu diretamente para alimentar o aumento dos tráficos ilícitos (drogas, prostituição, receptação). Concebida para os pobres, a prisão serve como uma escola do crime e também para empobrecer aqueles que lhe são confinados e seus próximos, sem garantir perspectivas positivas no futuro. À maneira de um revelador químico, essa experiência faz igualmente brotar com clareza a face oculta do Estado como organização coletiva da violência visando a manutenção da ordem estabelecida e a submissão dos dominados. Violência que, nesse caso, ressurge subitamente, maciça, metódica e com um objetivo preciso, justamente sobre aqueles que podem ser descritos como os inúteis ou os insubmissos da nova ordem econômica e etno-racial que se instala além-Atlântico, e que atualmente os Estados Unidos oferecem como padrão ao mundo inteiro. (WACQUANT, 2001, p. 101)

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As exigências orçamentárias e a moda política do “menos Estado” levam também à mercantilização da prisão. Várias jurisdições já colocam boa parte de seus detentos em prisões

privadas

e

subcontratam

firmas

especializadas

para

o

acompanhamento

administrativo. Essa é uma forma bastante sutil de tornar os pobres e os prisioneiros rentáveis, tanto no plano ideológico como no econômico, formando um complexo comercial carcerárioassistencial. Tudo indica que essas empresas não deixarão de cruzar a Mancha e suas consortes dos Estados Unidos, o Atlântico, a partir do momento em que conseguirem provar que a privatização das prisões ‘se paga’, a exemplo daquelas da industria, da energia, dos seguros e dos negócios bancários, e sobretudo que a única capaz de gerar e depois gerir as capacidades de aprisionamento requeridas para conduzir sem rodeios a flexibilização do trabalho e a penalização da precariedade. (WACQUANT, 2001, p.140)

A medida que o funcionamento interno dos estabelecimentos penais tornou-se cada vez mais dominado pela austeridade e segurança, o objetivo de reinserção se reduziu a mero slogan de marketing burocrático. Esse desenvolvimento não deriva unicamente de uma impotência patente perante a delinquência, mas sim “exprimem uma tendência de fundo à expansão do tratamento penal da miséria, que, paradoxalmente, decorre precisamente do enfraquecimento da capacidade de intervenção social do Estado.” (WACQUANT, 2001, p.141) Assim como nos EUA e na Europa, o Brasil experimentou um crescimento espetacular da repressão policial nos últimos anos, apesar de não atingir os efeitos almejados. De fato, o aparelho carcerário brasileiro serve somente para agravar a instabilidade e a pobreza das famílias e para alimentar a criminalidade. Somos levados a concordar com L. Wacquant quando diz que desenvolver o Estado penal, para responder às desordens da desregulação da economia, é estabelecer uma ditadura sobre os pobres, da mesma forma que “(...) o recurso às técnicas e políticas punitivas de segurança made in usa é essencialmente antitético ao estabelecimento de uma sociedade pacífica e democrática, cuja base deve ser a igualdade de todos diante da lei e de seus representantes.” (WACQUANT, 2001, p. 10) (grifo do autor)

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2. A questão das drogas e a Antropologia Urbana. Levantada a discussão em torno do referencial teórico sobre a questão das drogas, a problemática dos espaços legalize necessita levar em conta discussões da Antropologia Urbana. Isso significa que é mister, neste momento, uma análise e reflexão de categorias, como: “cidade”, “espaço público/privado”, “território”, “territorialidade”, “pedaço”, “mancha”, “trajeto”, “circuito”, etc. Para melhor construir a linha argumentativa, tentaremos discutir as principais análises dentro deste ramo da Antropologia e refletir sobre as teorias e seus autores, fazendo relações paralelas com a categoria nativa legalize. Assim, pretendemos, com esta reflexão, ajudar na analise e construção teórica dos conceitos citados acima, e, para além disso, almejamos fazer um imprescindível intercâmbio entre a Socio-Atropologia do Uso de Drogas e a Antropologia Urbana. Para analisar a questão central desta tese (qual seja, a relação cultural entre o fenômeno do consumo de drogas lícitas e ilícitas, e o habitar a cidade), dois recortes foram selecionados dentro do referencial teórico: a questão do lazer, e a questão do espaço/território ou espacialidade/territorialidade. Neste caso, a ideia seria problematizar mais a questão do lazer nos espaços urbanos, ou seja, descrever a relação íntima entre o lazer na cidade e o fenômeno de consumo, tanto privado, como público (ou explícito) de drogas lícitas e ilícitas. Para isso, este trabalho acrescenta a categoria nativa legalize na literatura específica, pois esta se demonstra importante para que a pesquisa do uso recreativo de drogas em espaços urbanos passe pelo crivo da Antropologia das Sociedades Complexas. A cidade (...) não só admite e abriga grupos heterogêneos (seja do ponto de vista de origem étnica, procedência, linhagens, crenças, ofícios, etc.), como está fundada nessa heterogeneidade, pressupõe sua presença: ‘Seja do tipo que for, a diversidade produzida pelas cidades reside no fato de conter tantas pessoas, tão perto umas das outras e ostentando tão diferentes gostos, habilidades, necessidades, suprimentos e excentricidades.’ (JACOBS, 1992: 147) Desta forma, ao possibilitar um sistema mais amplo de trocas e contatos entre estranhos, amplia os horizonte dos grupos familiares, domésticos, de vizinhança ou quaisquer outros fundados em laços de confiança pessoal e conhecimento direto. (MAGNANI & TORRES, 1996, p. 25)

Neste sentido, a Metrópole é um campo de pesquisa bastante privilegiado 2 para demonstrar o quão relacionado está o fenômeno do lazer urbano com o consumo público (e privado) de

2

No caso desta pesquisa, estudamos o uso de drogas em espaços públicos urbanos, no entanto, outra pesquisa acadêmica também se demonstraria rica nos espaços não urbanos, ou semi urbanos,

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drogas justamente porque é palco de uma grande diversidade e heterogeneidade de grupos e redes de grupos que se misturam ao ocupar os diferentes equipamentos urbanos. A tese aqui levantada é de que essa heterogeneidade é também composta pelos usuários de substâncias psicoativas em geral. Como aponta J. G. Magnani a cidade abarca diferentes e variados cenários e circuitos e cabe a Antropologia investigar adequadamente quais são suas características e culturas singulares para entender melhor sua peculiar heterogeneidade enquanto campo etnográfico. . Para além da nostalgia pela ‘velha rua moderna’ de Berman (1989, p. 162) ou do ‘balé das calçadas’ de Jane Jacobs (1992, p. 50), certamente haveria que se perguntar se o exercício da cidadania, das práticas urbanas e dos rituais da vida pública não teriam, no contexto das grandes cidades contemporâneas, outros cenários: para tanto, é necessário procurá-los com uma estratégia adequada (MAGNANI, 2002, p. 15). (MAGNANI, 2005, p. 202/203) (grifo nosso)

A extensa rede de lazer e entretenimento urbano e suas variações se referem a uma infinidade de possibilidades do uso do tempo livre ainda não observadas e descritas pelas pesquisas antropológicas. Da mesma forma, “deve haver uma ordem, um ritmo, regras. Os usuários obedecem a essa ordem sem necessariamente dar-se conta disso, pois o padrão está internalizado. Ao pesquisador cabe identificar tais regras”. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 17) A análise dos cenários (espaços legalize) investigados ao longo deste trabalho tentará descrever o uso de drogas como uma das formas (e talvez a mais comum) de entretenimento presentes nas redes de lazer metropolitanas. A discussão ao longo deste capítulo, seguirá através das teorias antropológicas sobre a cidade para, assim, definir qual “estratégia adequada” para a etnografia nos espaços legalize. 2.1 A cidade como objeto antropológico. A cidade, enquanto categoria antropológica e objeto de pesquisa científica qualitativa, surge até mesmo antes da consolidação da etnografia como metodologia, já que a primeira publicação resultante da famosa viagem de pesquisa de B. Malinowski às Ilhas Trobriand é de 1922. A citação a seguir de R. E. Park, sociólogo norte-americano e um dos mais eminentes pensadores da Escola de Chicago, sinalizada por J. G. Magnani, demonstra a assertiva acima: “Até os dias de hoje, a Antropologia, a ciência do homem, tem se interessado principalmente cuja dinâmica tem certas peculiaridades em relação aos espaços urbanos, já que comportam outros equipamentos e as formas de controle sociais sofrem certa flexibilidade.

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pelo estudo dos povos primitivos. Mas o homem civilizado é também um objeto de investigação bastante interessante e, ao mesmo tempo, sua vida está mais sujeita à observação e estudo.” (PARK, 1925 APUD MAGNANI, 2012, p. 17) Neste sentido, diversos autores já pensaram a metrópole em seus respectivos contextos sociais, interpretando diferentemente as chamadas sociedades complexas já há muito tempo desde a consolidação de uma metodologia propriamente antropológica. A noção de região teria nascido das reflexões de R. Park sobre a cidade como divididas em áreas naturais de segregação. Por isso, os processos da natureza humana continuariam a dar a essas regiões “um caráter menos fácil de controlar.” Neste sentido, “a cidade está enraizada nos hábitos e costumes das pessoas que a habitam,” por isso ela possuiria “uma organização moral bem como uma organização física, e estas duas interagem mutuamente de modos característicos para se moldarem e modificarem uma a outra.” (PARK, 1976, p. 32) Como aponta M. Agier: Progressivamente, essas áreas transformaram-se, no texto de Park, ‘em meios morais’ e em ‘regiões morais.’ Antes reservada a áreas moralmente diferentes do resto da cidade (bairros de prostituição, do crime ou da população de rua), essas noções vão estender-se a todo o espaço urbano, o que permite uma visão segmentar reconstruída em traços gerais. (AGIER, 2011, p. 66)

Na concepção de R. E. Park, as causas que fariam surgir as regiões morais seriam devidas “em parte às restrições que a vida urbana impõe; e em parte à permissibilidade que essas mesmas condições oferecem.” (1976, p. 71) No entanto, o autor é preciso em aceitar essas regiões morais como “agente mais ou menos excepcional que as habita como parte da vida natural, se não normal, de uma cidade” (1976, p. 72) Dito isso, para um espaço público (um bairro, uma rua ou uma comunidade) se constituir como uma região moral é necessário, portanto, de um código peculiar: Não é preciso entender-se pela expressão ‘região moral’ um lugar ou uma sociedade que é necessariamente ou criminosa ou anormal. Antes, ela foi proposta para se aplicar a regiões onde prevaleça um código moral divergente, por ser uma região em que as pessoas normalmente não o são (...) Tal região diferia de outros grupos sociais pelo fato de seus interesses serem mais imediatos e mais fundamentais. Por essa razão, suas diferenças tendem a ser devidas mais a um isolamento intelectual. (PARK, 1976, p. 72)

Assim, segundo o professor da Escola de Chicago:

67 O resultado disso é que, dentro da organização que a vida citadina assume espontaneamente, a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos e seus temperamentos. A distribuição da população resultante tende a ser bastante diferente daquela ocasionada por interesses ocupacionais ou por condições econômicas. (PARK, 1976, p. 70) (grifo nosso)

A região moral permitiria localizar as identidades ligadas ao espaço urbano enquanto identidades externas. “Falo de identidades ‘externas’ no sentido de que elas emanam primeiro de um olhar dos atores exteriores ao espaço considerado.” (AGIER, 2011, p. 67) A categoria também não seria necessariamente um lugar de domicílio. “Pode ser apenas um ponto de encontro, um local de reunião.” Ou seja, a “expressão geográfica converte-se em vizinhança, isto é, uma localidade com sentimentos, tradições e uma história sua.” (PARK, 1976, p. 34) (grifo nosso) Entretanto, para M. Agier “esse sentido do lugar (região) supõe a cidade inteira como contexto de referência. Corresponde a uma cartografia imaginária dos citadinos que vivem em certas partes da cidade continuando a ter, sobre os outros espaços, pelo menos algumas experiências, ideias ou imagens.” (AGIER, 2011, p. 67) No caso, ao tomar a cidade subdividida em uma variedade de espaços de interação, a exemplo de ruas, conjuntos de becos, pracinhas e suas áreas contíguas, a noção de região é útil no registro das identidades. No entanto, estas tratar-se-iam de identidades relativas, “porque as fronteiras da cidade não são nem mais verdadeiras nem menos construídas que as da etnicidade.” (AGIER, 2011, p. 70/71) Segundo A. ARANTES (2000), por exemplo: “(...) a cidade é um labirinto com vários centros, formado por uma sucessão interminável de zonas intersticiais, limitadas por fronteiras nebulosas e por marcos fragmentários.” (grifo nosso) Assim, ao analisar estas zonas de modo sistemático, o autor chega a conclusão de que, na cidade: (...) nada é fixo, nem mesmo as referências edificadas têm vida perene. Transita-se constantemente, dificilmente se está. Penso a cidade como um pulsar de espaços e lugares interpenetrados, confronto entre singularidades, num amplo cenário explicitamente político (...) As representações que fazem do centro aqueles que habitam as suas praças e ruas não são indiferentes aos marcos e monumentos da paisagem oficial. Ao contrário, elas articulam experiências sociais a um espaço dando-lhes um contexto e significações particulares. (ARANTES, 2000, p. 122) (grifo nosso)

Neste sentido, a cidade abarcaria uma série de elementos importantes para as próximas reflexões deste trabalho, já que identifica como se daria a formação de espaços

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legalize na cidade, apesar da proibição do comércio de algumas drogas em território nacional. Desta forma admite-se aqui: (...) a cidade como sucessão de lugares articulados no tempo e no espaço, vertical e horizontalmente, pela mediação de zonas de limiaridade, fluidas, ambivalentes. Os marcos visíveis que perduram, lugares de identidade, são apenas parte de uma realidade mais profunda e mais extensa que os contextualiza e desafia. (ARANTES, 2000, p. 122) (grifo nosso)

O pressuposto metodológico da Antropologia Urbana adotado nesta pesquisa é de privilegiar a inserção das diversas redes urbanas nas paisagens da cidade. E isso somente seria possível constatar através da etnografia nos espaços de circulação, pois é lá onde estão os pontos de encontro e conflito, além dos sujeitos que estabelecem relações de troca. Assim, como afirma J. G. Magnani, são "resultado do próprio trabalho etnográfico, que reconhece os arranjos nativos, mas que os descreve e trabalha num plano mais geral, identificando seus termos e articulando-os em sistemas de relações.” (2002, p. 20) Em estudo anterior, J. G. Magnani e L. Torres já haviam salientado: Todas essas categorias, que descrevem diferentes formas de uso e apropriação do espaço, constituem chaves para leitura, entendimento e orientação na cidade: ao circunscrever pontos socialmente reconhecidos como relevantes na dinâmica urbana, servem de referência para as atividades que compõem o cotidiano - seja de trabalho, do lazer, da devoção, da militância, da prática cultural. Fazem parte do patrimônio da cidade, configuram aquele repertório de significantes que possibilitam guardar histórias e personagens que estariam esquecidas não fosse pela permanência. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 22)

Na perspectiva deste autor, para analisar a dinâmica dos centros metropolitanos, seria necessário resgatar um olhar de perto e de dentro “capaz de identificar, descrever e refletir sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques que, para efeito de contraste, qualifiquei como de fora e de longe.” (MAGNANI, 2002, p. 17) O professor da Universidade de São Paulo projetou a Antropologia Urbana para além das etnografias dos bairros periféricos porque acreditou que “é a extensão e, principalmente, a diversidade do espaço urbano (...) que colocam a necessidade de deslocamentos por regiões distantes e não contíguas.” Assim, “na paisagem mais ampla e diversificada da cidade, trajetos ligam equipamentos, pontos, manchas, complementares ou alternativos.” (MAGNANI, 2002, p. 23) A mudança de foco “do bairro para o centro”, proposta por J. G. Magnani, possibilitou para a Antropologia, em função do seu método, evitar a dicotomia que opõe, no cenário das grandes metrópoles contemporâneas, o indivíduo e as estruturas urbanas.

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A etnografia é uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para captar e descrever a lógica de suas representações e visão de mundo, mas para, numa relação de troca, comparar suas próprias representações e teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente. (MAGNANI, 2003, p. 84/85)

J. G. Magnani enfatiza a dimensão da etnografia ao resgatar os mais diversos códigos sociais que formam a metrópole. Esta se tornaria inteligível na sua diversidade, na sua escala e também nos seus conflitos, “pois esse olhar parte das experiências daqueles que nela vivem, abrindo pistas para o entendimento de sua lógica e de sua inserção em contextos mais gerais.” (MAGNANI, 2003, p. 92/93) Para ele, a perspectiva de perto e de dentro seria capaz de apreender os padrões de comportamento, “não de indivíduos atomizados, mas dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais”. Toda essa diversidade levaria “a pensar na possibilidade de sistemas de trocas de outra escala, com parceiros até então impensáveis, permitindo arranjos, iniciativas e experiências de diferentes matizes.” (MAGNANI, 2002, p. 15/16) Além disso, não seria suficiente apreender o significado do arranjo do nativo, mas sim perceber o significado e conseguir descrevê-lo para “atestar sua lógica e incorporá-la de acordo com os padrões de seu próprio aparato intelectual e até mesmo de seu sistema de valores.” (MAGNANI, 2002, p. 16) A análise qualitativa na cidade, então, implicaria um esforço maior para trabalhar nas oposições ocultas, implícitas, não-ditas, que orientam uma prática social, que trabalhar nas ligações explícitas. Para J. G. Magnani, uma caminhada pelos grandes centros urbanos inevitavelmente põe o pesquisador em contato com uma imensa diversidade de personagens, comportamentos, hábitos, crenças e valores. Porém, isso significaria a construção de um método adequado ao contexto real da cidade e não arraigado a preconceitos. Quando tentou classificar a rede complexa de sociabilidade e cultura de grupos jovens, 3 o autor critica a expressão “tribos urbanas”. Além de ser originária do senso comum, esta expressão ocasionaria algumas interpretações equivocadas destes grupos identitários. Para isso, o autor propôs um novo tipo de olhar para estes grupos. Em um trabalho chamado Tribos urbanas: metáfora ou categoria? (1992), J. G. Magnani fez uma crítica à utilização dessa expressão, mostrando as limitações, para a análise, de seu uso mais metafórico do que conceitual. Uma dessas limitações seria a um mal3

Seriam eles: neodandis, clubbers, grafiteiros, darks, punks, grunges, góticos, funks, blacks, torcedores, heavies, breakers, carecas, roqueiros, rappers, headbangers, night rollers, iguaboys, etc.

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entendido entre o sentido que se atribui ao termo “tribo” e seu uso para designar grupos de jovens no cenário das metrópoles. Para o autor, existiria uma confusão semântica pois, quando o termo é utilizado, “pensa-se logo em pequenos grupos bem delimitados, com regras e costumes particulares, em contraste com o caráter massificado que comumente se atribui ao estilo de vida das grandes cidades.” (MAGNANI, 2005, p. 175) Os diversos “estilos distintivos” presentes nas grandes cidades que se identificam de acordo com o consumo de determinados produtos da cultura de massa, remeteriam, segundo J. G. Magnani à ideia das “subculturas”. Esta análise estaria ligada à noção de que essas experiências no interior das subculturas eram vistas como rituais de resistência à dominação de uma cultura hegemônica. No entanto, as etnografias desenvolvidas pela escola do antropólogo levaram à noção de que as “formas de uso do espaço não [são] limitadas a uma inscrição local, nem soltas ao sabor da movimentação sem rumo pela cidade.” (MAGNANI, 2005, p. 176) Além disso, o autor pontua: “de pouco adiantaria, para a análise, enumerar as ditas ‘tribos’ – pichadores, punks, góticos, skatistas etc. – em uma lista aberta, vinculadas a este ou àquele marco espacial (rua, beco), ou então flanando de forma aleatória, como nômades sem direção.” A sua tese viria a provar justamente o contrário: “esses grupos se apropriam da cidade e utilizam seus equipamentos de acordo com normas e valores que fundamentam escolhas muito precisas.” (MAGNANI, 2005, p. 198) (grifo nosso) Um dado a se acrescentar é que diversos destes grupos, elencados ao longo das etnografias na cidade que constroem suas “escolhas precisas”, têm em comum, o uso de drogas. Assim, esta pesquisa se mostra importante para se entender e analisar um pouco mais a cultura urbana. Para isso ser efetivado, é necessário mudar o foco da etnografia, seguindo as indicações de J. G. Magnani: Contrariamente às visões que privilegiam, na análise da cidade, as forças econômicas, a lógica do mercado, as decisões dos investidores e planejadores, proponho partir daqueles atores sociais não como elementos isolados, dispersos e submetidos a uma inevitável massificação, mas que, por meio do uso vernacular da cidade (do espaço, dos equipamentos, das instituições) em esferas do trabalho, religiosidade, lazer, cultura, estratégias de sobrevivência, são os responsáveis por sua dinâmica cotidiana. Postulo partir dos atores sociais em seus múltiplos, diferentes e criativos arranjos coletivos: seu comportamento, na paisagem da cidade, não é errático mas apresenta padrões. (MAGNANI, 2002, p. 18)

Assim, a preocupação principal deste autor foi o esforço de transmitir “o ponto de vista do nativo em sua autenticidade não contaminada com visões externas.” (MAGNANI,

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2003, p. 83) Ao invés de olhar de passagem, o olhar de perto e de dentro perceberia a cidade a partir dos arranjos dos próprios atores sociais, ou seja, das formas por meio das quais eles se veem para transitar pela cidade, estabelecer encontros e trocas nas mais diferentes esferas. As grandes metrópoles contemporâneas não podem ser vistas simplesmente como cidades que cresceram demais e desordenadamente, potencializando fatores de desagregação. Elas também propiciaram a criação de novos padrões de troca e de espaços para a sociabilidade e para os rituais da vida pública. De pouco vale generalizar o desaparecimento da velha rua, tida como símbolo por antonomásia do espaço público, nem se limitar a proclamar que sua função foi ocupada pelas ‘tiranias da intimidade’ ou por zonas desprovidas de sociabilidade: se em determinados contextos ficou inviável como suporte de antigos usos, a experiência da vida pública a que está associada pode ser encontrada em novos arranjos. Um determinado segmento do circuito de lazer, articulando pontos distantes na cidade, é tão real e significativo para seus usuários, quanto a vizinhança no contexto do bairro. (MAGNANI, 2002, p. 26) (grifo nosso)

O que importa para J. G. Magnani ao olhar antropológico, para além da diversidade cultural metropolitana, é a busca do significado de tais comportamentos: “são experiências humanas - de sociabilidade, de trabalho, de entretenimento, de religiosidade - e que só aparecem como exóticas, estranhas ou até mesmo perigosas quando seu significado é desconhecido.” A descoberta deste significado permitiria, então, “conhecer e participar de uma experiência nova, compartilhando-a com aqueles que a vivem como se fosse ‘natural’, posto que se trata de sua cultura.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 3) 2.2 A questão do espaço. Além dos saberes e controles informais construídos pelos usuários de drogas, a organização e ocupação dos espaços de consumo se demonstra como um dos mais importantes. A sociabilidade em territórios urbanos se dá em relação aos grupos que ocupam estes espaços e lhes atribuem significado simbólico de acordo com suas características sociais. J. G. Magnani, ao pesquisar os espaços de lazer urbanos, chamou atenção para a forma como se dá a relação que os atores sociais mantém com os seus territórios. A ideia era levar em conta tanto os atores sociais com suas especificidades (determinações estruturais, símbolos, sinais de pertencimento, escolhas, valores etc.), como o espaço com o qual interagem – mas não na qualidade de mero cenário, e sim como produto da prática social acumulada desses agentes, e também como fator de determinação de suas práticas, constituindo, assim, a garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço. (MAGNANI, 2005, p. 177)

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O cenário não é, nesta perspectiva, um conjunto de elementos físicos, nem deve sugerir a ideia de um "palco" que os atores encontram já montado para o desempenho de seus papéis. Aqui, ele é entendido como produto de práticas sociais anteriores e em constante diálogo com as atuais favorecendo-os, dificultando-os e sendo continuamente transformado por estas. Da mesma forma, o fenômeno de uso de drogas em espaços públicos urbanos tem seus significados próprios construídos pelos seus próprios atores. Dito de outra forma, os espaços urbanos são ocupados e transformados em territórios próprios daqueles que usam substâncias psicoativas. Assim podemos diferenciar os conceitos de território e espaço. Os territórios são espaços urbanos apropriados e ocupados do modo específico pelos seus usuários indicando a posse e a identidade específica para tal finalidade. Chegamos a conclusão, portanto, que os espaços legalize não são simplesmente espaços urbanos acessíveis de forma generalizada, mas sim, territórios específicos de ocupação dos consumidores de drogas ilegais. J. G. Magnani salienta que o espaço urbano não é simplesmente um cenário ou um conjunto de elementos físicos, nem a ideia de um “palco montado”, sendo produto de práticas sociais. A Antropologia Urbana, então, tem o objetivo de analisar e descrever esse arranjo simbólico no/do espaço. Delimitar o cenário significa identificar marcos, reconhecer divisas, anotar pontos de intersecção (...) em relação com a prática cotidiana daqueles que de uma forma ou outra usam o espaço: os atores. Estes atores seguem um roteiro revelado em uma rede de regras dentro de uma lógica. O problema da Antropologia Urbana, seria ter de identificar as diferentes formas de apropriação sempre descrevendo a partir do universo de significado dos atores/usuários. Assim, se poderia chegar a padrões mais gerais, responsáveis pela compreensão dos comportamentos articulados a outras instâncias e domínios da vida social mais amplos. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 17)

Da mesma forma analisa J. G. Magnani: Uma primeira análise mostrou que essa noção era formada por dois elementos básicos: um de ordem espacial, física - configurando um território claramente demarcado ou constituído por certos equipamentos -, e outro social, na forma de uma rede de relações que se estendia por sobre esse território. As características desses equipamentos definidores de fronteiras mostravam que o espaço assim delimitado constituía um lugar de passagem e, principalmente, de encontro. (MAGNANI, 2012. p. 88)

As descontinuidades significativas no tecido urbano não seriam resultado de fatores naturais, mas sim produzidas por diferentes formas de apropriação do espaço.

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Ruas, praças, edificações, viadutos, esquinas e outros equipamentos estão lá, com seus usos e sentidos habituais. De repente, tornam-se outra coisa: a rua vira trajeto devoto em dia de procissão; a praça transforma-se em local de compra e venda, a esquina recebe despachos e ebós. (MAGNANI; TORRES, 1996, p.18)

O que o autor deseja enfatizar é que são as práticas sociais que dão significado e ressignificam tais espaços. Isso se daria através de muitos eixos de significação: casa / rua; masculino / feminino; sagrado / profano; público / privado; trabalho / lazer e assim por diante. Uma classificação com base nesses eixos de oposições não produz tipologias rígidas (rua como pista de rolamento; calçada, área de circulação de pedestres, etc.) porque não opera com sentidos unívocos: às vezes, o espaço do trabalho é apropriado pelo lazer, o do passeio é usado como local de protesto em dia de manifestação, o âmbito do masculino é invadido pelo feminino, a devoção termina em festa. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 18)

Da mesma, forma, os espaços urbanos pesquisados neste trabalho não foram projetados para serem espaços de consumo explícito de drogas ilegais, no entanto, como afirma este autor, o desvio, nos termos de H. Becker (2008), foi responsável pela produção destes espaços marginais. Dito isto, as categorias território e territorialidade também são fundamentais para a noção dos espaços legalize porque garantem a noção de apropriação dos cenários urbanos, o que a categoria de espaço não dá conta. Da mesma forma, a ideia de territorialidade proporciona maior fluidez e flexibilidade em relação ao que a categoria de território deseja indicar, já que as relações sociais na cidade são bastante inconstantes e mutáveis tornando a ocupação e apropriação dos espaços urbanos bastante diferenciáveis diante das dimensões espaço-temporais. Segundo N. Perlongher, o território, não é apenas geográfico, “pois, à medida que opera como fator determinante no comportamento dos habitantes, impõe, ou tende a propor, conforme as condições de sociabilidade territorial, perfis definidamente psicossociais.” (2005, p. 268) Por isso, o autor da obra O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. (1987), rejeita continuar pensando o sujeito como sujeito unitário, mas como segmentado. Superficial e empiricamente, o mesmo sujeito ‘indivídiual’ participa, ao mesmo tempo de redes de sociabilidade diferenciadas. Fragmenta-se até tal ponto na diversidade de práticas sociais nas quais desempenha um ‘papel’, que a ideia de uma unificação egocêntrica, como ontologia liberal, autoconsciente, pulveriza-se na multiplicação de seus repartes. Nas trajetórias marginais, em sua dificuldade ou impossibilidade de articular uma identidade, essas tendências ‘esquizo’ recrudescem, já que a aversão ou o relativo estranhamento enfraquecem, tornam frouxas, ou pelo menos, inconstantes, as

74 adesões às capturas institucionais caras a Park, ou ainda, às domésticobarriais das teorias da comunidade ‘protegida’, que elide, correlativamente, as fugas dos trânsfugas. (PERLONGHER, 2005, p. 275)

Assim, N. Perlongher interpreta o ato da transgressão é no seu salto à exterioridade da ordem, “o desencadeamento de uma nova codificação.” Operamos um deslocamento, da ideia de uma transgressão que instaura certa ordem, à ideia de uma fuga, de um processo (com verdades, intensidades, lentidões, rupturas e suturas) de desterritorialização e reterritorialização. Para falar rapidamente, as sociabilidades marginais configuram uma espécie de ‘reterritorialização perversa’ territorialidade artificial, no sentido do Antiédipo - famílias mais exóticas que entretecem seus espartilhos barrocos, eficazes na sua fragilidade, junto ao muro que obstrui a fenda das fugas libidinais que ameaçam explodir o socius. (PERLONGHER, 2005, p. 280)

As citações acima, de certa forma, apontam para o que seria a produção dos espaços legalize simultaneamente sendo um meio de produção, controle, dominação e poder. Desta forma, a prática social dos usuários de drogas produz e perpetua a existência destes espaços. Além disso, esses atores criam uma ordem simbólica alternativa ao controle estabelecido, qual seja, a repressão às drogas. J. G. Magnani também afirma que o espaço seria como um “produto da prática social acumulada desses agentes, e também como fator de determinação de suas práticas, constituindo, assim, a garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço.” (MAGNANI, 2005, p. 177/178) Assim, para se tentar decifrar o espaço, é necessário observar a prática espacial de uma sociedade. Dito isto, é necessário uma reflexão sobre as categorias de análise implicadas pelas pesquisa em Antropologia Urbana, para assim relacioná-las com a categoria êmica legalize. A partir de intensos trabalhos de campo de diferentes pesquisadores surgiram as categorias de “pedaço”, “mancha”, “circuito”, dentre muitos que serão discutidos ainda neste capítulo. Trazidas do mundo nativo e traduzidas cientificamente, estas categorias foram ganhando dimensões cada vez mais relevantes para a Antropologia e, por isso, são importantes para o entendimento da categoria chave em questão. Como diz J. G. Magnani sobre as categorias que usa: Mais concretamente, o que se busca com essa opção é um ponto de vista que permita articular dois elementos presentes nessa dinâmica: os comportamentos (recuperando os aspectos da mobilidade, dos modismos etc., enfatizados nos estudos sobre esse segmento) e os espaços, as instituições e os equipamentos urbanos que, ao contrário, apresentam um maior (e mais diferenciado) grau de permanência na paisagem – desde o

75 ‘pedaço’, mais particularista, até a ‘mancha’, que supõe um acesso mais amplo e de maior visibilidade. O que se pretende com esse termo, por conseguinte, é chamar a atenção (1) para a sociabilidade, e não tanto para pautas de consumo e estilos de expressão ligados à questão geracional, tônica das ‘culturas juvenis’; e (2) para permanências e regularidades, em vez da fragmentação e do nomadismo, mais enfatizados na perspectiva das ditas ‘tribos urbanas’. (MAGNANI, 2005, p. 177) (grifo nosso)

2.2.1 O pedaço. A noção de “pedaço” surgiu de uma ideia nativa que culminaria em uma concepção mais geral. Dialogando com a conhecida dicotomia “rua versus casa” de Roberto Da Matta (1979), J. G. Magnani revelou que a categoria também apontaria “para um terceiro domínio, intermediário entre a rua e a casa,” ou seja, um espaço que é, ao mesmo tempo, dividido entre conhecidos e estranhos. “Aqui não é preciso nenhuma interpelação: todos sabem quem são, de onde vêm, do que gostam e o que se pode ou não fazer.” (MAGNANI, 2002, p. 21) Em outro trabalho, o autor complementa: “Enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua, o dos estranhos, o pedaço evidencia outro plano, o dos ‘chegados’ que, entre a casa e a rua, instaura um espaço de sociabilidade de outra ordem.” (MAGNANI, 2003, p. 86) A intenção de J. G. Magnani foi desconstruir a noção de lazer pois, não poderia ser considerado “apenas por seu lado instrumental, passivo e individualizado”. A análise da categoria "pedaço", então, permitiu verificar “um componente afirmativo referido ao estabelecimento e reforço de laços de sociabilidade, desde o núcleo familiar até o círculo mais amplo que envolve amigos, colegas, ‘chegados’ (no âmbito do ‘pedaço’) e desconhecidos (fora do ‘pedaço’).” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 14) Nesta perspectiva, o conceito êmico representaria um espaço urbano de interação em que as pessoas se encontram e criam novos laços, alimentando suas redes de sociabilidade numa paisagem aparentemente sem sentido. Gangues, bandos, turmas, galeras exibem – nas roupas, nas falas, na postura corporal, nas preferências musicais – o pedaço a que pertencem. Neste caso, já não se trata de espaço marcado pela moradia, pela vizinhança, mas o ‘efeito pedaço’ continua: venham de onde vierem, o que buscam é um ponto de aglutinação para a construção e o fortalecimento de laços. (MAGNANI, 2002, p. 22)

A categoria êmica supõe uma referência espacial, a presença regular de seus membros e um código de reconhecimento e comunicação entre eles. Isso significa que existe, “por parte de seus integrantes, uma percepção imediata, clara, sem nuanças ou ambiguidades

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a respeito de quem é ou não é do pedaço.” (MAGNANI, 2002, p. 19) Desta forma, isso seria uma experiência concreta e compartilhada. Entretanto, não bastava passar por esse lugar ou mesmo frequentá-lo com alguma regularidade para ser do pedaço; era preciso estar situado (e ser reconhecido como tal) numa peculiar rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participação em atividades comunitárias e desportivas etc. Assim, era o segundo elemento – a rede de relações – que instaurava um código capaz de separar, ordenar e classificar. (MAGNANI, 2002, p. 21)

Desta forma, os espaços constituem um código a ser conhecido e reconstituído pela reflexão científica. Na metrópole contemporânea especialmente, membros de diferentes grupos disputam, ao mesmo tempo, seu espaço e em sua qualidade de sujeitos atuam nele, ao mesmo tempo que o dominam. J. G. Magnani também salienta que os espaços “estão, portanto, sujeitos a uma determinada forma de controle, do tipo exercido por gente que se conhece de alguma maneira (...) assim demarcado torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 12/13) Este seria o modelo conceitual do que seria a categoria "pedaço". Novamente assumindo a perspectiva de R. Da Matta, (1979), esta categoria designaria “um espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público”, onde se desenvolveria “uma sociabilidade básica”, porém “mais densa, significativa e estável” encontradas em relações formais “impostas pela sociedade". Concluindo, J. G. Magnani e L. Torres relatam que o "pedaço" seria “ao mesmo tempo resultado de práticas coletivas” e “condição para seu exercício e fruição.” Neste sentido, esta categoria implicaria em um cumprimento de “determinadas regras de lealdade.” (1996) Quando jovens negros saem de suas casas e dirigem-se a esse seu pedaço, no Centro Comercial Presidente, na rua 24 de Maio (centro da cidade), não o fazem, necessariamente, para dar um trato no visual ou comprar discos; vão até lá para encontrar seus iguais, exercitar-se no uso dos códigos comuns, apreciar os símbolos escolhidos para marcar as diferenças. É bom estar lá, rola um papo legal, fica-se sabendo das coisas... e é assim que a rede da sociabilidade vai sendo tecida. (MAGNANI; TORRES, 1996, p.19)

Da mesma forma, é assim que se constroem social e geograficamente os espaços legalize. O uso de drogas de forma explícita em determinados espaços públicos não se dá pelo consumo como um fim em si mesmo. Como descrito na citação acima, os usuários de drogas (e consequentemente da cidade) pretendem exercitar o uso dos códigos comuns e apreciar os

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símbolos escolhidos entre eles mesmos. No caso do uso público de drogas lícitas e ilícitas, o fator de sociabilidade é muito mais presente, ou seja, a fluidez peculiar deste agenciamento garante uma integração de grupos sociais às vezes divergentes e excludentes. No último capítulo serão exemplificados os casos colhidos em campo que explicitam tal assertiva. 2.2.2 As manchas. Com o tempo e o contato maior com a cidade, J. G. Magnani percebeu novas formas simbólicas e novas categorias que comporiam seu arcabouço teórico. De grande importância foi seu reconhecimento de pedaços também em regiões centrais da cidade. Em suas pesquisas ele percebeu que também existia “uma outra forma de apropriação do espaço” a qual “se trata de lugares que funcionam como ponto de referência para um número mais diversificado de frequentadores.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p.19) Novas incursões pelo centro iriam mostrar outros padrões de uso e ordenação do espaço. Surge ai a noção de “mancha” que teria uma “base física mais ampla, permitindo a circulação de gente oriunda de várias procedências e sem o estabelecimento de laços mais estreitos entre eles.” Seriam “áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam - cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando - uma atividade ou prática predominante.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p.19) A mancha vai para além de apenas “lugares de encontro” ou de lazer. A diferença com relação à ideia de pedaço tradicional é que, no centro, os frequentadores não necessariamente se conhecem, mas sim, se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos. Diferentemente do que ocorre no pedaço, para onde o indivíduo se dirige em busca dos iguais, que compartilham os mesmos códigos, a mancha cede lugar para cruzamentos não previstos, para encontros até certo ponto inesperados, para combinatórias mais variadas. Numa determinada mancha sabe-se que tipo de pessoas ou serviços se vai encontrar, mas não quais, e é esta a expectativa que funciona como motivação para seus frequentadores. (MAGNANI, 2002, p. 23)

Numa mancha de lazer, por exemplo, os equipamentos seriam os bares, restaurantes, cinemas, teatros, o café da esquina, os quais, “seja por competição ou complementação, concorrem para o mesmo efeito: constituem pontos de referência para a prática de determinadas atividades.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 19) A diferença entre o pedaço e

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a mancha é que enquanto naquele o espaço se configura pelo manejo de símbolos e códigos comuns e como ponto de referência restrito, interessando mais a seus habituês, com facilidade muda-se de ponto, quando então "leva-se junto o pedaço.” A mancha, por sua vez, “sempre aglutinada em torno de um ou mais estabelecimentos” apresentaria uma configuração mais estável. “As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de acesso”. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 21) Para J. G. Magnani, a mancha seria um ponto de referência físico, visível e público para um número mais amplo de usuários. A qualquer momento os membros de um pedaço podem eleger outro espaço como ponto de referência e lugar de encontro. A mancha, ao contrário, resultado da relação que diversos estabelecimentos e equipamentos, guardam entre si, e que é o motivo da afluência de seu público, está mais ancorada na paisagem do que nos eventuais frequentadores. A identificação destes com a mancha não é da mesma natureza que a percebida entre o pedaço e seus membros. A mancha é mais aberta, acolhe um número maior e mais diversificado de usuários, e oferece a eles não um acolhimento de pertencimento, mas, a partir da oferta de determinado bem ou serviço, uma possibilidade de encontro, acenando, em vez da certeza, com o imprevisto: não se sabe ao certo o que ou quem se vai encontrar na mancha, ainda que se tenha uma ideia do tipo de bem ou serviço que lá é oferecido e do padrão de gosto ou pauta de consumo dos frequentadores. (MAGNANI, 2005, p. 178/179)

2.2.3 Trajeto. A cidade, na perspectiva de J. G. Magnani, não seria um “aglomerado de pontos, pedaços ou manchas excludentes.” O êxodo entre o diferentes pedaços e as próprias manchas se configuram pela circulação de pessoas que fazem suas escolhas entre as várias alternativas de acordo com determinada lógica; mesmo quando se dirigem a seu pedaço habitual, no interior de determinada mancha, seguiriam caminhos que não seriam aleatórios. Daí sairia outra categoria chamada “trajeto”, cujo termo teria surgido “da necessidade de categorizar uma forma de uso do espaço que se diferencia, em primeiro lugar, daquele descrito pela categoria pedaço.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 21) Enquanto esta remete a um território e à permanência de laços sociais mais próximos, trajeto aplica-se a fluxos constantes no espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas urbanas. Não que não se possa reconhecer sua ocorrência no bairro, mas é justamente para pensar a abertura do particularismo do pedaço que essa categoria foi elaborada. É a extensão e principalmente a diversidade do espaço urbano para além do bairro que colocam a necessidade de deslocamentos por regiões distantes e não contíguas. Esta é uma primeira

79 aplicação da categoria: na paisagem mais ampla e diversificada da cidade, trajetos ligam pontos, manchas, circuitos, complementares ou alternativos. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 21)

A construção dos trajetos não é ilimitada, “elas são resultado de escolhas concretas frente a alternativas oferecidas pelas respectivas manchas”. Assim, a ideia de trajeto permite pensar na “possibilidade de escolhas no interior das manchas” e na “abertura dessas manchas e pedaços em direção a outros pontos no espaço urbano e, por consequência, a outras lógicas.” Como não é um espaço fechado e impermeável, “a noção de trajeto abre a categoria pedaço para fora, para o espaço e âmbito do público.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 22) Os trajetos ainda “levariam de um ponto a outro através dos pórticos” que seriam, por definição, “marcos e vazios na paisagem urbana que configuram paisagens. Lugares que já não pertencem ao pedaço ou mancha de cá, mas ainda não se situam nos de lá; escapam aos sistemas de classificação de um e outra e, como tal, apresentam a ‘maldição dos vazios fronteiriços’.” Complementa o autor: “Terra de ninguém, lugar do perigo, preferido por figuras liminares e para a realização de rituais mágicos - muitas vezes lugares sombrios que é preciso cruzar rapidamente, sem olhar para os lados...” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 22) 2.2.4 Circuito. Já a categoria “circuito” englobaria as demais, não de forma independente, mas combinada. “Trata-se de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial; ele é reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais.” (MAGNANI, 2005, p. 178/179) Os exemplos de circuitos urbanos levantados pelo autor são: circuito gay, circuito dos cines de arte, circuito esotérico, dos salões de dança e shows black, circuito do povo-de-santo, dos antiquários, brechós, clubes e outros. (MAGNANI; TORRES, 1996) Não bastava, por exemplo, identificar algum pedaço dos góticos ou a mancha do forró universitário: suas manifestações e o uso que fazem da cidade se apresentam na forma de estratégias e escolhas mais amplas. Ademais, esses grupos não podem ser vistos de forma independente, fechados em seus redutos ou confinados a algumas áreas, pois nos trajetos pela urbe eles estabelecem uma gama mais variada de conexões e contatos. Essa é a dinâmica dos circuitos de jovens: nem pulverizados, ou isolados, nem à deriva na cidade. Assim, passou-se das categorias consideradas individualmente (pedaços, manchas, trajetos etc.), para arranjos que articulam

80 e hierarquizam duas ou mais delas em padrões estáveis, reconhecíveis. (MAGNANI, 2005, p. 198)

Com relação ao termo “cena”, J. G. Magnani afirma que caberia uma primeira aproximação com o circuito, “categoria com a qual guarda algum paralelo.” Desta forma, ambos não se restringiriam “a uma inserção espacial claramente localizada”. (MAGNANI, 2005, p. 201/202) Enquanto circuito aludiria à rede identificável na paisagem, “cena” tem como referencia os atores sociais, e suas atitudes. No caso do circuito, ainda que seja constituído por equipamentos físicos (lojas, clubes), inclui também acesso e frequência a espaços virtuais como chats, grupos de discussão e fóruns na internet, ademais de eventos e celebrações. Como já foi assinalado, o que distingue circuito de mancha é o fato de o primeiro não apresentar fronteiras físicas que delimitam seu âmbito de sociabilidade. Cena, entretanto, apesar de compartilhar com o circuito essa característica de independência diante da contiguidade espacial, é mais ampla que ele, pois denota principalmente atitudes e opções estéticas e ideológicas, articuladas nos e pelos circuitos. Se estes são formados por equipamentos, instituições, eventos concretos, a cena é constituída pelo conjunto de comportamentos (pautas de consumo, gostos) e pelo universo de significados (valores, regras) exibidos e cultivados por aqueles que conhecem e frequentam os lugares ‘certos’ de determinado circuito. Em suma, pode-se ‘frequentar’ o circuito, mas ‘pertence-se’ a tal ou qual cena. (MAGNANI, 2005, p. 201/202)

Antes de entrar no seguinte subtítulo, é necessário problematizar as categorias utilizadas por J. G. Magnani. Ao transformar as diversas categorias êmicas em categorias éticas, demonstrando um longo exercício de teorização e interpretação científica sobre a metrópole, no caso a cidade de São Paulo, o professor do departamento de antropologia da USP admite que elas têm um caráter de fluidez conceitual. Desenvolvi algumas categorias que descrevem as formas como podem se apresentar alguns desses recortes na paisagem urbana – pedaço, mancha, trajeto, circuito – procurando mostrar as possibilidades que abrem para identificar diferentes situações da dinâmica cultural e da sociabilidade na metrópole: a noção de pedaço evoca laços de pertencimento e estabelecimentos de fronteiras, mas pode estar inserida em alguma mancha, de maior consolidação e visibilidade na paisagem; esta, por sua vez, comporta vários trajetos como resultado das escolhas que propicia a seus frequentadores. Já circuito, que aparece como uma categoria capaz de dar conta de um regime de trocas e encontros no contexto mais amplo e diversificado da cidade (e até para fora dela), pode englobar pedaços e trajetos particularizados. (MAGNANI, 2002, p. 25)

A citação confirma um problema conceptual identificado quando se analisa as chamadas territorialidades marginais (PERLONHER, 2005). Da mesma forma, os espaços

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legalize devem ser interpretados como espaços fluidos, nômades e frequentes no ambiente urbano. Arriscaríamos dizer que os espaços ou territórios de uso de drogas são locais constitutivos da própria cidade e por isso, apesar das políticas públicas, estes espaços não se extinguem, mas se modificam a cada contexto. Através do trabalho de campo realizado no Centro Antigo de Salvador, não se perceberam “pedaços”, “manchas”, “pórticos” nem “circuitos” do uso de drogas isolados em sua forma ideal, no sentido werberiano, mas uma constante fluidez destas categorias nos espaços urbanos. Esse caráter fluido dos espaços legalize garante uma grande variedade de sociabilidades em sua dinâmica de rede. Assim, adaptando à teoria de N. Perlongher, analisaremos agora a noção de territorialidade para entender tal fluidez a estes espaços, e principalmente identificar as mais diversas sociabilidades inerentes ao contexto de uso público e explícito de drogas e suas constantes mutações características envolvidas na ocupação e produção dos diferentes territórios urbanos. 2.3 Territórios e territorialidades. As teorias de N. Perlongher sobre os “espaços intersticiais” ou “territórios marginais” também realçam as ocupações de espaços urbanos pela dinâmica informal de grupos sociais. Segundo ele, em diferentes momentos, ruas, calçadas, praças e estacionamentos podem ter um uso

variado,

mais

controverso,

marginal,

extraordinário

e

até

mesmo,

ilegal.

(PERLONGHER, 2005) Movidos por interesses comuns, os indivíduos tendem a procurar grupos relacionais que acabam criando suas próprias regras de convivência. E é com base nestas regras e comportamentos específicos que as fronteiras de coexistência se constroem e se expandem definindo, dessa forma, a territorialidade do lugar. Em seu texto Territórios Marginais (2005), ao estudar a dinâmica do gueto gay paulistano, N. Perlonguer estabelece uma relação entre a análise destes espaços com os conceitos de “espaço intersticial” ou “região moral”, formulados por Robert Park (1976), da Escola de Chicago. Seu questionamento à teoria anterior volta-se ao próprio conceito de território quando simplesmente analisado em âmbito espacial ou de sua geografia física. A realidade urbana contemporânea, segundo a crítica do autor, é mais complexa e, por isso, não pode ser reduzida aos ambientes físicos. N. Perlongher sugere, portanto, mais fluidez nas análises para reconhecer um certo trânsito contínuo e diversificado de grupos e comunidades que circulam nestes espaços.

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Ao discutir os “territórios marginais”, a crítica de N. Perlongher ao conceito de “identidade” articulado por R. Park, inclui uma série de condições intrínsecas às sociedades urbanas complexas que levam em conta elementos como: Desterritorialização das atividades econômicas, sociais, culturais; Heterogeneidade que induz uma diversidade de estilos de vida difusa entre estruturas sociais fluidas; Multiplicidade e Simultaneidade de relações no mesmo campo. Em relação ao novo quadro teórico apresentado, o autor chama a atenção para alguns conceitos importantes no intuito de estabelecer uma caracterização mais precisa do conceito de “espaço”: Quero reter de toda a discussão (...) a noção de segmentariedade (que apresentamos um pouco arguciosamente, com Deleuze e Guatarri e além, com Evans-Pritchard); a noção de Plurilocalidade (que tem a ver com os deslocamentos dos sujeitos fragmentados); a ideia de heterogeneidade e multiplicidade, tanto nos périplos existenciais quanto na profusa proliferação de expressões; e, por último, (...) de captar ‘redes reais de funcionamento.’ (PERLONGHER, 2005, p. 272)

Esta gama de novas categorias foi essencial para elaborar esta pesquisa antropológica, além de contribuir, também para as pesquisas sobre as grandes metrópoles. Neste sentido, o trabalho e a análise de campo levaram em conta também a “territorialidade itinerante que não se subscreve a uma fixitude residencial, e que tem a ver com certa persistência ou insistência do nomadismo urbano.” (PERLONGUER, 2005, p. 274) Acreditamos, então, que a Antropologia Urbana deva estar atenta à característica mutável e flexível dos circuitos urbanos de uso coletivo de drogas para fins recreativos para perceber que a produção das territorialidades não se manifestam de forma consolidada, mas sim mutável a depender das circunstâncias e contextos sociais. Para além disso, N. Perlongher, que busca fugir de uma noção essencialista e reificadora de identidade, traz a discussão sobre a noção de código-território, a qual deve se referir à relação definida por seu funcionamento. Esta noção amplia a análise da categoria de circuito (MAGNANI, 2012) porque admite um “agenciamento coletivo”, indicando a capacidade exacerbada nos circuitos marginais de o mesmo indivíduo participar, de diversas redes, algumas delas “normais”. Em linhas gerais, o autor enfatiza a existência de funcionamentos desejantes nestes espaços urbanos importantes para a consolidação de suas respectivas dinâmicas sociais. Neste sentido, Nestor Perlongher, um militante anarquista do movimento pelos direitos dos homossexuais na Argentina e mestre em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), defendia a relevância de uma abordagem “territorial”, que

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permitiria representar mais adequadamente as categorias de autodefinição sexual como pontos dentro de redes circulatórias, numa relação de contiguidade e mistura. Segundo Júlio Simões: Isso poderia ser verificado tanto nos espaços e trajetos percorridos pelos sujeitos quanto pela posição dos sujeitos em diversas relações, o que faz que eles se qualifiquem e sejam qualificados de maneiras diferentes, conforme o lugar em que estejam, valendo-se de uma proliferação de categorias identitárias que colidem e tencionam entre si. A ênfase em ‘territorialidades’, ‘lugares relacionais’ e ‘lugares categorias’, de modo a captar como os sujeitos se definem mutuamente a partir de ‘posições’ e ‘trajetórias’ (ou ‘devires’) variáveis dentro de uma rede, bem como da participação em diferentes redes. (PERLONGHER, 2005, p. 264/265) (grifo nosso)

A maior fluidez conceitual da categoria territorialidade garante flexibilizar conceitos como território, fronteira, identidade, lugar e, mesmo, não lugar. “Ao explorar o modo como conflitos se espacializam, deixo de privilegiar os traços distintivos dos lugares sociais ou os contrastes semânticos que culturalmente os qualificam.” (ARENTES, 2000, p. 128) Segundo N. Perlongher: (...) é preciso recorrer à noção de ‘código-território’, esboçada por Deleuze em seus Díálogos com Parnet (1980), que está no cerne da territorialidade. (...) Então, se a dimensão espacial concreta é básica, ela não se sustenta por si própria, não sem o necessário recurso a uma outra territorialidade, no nível dos códigos. (PERLONGHER, 2005, p.275/276) (grifo nosso)

Apesar da base de sustentação destas teorias ser a territorialidade e o território, isso não significaria necessariamente que este seja apenas geográfico, mas opera como fator determinante no comportamento dos habitantes, além de impor, conforme as condições de sociabilidade territorial, perfis psicossociais. Neste ponto, resulta interessante voltar à ‘região moral’ de Park. As populações que transitavam, lembremos, não residiam, mas perambulavam pelo local, reuniam-se, nem tanto de acordo com seus interesses, mas na comunhão de seus desejos e seus temperamentos - ou diríamos mais cruamente, de seus ‘vícios’. Na ‘região moral’, heteróclita na diversidade das fugas que, em seu seio, a maneira de uma válvula de escape que liberasse os impulsos ‘reprimidos pela moral social’, se refugiam, proceder-se-ia, ao mesmo tempo, a uma canalização/viabilização e a uma ‘reterritorialização relativa’ dos impulsos e trajetórias desterrados, proscritos. Esse leque de trajetórias (de ‘devires’) erige territorialidades, redes territoriais contíguas, entremeadas, mas sutilmente diferenciadas através de traços de giz bosqueados em pontilhado das calçadas. Essa ‘hiperterritorialização em movimento’ faz com que a tentativa de cercar - ainda que reconhecendo e explorando suas interconexões - uma territorialidade especificamente homossexual seja, em si, pertinente. Mas as territorialidades flutuantes das

84 bocas paulistanas não podem ser assimiladas aos territórios fixos dos ghettos gays à americana. Em primeiro lugar, há uma territorialidade itinerante que não se subscreve a uma fixitude residencial (...) e que tem a ver com certa persistência ou insistência do nomadismo urbano. (PERLONGER, 2005, p. 273/274) (grifo nosso)

Ainda segundo este autor, essa territorialidade itinerante não se fixa aos trajetos por onde circula. Para fundamentar isso, seria necessário resgatar o contraste que Deleuze e Guatarri (1980) descrevem entre os espaços sedentário e nômade. Este “é localizado, não delimitado”. (PERLONGER, 2005, p. 274) J. Simões destaca ainda que as preocupações de N. Perlongher: (...) podem ser assimiladas com o que talvez se chamasse, hoje, ‘virada pósestruturalista’ nos estudos de gênero e sexualidade, em que modelos classificatórios passam a ser pensados menos como de sistemas estáveis, que amarram categorias na produção de sentidos fixos e estreitamente interconectadas, e mais como formas instáveis de categorias flutuantes, que circulam e atravessam por diferentes relações, cujos sentidos são abertos à negociação cotidiana. (...) Perlongher propõe uma insuspeitada ligação entre essas preocupações e certos pontos de vista da célebre Escola de Chicago, por meio de uma particular apropriação do conceito de ‘região moral’, que, na acepção de Robert Park (1952), designava um território residual para o qual convergiam interesses, gostos e temperamentos ligados à boemia, ao desejo não-convencional, ao ‘vício’ e a toda sorte de ‘marginalidades.’(...) Perlongher vale-se da concepção de ‘região moral’ como área de convergência e circulação, mais do que de fixação residencial, para repensá-la como um ‘código-território’, uma territorialidade expressa num código peculiar que distribui atribuições categoriais a corpos e desejos em movimento. (PERLONGHER, 2005, p. 264/265)

A expressão código território se referiria à relação entre o código e o território definido por funcionamento na qual tanto a sobrecodificação e a axiomática regulariam as relações através das redes de códigos, “estes ‘capturariam’ os corpos que se deslocam classificando-os segundo uma retórica, cuja sintaxe corresponderia à axiomatização dos fluxos.” (PERLONGHER, 2005, p. 276). Para este autor, a referência ao código seria central e inovadora para a noção de territorialidade ao reconhecer as dificuldades de defini-las com precisão. Para A. Arantes, as territorialidades seriam fronteiras contraditórias que, ao mesmo tempo separam práticas sociais e visões de mundo antagônicas. Sua hipótese seria que a experiência urbana contemporânea proporcionaria a formação de uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não lugares, que resultaria na formação de configurações espaçotemporais mais híbridas do que os territórios sociais de identidade tematizados pela Antropologia clássica.

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Os habitantes da cidade deslocam-se e situam-se no espaço urbano. Nesse espaço comum, que é cotidianamente trilhado, vão sendo construídas coletivamente as fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, numa palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais em suas mútuas relações (...) Os lugares sociais assim construídos não estão simplesmente justapostos uns aos outros, como se fossem um gigantesco e harmonioso mosaico. A meu ver, eles se superpõem e, entrecruzando-se de modo complexo, formam zonas simbólicas de transição. (ARANTES, 2000, p. 106)

Para além de territórios complementares e bem delimitados por fronteiras simbólicas, “essas configurações podem ser entendidas como zonas de contato, onde se situa uma ordem moral contraditória.” (ARANTES, 2000, p. 107) (grifo nosso) Intersticialmente à atividade dos personagens mais visíveis, formam-se territórios não tão evidentes, mas bem conhecidos para os habitantes da cidade. Assim como os usuários do lazer urbano também são usuários de drogas, a produção dos espaços legalize depende da quebra de fronteiras da legalidade. A seguir, A. Arantes define um pouco mais as implicações desta categoria. As rotinas de policiamento e a repressão ostensiva sinalizam a autoridade e teatralizam o controle. Ambos, planejamento e policiamento, apagam limites e fronteiras que são custosamente construídos e incessantemente reconstruídos pelos habitantes das ruas em suas práticas cotidianas. Nesse contexto espacial de lugares e fronteiras entrecruzados, formam-se as sociabilidades que dão novo teto a estes jovens fugitivos dos ‘lugares antropológicos’. Ainda que a transgressão dessas fronteiras tradicionais implique pôr em risco a própria vida, o suposto desabrigo em que eles vivem parece ser vivido, também, como prazer de movimentar-se num universo onde há alternativas a escolher, onde os territórios aprisionam menos do que a casa de onde fugiram e à qual, às vezes retornam. Assim o caráter tênue dessas fronteiras simbólicas só pode ser interpretado como componente necessário de um modo de vida segundo o qual cruzar limites é vivenciado como prazer e desafio lúdico, além de justificar-se pela utilidade em relação à sobrevivência. (ARANTES, 2000, p. 125).

Apesar dessa quebra de barreiras entre o legal e o ilegal, a repressão e a liberdade do uso do corpo, o consumo explícito de drogas ilícitas se perpetua e cada vez mais usuários da cidade ocupam novos territórios nos diferentes espaços urbanos, além de reproduzir constantemente sociabilidades relativas à cultura do uso público de drogas. Duas perguntas são de fundamental importância para esta tese: Porque é possível a existência das chamadas “cracolândias”, Festivais de Musica Eletrônica (ANDRADE, 2009) e de tantos outros espaços legalize em geral? E porque estes espaços, mesmo sob repressão ou interdição através da força policial, voltam a coexistir com os outros espaços de sociabilidade/territorialidade da

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metrópole contemporânea? A hipótese aqui levantada se fundamenta tanto na literatura como na experiência de campo: O uso de drogas é historicamente presente nas culturas humanas e por isso faz parte das relações sociais em geral. Além disso, de acordo com a citação acima, a resposta muito se deve à questão do prazer, desafio lúdico e em relação à sobrevivência. Já para N. Perlongher, “nas trajetórias marginais, nas existências nômades ou apenas vagabundas, (...) não estaria fazendo uma inversão de papeis estabelecidos, normais, convencionais, mas a afirmação de uma diferença intensa, de um funcionamento desejante diferente.” (PERLONGHER, 2005, p. 282/283) (grifo nosso) Em outras palavras, o que estes autores demonstram é que o uso de drogas e outras formas de ocupar os espaços urbanos se dá pela vontade e interesse social própria da identidade simbólica dos diferentes e heterogêneos grupos existentes nas sociedades urbanas. Para complementar essa ideia, mais a frente abordaremos a questão da tolerância social envolvida nas redes interligadas aos espaços legalize. Por hora aprofundaremos mais a teoria sobre a territorialidade. Segundo N. Perlongher, as pesquisas em sociedades urbanas complexas deveriam dar conta de três elementos. São eles: 1 Desterritorialização das atividades econômicas, sociais, culturais. Ruptura da correspondência entre local de origem, de produção e de vida social. 2 Heterogeneidade: diversidade de estilos de vida, que responde a uma disfunção entre as estruturas constitutivas do todo social e as modalidades de cada grupo; parcelamento do corpo social. 3 Multiplicidade e simultaneidade de relações no mesmo campo, que se exprimem no nível das crenças, códigos, representações etc. (PERLONGHER, 2005, p. 271)

Isso abriria para novas exigências dentro da concepção de território ou territorialidade: 1 Exigência do local: não poderá haver referência a um lugar único da prática social, mas a muitos, até como unidades latentes. A existência de lugar-território único pode ser deixada de lado, para se considerar a pluralidade da vida na sociedade urbana contemporânea, privilegiando os ‘espaços intermediários’ da existência social, percursos, trajetórias, devires. 2 Exigência de homogeneidade: a etnologia urbana não pode se sujeitar a grupos cuja homogeneidade não está manifestada em instâncias de funcionamento real, mas procurará apreender ‘unidades reais de funcionamento’. 3 O mesmo vale para o plano das crenças, representações, etc. (PERLONGHER, 2005, p. 272)

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Ao desenvolver a ideia dos circuitos marginais, objeto de sua pesquisa, N. Perlongher identificou que o mesmo indivíduo particular, circula em diversas redes, algumas delas ditas “normais”. Para ele, seriam os funcionamentos desejantes no campo social que atraem os indivíduos e os envolvem. “Não são os indivíduos - e esta afirmação é dura - os que decidem ou optam, a partir de um ego autoconsciente, os que constroem, por apelar a um clichê, suas identidades e suas representações.” Assim, esses indivíduos participam de funcionamentos desejantes, porque estão neles o princípio de todos os outros afetos. Desta forma, conclui o autor: “as fugas marginais (Deleuze: ‘numa sociedade tudo foge’) são, então, fugas desejantes.” (PERLONGEHR, 2005, p. 280) O circuito de michês, estudado por N. Perlongher, não se verificaria somente no plano das ações e paixões corporais, mas também no plano da expressão, “revelando uma modalidade peculiar da articulação entre forças intensivas e formas expressivas.” (PERLONGER, 2005, p. 283) A desordem implica uma ordem que, ao ser negativizada, se impõe garantindo a positividade destas práticas sociais. No entanto, seria necessário tomar os fenômenos de poder na "extremidade infinitesimal" e, por uma análise ascendente, verificar como eles são anexados por fenômenos mais gerais, conservando ao mesmo tempo uma autonomia relativa. Isso significa que, apesar da positividade destas práticas contraculturais, é preciso fazer uma conexão com outros fenômenos e outras práticas vizinhas. A afirmação da multiplicidade tem a ver também com o próprio funcionamento do bando, que não se pode entender pelos indivíduos isolados nômades personológicos, mas como um agenciamento coletivo, em que o que conta é o togetherness, o estar junto, o entre deux, na microscopia da deriva. (PERLONGHER, 2005, p. 279)

Da mesma forma que a territorialidade do crime ou da vagabundagem instaura e multiplica normas e os códigos que a reterritorialização com certa precariedade constitutiva, a sociabilidade nos espaços legalize implica cruzar as barreiras da ilegalidade. Outra questão enfrentada nesta tese e nos trabalhos de campo é saber qual o sentido de tal ação social. Em outras palavras: Por que os usuários ou grupos de usuários de drogas consomem substâncias proibidas de forma explícita em determinados espaços urbanos? A questão será analisada nos capítulos seguintes, mas já podemos lançar algumas hipóteses: Seria pela rebeldia, ou seja, um ato contra a proibição das drogas (MACRAE; SIMÕES, 2000); ou a reprodução de um

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comportamento cultural tradicional e familiar em círculos de usuários? (SAAD, 2013; DE SOUZA, 2012) Para N. Perlongher: Isso que se detecta nos michês poderia ser, talvez, estendido a outras trajetórias e territorialidades marginais. O que haveria em comum, entre as variáveis sociabilidades da margem, seria algum impulso de fuga, que estaria, de um modo ou de outro, no seu ponto de partida. A pergunta que as liga diz respeito a como essas fugas podem ser capturadas e neutralizadas. (...) Uma cartografia das territorialidades marginais deve estar atenta às circunvoluções dos fluxos desejantes e aos avatares e peripécias das fugas, no que parece dispostas ao potlach, à perda, à abolição. (...) Nas existências marginais, podem se vislumbrar indícios de modos diferentes, minoritários, dissidentes, de produção de subjetividades. (PERLONGHER, 2005, p. 287) (grifo nosso)

Desta forma, este trabalho tentará fazer uma análise da produção dos espaços legalize para entender como se dá seus funcionamentos desejantes relativos à sociabilidade e à dinâmica implicada nestas territorialidades marginais. A proibição das drogas parece não ser suficiente para alcançar os objetivos fundamentais propostos pela política contemporânea. Através destes elementos é possível entender melhor como se manifesta e porque se consolida a cultura do uso público de drogas apesar das atuais políticas públicas. 2.4 Espaços legalize no âmbito da Antropologia Urbana. Antes de chegar à descrição de campo e a análise dos dados coletados durante dois anos de etnografia na cidade de Salvador, algumas noções são fundamentais para se poder entender a categoria espaço legalize. Nesta ultima sessão, o objetivo será levantar requisitos conceptuais fundamentais na literatura da Antropologia Urbana para fundamentar as análises de campo e, a partir daí, poder acrescentar algo à disciplina. Assim como J. G. Magnani afirma que as redes de usuários da cidade constroem seus circuitos de forma racional e criativa, a produção genealógica de territorialidades legalize requer aquilo que foi discutido, no capítulo anterior, de conhecimento geo-espacial do espaço urbano. Nesta pesquisa, tentar-se-á descrever e analisar os códigos e os padrões do uso de drogas observados, dispostos em seus arranjos coletivos, os quais “não são visíveis a um olhar meramente de fora.” (MAGNANI, 2003) Justamente por envolver o uso de drogas ilícitas, os espaços legalize dependem de um olhar antropológico mais aprofundado. Outra noção importante para a concepção ética das sociabilidades legalize seria a de sentido partilhado (shared meaning). Como bem argumenta M. Agier:

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A situação resulta da operação que consiste em isolar intelectualmente um acontecimento ou um conjunto de acontecimentos a fim de facilitar uma análise coerente. (...) Segundo Michell, ela precisa de ‘um mínimo de sentido partilhado’ (shared meaning), que é o que define ‘uma percepção social e não individual da situação.’ O quadro social (setting) é, além disso, o ‘contexto estrutural dentro do qual as interações estão localizadas.’ (...) Resta saber quais são os efeitos de um tal contexto sobre as normas (patterns) de comportamento dos atores. (AGIER, 2011, p. 74)

Esta noção pode estar relacionada à percepção social de que nos espaços legalize o consumo público e explícito de drogas ilegais é característico. Por exemplo, quase todos (entre nativos e turistas, usuários e não usuários) sabem que no Centro Antigo de Salvador se consome, de forma explícita e pública maconha e crack. De forma análoga, cada espaço urbano reserva seu respectivo sentido partilhado, seja pela tolerância ou não do uso de uma ou mais drogas. Desta forma, os espaços legalize são conhecidos de forma partilhada entre a sociedade em geral graças às negociações entre os atores sociais e suas interações com o espaço urbano. Para que uma situação suscite interesse antropológico precisa de uma definição emic e de uma definição etic. De um lado, os atores ‘definem a situação’, envolvendo-se com um mínimo de coerência comunicativa (o que não impede o conflito): é a ideia do ‘sentido partilhado’. De outro, a situação põe em ação constrangimentos ‘estruturais’ ou globais. (...) O sentido que os atores dão a uma situação pode ser mais ou menos imposto ou negociado conforme esta se inscreva num espaço muito estruturado, fechado e regulado a priori (por exemplo, uma fábrica, uma escola, uma igreja) ou menos (por exemplo, a vizinhança, a praia, a rua). (AGIER, 2011, p. 74/75)

Seria interessante, neste momento, retomar a análise das categorias elaboradas durante longos trabalhos de campo por J. G. Magnani, a partir da década de 1980. A citação a seguir aborda de forma tangencial esse sentido partilhado em relação às categorias pedaço, mancha e circuito: Ainda que pedaço e mancha tenham em comum uma referência espacial bem delimitada, a relação do pedaço com o espaço é mais transitória, pois pode mudar-se de um ponto a outro sem se dissolver, já que seu outro componente constitutivo é o simbólico, em razão da forte presença de um código comum. Já a mancha – delineada pelos equipamentos que se complementam ou competem entre si no oferecimento de determinado bem ou serviço – apresenta uma relação mais estável com o espaço e é mais visível na paisagem: é reconhecida e frequentada por um círculo mais amplo de usuários. A noção de circuito também designa um uso do espaço e de equipamentos urbanos – possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos – porém de forma mais independente com relação ao espaço, sem se ater à

90 contiguidade, como ocorre na mancha ou no pedaço. Mas tem, igualmente, existência objetiva e observável: pode ser levantado, descrito e localizado. Em princípio, faz parte do circuito a totalidade dos equipamentos que concorrem para a oferta de tal ou qual bem ou serviço, ou para o exercício de determinada prática, mas alguns deles acabam sendo reconhecidos como ponto de referência e de sustentação à atividade. (MAGNANI, 2002, p. 24) (grifo nosso)

Segundo o autor, essas categorias não se excluem e, por isso, são articulações entre seus domínios que permitem levar em conta as escalas das cidades e os diferentes planos da análise. “Elas constituem uma gramática que permite classificar e descrever a multiplicidade das escolhas e os ritmos da dinâmica urbana não centrados nas escolhas de indivíduos, mas em arranjos mais formais em cujo interior se dão essas escolhas.” (MAGNANI, 2002, p. 25) Ser o ponto de referência e de sustentação do uso de drogas exige uma série de requisitos simbólicos para a produção ou construção dos espaços legalize. Todos têm seus próprios circuitos, mas circulam – com os devidos cuidados – por “points” de outros grupos que funcionam como nós de uma rede mais ampla; são trajetos conhecidos, podendo até haver ‘treta’ em razão da presença não desejada ou inoportuna nos pedaços de outros. Nada, portanto, de um comportamento tido como espontâneo, livre e solto, há sim regularidades, ações de consequências previsíveis. (MAGNANI, 2005, p. 199)

Para J. G. Magnani, o arranjo seria “um conjunto de escolhas nada aleatório e que se concretiza em trajetos elaborados e trilhados de forma coletiva.” (MAGNANI, 2005, p. 199) Assim, existiriam padrões e regularidades que configuram os arranjos relativos ao consumo público de substâncias psicoativas, em especial quando as leis seguem o modelo da repressão. No último capítulo, dados serão apresentados para exemplificar estas questões mais genéricas, mas por hora é possível afirmar que na sociedade em geral, seja usuário ou não usuário, antiproibicionistas ou proibicionistas, civil ou policial, quase todos têm conhecimento tácito da existência destas territorialidades marginais. Bar Riviera, Café do Bexiga, Bar das Putas, Ponto Chic e Café dos Artistas, Restaurante Pirandello, Nation Disco Club, Café Paris, Rei das Batidas, Bora-Bora, Longchamp, 22 e tantos outros - em plena atividade, reformados ou decadentes, não importa - têm seu lugar assinalado em mapas não oficiais, de ontem e de hoje, que permitem acompanhar a dinâmica das manchas, trajetos e circuitos desta cidade. Seu poder simbólico e capacidade de organizar o espaço são tais que resistem até mesmo à destruição física do equipamento: o cinema desapareceu há anos, mas quem é do pedaço sabe muito bem onde é o largo do Cliper, lá pelos lados da Freguesia do Ó. (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 23) (grifo nosso)

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Da mesma forma, os espaços legalize sofrem repressão do Estado através de interdições legais, impedimentos burocráticos e até mesmo usando a força policial repressora. Todavia, a fluidez destas redes de sociabilidade garante a perpetuação e alta frequência de consumo de drogas ilícitas em determinados espaços públicos urbanos, especialmente em espaços de lazer. Neste sentido, J. G. Magnani afirma: “Se não se pode delimitar uma única ordem, isso não significa que não há nenhuma; há ordenamentos particularizados, setorizados; há ordenamentos, regularidades.” (MAGNANI, 2002, p, 19)

Cada um dos arranjos

corresponderia a uma forma específica de se expor, estabelecer laços, marcar diferenças, fazer escolhas, “colocar-se, enfim, na paisagem urbana diante dos outros e em relação a eles.” Os vínculos que as territorialidades estabelecem não se restringe ao interior de grupos fechados e a espaços guetificados, protegidos, “mas é, em vários graus, metropolitana, cosmopolita.” (MAGNANI, 2005, p. 203) Nesta perspectiva, não seria o conteúdo da cultura popular, do entretenimento ou do lazer o que importaria, mas os lugares onde são desfrutados, as relações que instauram, os contatos que propiciam. (MAGNANI, 2003) Em outro texto, o autor chama a atenção para a analise da importância dos atores sociais e suas redes na construção e produção destes arranjos racionais: A incorporação desses atores e de suas práticas permitiria introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade, para além do olhar ‘competente’ que decide o que é certo e o que é errado e para além da perspectiva e interesse do poder, que decide o que é conveniente e lucrativo. (MAGNANI, 2002, p. 15) (grifo nosso)

Por fim, a escala da metrópole impõe uma modificação na produção dos espaços públicos e privados. Os agentes (ou usuários da cidade) ocupam e se apropriam de cada uma destas modalidades. É neste sentido que poderíamos pensar também nos espaços d(a)os “maconheir(a)os”, d(a)os “sacizeir(a)os” ou “noias”, d(a)os “chincheir(a)os” ou até mesmo d(a)os “frit(a)os”.4 Os fatores de influência para diferenciação destes espaços podem variar entre: as redes de sociabilidades, a história destes locais; e a relação com as outras territorialidades (que vai determinar o quanto é tolerado o consumo público destas drogas). Em outros termos, o importante aqui é enfatizar que os citadinos produzem, ocupam ou mantém espaços/territórios urbanos para o consumo público e explícito de drogas ilícitas, 4

As raves e festivais de música eletrônicas são ótimos exemplos de espaços legalize, analisado por Marcelo Andrade, em seu trabalho de doutorado (2009).

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apesar de ainda ser inexistente uma regulamentação legislativa nacional específica para o consumo de substâncias psicoativas na metrópole. Em diversos espaço urbanos é facilmente observado o consumo de substâncias psicoativas ilícitas. Em praças, faculdades, festas e até repartições públicas se consomem as mais variadas drogas legais ou ilegais. Neste sentido, a relação entre o fenômeno do consumo de drogas e a cidade é muito próxima. A análise da dinâmica nos espaços onde estas substâncias são consumidas se torna fundamental para uma interpretação mais completa da cidade. A cultura da droga sempre esteve na história da sociedade humana. A questão agora a ser discutida é a forma como essa relação está sendo administrada pelas autoridades e pelos usuários. Como sinaliza N. Perlonguer, estudar outras culturas próprias do ambiente urbano são fundamentais para aceitá-las de forma positiva: Acho que não é necessário insistir na atualidade desta problemática. Para além de michês, punks e maconheiros, toda uma massa lumpen oscila entre a desterritorialização descontrolada e a fascitização, vista como salvação no naufrágio (...) Estas questões costumam ser pensadas sob a ótica do negativo. Vê-las na sua positividade desejante, em seus curto circuitos de paixão e violência, talvez seja um passo para começar a escutá-las. (PERLONGER, 2005, p. 287)

Assim, a pesquisa do uso público e explícito de drogas em espaços urbanos se justifica porque percebe os usuários de drogas como usuários da cidade. Além disso, a análise peculiar do contexto público do uso destas substâncias levanta uma série de elementos simbólicos antes ocultos. Em uma de suas passagens, J. G. Magnani afirma: “é possível mostrar que a cidade oferece também lugares de lazer, que seus habitantes cultivam estilos particulares de entretenimento, mantêm vínculos de sociabilidade e relacionamento, criam modos e padrões culturais diferenciados.” (MAGNANI; TORRES, 1996, p. 3) A seguir, iremos analisar teoricamente como se caracteriza o consumo público e explícito de drogas e o que implica a categoria legalize.

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3. Circuitos legalize: descrição e analise da categoria. 3.1 A categoria êmica legalize. A partir deste momento, esta pesquisa volta-se para a descrição e análise de campo etnográfico. Para isso, é necessário discorrer um pouco mais sobre a categoria nativa legalize e suas dinâmicas rituais em relação ao consumo público e explícito de drogas para, então compreender o que seriam os circuitos legalize, ou circuitos das drogas. Tal categoria, portanto, foi chave para classificar o que seria o circuito do consumo recreativo de drogas e entender como este tipo de uso se relaciona com o lazer da cidade. A observação participante levou à conclusão de que a frequência constante e a persistência do consumo das substâncias ilegais (mesmo sob ameaça de repressão) nas territorialidades urbanas retrata que há uma certa identidade entre a cidade e o uso de drogas, sejam lícitas ou ilícitas. Assim, a consolidação de um dado equipamento urbano como espaço legalize se dá por uma legitimação informal onde há um acordo entre os agentes das sanções repressoras e aqueles que habitam o espaço, que pode ser um pedaço, uma mancha, ou até mesmo uma rede de equipamentos urbanos. A expressão cultural legalize provavelmente se originou na década de 1970, depois do sucesso do álbum “Legalize it” (1976) do cantor e compositor Peter Tosh, ex-guitarrista de Bob Marley, cantor jamaicano conhecido internacionalmente por difundir a reggae music. O seu significado, de alguma forma, sofreu ressignificações na linguagem popular brasileira indicando um local onde se consome drogas ilegais de forma explícita. Quando algum território é representado por esta categoria nativa, significa basicamente que ali se concentra o uso público e coletivo de drogas, além de outras ilicitudes. Apesar da referência à legalização da maconha, a categoria legalize abrange a possibilidade de consumo público de outras drogas ilícitas como a cocaína, LSD e, até mesmo, o crack. Em relação às drogas lícitas, como o álcool e o tabaco, que são consumidas de forma generalizada, seguindo outras regras, a categoria não estabelece relação simbólica nem faz referência, mas geralmente, onde há o consumo de drogas ilícitas, também há disponibilidade das substâncias legalmente comercializadas, embora o contrário nem sempre seja possível. Neste sentido, para entender a categoria, é importante analisar o consumo de drogas lícitas e ilícitas nos circuitos legalize. Mesmo com a política de repressão ao comércio, o consumo de substâncias ilegais se dá em público e de forma explícita. Das “cracolândias”, becos escuros e pórticos, até centros

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urbanos bem conhecidos internacionalmente e muito visitados, como o Pelourinho, em Salvador e as mais diferentes praias, pode ser observado o uso coletivo de maconha, cocaína, LSD e, até mesmo, crack. Para que isso ocorra, o uso público e explícito de drogas ilícitas deve respeitar certas regras sociais, controles informais e outros códigos peculiares aos rituais de consumo destas substâncias psicoativas específicos de cada grupo ou rede social. Na maioria desses territórios, a maconha está presente. Sua fumaça densa e seu cheiro forte denunciam facilmente seu consumo, sendo perceptível até em espaços abertos. Assim, quando consumida de forma explícita em locais públicos, outras práticas ilícitas são informalmente autorizadas, caracterizando-os socialmente como legalize. Às vezes, o cheiro denso de cannabis queimada é a certeza de que “está legalize”. Desta forma, as diferentes substâncias proporcionam diferentes dinâmicas sociais, interagindo com os diversos equipamentos urbanos. As redes de pares e grupos sociais, por sua vez, estabelecem controles e sanções, formais e informais para que a dinâmica das ilicitudes ocorra com determinada ordem e obtenha seus efeitos desejados: o lazer. A maconha é facilmente percebida quando consumida devido à sua fumaça densa e também pelo seu alto consumo nos circuitos legalize. No caso da cocaína, do LSD e do crack, a depender da territorialidade, o consumo é feito de forma reservada ou privativa, o que não exclui contextos em que ela é facilmente explícita e perceptível. O consumo de drogas sintéticas pode ser perceptível, não no momento do uso, mas a posteriori. A observação revelou que, geralmente, os usuários de cocaína procuram um canto escuro, uma toalete, ou algum equipamento que os concedam mais privacidade. Da mesma forma, é difícil perceber pessoas consumindo LSD, já que muitas vezes a substância é ingerida momentos antes ou de forma facilmente escondida. Em campo, pude perceber que o comportamento destes usuários tem padrões e controles informais específicos durante os eventos de lazer. Alguém que consome cocaína em um bar ou restaurante, geralmente se desloca com mais frequência para ambientes reservados. Igualmente, os usuário crônicos levam constantemente uma das mãos às narinas. Aqueles que consomem LSD, por sua vez, são os mais agitados e demonstram sentimentos de euforia que se destacam na multidão. Em muitos momentos, conseguia perceber os usuários destas substâncias sintéticas observando seus comportamentos diferenciados. Além disso, os grupos e rodas de usuários brincavam quase sempre ironizando a forma como determinado indivíduo se comportava: "Esse ai tomou um doce (LSD) muito bom!"; "Aquele tá cheirado"; "Olha como ele tá acelerado, parece que tá fritando."

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Manter o consumo de substâncias ilícitas exige garantir ordem, ou seja, os rituais devem agir dentro da normalidade, ao mesmo tempo que se desrespeita a moral tradicional. Quando determinados equipamentos ou territorialidades se consolidam como circuito legalize, existe um tênue equilíbrio entre as sanções e os controles formais e informais. Neste sentido, para consumir drogas em algum local da cidade, seja em uma propriedade privada ou um equipamento público, é necessário saber algumas regras ou etiquetas sociais necessárias para efetivar a ocupação do equipamento e alcançar o objetivo desejado, seja ele lúdico, medicinal, religioso ou até mesmo político (no caso dos protestos antiproibicionistas). Na cidade, os circuitos urbanos estabelecem sociabilidades, ao mesmo tempo que ocupam territorialidades. Assim, os grupos de redes sociais (seja de usuários ou não) que frequentam o lazer noturno da cidade acabam interagindo e se relacionando com o comércio e consumo de drogas. Neste sentido, é perceptível a dimensão que o estudo do uso de drogas proporciona para a Antropologia Urbana. O lazer urbano, ao oferecer serviços culturais ou comerciais de entretenimento, acaba incluindo uma variedade de circuitos urbanos, os quais, muitas vezes, estão associados aos agenciamentos, ou sociabilidades exclusivas do uso drogas. Assim, como já dito, os outros circuitos, inclusive o circuito da segurança pública e até o circuito dos chamados empreendedores morais (BECKER, 2008), ao gerenciar suas ferramentas repressivas e ideológicas, também participam na produção dos circuitos das drogas. Os circuitos legalize observados são territorialidades construídas e produzidas pelos usuários da cidade. Assim, são equipamentos ocupados de acordo com as necessidades daqueles que os frequentam, independente da legislação e instituições formais. Uma forma de entender porque tais circuitos são muito presentes nos equipamentos urbanos, mesmo sob a ilegalidade da posse e compartilhamento de drogas, é observar os agenciamentos de controle informal existentes no dia a dia de cada territorialidade. Esses elementos simbólicos também constroem os circuitos legalize e, ao mesmo tempo, fazem parte dos outros circuitos urbanos. Num evento de lazer noturno, onde é oferecida a apresentação de músicos para uma grande multidão aglomerada, encontram-se vários atores entre os quais músicos, produtores, empresários, órgãos de segurança pública ou privada, a depender do projeto e autorização dos órgãos competentes. Nota-se que o Estado também participa da construção dos circuitos legalize, até mesmo diretamente. Assim, o lazer urbano se associa diretamente ao consumo público e explícito de drogas. Desta forma, esta pesquisa analisa o que seria o consumo recreativo de drogas, além

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de abrir a discussão na Antropologia sobre a relação entre os circuitos de lazer e o circuito legalize. Através da análise do uso recreativo de drogas ilícitas em espaços públicos, foi possível perceber não somente o modo como os usuários ocupam os equipamentos urbanos para o consumo de drogas, como também entender sobre o consumo de drogas em geral. Em outras palavras, pude perceber como se comportam os usuários e não usuários, em diversos momentos, nos mais variados circuitos ou manchas observados. Os mais variados equipamentos urbanos podem ser espaços legalize e podem também fazer parte de outros circuitos metropolitanos. (MAGNANI, 2012) A depender da classe social que ocupa tais espaços, a qualidade da droga consumida varia. Além disso, também oscila a segurança da integridade dos usuários que frequentam tais locais. Consumir maconha em um camarim com artistas e músicos antes do show é muito diferente do que o fazer na cracolândia. Ocupar a cidade exige um domínio político do espaço. Isso significa que a maneira como os usuários da cidade utilizam os espaços urbanos não corresponde com o que foi planejado inicialmente através das políticas de urbanização e construção dos equipamentos urbanos. A ocupação do espaço urbano, então, se daria de forma diferente do proposto originalmente. Dessa forma é possível conceber espaços de consumo coletivo de drogas mesmo sob um regime político proibicionista. Para ser legalize, o equipamento urbano já deve ter um histórico de consumo público, apesar da repressão vigente. Seja uma rua, praça, bar ou até mesmo perto do batalhão de polícia militar é possível observar usuários de drogas ilícitas (isso sem considerar as lícitas) ou pelo menos sentir o cheiro de maconha queimada. Desta forma se constituem e consolidam os circuitos de usuários de drogas, ou circuitos legalize. A questão é: como se produzem e reproduzem tais circuitos na cidade? O trabalho de campo buscou descrever as características dos rituais de uso coletivo e explícito de drogas lícitas e ilícitas em distintos equipamentos urbanos, onde os pude observar. Neste sentido, esta pesquisa se aproxima de uma antropologia na cidade, já que as redes de pares observadas, e de certa forma impactadas com minha participação interativa ocuparam pedaços, manchas, delineavam trajetos, produzindo espaços e conectando múltiplos circuitos urbanos, próprios das condições de tempo e espaço dos campos observados. Desta forma, acredita-se que o circuito do uso de drogas, aqui concebido como circuito legalize, mantém laços simbólicos estruturais com a grande maioria dos circuitos da cidade. Isso

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significa que os circuitos urbanos (MAGNANI, 2012) e, de forma mais específica o circuito do lazer, têm relações estruturantes com o circuito dos usuários de drogas. Em todos os espaços urbanos observados foi detectado o uso coletivo e explícito de drogas, mesmo que se tentasse esconder ao máximo tal prática ilícita. Assim, podemos constatar a intrínseca relação entre os equipamentos urbanos e o uso recreativo de substâncias psicoativas legais ou ilegais. A cidade oferece uma diversidade de opções de lazer e os usuários de drogas ocupam territórios de forma peculiar, construindo territórios que não foram destinados para tal fim. Nas universidades ou em bibliotecas, onde o esperado seria a prática do estudo, é possível observar grupos de redes de usuários ocupando espaços e delimitando pedaços com a finalidade recreativa aliada ao uso de drogas. As idas em campo basicamente foram realizadas em equipamentos urbanos disponíveis de certa forma para todas as classes sociais. Na verdade, os territórios, ou territorialidades descritas no próximo capítulo, fazem parte dos mais variados circuitos urbanos, e por conseguinte são habitados por uma diversificada gama de redes de pares, sejam ricos, pobres, negros, brancos, jovens ou adultos, homens ou mulheres. Nesta perspectiva, os relatos descritos sobre o campo tentam analisar o circuito de lazer urbano e sua relação com o que seria o uso recreativo de drogas ilegais. Dito isto, duas categorias que servirão de base epistemológica são fundamentais para analisar teoricamente a concepção dos circuitos legalize: as substâncias e os seus respectivos agenciamentos. Nisso nos inspiramos na etnografia sobre o uso de drogas feita por M. Fiori. Segundo o autor: A escolha metodológica dessa tese foi incorporar a crítica pós-social aos estudos tradicionais que pacificaram os controversos marcadores dos efeitos biomédicos das substâncias sem que, para isso, se abrisse mão das ferramentas metodológicas capazes de dar sustentação empírica às análises. E o principal trunfo metodológico da antropologia, a etnografia é especialmente interessante para transitar entre os domínios do vivido e do experimentado e os marcadores maiores das substâncias, sem necessariamente se ancorar em um ou em outro. Se é possível dizer que há um processo frequente de purificação das substâncias e seus efeitos na biomedicina, há outro tão importante quanto entre seus usuários. Assumir que não há um essência clara que separa a maconha da cocaína, não é negarlhe que nas experiências empíricas elas são imensamente diferentes. (FIORI, 2013, p. 43)

Neste sentido, a observação participante comprovou que as diferentes substâncias entorpecentes ilegalmente consumidas proporcionam diferentes dinâmicas e processos

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simbólicos diferentes entre si, ou seja, diferentes agenciamentos. Assim, é necessário o entendimento desta categoria, utilizada pelo pesquisador: Para tanto, me apropriei do termo agenciamentos. A categoria agenciamento é uma apropriação que faço das inquietações da crítica pós-social para que as substâncias possam ser compreendidas sem esgotar-se nos seus efeitos, por um lado, ou em seus significados socialmente atribuídos, por outro. Os agenciamentos são tão bioquímicos quanto econômicos, dizem respeito tanto às características materiais das drogas quanto suas formas de subjetivação. Ainda que o meu emprego da noção de agenciamentos guarde alguma relação com a proposta teórica de Deleuze & Guatari (1995) – a de que os agenciamentos maquínicas ou coletivos são um “não-conceito” que permite traçar linhas rizomáticas – minha proposta dista dessa perspectiva. Utilizo agenciamentos como o conjunto de possibilidades farmacológicas, materiais e simbólicas que se efetivam – e podem ser conhecidos – empiricamente nas trajetórias dos sujeitos e em relação aos seus aparatos subjetivos peculiares. (FIORI, 2013, p. 44)

Por conseguinte, estas categorias usadas por M. Fiori serão bastante utilizadas neste trabalho para representar a dinâmica do uso coletivo e explícito de drogas na cidade. Como aponta o autor, a análise do uso de drogas depende não só dos efeitos fisiológicos das substâncias, mas da sua relação com outros elementos simbólicos. No caso desta pesquisa, os elementos primordiais levados em consideração são relativos à dinâmica peculiar do uso público de drogas, ou seja, o agenciamento para consumir drogas ilegais em espaços urbanos. Para que isso seja possível em um sistema social que criminaliza os usuários e proíbe o comércio de algumas substâncias, é necessário que o equipamento urbano seja propício para evitar as sanções repressoras, seja pela sua posição geográfica ou pela sua ocupação e disposição social. Da mesma forma, depende de qual rede de pares costuma habitar/utilizar tais equipamentos (se são jovens de periferia ou de classe média alta, etc.). Dito isto, a dinâmica peculiar do uso de drogas de forma explícita em espaços públicos urbanos é multifacetada. Isso significa que a depender da sociabilidade, agenciamento, territorialidade e das redes/grupos/circuitos, a exposição do consumo sofre específicas variações, ou seja, é na relação deste fenômeno com outras territorialidades urbanas que os circuitos legalize são produzidos e constituídos. Alguns requisitos são fundamentais para que as drogas ilegais sejam consumidas em meio a grandes aglomerações: a ausência ou não atuação das forças formais de repressão, a tradição de consumo generalizado e recorrente no local, as redes que a ocupam e, principalmente, a ordem (simbólica) pacífica entre as próprias redes quando agenciam sociabilidades em diversos circuitos, inclusive esotéricos e religiosos.

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Em campo, foi possível perceber territórios ocupados por usuários de drogas, assim como alguns controles informais sem os quais tal fenômeno social seria impossível. As rodas de fumo só se estabelecem quando há uma certa tradição de consumo, ou seja, quando o equipamento urbano, em sua relação com as sociabilidades que a ocupam, comporta uma certa tolerância social para o uso de drogas, sejam legais ou ilegais. Assim, podemos afirmar que os circuitos legalize são espaços consolidados onde o consumo de drogas se consolida de fato pela frequência e constância dessas práticas. No entanto, alguns casos observados também demonstram que os espaços legalize são produzidos de forma espontânea e provisória. Afinal, é através da ousadia e pioneirismo de alguns que outros criam coragem em perpetuar o consumo das drogas nos diferentes espaços. Portanto, ao analisar a construção do circuito das drogas, é preciso também pensar em espaços não consolidados de uso e perceber que também existem novos espaços onde a prática se dá de forma espontânea. Os usuários de drogas lícitas ou ilícitas, ao ocupar os diferentes equipamentos urbanos (ou não urbanos), de certa forma, transformam alguns espaços em seus “pedaços.” (MAGNANI, 2012) Dito isto, existem elementos simbólicos e contextos (settings) de uso público de drogas semelhantes e diferentes em cada cidade, a depender dos circuitos envolvidos. Isso significa que a dinâmica dos respectivos agenciamentos envolvidos no consumo público e coletivo das mais variadas substâncias psicoativas, na cidade, é relativo às redes de grupos ou circuitos sociais, e aos rituais de consumo das respectivas substâncias. Assim, o fenômeno do uso coletivo de drogas, na cidade, se manifesta através de diferentes formas a depender das substâncias e seus agenciamentos (FIORI, 2015). Em campo, presenciei tal fenômeno como forma de ativismo, religião, contra-cultura, protesto, como medicamento, e até mesmo para facilitar inter-relações afetivas. Os agenciamentos das substâncias entorpecentes são ótimas ferramentas de sociabilidade nos circuitos urbanos em geral. Durante muitas ocasiões em campo a minha aproximação com os usuários foi através de fornecimento de sedas (papel para enrolar os cigarros) e isqueiros o que também garantia a oportunidade de me juntar ao grupo e consumir as substâncias. É comum ver a integração das redes de usuários através do uso destas drogas. Até mesmo a cocaína pode ser oferecida para terceiros e se tornar meio para a aproximação de pessoas durante o período de lazer. Como observado em campo, o consumo explícito desta droga despertava curiosidade e interesse das outras pessoas e acabava aproximando grupos que não planejavam estar juntos. Talvez o usuário não perceba, mas quando consome maconha, seu corpo se manifesta diferentemente de quando consome tabaco. Geralmente o cigarro de maconha é segurado com

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os dedos polegar e indicador. Outra característica diferente é a forma de inalar e prender a fumaça nos pulmões, próprio do consumo de maconha. Além disso, a maconha é fumada na maioria das vezes em grupo ou em rodas, já o tabaco é consumido individualmente e seu compartilhamento não é valorizado. Certa vez, um rapaz franzino fumava o que seria, segundo ele, um charuto cubano e o oferece para os colegas. Interessante é reparar no comportamento corporal quando uma pessoa consome os diferentes tipos de drogas. Fumar charuto envolve algumas técnicas de inalação bem peculiares e, ao mesmo tempo, parecidas com o uso coletivo da maconha. O manuseio de um charuto e especialmente seu compartilhamento podem levantar suspeitas de consumo de maconha, devido a seu tamanho diferenciado e ao fato da fumaça produzida ser tão densa quanto a da erva ilícita. Apesar disso, não houve nenhuma abordagem de autoridades e nem mesmo qualquer preocupação por parte dos usuários. As composições das rodas de fumo são variadas. Os grupos e suas redes de pares variavam entre dois a quinze indivíduos, envolvendo homens e mulheres, jovens e adultos, ricos e pobres e, muitas vezes, transgêneros, caracterizando o espaço como uma mancha legalize. Nos espaços legalize também há a presença de crianças e de famílias e consequentemente há a interação e sociabilidade destas com os usuários de drogas. As rodas de fumo dividem as tarefas entre os usuários que não necessariamente são todos conhecidos ou de confiança. O consumo coletivo começa com uma pessoa disposta a preparar a droga de forma mais adequada para seu consumo no local. No caso da maconha essa tarefa é feita por um alguém considerado competente em confeccionar baseados. Depois de pronto, o cigarro pode circular e às vezes se desligar da sua roda original, vindo a proporcionar outras sociabilidades em outras rodas de fumo ou fomentar sociabilidades intergrupais. Assim, percebi que acender um cigarro de maconha, neste contexto, pode representar um convite para a aproximação de, ou integração com pessoas desconhecidas, mas de hábitos comuns. Em relação à cocaína, quando consumida de forma explícita, os usuários preparam uma base lisa e limpa para separar as carreiras ou linhas. O agenciamento desta substância psicoativa é menos explícito e mais restritivo, sendo ela, na maioria das vezes apenas compartilhada entre os que ajudaram na sua aquisição ou oferecerem favores. De toda maneira, percebi também que o consumo coletivo de drogas, principalmente em relação à cocaína e ao LSD, sofre ainda de certa falta de informação e conscientização sobre a prevenção e a redução de riscos e danos. Quando interrogados, os interlocutores não demonstram muito conhecimento sobre os riscos e danos para a saúde mental e física,

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associados ao consumo de drogas, tanto legais quanto ilegais. Assim, não demonstram preocupação com episódios de embriagues alcoólica ou com possíveis danos decorrentes de um uso excessivo da maconha. Além disso, não há preocupação com a higiene e qualidade das substâncias consumidas, especialmente por parte dos usuários de drogas sintéticas ou refinadas, que nunca sabem ao certo o que estão consumindo. A cocaína, por exemplo, é muitas vezes usada de forma insegura, em banheiros públicos sujos e compartilhando os canudos de inalar, aumentando o risco de contaminação e intoxicação. Desta forma, nos circuitos legalize, algumas vezes, o uso de drogas é feita de forma abusiva e desregrada. Por outro lado, o álcool e o tabaco são as drogas que mais são usadas nas noites e eventos de lazer observados. Apesar destes serem drogas legais, isso não necessariamente significa que vão gerar menos problemas, muito pelo contrário. Certa vez, em um evento musical no Largo Tereza Batista, no Pelourinho, enquanto a banda se apresentava e muitos fumavam maconha ininterruptamente, dois homens, entre quarenta e cinquenta anos chamavam muita atenção por estarem muito alcoolizados. Na verdade, como observado, o uso de drogas ilegais se dá com mais controles e regras do que as legais, já que precisam de agenciamentos específicos e inteligentes para poderem ser consumidas de forma adequada. É mais frequente, portanto, identificar overdoses por uso de álcool do que por drogas ilegais. Como dito, os usuários de drogas (e mesmo os não usuários), ao ocupar qualquer equipamento urbano, geralmente estão a par dos territórios onde o consumo de drogas ilegais é socialmente tolerado. Da mesma forma, as autoridades de segurança sabem e de certa forma controlam os circuitos legalize, mas por algum motivo agem de forma seletiva, ou seja, flexibilizam as leis em certas territorialidades, mas reprimem os circuitos mais vulneráveis. As repentinas operações policiais percebidas nos espaços legalizem se demonstram como uma variável muito instável e imprevisível já que os oficiais agem mediante as estatísticas ou pelo “desejo” de superiores. As observações feitas durante esta pesquisa não conseguiram estabelecer uma lógica coerente para as operações da Polícia Militar. Ou seja, a sua função básica de prevenção ao uso de drogas não parece que é um fim em si, dando-se mais importância ao controle de populações. Os efeitos preventivos da repressão policial são colocados em questão perante a constatação de que, mesmo aqueles que foram detidos, não abandonam a prática do uso público, levando a constatação da recorrência do consumo público de drogas pelos já advertidos pela justiça. No Pelourinho, por exemplo, observei alguns usuários que foram abordados e levados à delegacia por uso de drogas ilegais, mas que voltaram a frequentar os mesmos

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espaços e também consumir novamente as mesmas substâncias que levaram ser detidos. Todos eram negros, de classe baixa e moradores das periferias, portanto, já estavam acostumados com o tratamento policial e já conheciam todo o procedimento dos oficiais. Inclusive ironizavam o fato de terem sido detidos e brincavam com os delegados dentro da própria delegacia, sabendo que o fato não geraria grandes consequências para eles. A força policial não se demonstrou eficaz para eliminar a presença dos usuários nos espaços urbanos e muito menos conter o consumo de drogas, até porque esta prática também era feita pelas pessoas de classes médias que quase nunca eram abordadas. Conclui-se, então, que, na prática, as sanções formais não são respeitadas e não são efetivas. A partir da observação em campo, têm-se a impressão de que há uma maior ênfase na criminalização da pobreza do que com a segurança, prevenção e cuidado com a saúde física e mental dos usuários de drogas por parte das políticas públicas de Estado. Afinal, pode-se constatar que as sanções formais executadas pela policia militar não correspondiam a uma lógica de prevenção e educação aos citadinos. Algumas vezes a sua presença ostensiva não significava a certeza de repressão ao consumo explícito. No entanto, a sua ausência não eliminava a tensão de uma possível operação surpresa com um grande efetivo instruído para aterrorizar os usuários de drogas. Como observado na Escadaria do Passo, às terças-feiras, nos dias em que havia alta taxa de consumo, repentinamente surgiam viaturas cheias de oficiais fardados prontos para abordar e interrogar, de forma autoritária aqueles que simplesmente desejavam uma noite de lazer no Pelourinho. Geralmente os abordados e detidos eram jovens, negros e pobres das periferias de Salvador. Portanto, o agenciamento do consumo público e explicito de drogas é relativo ao tipo de equipamento urbano, variando assim os fatores liberdade e risco para certos contextos ritualísticos peculiares a cada droga e, principalmente à rede de pares a qual se situa o usuário de substâncias psicoativas. Dito isto, uma segunda questão aqui se levanta: para se consumir drogas de forma explícita é necessário desenvolver certas habilidades através da aprendizagem social e dos controles informais sociais. Estes elementos, que se dão em diversos rituais sociais, interagem com outra problemática antropológica: o espaço ou território urbano, resultando em um outro elemento simbólico fundamental para entender a cultura do consumo público de drogas: a cidade como produtora e reprodutora da cultura da droga, e por conseguinte, do circuito legalize.

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Em relação ao lazer urbano, o circuito das drogas se destaca, já que, desde há muito tempo, é impossível imaginar um contexto de entretenimento, seja urbano ou não, sem o consumo generalizado de substâncias psicoativas. Para muitos usuários é inconcebível desfrutar um show de reggae ou de música baiana sem o consumo de drogas. Ao sair para um determinado palco ou praça onde será o local de lazer um dos objetivos principais é se entorpecer, "ficar louco", "doidão". Para alguns, é somente através do uso de psicoativos que seria possível alcançar a sensação desejada para a recreação e o lazer nestes espaços. Os motivos são os mais diversos, desde o relaxamento dos problemas no trabalho, até os desentendimentos afetuosos com seus relacionamentos amorosos. Para outros, o lazer na cidade não tem sentido se não for acompanhado do consumo de drogas. É comum ouvir dos interlocutores a seguinte frase: "de cara não dá pra curtir, só mesmo chapado." O agenciamento do circuito legalize também será analisado com base na categoria “territórios marginais” de N. Perlongher, já que sua concepção não reduz os territórios apenas como espaços geográficos, mas ressalta a relação crucial destes com as redes de grupos que os ocupam. Segundo o autor, o território, “se examinarmos com atenção, não é apenas - embora basicamente - geográfico, pois, à medida que opera como fator determinante no comportamento dos habitantes, impõe, ou tende a propor, conforme as condições de sociabilidade territorial, perfis definidamente psicossociais”. (PERLONGHER, 2005, 268) Tal afirmação explica porque apenas alguns territórios são ocupados para o uso de drogas ilegais. Não são todos os espaços de lazer aqueles em que encontramos o uso de drogas. Além disso, os espaços legalize, algumas vezes, não são ocupados pelos usuários de substâncias ilícitas. Em determinados eventos o público não é o mesmo demonstrando que o uso explicito de drogas não depende apenas do espaço, mas do contexto como um todo. Percebi que apenas determinadas bandas e estilos de música atraem os usuários tornando a categoria legalize bastante fluida e flexível. Os usuários sabem onde ir e quais os momentos certos que podem ficar à vontade e com segurança para consumir suas substâncias. A metrópole contemporânea se apresenta como um território bastante diversificado culturalmente. As sociabilidades dependem de uma relação complexa com as territorialidades que, por sua vez, guardam históricos significados simbólicos. Os grupos sociais se estabelecem entre pares, mas se relacionam, em sentido macro, em redes ou circuitos, não sendo imunes ao contato frequente com outros grupos dominantes ou não, que diferem entre si e em relação aos outros, quanto aos seus posicionamentos morais, ideológicos e práticos.

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Esse agenciamento peculiar da cidade proporciona uma complexidade simbólica entre a rede de circuitos urbanos e suas respectivas manchas, trajetos e pedaços. Isso significa que as redes de usuários, ao se relacionarem de forma constante e dividirem territórios no trajeto entre os diferentes circuitos e seus respectivos pedaços e manchas (MAGNANI, 2012), trocam símbolos, estabelecem relação de poder e disputam seus territórios. Desta forma, entende-se a concepção dos territórios marginais (PERLONGHER, 2005) abordada anteriormente. Em relação ao uso de drogas explícito e coletivo, foi possível constatar que, ao ocupar os equipamentos da cidade, os grupos sociais disputam seus territórios e produzem sociabilidades. Sendo mais específico: o uso de drogas, por ser um fenômeno cultural antigo e presente em vários circuitos sociais, é fundamental para entender a cidade e sua dinâmica de ocupação social. Em outras palavras, os circuitos legalize são aqui concebidos como territorialidades comuns, no intuito de evitar associação com a palavra marginal, como sugeriu N. Perloguer. A cidade, enquanto categoria antropológica, é crucial para os fins desta pesquisa. Na era contemporânea, os usuários das diferentes metrópoles têm algo em comum: suas diferenças identitárias que se distribuem entre as redes de pares. Isso significa que, na cidade não se encontra um determinado tipo ideal de cidadão, ou seja, os papeis sociais se mesclam, gerando identidades relativas e não absolutas. O intercâmbio que acontece constantemente no espaço urbano permite, por exemplo, que indivíduos de cabelo rastafari sejam usuários de drogas sintéticas, como a cocaína e o LSD (apesar de ser corrente entre diversas vertentes desse movimento religioso preconizar o vegetarianismo, a abstinência de bebidas alcoólicas e a restrição do uso a Ganja [cannabis] a rituais sacramentais específicos). No Pelourinho, por exemplo, foram observadas diversas vezes as chamadas “patricinhas” fumando maconha com jovens negros de periferia, apesar de sua distância social na vida cotidiana. Também não se pode negar a existência de policiais que usam drogas ilegais, e até artistas de renome internacional que fumam crack. Tal mistura simbólica de papeis sociais é potencializada pelo constante fluxo entre as redes de pares que ocupam as grandes metrópoles e que se entrecruzam. É importante notar que o uso de drogas está espalhado por quase todos os espaços urbanos e em quase todas as relações sociais, principalmente se o recorte for o lazer urbano. Seja numa praça pública ou num local privado e pouco exposto à repressão proibicionista, as mais diferentes drogas são consumidas, desde o tabaco e a cerveja, até o mais temido crack,

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independente do equipamento urbano. O que vai determinar um espaço ser ou não legalize serão tanto a frequência de uso, mais ou menos constante, quanto a tolerância das redes de pares envolvidas, incluindo usuários e não usuários de drogas ilegais. Assim, o tipo de droga consumida em público não é limitado pelo espaço geográfico em si, ou circuito urbano, ou seja, o que vai determinar o consumo público e explícito de uma determinada droga ilegal, não é o espaço, mas sim, o contexto prático da situação. O crack, por exemplo, pode ser consumido por artistas famosos em lugares frequentados pela elite e a mais pura cocaína pode ocasionalmente ser oferecida gratuitamente nas vielas e becos mais perigosos do Centro Antigo de Salvador. O que vai determinar onde e qual droga é consumida não é o usuário ou o local, mas a relação intima entre os grupos ou rede de pares e os espaços urbanos ou as chamadas territorialidades. (PERLONGHER, 2005) Certa vez, estava observando dois usuários de cocaína brancos e de classe média em um restaurante no Pelourinho. O local estava vazio e, por isso eles estavam bem à vontade à espera de um evento em uma das praças. A liberdade foi tamanha que, mesmo na mesa onde estavam sentados, um deles preparava as carreiras do pó e ali mesmo consumiam. A única preocupação deles era a aproximação do garçom que nada percebeu do comportamento inusitado. A posição em que eles se dispuseram, um de frente para o outro, garantia a possibilidade de uma visão total do espaço e de uma eventual aproximação de clientes ou dos funcionários. É evidente que não poderiam consumir crack ou maconha neste contexto, já que seria muito mais perceptível devido ao cheiro forte exalado pela fumaça. Como a cocaína não oferece esse risco, eles sabiam da possibilidade de tudo ocorrer sem maiores problemas. Da mesma forma afirma J. G. Magnani que, diferentemente do que muitas vezes ocorre em análises nas quais a oposição público versus privado é tomada como princípio classificatório, não se pode reduzir as diferentes formas de destinações e ocupações do espaço com base nessa dicotomia, como se ela operasse de forma unívoca: “Penso, contudo, que não se trata de um continuum, com pontos fixos, mas de posições numa relação; perder de vista esse caráter relacional da oposição significa reificá-la, tornando-a, por conseguinte, inoperante como princípio classificatório.” (MAGNANI, 2012) Como já dito, os espaços legalize podem ser qualquer equipamento urbano, seja em circuitos de lazer, recreação, religião, educação, político, e até mesmo em hospitais universitários. Certa vez, fui ao encontro de um amigo branco e de classe média que tinha me prometido vender uma porção de maconha. O local seria um hospital e centro de pesquisa de biomedicina de uma universidade pública, em um bairro nobre da cidade. Quando o encontro

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dentro do prédio, ele me chama para subirmos até o terraço para fumar um baseado. Levei um susto já que se tratava de um estabelecimento bastante formal e inusitado para tal prática, mas ele me responde: "Que nada, cara, eu faço isso direto. Quando tô estressado no trabalho subo aqui pra fumar um (baseado) e relaxar um pouco. Quase não tem ninguém que vai lá. É sossegado, relaxa." Não importa se o espaço é público ou privado, provavelmente, neste instante, deve ter alguém consumindo drogas na cidade. Para além dos ambientes urbanizados e com equipamentos modernos, o consumo público e explícito de drogas também é dado em circuitos não urbanos. No litoral sul e norte da Bahia é bem comum os moradores da capital passarem temporadas em tempos de férias e feriados. Os usuários de drogas se sentem bem mais à vontade, já que as sanções formais repressoras não se apresentam com a mesma frequência e contingência que nas capitais, o que garante mais segurança. O ambiente e contexto de descanso e fora da rotina de trabalho também são motivos para o consumo de drogas ilegais. Poderíamos até afirmar que nestes locais menos urbanos existem muito mais espaços legalize do que na cidade grande. No entanto, para fins deste trabalho, o recorte etnográfico buscou descrever e analisar o uso de drogas lícitas e ilícitas na cidade. Apesar do campo etnográfico estar limitado a alguns espaços e sua descrição de forma aleatória, o que se pretende aqui é traçar algumas linhas gerais sobre as regras, controles, rituais, agenciamentos e outros elementos simbólicos específicos do fenômeno do uso de drogas contemporâneo. No capítulo seguinte será dado mais ênfase ao circuito legalize do Centro Antigo de Salvador. 3.2 O consumo público de drogas no Brasil: do diambismo aos dias atuais. Segundo o antropólogo e historiador L. Mott, “o canabismo foi introduzido no Brasil pelo negro escravo, (...) quase todos os investigadores dizem que a diamba é de origem africana, trazida que foi pelos negros do Congo à época da escravatura.” (MOTT, 1986, p. 119) Apesar dessa pesquisa não se limitar ao uso da maconha, é interessante perceber o processo de ressignificação do consumo coletivo de drogas nas cidades atuais e comparar com os seus antigos agenciamentos e perceber também o que L. Mott considera a “influência africana no tráfico, plantio, cultivo, consumo e difusão do pito de pango nas terras brasileiras.” (MOTT, 1986, p. 120)

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Uma passagem no texto de José Rodrigues Dória, médico e expoente dos males do uso de drogas no Brasil, descreve o que seria o diambismo tradicional e o que seria o uso recreativo da planta, na época ainda uma prática lícita: Em Pernambuco, a erva é fumada nos ‘Catimbós’ - lugares onde se fazem os feitiços, e são frequentados pelos que vão ali procurar a sorte e a felicidade. Em Alagoas nos Sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que ‘porfiam na colcheia’, o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas últimas palavras do contendor. (DÓRIA, 1986, p. 26) (grifo nosso)

A seguir, J. R. Dória relata alguns equipamentos urbanos característicos dos circuitos legalize e alguns agenciamentos para o uso explícito de maconha: “É fumada nos quartéis, nas prisões, onde penetra às escondidas; é fumada em agrupamentos ocasionais ou em reuniões apropriadas e nos bordéis. Muitos fumam isoladamente à semelhança do uso do tabaco.” (DÓRIA, 1986, p. 27) (grifo nosso) Irônico pensar que os quartéis e as prisões ainda pertencem ao circuito legalize. Um interlocutor negro de um bairro periférico que frequenta o Centro Antigo de Salvador e que é oficial da marinha me relatou que fuma quando está alojado em seu quartel. Para fumar maconha ele relata “sem problemas, irmão. Lá o campo é vasto, tem uma área grande. Depois dos serviços, a gente se entoca num canto e fuma de quebrada (escondido).” Em relação ao período em que viveu e pesquisou J. R. Dória, hoje em dia o consumo de drogas, e não somente da maconha, está mais banalizado, não se resumindo ao isolado, escondido, ou em agrupamentos “ocasionais” e “apropriados” de forma disfarçada. Em outras palavras, percebeu-se que os usuários de drogas têm ocupado mais territórios, o que proporciona uma maior abrangência do que seria o circuito legalize. O mais irônico ainda é observar o uso de drogas explícito e em público, mesmo com a presença e consentimento das sanções formais. No capítulo seguinte desta tese será relatado como se dá e o quanto é explícito o consumo de drogas em alguns circuitos de lazer no Centro Antigo de Salvador. Porém, antes disso, algumas considerações devem ser levantadas. Segundo o antropólogo britânico V. Turner, as relações sociais dentro de determinado contexto social não deveriam ser consideradas apenas em sua forma socioestrutural. Desta forma, o autor destaca a “communitas” como outra modalidade, para “a constituição de relações sociais entre indivíduos não segmentados em posições sociais. Nesta forma de se relacionarem, os indivíduos podem interagir com autêntica reciprocidade”.

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Assim, a communitas seria marcada pela espontaneidade e, por isso, de caráter jurídico/político oposto ao da estrutura. Assim como observado em campo, o consumo explícito de drogas na cidade ocasionalmente leva, em algumas vezes, um sentimento de communitas, porque tal situação também tem o fim de satisfazer os participantes. Todavia, “por razões materiais de sobrevivência do grupo, condenada a ter uma vida curta e, em decorrência disto, as relações entre indivíduos retornariam à relações normatizadas entre ‘pessoas sociais’.” (TURNER, 1974 APUD ALVES, 2015) Em sua pesquisa de doutorado sobre a cracolândia em São Paulo, o antropólogo Y. Alves descreve o que seria a communitas e sua relação conceptual com a categoria de circuito legalize. A roda de crack aproxima-se de uma das formas de apresentação da ‘communitas’ conforme classificação de Victor Turner, que oferece como exemplo, a “communitas” existencial, correspondente aos happenings dos hippies dos anos 1960 e início dos anos 1970, nos EUA. Ela seria uma experiência de reciprocidade imprevisível e única. Os hippies buscariam este estado de liminaridade, de estar no limite entre dois estados diferentes de existência, através do uso de drogas empregadas para ‘expansão do pensamento’. (TURNER, 1974, p. 168) Não apenas as sociedades préletradas, mas também as sociedades complexas e estruturadas seriam entrecortadas por momentos de liminaridade espontânea, nos ‘intervalos entre os encargos das posições e condições sociais’. (TURNER, 1974, p. 168) Os momentos de lazer e recreação, como os shows de rock, com suas luzes, som em alto volume e consumo de drogas, seriam para Turner oportunidades para se criar uma comunhão de uns com os outros. Esse seria um estado de completa reciprocidade e profundamente transformador, no qual se poderia ir até o íntimo de cada um e aí encontrar algo de intrinsecamente comunal e compartilhado. Uma existência em êxtase, ou seja, fora das normas e suas posições estruturais. Assim, a ‘communitas’ aparece como uma grande tentação humana, a tentação do gozo dos sentimentos prazerosos proporcionados pela liberação das inclinações pessoais das amarras dos desejos e necessidades do social estruturado. (ALVES, 2015, p. 187,188).

Dito isto, podemos ver a relação intrínseca entre o lazer urbano e o circuito das drogas. Em diversos equipamentos urbanos, observamos a sua ocupação, seja momentânea, temporária ou frequente por usuários de drogas lícitas e ilícitas. Alguns exemplos, que atualmente recebem destaque nos meios de comunicação e na literatura especializada, vêm à mente como: as cracolândias (ALVES, 2015); as festas e festivais de música eletrônica (ANDRADE, 2009); universidades; clubes e boates privadas; além de concertos e shows musicais em grandes espaços abertos. O interessante a se notar é a mudança dos territórios e os agenciamentos do uso coletivo e explícito de drogas em relação às formas tradicionais já descritas na literatura

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específica. O diambismo e outras formas de consumo coletivo fazem parte da história cultural brasileira e, de certa forma, ainda estão presentes na atualidade, com certas ressalvas. O uso tradicional de drogas no Brasil acabou por reproduzir alguns agenciamentos originais da cultura africana, que por sua vez produziram dinâmicas afro-brasileiras cujos relatos são encontrados na literatura específica. Os diferentes modos de consumir drogas, em público e de forma explícita, eram próprios dos seus contextos (settings), em seu tempo e localização específica, regidos por determinadas circunstâncias políticas e sociais. No entanto, ao final da análise dos dados de campo, a impressão é de que o consumo público de drogas se banalizou, no sentido de que não só se dá mais de forma escondida e reservada (MACRAE; SIMÕES, 2000), nem se reduz ás áreas esquecidas, onde não há circulação de pessoas (chamados por J. G. Magnani de pórticos), e muito menos, restritas aos chamados territórios marginais (PERLONGUER, 2005). A observação participante em algumas capitais brasileiras demonstrou que o uso coletivo de drogas é praticado em espaços de alta circulação social e importantes valores simbólicos. A observação participante em vários equipamentos urbanos de algumas capitais brasileiras, e em específico no Centro Antigo de Salvador, demonstrou que o circuito urbano de uso de drogas ocupa importantes espaços urbanos, em especial os que fazem parte do circuito de lazer. Neste sentido, percebemos uma mudança de agenciamentos para o consumo explícito de drogas ilegais em relação ao chamado diambismo (HENMAN; PESSOA, 1986; DE SOUZA, 2012; SAAD, 2013) O uso tradicional da maconha descrita na literatura citada guarda certas peculiaridades interessantes, as quais serão descritas para posterior análise. Vejamos como se dava a produção dos espaços legalize no Brasil em épocas passadas. Através da dissertação do historiador J. L. De Souza, é possível ter alguma noção de como se dava o uso coletivo de drogas no início da república, quando os resultados de diversas pesquisas foram divulgados de maneira a criar um pânico moral5 sobre a cultura diambista. Em seu livro, J. L. De Souza descreve relatos sobre as “diferenças na técnica de consumo em contextos sociais diferentes: no interior [zona rural], onde a repressão policial ao uso de psicoativos parecia ser menos ostensiva, era mais comum observar-se o uso do cachimbo.” Nas capitais, todavia, onde a vigilância se tornava mais visível e o Estado organizava o espaço, predominavam os cigarros. Segundo o historiador, “podemos arriscar, por motivos evidentes, que em caso de repressão policial fosse muito mais fácil se livrar de

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Conceito discutido no capítulo 1

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um cigarro que de um cachimbo, pois este é mais visível e difícil de transportar sem ser percebido pelas autoridades.” (DE SOUZA, 2012, p. 121/122) Atualmente, como observado em alguns centros urbanos, percebemos semelhantes estratégias para driblar as sanções formais repressoras, mas também é possível observar o consumo de cachimbos bem próximos às autoridades e nenhuma ocorrência ser registrada. Tanto no Pelourinho, como na Jam no MAM foi constatado o uso de cachimbos e maricas artesanais de forma explícita, mesmo com a iminência das sanções repressoras. Os usuários expunham os artefatos em público como um troféu ou algo normal diante de todos e não se preocupavam com os riscos legais da prática, ao contrário, tinham prazer no comportamento inusitado e se sentiam valorizados com a atitude corajosa e incomum. Neste caso se demonstra a sensação de liberdade e segurança própria dos espaços legalize garantindo aos usuários agir normalmente em público como agem em ambientes privados e escondidos. Em outra passagem de sua dissertação, J. L. De Souza narra um conto sobre uma reunião onde se percebe uma prática ritualizada e antiga, mas que guarda semelhanças e diferenças com maneiras de uso atuais. O emprego da ‘maricas’ para fumar e um lugar de destaque para o objeto na prática; os procedimentos são realizados por um ‘veterano’, ou seja, alguém de status elevado entre os presentes, que, por sinal, sentava à cabeceira da roda; há preparativos, objetos e elementos para consumo são dispostos numa esteira; há uma série de comportamentos de exaltação da erva e da ‘maricas’; são proferidos versos que remetem ao uso da maconha, onde um se pronuncia primeiro e os demais presentes respondem em coro; há ainda o caráter de iniciação da reunião, com um dos presentes experimentando pela primeira vez. (DE SOUZA, 2012, p. 124)

O historiador cita ainda o explorador britânico Richard Burton quando este assinalou o uso recreativo de maconha por escravos em dias festivos no século XIX: “Os preguiçosos e dissolutos iriam gozar a santidade do dia à moda africana, deitados ao sol e, se puderem, bebendo e fumando haxixe, como os semi-selvagens da Serra Leoa.” (grifo nosso) Segundo o J. L. De Souza, R. Burton: (...) dá pistas acerca da variedade das formas de consumo da maconha, pois percebeu que a bebiam e a fumavam. (...) Seguindo as indicações de Burton e do Dr. Barbosa (...) dois exploradores portugueses que chefiaram uma expedição por regiões da África centro-ocidental entre 1877 e 1880. Ao alcançarem a nascente do Cambo, um afluente da bacia hidrográfica do rio Congo, situado no atual território de Angola, encontraram um grupo de homens ‘fumando a fatal liamba’: Surpreendidos por uma medonha trovoada, seguida de chuva diluvial, conservamo-nos acampados, com grande satisfação dos nossos, que, em meio de uma nuvem de espesso fumo,

111 enchendo completamente os fundos, passavam de boca em boca o cachimbo carregado de tabaco, muito abundante nas terras dos Bondos; substituindolhes pouco depois a mutopa, em que se consome a fatal liamba (Cannabis sativa). Os fumantes sentam em derredor de um amplo braseiro, d’onde tiram com pequenas tenazes o carvão para começar a operação. O primeiro que a conduz aos lábios, depois de ter quatro ou cinco vezes aspirado o precioso fumo, estendendo os beiços e chupando sôfrego, desata num vivo acesso de tosse, o qual parece tanto mais satisfatório quanto mais próximo esteve da sufocação. (op. cit. p. 128) (grifo nosso)

O relato segue comprovando que o uso coletivo da diamba teria como fim o lazer coletivo. O cachimbo é logo entregue ao imediato, que continua o processo e fica estatelado, roncando de modo singular. A água dentro do chifre borbulha, deixando passar as bolhas de fumo, que produzem ruído especial. Em breve um vacarme de urros nada permite ouvir-se. Os circunstantes, com a boca cheia de saliva, que expelem a miúdo, prosseguem na faina, rindo, falando, excitados pela ação perturbadora do cânhamo. Inspira na verdade dó ver semelhante cena. Mas como impedi-la, se para eles é isto um dos maiores deleites em que podem empregar o tempo? A princípio intentamo-lo; mas infrutífero esforço, porque, fugindo para o mato, faziam clandestinamente! (op. cit. p. 129) (grifo nosso)

No Brasil, a prática se reproduzia e o clube de diambistas, então, seria uma reunião ritualizada com regras e um repertório de práticas onde os presentes “fumam e caem em ‘gargalhadas’ e ‘ditos chistosos’, alternando ‘baforadas de diamba’ e ‘versos com termos africanos’.” No início da República, os clubes de diambistas seriam basicamente “uma reunião na casa de alguém com status elevado no grupo, onde fumam, geralmente, por meio do cachimbo e proferem versos, em tom de desafio ou não, relativos à maconha, uma peculiaridade do uso no Brasil.” Segundo J. L. De Souza, outros autores apresentaram mais observações sobre essas reuniões, “aprofundando ora um ponto ora outro em relação a como funcionavam.” (DE SOUZA, 2012, p. 147/148) Assim, o objeto desta pesquisa se demonstra importante para observar e identificar as alterações, e até a construção de novos agenciamentos peculiares aos circuitos contemporâneos do uso de drogas no Brasil. No livro Rodas de Fumo (2004), E. MacRae e J. Simões abordaram sobre o uso urbano de maconha entre as camadas médias em Salvador e em São Paulo. Segundo eles: Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a utilização social das propriedades psicotrópicas da maconha não é costume recente no Brasil. Acredita-se que o hábito de fumar a cannabis tenha sido introduzido no país por escravos africanos desde a colonização (Dória, 1986 (1915); Iglésias, 1986 (1918); Moreno, 1986 (1946); Mott, 1986). Já neste século, o uso da erva se difundiu por algumas áreas do Norte e Nordeste do país, entre

112 populações indígenas, habitantes de zonas rurais e segmentos urbanos populares e marginalizados (Iglésias, op. cit.; Moreno, op. cit.; Henman, 1982; 1986) Entre grupos negros do Nordeste e indígenas que com eles devem ter mantido contato, a maconha era empregada ‘como erva medicinal, estimulante no trabalho físico e nas pescarias, e como agente catalisador das rodas de fumantes que se reuniam no fim da tarde’ (Henman, 1982:7). Observadores e estudiosos de cultos afro-brasileiros fizeram referências à utilização da maconha em rituais religiosos, e alguns, como Gilberto Freyre, chegaram a associar as tradições religiosas e a maconha como elementos culturais de resistência à "desafricanização" (Mott, op. cit.). (MACRAE; SIMÕES, 2004, p. 19) (grifo nosso)

Como o recorte dado nesta pesquisa se limitou aos circuitos de lazer urbanos, muitos dos contextos aqui descritos e analisados se referem ao uso recreativo de substâncias psicoativas. Apesar de terem sido observados usos medicinais, terapêuticos e políticos, (como forma de resistência), o objetivo desta pesquisa foi descrever quais a relação entre o uso de drogas e o lazer, analisando os agenciamentos peculiares para a ocorrência deste fenômeno urbano em algumas cidades na atualidade, quais sejam: suas regras, estratégias, rituais, suas sociabilidades, e também, seus controles e sanções formais e informais. Tais agenciamentos sofreram impacto quando foram criminalizados pelas autoridades brasileiras depois da segunda metade do século XX. Segundo J. Simões e E. MacRae: As novas perspectivas de atuação organizada e sistemática viriam consolidar o tema da maconha como uma preocupação social, através da imprensa diária. A partir de meados dos anos '50, o volume de notícias publicadas sobre o assunto aumentou consideravelmente, veiculando a ideia de ‘desvio de caráter’ do fumador de maconha. Este passou a ser representado não mais como ‘vítima do vício’ mas como ‘desordeiro’ que promovia verdadeiras invasões do espaço urbano. O discurso jornalístico adotava uma forma bastante homogênea para relatar esta condição. Usando um estilo quase sempre irônico ou sarcástico, enfatizava uma suposta índole do ‘maconheiro’, mais do que o problema genérico do uso de drogas. (MACRAE; SIMÕES, 2004, p. 22)

Segundo estes autores, estas representações norteariam o modo como “as novas gerações seriam prevenidas, instruídas, ou, surpreendidas por seus familiares como consumidores de maconha.” (2004, p. 22) As consequências para o uso coletivo de drogas na contemporaneidade são inúmeras. Uma delas é a associação direta entre o circuito da criminalidade e o circuito de lazer da cidade, proporcionando a presença iminente da polícia militar, instruída para aplicar sanções repressoras em citadinos e usuários de drogas. Assim, o contexto de lazer sofre interferência por parte dos representantes das sanções formais, na medida em que um de seus elementos (o consumo de drogas) é perseguido. Sendo assim,

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percebemos que o circuito legalize agrega pelo menos dois circuitos urbanos (o da criminalidade e o do lazer), que, por sinal, têm limites simbólicos muito tensos. Uma clara consequência negativa decorrente dessa situação seria a criação de sentimentos generalizados entre certos setores da população de desrespeito e antipatia social em relação às autoridades de segurança. Em diversas vezes, a presença de autoridades fardadas provocava constrangimentos e até a fúria de alguns jovens negros de periferia. Em diversos momentos percebi no Pelourinho usuários xingando e desprezando os oficiais presentes nos espaços legalize. A função deles é coibir o consumo, ou seja, justamente aquilo que os usuários pretendem fazer nestes espaços. A única coisa a se fazer é aguardar a saída deles ou procurar outro local para o consumo. Certas vezes eu ouvia de usuários a frase: "O quê que esses caras tão fazendo aqui? Eu quero só fumar minha erva pra ficar de boa. Esses caras não têm mais nada pra fazer ao invés de ficar atrasando nosso lado?" Outras ocasiões os usuários ficavam bastante bravos com os oficiais e diziam: "Sai logo daqui, cambada! Eu quero fumar a porra de meu baseado!" Desta forma, os usuários da cidade ocupam os circuitos legalize mesmo que não haja uma regulamentação legal para isso. Do mesmo jeito, estes usuários constroem estas territorialidades não necessariamente e exclusivamente para o consumo de drogas, mas sim com o fim de produzir múltiplos agenciamentos e sociabilidades proporcionados de formas distintas por cada equipamento urbano ou não. Isso significa que os circuitos são construídos pelos próprios citadinos e de certa forma tolerados (em alguns casos até subsidiado) pelo poder público. Neste sentido, os controles e sanções formais e informais não se demonstraram eficazes em seus propósitos fundamentais de contenção do uso de drogas porque justamente este fenômeno social faz parte da dinâmica da cidade e corresponde à demanda de muitos usuários que buscam o lazer e a recreação através dessa prática tornada ilícita. Após a análise de campo, entendeu-se que o cuidado e a atenção à saúde mental, com enfoque na redução de riscos e danos, seriam estratégias melhores para garantir os direitos humanos dos usuários de drogas, que também são usuários da cidade. Outro dado constatado foi que a ausência da polícia e a falta de repressão possibilita aos jovens criarem o costume e a cultura do uso público e explícito de substâncias ilícitas em ambientes de lazer. A tolerância das pessoas também facilita uma sensação confortável e relativamente segura. A categoria legalize, portanto, representaria uma certa segurança em relação à possibilidade de repressão ou invasão de privacidades, seja por sanções formais ou outros controles informais.

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Outro dado importante observado seria a relevância de fatores simbólicos como tradição, costume, tolerância e frequência do fenômeno urbano estudado. Em praticamente todos os territórios e circuitos legalize pesquisados através de observação participante, havia a associação entre o lazer urbano e o consumo de drogas lícitas ou ilícitas. A concepção entre os frequentadores e usuários dos circuitos legalize com quem tive contato basicamente se resume em uma fala: “Ahh! A maconha tá liberada. Pelo menos em espaços como este devia ser liberada. Tá maluco, vei!! A galera fuma em alta (muito) aqui e ninguém fala um ai, tá ligado?” Este depoimento foi coletado num dia de sábado à noite no Solar do União, onde se localiza o Museu de Arte Moderna de Salvador, na apresentação musical chamada Jam no MAM, objeto de análise desta tese. Para além de entender o uso recreativo de drogas, através desta pesquisa, pode-se compreender algo sobre a cultura de uso das drogas em geral, já que os relatos não se limitam aos circuitos legalize, mas refletem diversas situações em que os usuários agem quando estão usando drogas, tanto em territorialidades privadas, como públicas. Os dados de campo demonstraram elementos simbólicos sobre o consumo entre grupos (ou rodas) de usuários e como eles se comportam diante dos obstáculos para consumir as drogas ilícitas. Neste sentido, não se pode limitar o fenômeno de consumo público e coletivo de drogas exclusivamente àquilo que no senso comum é conhecido como consumo recreativo. A sociabilidade das drogas abrange outras concepções e símbolos culturais pertencentes a outros circuitos urbanos. Neste sentido, os circuitos legalize dividem simultaneamente territorialidades (equipamentos urbanos) com outros circuitos da metrópole. Na cidade, sejam moradores ou turistas, aqueles que procuram lazer sabem antecipadamente quais os equipamentos urbanos associados aos respectivos circuitos (pedaços e manchas) legalize. Um ponto curioso a se analisar seria qual a abrangência do sentido partilhado da categoria e o quanto este sentido partilhado legitimaria o fenômeno do uso coletivo de drogas como parte do lazer. Dito isto, é pertinente também analisar posteriormente como estes equipamentos urbanos garantem liberdade para as atividades ilícitas? De que forma os circuitos legalize resistem a investidas violentas e continuam conhecidas na cidade como territorialidades marginais e criminalizadas? Por que as sanções formais não são tão eficazes como os controles informais dos próprios usuários? Talvez as respostas se encontrem nas diferentes sociabilidades e agenciamentos do uso coletivo de drogas que garantem a legitimação da ocupação dos usuários destas substâncias nos equipamentos urbanos, seja para fins políticos, recreativos, terapêuticos ou

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religiosos. Quando perguntados sobre o significado da categoria legalize, alguns usuários destas manchas de lazer passam a ideia de que “tá tudo liberado”, e por isso, como afirmaria J. G. Magnani, estabelecem seus pedaços. Outra observação do campo que levanta questionamentos são as semelhanças dos contextos, agenciamentos, regras, rituais, linguagens, controles e sanções sociais nas diferentes regiões vivenciadas durante os anos de pesquisa. A categoria êmica legalize é frequentemente usada a todo momento, em diversos circuitos e representa semelhanças independente do equipamento urbano e da região. A categoria legalize, portanto, guarda lacunas semânticas ainda não resolvidas. Como é possível o modelo político ser de criminalização de determinados circuitos legalize, apesar de também contribuir para a legitimação destas territorialidades? Porque há a prioridade em criminalizar os circuitos legalize mais vulneráveis? Como vimos na literatura apresentada, o uso de drogas ilegais teve sua origem em determinadas camadas sociais e em certos equipamentos urbanos, ao longo da história, e seus respectivos processos culturais se modificaram gerando novas formas e agenciamentos para o uso de drogas. Dito isto, o consumo de substâncias psicoativas, sejam legais ou ilegais, ao buscar um estilo de vida alternativo e uma expressão da liberdade, estabeleceu relações simbólicas estruturais com o lazer urbano. Da mesma forma, este fenômeno social influencia e é influenciado por outros circuitos, locados em suas determinadas manchas, pedaços e trajetos na cidade. (MAGNANI, 2012) Como foi demonstrado, os circuitos legalize fazem parte do lazer urbano. O que parece impedir a eficácia do modelo proibicionista é a tentativa insistente em manter tabus e preconceitos, ao invés de reconhecer as territorialidades do uso de drogas não como marginais, mas como parte legítima da vida social urbana. Vejamos agora os relatos de campo e suas respectivas análises qualitativas através do trabalho etnográfico mais detalhado sobre o circuito legalize no Centro Antigo de Salvador.

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4. O circuito legalize no Centro Antigo de Salvador. No capítulo anterior, buscamos apresentar a categoria nativa legalize e suas características mais genéricas como um fenômeno social, descrevendo contextos de consumo público e coletivo, em alguns equipamentos urbanos observados. Neste capítulo, pretendemos fazer a descrição e análise do trabalho de campo realizado no Centro Antigo de Salvador (CAS), entre os anos de 2013 e 2014. Durante dois anos, frequentei o circuito de lazer da região e mantive contato com rede de grupos de usuários de drogas ilegais, o que levou a visualizar uma parte do circuito legalize local. Assim, esta sessão visa refletir sobre as representações e práticas acerca do consumo público e explícito de substâncias psicoativas nos equipamentos urbanos onde tive contato durante a pesquisa. Na cidade de Salvador, assim como em outras cidades, é possível perceber diferenças nas sociabilidades desenvolvidas em diferentes circuitos urbanos entre diversas redes de pares, assim como analisar algumas peculiaridades relativas aos respectivos agenciamentos do consumo coletivo de substâncias ilícitas, em circuitos de lazer urbano. A metodologia da pesquisa consistiu, portanto, em estabelecer contato frequente e confiança com rede de pares aleatórias e observar suas formas de ocupação das suas respectivas territorialidades. Como o uso de drogas envolve práticas ilícitas, a inserção no campo e a relação com as redes de usuários foi feita com cuidado e cautela para poder levantar o máximo de informações possível. A confiança foi estabelecida na medida em que eu participava das práticas e acompanhava os grupos da forma mais natural possível sem demonstrar que se tratava de uma pesquisa científica. Ao usar a mesma linguagem dos nativos, fornecer utensílios para o consumo e fazer uso das mesmas substâncias que eles, pude estabelecer um vínculo maior e conseguir os dados através da observação participante nos campos de pesquisa. Da mesma forma, foram detectados pedaços, manchas, trajetos e pórticos, que compõem o que seria o circuito das drogas, ou seja, mais um dos circuitos urbanos. (MAGNANI, 2012) Através da comparação, ainda que limitada, dos rituais, controles e sanções formais e informais, próprias de cada territorialidade, foi possível fazer inferências sobre a problemática trazida, o que abriu a possibilidade para a construção da categoria de circuito legalize. A inserção no campo garantiu conhecer como os usuários lidam com o uso de drogas em espaços públicos e também saber a frequência de consumo. O método mais eficaz foi

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participar dos eventos e interagir com as rede de usuários de drogas como um cidadão comum em busca apenas de lazer e entretenimento nos espaços. Desta maneira, construí vínculos de amizade através dos frequentes encontros com os grupos de redes e também quando compartilhava o uso de drogas e até oferecia para estes, demonstrando que também era usuário de substâncias ilegais. Apesar de ser um indivíduo branco e de classe média morador de bairro nobre, consegui estabelecer fortes laços com os ocupantes dos espaços legalize para conseguir desenvolver o trabalho de campo. A maioria dos interlocutores era de classe média baixa e moradores de bairros mais pobres, portanto o trabalho de campo envolveu estratégias para efetivar a confiança no compartilhamento das informações necessárias. As idas a campo se deram em quase todos os finais de semana de quinta a domingo nas praças do Pelourinho, aos sábados na Jam no MAM e às terças nos shows de Gerônimo na Escadaria do Passo. A frequência constante nos espaços legalize proporcionaram um maior contato com os usuários e as redes de grupos pesquisadas, assim como uma maior aproximação com eles. Por outro lado, percebi que estes grupos também frequentam bastante estes espaços e também costumam sempre estar presentes nos mesmos locais consolidados para uso de drogas ilegais. Desta forma, tentei descobrir onde e como há o consumo frequente e regular de drogas ilegais no Centro Antigo de Salvador. Através da descrição etnográfica, analisei os trajetos, as estratégias e os saberes que fazem parte do aprendizado social e dos rituais informais dos usuários de drogas, diante de um contexto de criminalização. A observação participante me levou a analisar uma parte dos pedaços e até manchas de consumo de drogas, o que caracterizaria o circuito legalize do Centro Antigo de Salvador. O trabalho de campo foi basicamente observar e participar do circuito de lazer do CAS, com o foco nos rituais e sanções formais e informais relativos ao consumo explícito de drogas. Existe uma programação oficial do Governo do Estado da Bahia que consiste na produção de eventos culturais e também a oferta de serviços independentes. A observação participante constatou onde há o consumo público e coletivo regular de drogas ilegais, ou seja, os espaços caracterizados como legalize da região, indicados em azul nas figuras 1 e 2, respectivamente no Pelourinho e do Solar do Unhão.

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Figura 1 - Mapa do Centro Histórico de Salvador. Fonte: http://viajarcomcarro.com.br/2016/05/13/mapa-ilustrado-turistico-pelourinho/

Figura 2 - Solar do Unhão. Museu de Arte Moderna de Salvador. Fonte: http://www.soteropoli.com/solar_do_unhao01.htm

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O campo de pesquisa foi a cidade, então a metodologia exigiu um processo de estranhamento por parte do pesquisador, que também é nativo. Desta forma, foi necessário diferenciar o olhar de investigação em relação às redes de grupos de usuários de drogas com as quais mantive contato frequente. Apesar disso, a maneira como procurei me aproximar dos interlocutores foi a mais natural possível, sempre como um frequentador do espaço e também usuário de drogas, e quase nunca me apresentei como cientista ou pesquisador aos mesmos. Desta maneira, pude me aproximar dos seus cotidianos como usuários e resgatar informações importantes sobre seus agenciamentos em relação ao uso explícito de drogas. Assim, o trabalho de campo foi realizado diretamente com os usuários de drogas, nos seus respectivos espaços de uso, para saber quais drogas consomem e como agenciam suas práticas e produzem saberes relativos ao uso coletivo de drogas em espaços públicos. Da mesma maneira, por questões éticas, a identidade dos atores sociais foi preservada para garantir a integridade moral dos usuários de drogas, hoje ainda criminalizados. Como o trabalho etnográfico abrange esta questão delicada, preferimos relatar os diálogo de forma anônima e discreta, nunca identificando quem são os atores envolvidos. Foi possível observar o uso explícito de haxixe, cocaína, LSD, crack, e principalmente maconha, que era consumida na maioria dos eventos de lazer observados e em alguns (não poucos) casos, consumida durante todo o momento, e por grande parte daqueles que ocupavam o local. Isso significa que era possível sentir o cheiro de maconha queimada do início ao fim do evento. Da mesma forma, houve dias em que foi observada uma grande quantidade de rodas de fumo interagindo e ocupando o espaço de lazer, fazendo do equipamento urbano um verdadeiro pedaço dos usuários de drogas. Também não era raro observar que, mesmo nos finais dos concertos, quando todos já começam a evadir o espaço, ainda foram notadas rodas de fumo manufaturando os últimos cigarros de maconha para consumir ali, ou em outro local. Isso significa que mesmo tendo consumido a droga durante o evento, ainda havia disposição para usar mais drogas em outros locais da cidade, demonstrando a produção de trajetos e a configuração do circuito do uso de drogas na cidade. Os usuários de substâncias ilegais procuravam sempre ocupar os espaços onde outros usuários frequentavam demonstrando um circuito característico dessas redes e estabelecendo identidade própria nos mais diversos equipamentos urbanos. O Centro Antigo de Salvador, Patrimônio Cultural da Humanidade, por fazer parte do circuito turístico oficial do Estado da Bahia, oferece uma série de atrações culturais e serviços de lazer, entre eles: shows musicais; ensaios de carnaval; festas juninas; apresentações de

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jazz, entre outras opções culturais, ao longo do ano. Muitos destes eventos são ocupados por usuários de drogas, mesmo sob ameaça de repressão policial, devido à uma política de criminalização do consumo e comércio de certas substâncias. O fato observado é que este fenômeno urbano ocorre regularmente e com alta frequência em determinados territórios da cidade e que há a produção de uma cultura do uso coletivo de drogas proporcionada pelo aprendizado social disponível através dos rituais e controles sociais. Desta forma, é necessário interpretar e compreender este fenômeno através de uma investigação etnográfica para entender melhor sua cultura e respeitar seus direitos dos usuários de ocupar a cidade para não serem criminalizados como ocorre atualmente através do modelo político proibicionista. No Pelourinho, observamos usuários de drogas ilegais em espaços como: a Escadaria do Passo, localizada entre o Largo do Pelourinho e o Carmo; nos largos ou “praças”, Tereza Batista, Pedro Arcanjo, Quincas Berro D’água, onde, durante a semana, são palcos para shows musicais e apresentações de projetos culturais; em ruas como a Rua das Flores, onde há o consumo de crack a poucos metros das autoridades policiais e a Rua do Passo onde os usuários consomem maconha e cocaína em frente das casas habitadas; além de espaços privados como em camarins, hotéis, nos banheiros dos restaurantes, e em residências próprias ou mesmo abandonadas. Ao longo do ano, os eventos eram organizados por estilos musicais diferentes de forma simultânea o que concentrava os usuários de drogas em um único espaço. Normalmente, em praças em que se apresentavam bandas de samba, forró e do ritmo axé não havia a presença de usuários, todavia sempre havia a oferta de estilos alternativos como o reggae, rap e hip hop e outros estilos alternativos, o que os atraia. Por outro lado, alguns deles também transitavam pelas praças e ruas do Pelourinho. Neste sentido, foi possível perceber a existência de pedaços, manchas, trajetos e pórticos de uso público de drogas no circuito de lazer do Centro Antigo. Além do Pelourinho, o Solar do Unhão, Museu de Arte Moderna de Salvador MAM, também foi campo de pesquisa neste trabalho. Semanalmente aos sábados, o estacionamento do museu é ocupado por um projeto cultural de parceria com o Governo do Estado chamado Jam no MAM. A partir das 18:00 horas, logo após o pôr do sol, a sessão de jazz dá início, atraindo um grande público entre moradores da cidade e turistas. Não se sabe ao certo como o equipamento urbano se tornou um território de usuários de maconha, mas o fato é que o local é amplamente conhecido como legalize. Desde antes mesmo do projeto dar

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início, em 2001, os usuários de maconha já tinham transformado o estacionamento em seu pedaço. Tanto no Pelourinho, como no Solar do Unhão, o consumo de drogas se manifesta com uma certa ordem porque as redes de usuários destes equipamentos urbanos dominam e respeitam uma série de regras sociais específicas, construídas a partir dos contextos práticos da relação dos equipamentos urbanos e seus usuários, no caso os usuários de drogas. Desta forma, há uma tolerância por parte das instituições repressoras (sanções formais), ou seja, usuários, não usuários, turistas e até a polícia sabem que drogas são consumidas regularmente nestes locais, indicando um certo acordo informal. A prática regular do consumo de drogas acabou consolidando territórios específicos de uso coletivo e explícito de drogas no Centro Antigo de Salvador. A investigação de campo em diferentes espaços pôde apontar algumas diferenças e peculiaridades de cada um deles, assim como as suas influências nos agenciamentos do consumo de drogas. Assim, o objeto da pesquisa de campo se encontra no curioso limite simbólico entre a frequência do consumo público e explícito de substâncias ilegais e uma certa tolerância social deste fenômeno em determinados espaços urbanos do Centro Antigo de Salvador, seja pelos não usuários de drogas, pela vizinhança, ou até mesmo pela polícia. Por ser uma atividade ilícita, o consumo de drogas em espaços públicos requer rituais específicos. Existem muitas estratégias e controles informais contidos no aprendizado social que evitam inclusive uma detenção em flagrante, como "dispensar” o baseado (arremessar o mais disfarçadamente) ou escondê-lo em alguma outra parte do corpo ou pisando nele quando perceber a aproximação do agente repressor. Para além dos agenciamentos dos usuários de drogas, outras variáveis definem um território legalize, como sua posição geográfica. Isso significa que os espaços específicos de consumo não se dão por acaso, mas sim respeitam uma lógica própria. A observação em campo identificou que lugares específicos são reservados e delimitados para o consumo de drogas. Em cada largo ou praça do Pelourinho existe um lugar específico que é ocupado, consolidando assim, sua condição legalize. Geralmente são espaços mais distantes e invisíveis ao grande público, e de preferência, que ofereçam um amplo campo de visão do local. Muitos usuários que estão, por exemplo, no centro da plateia, se dirigem para estes determinados espaços para consumir sua droga. De certa forma, é construído um código informal produzido pelas próprias pessoas que ocupam estes equipamentos urbanos, definindo limites de espaços para o consumo coletivo de drogas.

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Outra variável importante para a consolidação de um espaço legalize é a disposição dos usuários que ocupam o território, ou seja, a forma como o equipamento urbano é ocupado também produz os espaços legalize. Quanto mais populoso o local, mais favorável está para a criação das rodas de fumo. Além de ser fisicamente desconfortável a presença de policiais em eventos lotados, a visibilidade dos delitos fica comprometida. Dito isto, para ser legalize, o espaço segue um código de ocupação cujo objetivo é ocupar estrategicamente o equipamento urbano, evitando assim, transtornos legais. Por conseguinte, os espaços legalize acabam sendo cantos escuros e distanciados do centro do espaço, ou mesmo os fundos e extremidades longe do fluxo central. No entanto, quando o ambiente é propício, seja pela apresentação de um grupo musical de estilo alternativo ou mesmo pela grande quantidade de usuários presentes e principalmente pela ausência das sanções formais repressoras, a totalidade do equipamento urbano acaba se tornando legalize, fazendo com que o uso de drogas ilícitas seja feito de forma a mais explícita possível. Dito isso, o trabalho de campo também levou ao entendimento de que não são somente os espaços que possibilitam o uso de drogas, mas sim o contexto social como um todo. Isso significa que, há uma correlação entre estes espaços e os atores que os ocupam e produzem. Constatamos que, em determinados contextos sociais, não havia consumo coletivo de drogas nos espaços legalize. Sendo assim, a condição para ser legalize, varia de situação para situação, o que não garante uma definição objetiva dos limites físicos da categoria. Por conseguinte, a variável espacial não é a principal definidora para o consumo nestes espaços, mas sim quem os ocupa. A praça Terreiro de Jesus, por exemplo, uma parte central do Pelourinho, onde há uma grande circulação de pessoas e também se configura como uma mancha de comércio e serviços de lazer, certas vezes se tornara legalize. Em algumas ocasiões, a praça transforma-se para ser palco de grandes festas, shows gratuitos e atrativos turísticos em geral, promovidos pela Secretaria de Turismo e Cultura do Estado. Durante o trabalho de campo, apenas em grandes festas populares como o carnaval e o feriado junino, não foi observado o consumo explícito de drogas ilegais, já que nesses períodos há uma forte e ostensiva presença da polícia militar. No entanto, muitos eventos de música reggae e de ritmos e estilos alternativos são propícios para o consumo público e explícito de drogas como maconha e cocaína no local. Assim, a depender do estilo de música ou da banda que se apresenta, o público que ocupa o espaço e, fundamentalmente, a ausência de policiais fardados em circulação, cria-se então

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condições ideais para o consumo coletivo de drogas, mesmo sendo em uma região onde não é efetivamente legalize. Nesse caso, a percepção dos próprios usuários sobre o local é fator primordial. A partir de que a primeira roda de fumo inicia o consumo explícito, outros grupos começam a sentir, de certa forma, mais seguros, para consumir o que têm em posse. Conforme mais rodas de fumo se formem, maior é a sensação de liberdade, já que o aumento do consumo acaba encorajando mais rodas de fumo se formarem, consolidando, assim, o contexto legalize. O fato curioso a se notar é que, mesmo com o risco de abordagem e detenção iminente, os usuários de drogas não deixam de expor seu comportamento. Foi possível também observar em algumas situações que, mesmo com a presença das autoridades no espaço, havia consumo coletivo de drogas ilegais. Nesse sentido, percebe-se um acordo informal entre os representantes das sanções e aqueles que praticam os rituais sociais, o que leva a pensar na formação dos territórios consolidados pela cidade dos usuários de drogas, ou seja, na produção de seu circuito próprio. A exposição do consumo coletivo é bem característica e perceptível à distância. A disposição e organização das rodas de fumo logo podem denunciar que tal grupo está compartilhando um baseado. Algumas pessoas já trazem o cigarro manufaturado para não ter que passar por todo o processo de confecção e não se expor tanto às autoridades. Todavia, mesmo numa tentativa em que se assemelhe ao uso de tabaco, o consumo de maconha é bem peculiar e com características próprias, primeiro porque o baseado roda de mão em mão entre os integrantes do grupo e, segundo porque a forma de segurar o baseado envolve técnicas diferentes. Por outro lado, foi observado em campo, que uma grande parte de usuários deixa para manufaturar o baseado nos espaços legalize, o que acaba expondo todas as etapas de confecção, aumentando mais os riscos. Primeiramente é necessário retirar um punhado de erva para ser triturada ou “dichavada”. Frequentemente eram observados jovens de periferia trazendo pequenas porções de maconha enroladas em um pequeno papel de loteria ou em um saco plástico. As quantidades variavam entre poucas gramas até pacotes de pelo menos cinquenta gramas, o que é bastante considerando o consumo em uma noite ou em um único evento, além de proporcionar o risco de ser detido por tráfico de drogas. Depois de triturada na palma da mão, a maconha é envolvida em um papel de seda para, então, pode ser acesa e rodar entre os amigos. O comportamento característico das rodas de fumo pode ser um fator de risco em espaços públicos, na medida em que são identificáveis a distância. No entanto,

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nos espaços legalize do Centro Histórico é bastante comum observar tal tipo de exposição entre jovens e adultos em geral. A estratégia dos usuários, por sua vez, é manter olhos atentos ao redor e observar se oficiais fardados estão por perto. A razão, portanto para se exporem a maiores riscos dentro dos espaços de uso é justamente porque a sensação de liberdade é proporcionada pelo espaço legalize já consolidado pelo hábito, frequência e generalidade deste tipo de comportamento ilícito praticado pelos usuários que ocupam constantemente estes equipamentos. Assim, a hipótese inicial da pesquisa de que faz parte da cultura de lazer urbano o consumo de drogas lícitas e ilícitas além de confirmada, indicou que a Antropologia Urbana deve levar em conta os estudos socioculturais sobre o uso de drogas ao desenvolver suas pesquisas de campo. Dito isto, as práticas e saberes formais e informais de consumo público e explícito de drogas ilícitas (e lícitas) em espaços urbanos, estabelecem vínculos inscritos entre a cidade e o uso de drogas. Pensar no circuito das drogas na cidade é pensar, de certa forma, em quase todos os circuitos urbanos de lazer. Seja uma pequena vila ou as grandes metrópoles, em toda a história, mesmo sob regimes de proibição legal, as substâncias psicoativas fazem parte da vida cotidiana das sociedades e culturas, em todo o mundo. Em outubro de 2012, na ultima sexta feira do mês, fui observar as atividades noturnas no Largo do Santo Antônio Além do Carmo em Salvador, onde ocorre todos os meses, o famoso e tradicional samba do grupo Botequim. O evento não faz parte necessariamente do circuito legalize da cidade, ou seja, não é um espaço frequentado por usuários de drogas ilegais, mas pode eventualmente ser ocupado por consumidores de maconha, cocaína, LSD, além de outras substâncias psicoativas. Situado no centro da capital baiana, o largo de Santo Antônio é palco de rodas de samba, já há alguns anos. A praça, que durante o dia é bem tranquila e pacata, à noite é ocupada tanto por moradores locais quanto provenientes de bairros distantes, famílias de classe media alta, e também, por turistas e artistas de todo o mundo. O formato geográfico do equipamento urbano é oval, e seu acesso de entrada e saída se limita apenas a quatro vias bem estreitas o que é insuficiente para a quantidade de automóveis que por lá transitam. As apresentações de samba são gratuitas e o largo recebe uma multidão de mais de mil pessoas, entre as 21:00 horas até a madrugada do sábado. A região acaba sendo tomada por muitos carros que tentam estacionar perto do centro entre os vendedores ambulantes de bebidas e comidas, turistas, moradores, a polícia e aqueles que se sentam nas mesas dos restaurantes e bares locais. A variedade de estilos e pessoas é grande, das mais diversas

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classes, instruções e interesses. O samba tem um público fiel e assíduo, mas o fluxo de novos circuitos urbanos é muito intenso. O comum e tradicional é consumir muito álcool e tabaco, mas uma observação mais atenta consegue notar um uso coletivo de cocaína ou LSD e, em menor escala, maconha e crack. Um dos frequentadores do local e nascido na cidade de Salvador aponta o local de consumo de cocaína que fica mais afastado do centro da praça onde tem menos circulação de pessoas: "Você não sabe onde a galera cheira? É bem ali no mirante passando pela portinha de saída da praça nas escadas onde é mais escuro. Vai lá que você vai ver o pessoal todo sentado preparando as carreiras." Apesar da existência de um modulo policial na região, o consumo de drogas ilegais não parece provocar grande preocupação entre as autoridades presentes já que sua presença no local não foca a repressão específica deste ato ilícito. A dinâmica das sociabilidades no local garante algumas vantagens para os usuários que queiram enfrentar o risco usar drogas ilegais. A quantidade de pessoas confraternizando é muito grande para que o contingente policial consiga efetivamente coibir um a um. Assim, a fumaça densa da maconha, muitas vezes prensada, se confunde com o cheiro das pessoas, das frituras, dos carburadores de automóveis e do tabaco que é abundantemente consumido pelos presentes. O formato oval do Largo garante uma visão privilegiada para os usuários de drogas ilícitas, que podem perceber a chegada das viaturas policiais à distância através pelas sirenes luminosas e dos altos alarmes sonoros. Mesmo no entorno da praça e a poucos metros do módulo policial foram observadas rodas de fumo. A partir da observação participante neste campo, percebi que apenas a presença de oficiais de segurança fardados consegue inibir o consumo explícito de drogas. São eles que chamam mais a atenção nos circuitos legalize. Não se pode detectar com igual facilidade a presença de policiais civis, que ficam à paisana, mas é muito pouco frequente a repressão do uso por parte deste efetivo. Dito isto, o uso explícito de drogas é relativo aos equipamentos urbanos, ao contexto, e às substâncias propriamente ditas. Isso significa que, para consumir cocaína na Escadaria do Passo ou fumar crack na praça Terreiro de Jesus, é necessário um aprendizado social capaz de driblar as sanções formais repressoras. O consumo explícito, claro, varia em relação ao contexto prático. Para consumir drogas explicitamente, os usuários devem conhecer uma série de regras de comportamento e é apenas no convívio prático que estes podem aproveitar o contexto de lazer e, ao mesmo tempo, consumir suas respectivas substâncias psicoativas. A

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intenção do trabalho de campo foi descrever o contexto real e a dinâmica prática dos usuários de drogas ilícitas nos espaços legalize do CAS. A história do Pelourinho reflete sua atual condição de fazer parte do circuito legalize de Salvador. Antes de ser tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade, no final do século passado, o Centro Histórico era ocupado majoritariamente por grupos em situação de vulnerabilidade social. O descaso das políticas públicas na região e de assistência social à população que vivia no Pelourinho acabou transformando o local em ponto de tráfico de drogas, prostituição e de criminalidade. Após a década de 1990, houve uma mudança radical na ocupação do equipamento urbano. A proposta de incentivo à exploração do espaço para o comércio e turismo acabou por acelerar um processo de gentrificação, ou seja, um emburguesamento do espaço através da valorização especulativa imobiliária, ao mesmo tempo em que se expulsava camadas sociais mais pobres e vulneráveis. A política de patrimonialização cultural do local adotado pelas autoridades, todavia, buscou, com sucesso somente parcial, expulsar a marginalidade, a prostituição e o tráfico de drogas que havia no local durante bom tempo de sua história de ocupação. Assim, as camadas “indesejáveis” ainda ocupam o Centro Histórico e continuam a produzir sociabilidades na região. Jovens negros moradores de rua ou de classes baixas tentam conseguir alguma forma de sustento catando latas, guardando carros ou qualquer outro meio informal de trabalho. Os furtos, roubos, o tráfico e também o uso de drogas ainda estão presentes nas ruas e espaços "revitalizados" pelos poderes públicos, só que de maneira diferente. Neste sentido, o acesso às drogas ilícitas é relativamente fácil, bastando apenas transitar por alguns minutos pelas suas ruas e becos. As redes de sociabilidade desempenham um papel importante na aquisição da substância. Quem consome maconha ou cocaína geralmente aborda ou muitas vezes é abordado por jovens moradores de rua que conhecem mais sobre a distribuição no local. Muitos turistas, por exemplo, gostam de interagir com nativos locais que sabem perfeitamente onde conseguir e onde consumir as respectivas substâncias ilegais sem maiores preocupações com as autoridades. É comum ver os estrangeiros sendo guiados e muitas vezes estabelecendo vínculos de amizades com os nativos, geralmente negros e de baixa condição econômica. Certa vez na Escadaria do Passo, antes da apresentação musical aguardada, um turista branco e de cabelos loiros acompanhado de sua namorada também estrangeira percebe um jovem negro manufaturando um baseado e posteriormente guardando um saco contendo aproximadamente cinco gramas da erva prensada. O turista prontamente aborda o jovem

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negro pedindo através de mímicas um pouco da substância para o seu consumo. O nativo logo percebeu a oportunidade de obter lucro da situação e respondeu com as duas palmas das mãos indicando o valor de vinte reais pelo que estava portando. Rapidamente o estrangeiro resgatou o dinheiro e pagou pela droga saindo imediatamente do local com sua parceira. Contente, o rapaz que havia vendido, olha para as pessoas ao redor que presenciaram o contexto de tráfico e diz com um sorriso estampado no rosto: "Esta foi a grana (dinheiro) mais fácil que consegui." Logo em seguida ascende seu baseado e fuma tranquilamente no centro da escadaria. Em outro momento também na Escadaria do Passo eu estava com um amigo observando os usuários de drogas. Em determinado momento este conhecido fala: "Poxa, ficar de cara (sem usar drogas) não dá. Onde é que se consegue maconha nesse lugar?" Um rapaz negro vestindo roupas do estilo hip hop ouve a indignação dele e não demora a perguntar se não queríamos maconha. Ao afirmar que sim o rapaz sobe as escadarias e em dez minutos vem trazendo um saco com aproximadamente duas gramas e oferece pelo valor de dez reais. Pelo curto tempo que retornou provavelmente conseguiu a erva com seus conhecidos ali mesmo no local. O valor estava um pouco alto para valer apenas um baseado, mas meu amigo não perdeu a oportunidade e adquiriu a droga. Da mesma forma que muitos usuários estavam livres para usar maconha, fumamos o baseado no local sem maiores problemas. Outro exemplo de tráfico, desta vez de cocaína, foi presenciado pelas ruas do Centro Histórico. Eu estava com outro amigo que passava por um momento de recuperação devido ao consumo excessivo dessa droga. No entanto, ao perceber um jovem malvestido oferecendo a substância para outras pessoas, ele acaba abordando-o e pede um pouco para si. Preocupado com meu amigo, percebo que ele havia sumido e vou a sua procura. Depois de um tempo encontro ele saindo de um beco escuro onde havia conseguido e também consumido a cocaína. Bastante chateado com ele, pergunto porque tinha feito aquilo e ele lamenta dizendo: "Pois é, paguei por uma porcaria. Quase não tinha nada e ainda tava toda misturada." Geralmente quando os usuários conseguem drogas espontaneamente na mão de nativos nos locais de lazer, estas são de baixa qualidade e também com preços inflacionados. A polícia está ostensivamente presente no Centro Histórico, mas, no entanto, deixa lacunas criando os espaços legalize. Além do batalhão localizado no fundo da praça Terreiro de Jesus, ela conta com mais alguns postos físicos de apoio, além de bases móveis compostas por viaturas. Muitos policiais também fazem rondas à pé, sempre em duplas que se comunicam via rádio caso eles possam precisar de reforço. Sua presença é reivindicada por

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uns e, ao mesmo tempo, odiada por outros que frequentam o local. Muitos admitem que ela é fundamental para manter a ordem, principalmente em relação aos furtos e aos pedidos de esmola feitos pelos mais necessitados. Outras pessoas, entre eles os usuários de drogas, não aceitam a forma aplicada pela polícia para manter o controle do espaço urbano. Segundo informações de um cantor antigo de reggae que frequenta há muitos anos o Centro Histórico, “o Pelourinho era muito mais legalize. A gente fumava em qualquer lugar e não tinha perturbação. Não tinha tanta polícia como hoje. Agora você vê que a galera fuma nos cantos escondidos.” O relato indica que depois da revitalização do Centro Histórico houve a criação de espaços específicos de consumo, ou seja, a partir daí houve a consolidação e delimitação de outros espaços legalize. Há relatos interessantes de uma subárea do Pelourinho, hoje interditada, chamada Rocinha. Seu acesso era através de um corredor estreito bem próximo à ladeira do Pelourinho. Os antigos frequentadores do Centro Histórico relatam que o uso explícito de drogas era comum no local. Um rapaz conta, com certa nostalgia, dos velhos tempos vividos no local: “Nossa, a gente ficava à vontade lá, era a Jamaica brasileira. Se você quisesse fumar um (baseado) ou cheirar um pó (cocaína) era só pedir uma cerveja que o dono do bar liberava. Podia fumar e até fazer as carreiras na mesa do bar mesmo, nem precisava ir no banheiro.” Antes de ser interditado muitos frequentadores deixaram de visitar o local por causa do aumento do consumo de crack e da fama negativa que ganhou o espaço. Na época em que foi feita a pesquisa etnográfica, o local já estava interditado. Para aqueles que procuram lazer, todos os dias da semana existe uma opção diferente no Pelourinho. Para os usuários de drogas, as pequenas ruas do bairro colonial se dispõem, então, como uma grande mancha de lazer, onde existem pedaços consolidados de consumo de drogas. A depender do local e da situação, existem diferentes formas de agenciamentos para cada contexto de uso. A terça-feira, por exemplo, se destaca por ser a tradicional “Terça Santa” ou “Terça da Bênção”. Neste dia da semana, há uma movimentação incomum no Centro Histórico, atraindo grande parte de pessoas da cidade e turistas em geral. Um grande foco de aglomeração de usuários de maconha observado foi a Escadaria do Passo, localizada entre a Ladeira do Carmo e a Rua do Passo, nos shows do cantor Gerônimo Santana e sua banda Mont’ Serra. Durante dez anos, o cantor e compositor baiano produziu um projeto cultural independente que ofereceu gratuitamente, quase todas as terças-feiras do ano, o show de sua banda para um grande público. Por ser gratuito, muitos jovens negros e estudantes em geral frequentavam o evento, mas também havia grande parte de turistas e indivíduos de

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classe média entre os usuários de maconha e outras drogas ilegais que ocupavam os dias de evento.

Figura 3 - Escadaria do Passo. Aqui percebemos a quantidade de pessoas que frequentava a escadaria nas terçasfeiras, durante o show de Gerônimo Santana, grande parte delas não sendo usuárias de maconha. A foto indica também a dificuldade que é para a ação policial conseguir circular no local e reprimir o consumo. Em eventos lotados, percebi a ausência dos agentes repressores e também a ocupação total do espaço pelos usuários que consumiam drogas ilícitas durante todo o evento. Fonte: http://www.apontador.com.br/local/ba/salvador/igrejas/C407593F26193E193E/escadaria_do_passo.html

Quando a polícia não se apresenta desde o início do show, é possível observar os usuários de maconha preparando e fumando seus baseados em grupo, mesmo antes de se iniciar a apresentação. Muitos usuários de classe baixa trazem suas trouxinhas de maconha prensada ou solta e oferecem para a roda de fumo que espontaneamente ganha forma em cada noite. Adultos de meia idade e até de idades avançadas também foram observados regularmente no evento consumindo maconha. Alguns deles têm o costume regular de frequentar o show e rever os conhecidos. Aqueles que não têm em posse, não perdem a oportunidade de consumir maconha, ou recebendo uma oferta de conhecidos, ou mesmo comprando no local, como é um caso comum entre os turistas.

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Foi observado também a esporádica presença de crianças, a maioria das vezes, acompanhadas de suas famílias ou responsáveis. Tanto nativos, como turistas foram vistos ocupando a escadaria com seus filhos pequenos ou pré adolescentes. Há também crianças da região que brincam no local mesmo desacompanhadas dos pais, antes do show se iniciar. Mesmo com crianças ocupando o espaço, percebemos que o consumo de drogas de forma explícita ocorria com a mesma dinâmica, o que demonstra que o fenômeno não ocasiona apatia entre os mais jovens, já que faz parte do cotidiano de sua formação social. Mesmo alguns usuários de drogas também trazem seus filhos para o evento e não se acanham em consumir suas respectivas drogas em público e em companhia de seus filhos. Chamamos atenção para o fato da presença e convivência de crianças e adolescentes em circuitos legalize, o que levanta a discussão sobre a influência do consumo de drogas para esta camada social, principalmente quando é associado à criminalidade e ao preconceito. Foram observados em diversos momentos, jovens com fardas escolares ocupando a escadaria e consumindo maconha nos shows de Gerônimo. Logo após as aulas, os estudantes saem dos colégios da região do centro da cidade e ocasionalmente desfrutam de momentos de lazer com seus conhecidos consumindo maconha no local. Da mesma forma, há também jovens moradores de rua e em situação de vulnerabilidade que circulam durante o show na Escadaria do Passo em busca de latas de alumínio. O trabalho de catar as latas é uma alternativa para sobreviverem em meio a diversão dos outros. Muitos ainda são menores de idade que ocupam o Pelourinho para trabalhar e não para se divertir. Além de catarem latas, catam bitucas de cigarro e de maconha em meio a multidão e nos cantos das escadas principalmente no final do show. A produção do evento de Gerônimo e sua banda movimentava tanto o setor formal de serviços, como os restaurantes e bares da região do Carmo, como também o setor informal, composto por uma série de grupos de comerciantes e vendedores ambulantes, uma baiana do acarajé, entre outros serviços. A disputa de espaço e a organização dos pontos de vendas se dava entre os próprios comerciantes respeitando códigos informais de condutas éticas. A maioria deles oferece bebidas alcoólicas, a droga mais consumida nos circuitos de lazer em geral. Certas vezes na Escadaria do Passo aparece um ambulante que vende uma mistura de bebidas de teor alcoólico chamada por ele de “chá da massa”. Seu figurino lembra símbolos do reggae, da religião rastafari, e as cores da Jamaica, fazendo também muitas referências diretas à maconha. Nos dias de terça, ele circulava pela escadaria em meio da multidão

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anunciando seu produto: “Olha o chá da massa (maconha)! Esse é do bom.” Seu carisma e animação para vender seu produto chamam a atenção das pessoas que ocupam o espaço e acabam se identificando com o ambulante. Além disso, as suas referências simbólicas também se identificam com os usuários de maconha que frequentam o local, o que significa que a figura do ambulante se associa bastante ao contexto legalize da Escadaria do Passo. Em diversos momentos observei ele consumindo maconha na escadaria. Seja antes, durante ou depois da apresentação musical ele tinha o hábito de usar a erva ilegal e, pelo observado, nunca teve problemas com a polícia, muito pelo contrário, sempre trabalhou com muita alegria e disposição. A partir das 19:00 horas, o público começa a chegar para o show e já é possível ver rodas de fumo espalhadas nos cantos da escadaria. Muitas vezes os próprios ambulantes compartilham cigarros de maconha logo antes da grande multidão lotar o espaço. Os olhares estão sempre atentos para o alto, já que é possível serem surpreendidos pelas autoridades policiais, mas também existem momentos de descontração demonstrando tranquilidade e segurança no que fazem. Quando se inicia o show da banda às 20:00 horas, o espaço já está tomado de pessoas que se organizam em seus lugares de preferência. O Carmo recebe uma grande quantidade de pessoas dentre espectadores e comerciantes que tomam a Rua do Passo e a Ladeira do Carmo, impedindo, inclusive, a circulação de carros. Muitas vezes é tanta gente que a circulação fica difícil entre os próprios ocupantes do espaço. O canto esquerdo da escadaria é reservado para a circulação de pessoas que entram e saem pelo mesmo fluxo. Assim, a concentração maior de usuários de maconha e outras drogas é na região central, oposta à circulação de pessoas e com certa visão privilegiada. Certas vezes, quando não há a presença de policiais, os usuários tomam toda a região da escadaria, inclusive o primeiro lance de escada bem em frente ao palco, onde ficam os convidados e os fãs do cantor. Da mesma forma, é possível perceber também rodas de fumo preparando e consumindo maconha e cocaína em meio ao fluxo de passagem da escadaria ou até mesmo no último lance de escadas, já na Rua do Passo e em frente à igreja do Santíssimo Sacramento. É importante relatar que as rodas de fumo não são apenas formadas por homens, mas muitas delas são constituídas por mulheres que dominam também os códigos informais contidos no aprendizado social do uso coletivo de drogas. Certa vez duas meninas estava preparando um cigarro de maconha no alto da escadaria e de repente encontraram outro casal de amigas. Depois de comemorarem o reencontro uma delas disse: “Meninas, vamos ali pra o

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meio da galera pra poder queimar (fumar) esse beck (baseado)?!” A sua sugestão seria para se deslocar para o meio da multidão e assim consumir a substância ilícita com mais segurança. As rodas de fumo constantemente interagem entre si, seja para pedir um isqueiro, ou papel de seda, ou até mesmo para compartilhar seus baseados e prolongar a conversa. Os membros das redes que frequentam constantemente o local de certa forma se conhecem por sempre circularem nos mesmos espaços de consumo. O espaço é, então, ocupado e organizado pelos próprios usuários que se dispõem estrategicamente para poder consumir drogas sem a interferência da força policial repressora. O contexto de certa liberdade existe com mais evidência longe da presença da polícia ou quando percebe-se que, mesmo presente, ela não irá agir de forma repressora. Muitas vezes, os usuários desconsideram os oficiais de plantão e se escondem no meio da multidão para consumir maconha ou cocaína, agachando-se ou sentando nas escadas, dificultando a visibilidade no meio das pessoas. Da mesma forma observamos que logo depois de perceberem a saída dos oficiais, muitos usuários já reascendem seus cigarros de maconha. Certa vez, quando havia a ausência completa de oficiais fardados durante todo o evento na escadaria, pude observar quatro usuários de cocaína consumindo a droga abertamente no canto esquerdo inferior, bem onde há uma circulação intensa de pessoas. Os jovens estavam bem exaltados e chamavam a atenção daqueles que estavam ao redor pela naturalidade com que praticavam o ato ilícito. Algumas vezes a exaltação era tanta que um deles oferecia porções para outras pessoas que atendiam prontamente o chamado. Da mesma forma, outros se atreviam a pedir umas doses ao grupo que aparentemente se demonstrava a vontade para cometer o ato ilícito de forma explícita. A ausência dos representantes das sanções formais garantia a liberdade para o grupo que não se incomodava em tornar público seu consumo de cocaína no local. Notei também que o cheiro de cannabis queimada chama a atenção nos dias de evento, especialmente quando não há policiamento. Nestas situações, os usuários não se acanham em expor todo o processo de manufatura do baseado, nem mesmo por compartilhálo entre os seus conhecidos da roda. Foi possível observar também jovens fazendo uso de cachimbos e maricas artesanais numa clara forma de exibição e ostentação do consumo de maconha. O que pareceu foi que tais artefatos exóticos, quando utilizados em público, oferecem afirmação e identidade social na medida em que os usuários exibem com satisfação tais objetos. Outro fato a se levantar é o descaso e o descompromisso com as atuais leis que não parecem intimidar comportamentos mais explícitos em público.

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Cada grupo de jovens traz uma quantidade destinada para o consumo no local e que de preferência “seja suficiente para toda a noite.” Alguns trazem poucas gramas, para um ou dois baseados, mas também há aqueles que trazem um pacote com pelo menos dez gramas da erva e não se acanham em exibir em público. Cada grupo de amigos pode compartilhar uma média de três a cinco baseados por evento, a depender da quantidade de pessoas que interage e do contexto. Certa vez, participei de sete rodas de fumo em uma única noite. Muitas vezes os usuários consomem além daquilo que trazem porque outras pessoas eventualmente os oferecem também. Às vezes, jovens rapazes oferecem maconha para turistas na tentativa de se aproximar e de repente construir novas amizades. Muitas das ocasiões, estes aceitavam e interagiam com os nativos. Quando negam, agradecem a oferta educadamente. Em dias que há a atuação efetiva da polícia, na maioria dos casos, as abordagens são executadas de forma violenta e desrespeitosa, intimidando a todos e demonstrando um excesso de poder e autoridade, em relação aos civis. Suas ações se tornam visíveis ao grande público que observa a forma violenta de suas abordagens aos usuários de drogas, principalmente quando são jovens e negros. O contexto de lazer e descontração muda totalmente quando há a presença de agentes fardados. Também percebi que algumas pessoas deixam o local, se afastando desses agentes, muito provavelmente porque estão portando alguma substâncias ilegal. Da mesma forma, observei em campo que é comum os usuários demonstrarem insatisfação com a presença da policia, que muitas vezes é estranha e desagradável. Durante o período observado, a polícia variou bastante suas formas de atuação no local. Houve muitos dias em que a ela não esteve presente de forma alguma, o que permitia o consumo generalizado de maconha em praticamente a totalidade do espaço e durante todo o evento. Houve vezes também que alguns oficiais, mesmo presentes, não seguiam o protocolo da lei e evitavam levar pessoas detidas. Outras vezes, muitos oficiais eram direcionados para uma operação conjunta com o objetivo claro de prender usuários em flagrante. Nestes casos, mesmo uma tentativa de diálogo era impossível com os policiais, restando para o detido apenas obedecer e não desacatar a autoridade. As aparições da polícia podem ser sutis, retirando o boné para se disfarçar, chegando por trás dos usuários e os pegando inadvertidamente, ou mesmo podem ser massivas, mobilizando muitos oficiais para reprimir usuários. A Rua do Passo geralmente é o acesso preferencial dos policiais, já que a visão por cima da escadaria é mais adequada para observar os usuários de maconha e também permite surpreendê-los por trás. Algumas vezes ela aparece

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desde o início do show, observando os usuários por cima. Outros policiais também se localizam na parte de baixo, na Ladeira do Carmo, permanecendo lá durante todo o concerto. O número de policiais envolvidos na segurança do show de Gerônimo varia entre 2 e até 10 oficiais, o que é uma quantidade muito restrita para conseguir efetivamente reprimir todos os usuários de drogas no local.

Figura 4 - Escadaria do Passo. Visão de cima da Escadaria do Passo, onde os usuários costumam ocupar o local, misturando-se com outros que não usam maconha, e também onde a Polícia Militar costuma se posicionar devido à visualização do público. Geralmente as abordagens costumavam ser por trás dos usuários, levando muitos deles se posicionarem estrategicamente de costas para o palco para poder visualizar a aproximação dos agentes repressores. Fonte: https://365salvador.wordpress.com/2013/01/15/15-de-janeiro-geronimo-na-escadaria-do-paco/

Há também casos de que mesmo abordados em flagrante, os usuários são liberados pela polícia. Geralmente os oficiais os intimidam usando palavras duras e ameaças diretas e logo depois os expulsam do local e ainda impõe a eles não retornarem novamente. Certa vez ouvi o relato de um rapaz de cabelos rastafari, morador do bairro da Ribeira que estava com mais dois conhecidos na escadaria, logo antes de começar o show de Gerônimo. Enquanto ele estava preparando o baseado com suas mãos, o grupo foi surpreendido por um policial militar que, segundo ele, apenas disse: “Não quero saber disso aqui no meu plantão, sai logo daqui

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vocês todos!” Ao me contar o caso, o rapaz demonstra alívio e satisfação por não ter sido conduzido à delegacia. Outros relatos de usuários indicam que não foram abordados pela polícia mesmo na posse de drogas. As operações de buscas na escadaria raramente conseguem identificar alguns usuários mesmo estando a poucos metros de distância. Uma das hipóteses analisada seria a seletividade nas abordagens, onde pessoas em situação de maior vulnerabilidade são mais preferidas pelas autoridades. Além disso, segundo alguns policiais, muitas vezes apreender usuários se torna complicado, já que há também falta de entendimento entre a polícia civil e militar. Em um relato de campo, um usuário que tinha sido detido durante o show de Gerônimo demonstra a falta de comunicação entre as instituições: “rapaz, eu só via o sorriso no canto da boca do delegado ao me ver ali naquela situação. Ele só esperou o policial militar ir embora pra me liberar. Ele ainda ficou com minha maconha.” Alguns, não poucos, usuários, principalmente aqueles que já passaram pelo processo de condução à delegacia algumas vezes, são muito irônicos e despreocupados com as consequências legais da detenção. Geralmente são jovens negros e de periferia, que pela prática aprendem a lidar com os códigos construídos informalmente. Um deles me relata que sabe como se comportar com a polícia em caso de flagrante: “Você tem que manter a calma, pra mostrar que não é qualquer vagabundo. Depois você precisa falar a verdade pra o oficial, tem que dizer logo o que tem com você, se não você perde a confiança dele.” Para estes jovens já existe uma rotina de contato com os representantes das sanções repressoras, fazendo com que muitos acabem se acostumando e banalizando todo o processo. Além disso, muitos deles voltam a frequentar novamente os mesmo espaços de consumo onde foram detidos, apesar de já terem sido fichados criminalmente. Da mesma forma, muitos deles não se sentem incomodados com o fato, nem parecem preocupados com este pequeno delito. Outro fato atestado na observação das abordagens e detenções policiais é sua falta de efetividade na extinção do consumo público de drogas. Uma vez movido o efetivo para a ação policial no evento, em nenhum outro momento os oficiais retornavam ao espaço, além disso, a grande maioria dos outros consumidores de drogas continuavam no local praticando o ato ilícito. Isso significa que depois de abordados e detidos os usuários, o consumo público retoma logo após a ausência dos oficiais. Como observado, muitas vezes, ao saírem do espaço, os usuários retomam o uso de suas drogas. Uma vez que alguns tenham sido detidos em uma operação policial, os outros ficam despreocupados e o espaço retoma sua condição

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legalize. Dessa forma, percebemos que as simples ações de repressão não conseguem eliminar o consumo de drogas ilícitas em espaços ocupados pelos usuários. A maior preocupação dos consumidores de drogas é de se manter atentos a qualquer movimentação dos policiais em sua direção. Quando se dirigem aos cantos da escadaria as pessoas apagam seus cigarros ou pisam neles rapidamente para esconder o flagrante e evitar a abordagem dos oficiais. Os desavisados são surpreendidos e prontamente interrogados e revistados antes de seguirem para a delegacia. Um dado observado é a forma de cooperação mutua entre os usuários em geral quando há a presença de policiais fardados. De forma bastante sutil, aqueles que percebem a aproximação da polícia fazem sinais ou tentam tocar naqueles que estão em flagrante posse das substâncias. A cooperação e a solidariedade em relação às sanções formais também são uma característica dos agenciamentos contidos nos espaços legalize. Em uma ocasião na Escadaria do Passo, um policial fardado descia as escadas para investigar se haviam usuários no local. Ao avistar um rapaz negro, vestindo roupas rasgadas e com cabelos sujos, já conhecido no local, suspeitou de que estaria fumando um baseado e que, ao perceber a sua aproximação, disfarçadamente teria arremessado o cigarro ao chão, numa tentativa de se desfazer do flagrante. De forma violenta e repentina o oficial agarrou os braços do franzino rapaz que reagiu desesperadamente numa tentativa de se libertar, já que afirmava sua inocência. As tentativas de convencer o policial de que não estava consumindo a droga não foram suficientes, e este tentava imobilizar o rapaz a qualquer custo, acionando inclusive reforço para conseguir detê-lo. Depois de derrubado no chão e imobilizado com joelhadas na região do estomago e algemas em seus pulsos, o rapaz foi conduzido para a delegacia inconformado com a situação. O incidente chamou a atenção de todos ao redor, provocando o afastamento daqueles que se encontravam próximos da abordagem violenta. Da mesma forma, o público da escadaria composto por outros usuários vaiavam os policias que conduziam o rapaz de forma bastante violenta, se solidarizando com ele e demonstrando a falta de credibilidade da repressão por parte dos oficiais num claro desrespeito às autoridades. Esse caso é também um exemplo de como episódios de violência física de maior intensidade tendem a ser provocados mais pela ação formal da polícia do que pelos usuários entre si. Na verdade o consumo público e coletivo de drogas como era feito regularmente na Escadaria do Passo por uma grande multidão não se associava à comportamentos violentos, nem à qualquer forma de desordem social. O fator preponderante para a ocorrência de episódios violentos era a atuação direta das forças de repressão.

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Em outra ocasião, um usuário foi surpreendido por trás e pego em flagrante fumando um baseado por três policiais que imediatamente o levaram para o canto da parede para revistá-lo. Enquanto os policiais faziam a revista em volta do jovem negro, o comandante acompanhava a operação apenas observando. As ações policiais, além de chamarem a atenção, causaram angústia e incomodo em alguns usuários que ficaram revoltados com a situação. Muitas reações ocorreram em repúdio, como vaias, gritos e comentários negativos sobre o papel da polícia em relação aos usuários recreativos. Neste caso, um rapaz branco que estava curtindo o show com uns amigos tentou interferir na situação, alegando ser advogado e tentando negociar com o comandante a liberdade do jovem recém detido, mas o oficial não lhe deu atenção, recusando qualquer conversa. O jovem advogado queria indagar por que o usuário estava sendo detido apenas por um cigarro de maconha. Quando perguntei sobre a o que tinha conversado com o policial, ele me contou: “Eu estava tentando convencer os policiais de que era desnecessário, mas o comandante não quis nem conversar. Os outros, que são subordinados, ficaram calados diante de sua presença. Tentei falar com o detido me apresentando como advogado, mas eles não permitiram.” Ao sair conduzindo o detido à delegacia, alguns mais exaltados vaiavam a operação policial inconformados com a situação do rapaz, novamente um negro. De forma semelhante, as operações policiais muitas vezes foram bastante desmedidas e truculentas desrespeitando a liberdade individual e os direitos humanos, principalmente de camadas baixas da sociedade. O espaço lúdico e festivo que pretende oferecer alegria e diversão ao público era visivelmente afetado pela presença e atuação da polícia no local. Demonstrando autoridade, os oficiais abrem espaço por onde passam afastando as pessoas que ficam em seu caminho. Os jovens, quando abordados, devem se encostar de mãos contra a parede para sofrerem a revista. Geralmente estas acontecem nos cantos da escadaria, onde se localizam a maioria dos usuários. Algumas vezes a revista é tão rígida que o policial contorce bastante o corpo do jovem arrancando expressões de dor do rosto deste. No entanto, como observado, a maior parte das vezes, as pessoas são revistadas e liberadas sem envolver detenções, o que demonstra o excesso das forças policiais. Da mesma forma, percebemos uma seletividade nas abordagens e revistas já que nenhum jovem ou adulto de classe media e branco fora observado em abordagem. Certa vez, tive a oportunidade de conversar com um capitão da PM sobre a política repressiva em relação ao uso de drogas. Surpreendentemente ele afirma que é a favor da legalização das drogas e que acha errado a proibição, já que gera mais violência do que

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resolve o problema. No entanto, como trabalha na instituição, ele deveria respeitar a lei e agir como ela manda. Ele me relata: "Eu sou a favor da legalização. Acho um erro proibir porque só proporciona mais violência e não soluciona a situação. Agora minha função é obedecer a lei e por isso, tenho que reprimir o uso e o tráfico de drogas." Ao ouvir tal afirmação deste capitão digo que fiquei surpreso já que era difícil de se encontrar tal opinião dentro da Polícia Militar, mas ele logo rebate dizendo: "Não. Os mais novos já têm essa consciência. Os mais antigos que acham que devem proibir mesmo." Como visto, apesar da repressão, a atuação da polícia militar não condiciona a mudança ou extinção dos espaços legalize, mesmo porque, apesar das abordagens repressoras e detenções, o consumo público e coletivo retorna em poucas horas ou até em minutos nos mesmos territórios demarcados. O relevante a se analisar sobre o consumo de droga na Escadaria do Passo é que, mesmo com o provável perigo de abordagem e a violência como são tratados os usuários de maconha pelos policiais, o fenômeno persiste e resiste no mesmo equipamento urbano. Uma grande questão a ser analisada seria: o que faz com que se mantenha frequente o consumo no local, mesmo por aqueles já detidos ou intimidados pela, polícia? Qual motivo atrai os usuários de drogas ocupar este equipamento, apesar do risco implicado? Uma das hipóteses seria a construção de uma identidade e pertencimento ao espaço pelos usuários de drogas. Em última instância poderíamos pensar na legitimação dos direitos destes usuários em ocupar determinados territórios na cidade, na medida em que, como observado em campo, o fenômeno do uso público de drogas em si não prejudica terceiros. O único impedimento para o consumo de drogas em espaços públicos é a presença de oficiais fardados e, como observado em campo, estes estavam muito mais presentes nos shows da Escadaria do Passo, do que nos largos do Pelourinho, onde há seguranças privados e geralmente são cobrados ingressos. Desta forma, a estratégia dos usuários foi sempre seguir o fluxo do circuito legalize, em seus trajetos entre os espaços possíveis de consumo público de drogas do Pelourinho. Nos dias em que havia uma operação ostensiva de policiais fortemente armados na Escadaria do Passo, os usuários, impedidos de fumar maconha, se deslocavam para a Rua do Passo, que por sua localização geográfica e também por uma iluminação precária, é ideal para ser legalize. Na mesma rua também foram observados algumas vezes usuários de maconha fumando a droga em uma praça logo acima de um dos postos da polícia militar. Há relatos, inclusive, que havia até tráfico neste local bem próximo das autoridades.

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É possível ver também usuários fumando em frente às suas residências na Rua do Passo, acima da escadaria. A rua está em uma ladeira e assim é possível ter uma visão estratégica da presença ou não da polícia. Da mesma forma, eles podem entrar em suas próprias residências para se proteger de alguma ameaça. Uma vez, quando estava com um usuário de cocaína, decidimos ir para o Largo Tereza Batista, onde havia uma apresentação de reggae e também poderíamos fumar um baseado tranquilamente, já que havia uma forte operação policial no show de Gerônimo. No caminho, antes de descer a esquina, ele me pede a carteira e rapidamente despeja a última dose que tinha de cocaína. Rapidamente preparou duas “carreiras” da substância e me pediu para cheirar a minha parte, para logo depois consumir o resto. Depois de alguns segundos, ele naturalmente limpa a carteira com alguns tapas para eliminar o que tinha impregnado e seguimos normalmente para o destino definido. Esse é um entre muitos casos de agenciamentos do uso de drogas de forma explícita que acontece no Centro Histórico de Salvador. Apesar de arriscado, os usuários de drogas dominam uma série de saberes e aprendizados sociais comuns aos circuitos legalize e suas peculiaridades no contexto prático do local de consumo. No final dos shows da banda Mont’ Serra, ainda é possível observar grupos de usuários de maconha consumindo a droga de forma explícita. Muitas vezes estão decidindo para onde ir após o concerto. Na medida que as pessoas vão evadindo o local, alguns moradores de rua e indivíduos em situação de vulnerabilidade que também são usuários de crack começam a circular na escadaria com o objetivo de catar restos de maconha e cinzas de tabaco. Alguns deles, após o concerto, seguem para a Rua das Flores que fica logo abaixo da Ladeira do Carmo e onde se concentram usuários de crack, maconha e cocaína. No local existem dois bares que vendem bebidas alcoólicas e os usuários ocupam o outro lado da rua. Apesar de estar bem próxima de uma base móvel da polícia, os frequentadores consomem drogas ilegais de forma explícita. Durante o trabalho de campo também foram observadas abordagens policiais no local. De forma geral, a observação regular do circuito das drogas no Centro Histórico de Salvador destacou uma maior seletividade da atuação da polícia na Escadaria do Passo em relação ao Largo Tereza Batista, Pedro Arcanjo, Quincas Berro D’água, e principalmente na Jam no MAM. Diversas vezes, quando havia uma operação intensiva e a permanência de oficiais nos shows de Gerônimo, o que impedia o consumo coletivo de maconha, os usuários escolhiam as outras opções oferecidas pela mancha local, de preferência em eventos fechados e pagos protegidos por seguranças terceirizados. Desta forma, percebemos uma parte dos

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trajetos feitos pelo circuito dos usuários de drogas na região. Ao acompanhar as redes de grupos em campo, podemos destacar a constante frequência com que circulam os interlocutores, mesmo porque sempre precisam se afastar dos representantes das sanções formais. Outro foco de concentração de usuários de drogas ilegais, no Pelourinho, é o Largo Tereza Batista. Principalmente nos finais de semana, o equipamento urbano é usado para eventos culturais, como batalhas de rima, concertos de reggae e de novos estilos alternativos, o que acaba atraindo jovens e adultos usuários de maconha e outras drogas. Em noites de eventos, a rua também é ocupada por ambulantes que se instalam bem próximos à entrada do largo para vender bebidas alcoólicas, lanches e doces. Outro grande atrativo para os usuários é a constante oferta de eventos gratuitos ou de baixo custo, o que garante o seu acesso a classes menos favorecidas.

Figura 5 - Largo Tereza Batista. Imagem do Largo Tereza Batista cheio de pessoas que se localizam no centro do local. A foto foi tirada do fundo do espaço, demonstrando a visão dos usuários que ocupam a praça e que dispõem de uma visão de quem entra e sai do local. Essa é uma estratégia comum dos espaços legalize para saber se há a vinda de agentes repressores. Fonte: http://www.doistercos.com.br/dia-mundial-de-luta-contra-homofobia-foi-celebrado-no-pelourinho/

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O Largo Tereza Batista se localiza acima da rua, sendo seu acesso através de dois lances de escada, o que permite uma posição vantajosa, já que facilita a visão dos usuários de drogas. Logo depois das escadas, à esquerda, ficam os banheiros e à direita, o camarim seguido do palco. A plateia ocupa o centro do espaço, enquanto nos fundos, após a mesa de som, começa o território legalize. Dentro do largo também existem bares que vendem bebidas alcoólicas, como cervejas e caipirinhas, já que o consumo de álcool é constante e generalizado, inclusive para aqueles que usam maconha e cocaína. A praça Tereza Batista dispõe de seguranças específicos para garantir o patrimônio físico e também funcionários terceirizados encarregados da limpeza do local. Durante o trabalho de campo nenhuma ronda, abordagem ou detenção de usuários foi observada dentro desse equipamento urbano, apesar do consumo de drogas ilegais como maconha e cocaína ser muito constante e frequente. A única vez que policiais foram vistos circulando o largo foi nas festas juninas, quando, ironicamente, havia a presença de poucos usuários. Certa vez, um jovem negro que estava rabiscando símbolos nas paredes do largo foi detido pelos seguranças privados. O relato do caso demonstra como é tolerado o consumo de maconha entre os próprios seguranças terceirizados. Os funcionários que são responsáveis pela conservação do patrimônio tinham detido o rapaz não por ser usuário de drogas, ou estar furtando algo, mas por ter danificado e pichado um Patrimônio Cultural. Durante a abordagem e revista, os seguranças se explicaram àqueles que estavam criticando a ação. Neste momento, é revelado como é tratada a questão do uso público de drogas na praça. O depoimento do segurança esclarece bastante: “A gente não liga. Vocês podem fumar sua droga até umas horas ai, pra gente não dá nada. Mas se vocês não colaborarem fica difícil. O nosso patrão reclama da gente das coisas que vocês escrevem nas paredes. Isso ai dá problema pra nós. Agora se a gente chama a polícia pra resolver a situação? e ai? como fica? Ai é outra história.” Enquanto estávamos conversando e dialogando com os seguranças, outras pessoas consumiam maconha ao nosso lado sem o maior problema ou preocupação. Os seguranças discutiam conosco mas não interferiam no consumo de maconha ao redor. Neste caso, percebemos que, para estes funcionários, a depredação do patrimônio público é mais grave do que o consumo generalizado de drogas. Neste sentido, a dinâmica e o comportamento dos usuários nos eventos fechados era conduzida com mais liberdade, sem maiores preocupações, ou seja, o contexto legalize neste largo era visivelmente mais presente do que o observado na Escadaria do Passo. Algumas bandas em especial, atraiam um grande público e por conseguinte ampliavam os espaços de

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ocupação dos usuários de drogas. Em dias de eventos lotados, todo o equipamento urbano se transformava em um espaço legalize, até mesmo em frente ao palco ou perto da entrada. Certa vez, em um evento de música reggae aberto ao público havia muitas rodas de fumo e um cheiro intenso de maconha no espaço. Muitos usuários possuíam grandes quantidade da substância o que aumentava bastante a oferta. Algumas rodas de fumo tinham um grande número de usuários o que implicava na confecção de grandes cigarros de maconha. Era grande a presença de jovens e adultos do subúrbio e das periferias da cidade onde a música reggae é bem presente. Eu estava em companhia de um rapaz da Ribeira que tinha aproximadamente vinte gramas de maconha e esbanjava oferecendo a todo momento um novo baseado. A situação causou a aproximação de outras pessoas conhecidas que se reuniam para compartilhar o que ele oferecia. Em dado momento a roda de fumo instalada contava com seis pessoas que dividiram alguns cigarros de maconha. O caso demonstra como o uso público de maconha proporciona sociabilidades entre pessoas e grupos. São muitos os encontros que as drogas podem proporcionar em eventos de lazer. Em eventos comuns e até mesmo vazios ainda é possível observar usuários ocupando os fundos, principalmente um beco mais reservado que se tornou efetivamente legalize. Neste pequeno espaço do fundo do largo existem bancos fixos e duas cabines de banheiro químico, também usados por usuários de cocaína. A depender do contexto e do grupo de usuários, alguns deles até cheiram cocaína abertamente sentados ao lado de quem está fumando maconha. As rodas de fumo são de números variados, inclusive existem usuários solidários que, sempre que são requisitados, compartilham seus cigarros com outras pessoas. Outros jovens esperam ansiosos algum conhecido oferecer o baseado prometido antes do evento. No beco, então, os usuários se posicionam fora da visão do grande público, o que demonstra uma forma de dividir a ocupação do espaço em relação aos não usuários. Da mesma forma, a localização distante da entrada facilita evitar qualquer movimentação suspeita, no entanto, os usuários parecem não se preocupar com uma possível aproximação das autoridades neste espaço em específico. Em um relato, um usuário desdenha da possibilidade da polícia militar entrar na praça para abordar e levá-lo detido. Quando perguntei se não havia perigo das autoridades virem até o beco ele relata em tom irônico: "que não veem nada! Os caras (policiais) tem mais o que fazer. Eles não vão vir perder tempo com a gente." Observei também que há um trânsito dos usuários de drogas entre o centro do palco, onde estão seus pares, e os espaços legalize, onde vão consumir maconha ou cocaína. Muitos usuários circulam entre estes espaços quando resolvem usar estas drogas. Este caso, em

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específico gera a reflexão na divisão dos espaços definida pelos próprios usuários que ocupam o equipamento urbano. Neste sentido, percebemos que há um código de ocupação e organização do território na dinâmica e agenciamentos dos espaços legalize. Algumas pessoas e grupos de usuários frequentam com bastante regularidade os eventos nos diferentes largos do Pelourinho. Muitos são jovens, negros e de bairros periféricos, mas outros são adultos de meia idade e que já têm experiência com drogas há um certo tempo, por conseguinte, dominam mais os códigos e os trajetos adequados para consumir drogas em público. Além disso sabem onde não precisam se preocupar em expor o consumo de drogas, e por isso comportam-se com a maior naturalidade, apesar da infração legal. Em certa ocasião no Largo Tereza Batista, um homem negro e de meia idade não tinha receio de expor nas mãos uma porção de aproximadamente dez gramas de maconha enroladas em uma folha de papel. Ele estava acompanhado de mais dois conhecidos que se mostravam curiosos em sentir o cheiro da erva e testar sua qualidade. Logo depois de atestarem a substância, ele sacou um punhado de flores para preparar um baseado na companhia de seus conhecidos. Interessante é destacar que somente em contextos legalize é possível ver este tipo de comportamento em relação às drogas.

Figura 6 - Largo Tereza Batista. Foto sinalizando dois usuários consumindo maconha nos fundos da praça Tereza Batista. Logo ao lado direito existe o beco onde há a maior presença deles. A foto também indica que, mesmo havendo uma pequena quantidade de pessoas presentes no evento, ainda assim há o consumo de drogas. Fonte: Foto tirada em campo.

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A grande parte de usuários traz sua porção própria para consumo. Aqueles que não possuem nada, juntam-se aos que tem algo em sua posse o que acarreta uma constante fluidez e modificação das diversas rodas de fumo que se formam no local. Alguns usuários demonstram alegria e vaidade por oferecer aos outros uma substância de melhor qualidade ou aquela amostra que já tem um reconhecimento na cidade. Neste sentido, é comum ouvir sempre um nome e a região a que pertence a substância. O tamanho e formas dos baseados são um tanto quanto diferentes dos cigarros comuns de tabaco, sendo muitos de tamanho grande, o que chama uma certa atenção em público. Outros usuários trazem utensílios e até kits completos para ajudar na confecção dos cigarros de maconha, como pequenos recipientes e frascos com qualidades herméticas, tesouras e trituradores, o que expõe mais a suspeita de delito. É comum também alguns jovens de periferia ostentarem os baseados enquanto atravessam a plateia numa clara atitude arrogante de demonstrar para os outros que estão consumindo drogas ilícitas. A sensação de liberdade é comum entre os usuários como foi observado em diversos momentos neste equipamento urbano. No entanto, não é sempre que o consumo de drogas no Largo Tereza Batista se dá de forma livre. Em determinados eventos não há a presença de usuários, pois os públicos são incompatíveis. Esse dado serve para chamar atenção para o fato de que a definição dos espaços legalize depende do contexto geral e não somente do espaço ou equipamento urbano. Como observado em alguns momentos, é incomum ou mesmo estranho consumir maconha em determinados eventos no Largo Tereza Batista. Segundo relatos, nos shows do Olodum, bloco afro-brasileiro tradicional da cidade, há muitos usuários de cocaína, que consomem a substância discretamente em ambientes privados, e quase inexiste o consumo explícito de maconha. Em shows de certos blocos afro de carnaval que, inclusive ressaltam os ideais Rastafari e que fazem referências a figuras como Bob Marley, é quase inexistente o consumo explícito de drogas, apesar de usuários ocuparem o local. Certa vez, estava presente em um ensaio de carnaval de um dos blocos mais famosos da cidade e encontrei um conhecido da região, também usuário de maconha. Como fiquei incomodado com o fato de não ver o consumo nos lugares já delimitados, questionei ao rapaz onde poderíamos consumir um cigarro de maconha que tinha em posse. Fomos para os fundos, onde já é tradicional a ocupação dos usuários e ainda perguntamos educadamente aos seguranças que estavam no local se não teria problema fumarmos um baseado. Com um tímido sorriso ele afirma: “só acabe logo seu serviço pra o cheiro não tomar o local.” Depois de autorizados, acendemos o

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baseado e o incomodo foi imediato, já que éramos os únicos a consumir maconha no local. Em poucos minutos somos abordados por um homem de meia idade com gestos demonstrando insatisfação com aquilo que estávamos fazendo. Ao me abordar justificou que minha atitude era um erro e que estava prejudicando a imagem do evento já que aquilo não fazia parte da etiqueta do local. O curioso de toda a situação descrita é ter visto negros de periferia de cabelo rastafari que, inclusive usavam camisas com símbolos da erva, mas que não estavam no momento do show consumindo drogas como em outros eventos observados no largo. Alguns jovens negros frequentam o largo em grandes grupos. São pré-adolescentes da periferia ou dos arredores do centro da cidade que praticam pequenos delitos e furtos na região. Certa vez, na praça Tereza Batista havia um evento aberto ao público onde se encontravam muitas pessoas que lotavam o local. Enquanto estava observando o beco e os usuários consumido livremente suas respectivas substâncias, percebi que seis garotos muito jovens entraram no largo e seguiram direto para o espaço legalize, onde se instalaram. Em poucos minutos, um deles já começava a preparar um baseado enquanto os outros dançavam e cantavam alegres e despreocupados. A forma natural de ocupação do território pelos jovens garotos demonstra muita familiaridade com os códigos de uso de drogas no Centro Histórico, que define determinados espaços para o consumo público de substâncias ilegais. No caso em específico, a intenção principal dos jovens era fumar o baseado e não assistir o concerto propriamente dito. Depois de consumirem a droga, saíram e voltaram a circular pelas ruas do Pelourinho. Este dado demonstra que para consumir drogas no local é preciso conhecer os espaços corretos. Em muitas ocasiões, a programação cultural da Secretaria de Cultura sempre oferecia atrações diferentes em todos os largos do Pelourinho. Quando não havia possibilidade de consumir drogas ilegais na praça Tereza Batista, os usuários se deslocavam para os outros largos como no Quincas Berro D’água e no Pedro Arcanjo, mesmo que somente para consumir drogas ilegais com mais segurança. Geralmente usuários de baixa renda preferem eventos gratuitos, onde também podem encontrar os seus pares. O Largo Quincas Berro D’água também tem seu pedaço legalize: a extrema direita oposta a entrada em uma região mais afastada dos bares e do palco. Nesta região há pouca circulação de pessoas já que não há bares abertos ou outros serviços disponíveis, apenas duas cabines de banheiros químicos. Como os bares e restaurantes que ficam localizados no centro do largo já disponibilizam banheiros, as cabines são mais usadas pelos usuários de cocaína. O

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local é estratégico já que proporciona uma visão privilegiada para o único acesso e, ao mesmo tempo, se localiza a uma certa distância da multidão, o que define bastante o território dos usuários de drogas. É comum estes saírem da frente do palco para fumar maconha neste espaço definido. No entanto, assim como acontece na Tereza Batista, quando há eventos de reggae e estilos de musica alternativos que atraem os usuários de drogas, o consumo se dá até mesmo na frente do palco e em meio à multidão.

Figura 7 - Largo Quincas Berro D'água. Largo Quincas Berro D´água cheio de pessoas que ocupam o centro do espaço. Os usuários de drogas se localizam no canto direito do palco, no centro da foto, mais distante do grande público. Esta localização também é estratégica porque garante a visão de quem entra na praça. Fonte: http://www.apontador.com.br/local/ba/salvador/artes/C403706F13122C1220/largo_quincas_berro_d_agua.html

Além disso, o local tem muros baixos e bancos fixos, onde os usuários podem sentar para preparar e manufaturar as substâncias para consumo mais adequadamente. É comum ver grupos de duas a sete pessoas dispostas em roda e dividindo tarefas, onde um prepara o cigarro e os outros ficam atentos para possíveis porventuras. Todavia, a presença de policiais fardados no local só foi observada antes dos eventos ou quando não havia a presença de usuários consumindo drogas em flagrante. Como já observado na Tereza Batista, no Largo

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Quincas Berro D´água também não foram vistas abordagens e detenções por consumo de drogas ao contrário do ocorrido na Escadaria do Passo. Durante o trabalho de campo, no entanto, poucos foram as noites de eventos no largo Quincas Berro D´água que ofereciam atrações de interesse dos usuários de drogas ilegais. A maioria dos eventos na praça era de estilos de samba entre outros estilos mais tradicionais da cultura local. Todavia em noites de festivais de reggae ou tributos ao cantor famoso Bob Marley, que reuniam diversas bandas locais, o consumo coletivo principalmente de maconha extrapolava o pedaço estabelecido e atingia também o centro da plateia. Outros dias, mesmo com público reduzido, era possível perceber usuários consumindo maconha em frente aos bares, devido à eventuais contratempos como climas chuvosos que impossibilitavam os usuários de ficarem em seus territórios estabelecidos. Nestes casos, não havia nem mesmo demonstração de incomodo por parte dos funcionários dos bares, o que reforçava a liberdade dos consumidores de drogas que ocupavam o local no momento. Novamente este exemplo demonstra como são flexíveis as maneiras como se delimitam os espaços legalize, dependendo do contexto prático e do momento para serem definidas suas fronteiras. Além disso, demonstra como o circuito das drogas interage de forma amistosa nos circuitos de lazer do Pelourinho. Assim como os outros espaços citados, o Largo Pedro Arcanjo também é regularmente ocupado por usuários de drogas ilegais, que também selecionaram alguns espaços legalize dentro do equipamento urbano. Localizado na mesma rua do Largo Tereza Batista, a praça também oferece serviços como bares restaurantes, além de stands que vendem lanches e também bebidas alcoólicas. A entrada do largo segue por um corredor que atravessa o palco por baixo e leva a uma extremidade lateral que é ocupada pelos usuários de maconha e outras drogas ilegais. Além dos stands, existem, nesta extremidade, duas cabines de banheiro químicos que são também usadas pelos consumidores de cocaína. Os vendedores dos stands e os seguranças terceirizados não se incomodam com os usuários de drogas, da mesma forma como observado nos outros equipamentos citados. Mais acima, no nível do palco e da plateia, mas um pouco mais afastado do grande fluxo, também é possível observar outro território legalize, que também se instala oposta a entrada de acesso. Em dias de eventos lotados e que atraem muito usuários, o consumo de drogas toma todo o território, inclusive em frente ao palco. Certa vez, depois de observar o show na Escadaria do Passo, fui a um concerto de uma banda de reggae do Recôncavo Baiano muito famosa em Salvador e onde tinha a certeza

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de encontrar o espaço lotado de usuários de maconha e também, em menor proporção, consumidores de cocaína. A minha expectativa era de que não houvesse rondas da polícia militar e o acordo informal entre as sanções formais e os usuários de drogas fosse respeitado. No entanto, logo quando cheguei, minutos antes de começar o show e com o largo cheio de pessoas, uma forte operação da polícia militar envolvendo oito oficiais abordava e revistava aqueles que ocupavam justamente os espaços usuais de consumo. Não sendo difícil para encontrar suspeitos, os primeiros grupos vistos já foram logo abordados e pressionados contra a parede para a revista. O público ao redor reagiu com surpresa, já que era incomum de ver uma operação daquela com claras intenções de intimidar os usuários em um evento propício a atrair muitos usuários de drogas. Muitos questionavam a efetividade daquela operação, já que a simples detenção não iria extinguir seus hábitos de consumo. Outros vaiaram a operação que parecia não fazer sentido para aquele contexto. O resultado foi a detenção destes primeiros usuários, os quais, como de costume, eram negros e da periferia da cidade. O desacato aos oficiais causou um surto de fúria por parte de um deles que identificou um jovem negro que havia vaiado a operação. Imediatamente depois de identificado, o policial foi ao seu encontro abordando-o de forma autoritária, exigindo respeito ao seu cargo de autoridade naquele momento. Todavia a forma como agia com o jovem negro foi bastante desrespeitosa e violenta, tentando humilhá-lo por ter desrespeitado sua instituição. A situação me deixou intrigado e fui observar o que iria acontecer com os detidos e o resultado final da situação, que por sinal não deixa de ser curioso. Os sete rapazes detidos foram conduzidos juntos de mãos dadas para fora do largo e depois novamente dispostos em linha contra a parede em outra rua mais afastada para mais um interrogatório. Como eram homens de idade adulta, a conversa parecia franca e tranquila. Depois de alguns minutos conversando, os policiais expulsaram todos os usuários detidos e os impediram de retornar ao show de reggae. Por outro lado, o jovem negro, que por sinal foi o único detido entre os que haviam vaiado a operação, sofreu a maior punição porque foi autuado por desacato. No caso, o contexto parece sugerir que o consumo de drogas não foi o mais reprimido dos delitos praticados. Da mesma forma demonstra também o nível de desrespeito que enfrenta a instituição policial frente aos usuários que não veem com bons olhos a presença dos representantes das sanções formais. Depois da operação dos policiais, a grande multidão de usuários que ocupava o Largo Pedro Arcanjo continuou consumindo maconha

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durante todo o evento, o que demonstra que o resultado da repressão de alguns usuários não foi efetivo para inibir o consumo no local.

Figura 8 - Largo Pedro Arcanjo. Largo Pedro Arcanjo lotado de pessoas que ocupam o centro do espaço. Os usuários se localizam no canto esquerdo do palco, no centro da foto, e no canto oposto à entrada da praça, indicando a estratégia dos usuários de ficar atentos a quem entra ou sai do local. Fonte: http://michellemarie.com.br/posts/4201-daniela-mercury-no-pelo

Em outra ocasião, na praça Pedro Arcanjo tive a oportunidade de presenciar os artistas que iriam apresentar o show fumando maconha no camarim. O consumo de drogas é comum em quase todos os camarins, já que quem tem acesso ao local, efetivamente adquire mais privilégios de segurança. A banda que ia se apresentar era de um cantor e compositor local do estilo rap e que tinha uma certa inserção no circuito artístico musical da capital baiana. Os artistas presentes eram negros de periferia e a maioria era de consumidores frequentes de maconha. Assim, o consumo coletivo se deu da forma mais natural possível, demonstrando que o uso da erva ilegal fazia parte do cotidiano da vida deles e que se associava bastante aos seus momentos de lazer. O cantor e artista principal pedia ao seu DJ e produtor do evento que preparasse cigarros de maconha para todos presentes. Da mesma forma, muitos convidados também ofereciam o que tinham em posse e haviam selecionado para a ocasião. Depois de um tempo no camarim e após ter fumado alguns baseados, seria a hora de começar o show, no entanto alguns deles ainda sugeriam ideias para continuar a comemoração do encontro depois do show, ou seja, mais drogas seriam consumidas em outra

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parte da cidade mais tarde. Tal fato é mais um exemplo de que os usuários de drogas produzem e constroem o circuito de drogas nos mais diferentes espaços da cidade. Além dos largos de shows, a mancha das drogas no Pelourinho oferece outras opções para consumir maconha, como a Praça das Artes. Antes do período da pesquisa haviam eventos musicais e culturais gratuitos no local, mas durante a pesquisa era um espaço menos aproveitado pelos órgãos públicos, apenas pelos usuários de drogas. Desta forma, a praça também se tornou um refúgio dos usuários de drogas, caso procurem uma opção para fumar um baseado em coletivo.

Figura 9 - Praça das Artes. Local de refúgio de alguns usuários justamente por ser pouco povoada e um tanto quanto deslocada dos bares e praças de shows do Pelourinho. Os usuários costumam ocupar o canto direito do local para poder ter uma visão estratégica de quem entra ou sai. Fonte: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1704091-praca-das-artes-passa-por-intervencao-no-pelourinho

Certa vez eu estava com um grupo de usuários em um evento no Largo Pedro Arcanjo. Após o show, um rapaz entre nós lembrou que ainda havia um baseado para fumar e perguntou aos demais onde poderíamos consumi-lo sendo que já era o fim do evento e hora de evadir o largo. Um dos componentes do grupo, morador do Centro Histórico sugeriu então que fossemos à Praça das Artes. Depois de concordarmos, descemos a rua em direção ao destino até entrarmos em um corredor estreito seguido de um lance de escadas. Uma das garotas, que não estava à vontade demonstrava receio a respeito do comportamento do grupo,

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mas o rapaz que conhecia o local, nos tranquilizava o tempo todo. “Relaxa! Essa praça já é manjada, ninguém vai nos perturbar.” Ao chegar, descemos uns lances de escada e seguimos para o canto à extrema direita da estrutura do equipamento. Lá havia um segurança terceirizado e fardado que logo foi cumprimentado pelo rapaz que nos guiava de forma bastante natural, apesar de nosso comportamento demonstrar claramente a formação de uma roda de fumo no local. A própria disposição em que estávamos já denunciava à distância o que eles iriam fazer, portanto, estava claro que eles iam consumir coletivamente maconha. No entanto, tudo ocorreu bem e saímos tranquilamente sem ser incomodados pela polícia, seguindo novamente para as ruas do Pelourinho para aproveitar o resto da noite. Desta forma, é comum estabelecer roteiros e trajetos dentro do circuito de lazer do Centro Antigo de Salvador. Para além de circular pela mancha das drogas no Pelourinho, os usuários de substâncias ilegais também ocupam outros espaços, como o Museu de Arte Moderna de Salvador ou Solar do Unhão. Muitos grupos de usuários e suas redes frequentam também aos sábados a Jam no MAM, demonstrando que há realmente um circuito urbano específico e também que os consumidores de drogas ocupam uma parte do circuito de lazer da cidade de Salvador. O local que concentra a grande parte de usuários de maconha é o estacionamento do Solar do Unhão, especialmente aos sábados, quando acontece a sessão de jazz. Muito dos grupos de usuários que frequentam os largos e o circuito do lazer em geral do Pelourinho também ocupam este evento para consumir maconha e bebidas alcoólicas. Como a apresentação de jazz se dá no início da noite, o comum é as redes de grupos seguirem para outros equipamentos urbanos do circuito de lazer da cidade. É frequente também ver usuários que estão na sessão de jazz seguirem para o Pelourinho e também para bairros como o Rio Vermelho entre outros. Para ter acesso à Jam no MAM são cobrados valores entre três e seis reais, já que há o subsídio do governo do Estado. O valor reduzido, em tese, seria para atrair mais pessoas, mas, na verdade, acaba selecionando uma determinada parcela que pode pagar pelo acesso. O público que frequenta o evento é bastante diversificado, mas visivelmente percebe-se que a maioria é de classe média, entre intelectuais, artistas e amantes do estilo da música. O evento também proporciona um ambiente familiar permitindo que muitas crianças e idosos frequentem com regularidade o espaço. As pessoas de idades avançadas geralmente estão presentes para desfrutar apenas do concerto improvisado e ficam sentados no centro da plateia atentos aos arranjos dos músicos. Os mais jovens ocupam o território na intenção maior de

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encontrar conhecidos e também consumir maconha e outras drogas do que assistir a apresentação musical. O local também é uma opção romântica para casais que ocupam com frequência o local, inclusive compartilhando cigarros de maconha. Antes mesmo de começar a sessão de jazz, já é possível observar usuários de maconha ao redor da beirada do estacionamento do Solar do Unhão assistindo ao pôr do sol. As rodas de fumo variam em quantidade. Às vezes, não é raro observar usuários consumindo maconha sozinhos ouvindo a música. A segurança responsável pelo evento é privada e não se preocupa com o consumo público e frequente por parte dos usuários do espaço. Os consumidores de maconha geralmente ocupam as extremidades do estacionamento. Da mesma forma, como é observado em outros espaços legalize, o campo de maior concentração de usuários é o canto oposto à entrada, já que em caso de flagrante pode-se “dispensar” o baseado no mar. Outra hipótese seria pela própria criminalização do usuário que naturalmente busca locais mais escondidos, já que seu comportamento não é visto de forma positiva. Em muitas ocasiões, o evento recebe muitos usuários de maconha. Do início ao final do concerto é possível ver numerosas rodas de fumo, podendo se sentir o cheiro da erva ilegal de forma bem perceptível até mesmo em frente ao palco. Os usuários de cocaína, em menor proporção, usam os banheiros químicos para consumir a droga e estes também ficam nas extremidades do estacionamento. O uso de maconha é tão natural no local que não há nenhuma preocupação com a exposição do ato ilícito, assim, neste evento em particular, há uma tolerância social em relação ao consumo de drogas. Da mesma forma, o dado demonstra que é perfeitamente possível que haja o consumo público de drogas em determinados eventos de lazer. Em certa ocasião, observei dois oficiais que estavam na parte superior do espaço, onde era possível visualizar perfeitamente o consumo generalizado de maconha, além de também sentir fortemente o cheiro da erva queimada. Fiquei observando curioso qual seria a reação deles depois de terminarem a conversa, mas nada foi feito por parte dos policiais que apenas ficaram conversando. O fato intrigante foi explicado quando fui fazer entrevistas no batalhão da policia militar. Um dos soldados acabou admitindo que a própria direção do evento e os seus organizadores solicitam que os oficiais fiquem mais afastados do foco de uso de drogas. Desta forma, em todas as vezes que fui observar a seção de jazz, percebia que havia apenas dois policiais fardados responsáveis pela segurança de todo o evento, e mesmo assim, eles sempre ficavam na primeira portaria, antes mesmo do portão do museu, bem afastados do local de consumo.

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Outro dia observei um policial fardado entrar no espaço onde ficam os usuários. Curiosamente ele passou direto para as stands de alimentos sem abordar ninguém, inclusive dois jovens que preparavam um baseado que se surpreenderam primeiro com a proximidade do agente e segundo por não tê-los abordado. Um deles olhou para o outro e com um sorriso irônico no rosto afirmou: "Esse aqui é o pico (lugar ideal) para fumar um (baseado)." Esse exemplo é mais uma prova que existe um acordo informal entre a direção do evento e as autoridades policiais de não interferência no consumo de maconha.

Figura 10 - Museu de Arte Moderna Salvador. Por do sol no Solar do Unhão. A foto indica que mesmo antes de começar o evento de jazz, alguns usuários já se posicionam ao redor do espaço para poder consumir maconha livremente. O ambiente também se mostra bastante agradável. Fonte: http://www.jamnomam.com.br/espia-so/fotos

Esse acordo informal, previamente estabelecido, se confirma pelos relatos de que apenas uma pessoa tenha sido detida, durante mais de dez anos do projeto cultural. O fato, segundo os interlocutores, se deu antes da lei atual, quando o usuário ainda era criminalizado pelo porte de drogas. Neste sentido, um dos eventos observados mais seguros para consumo público de maconha observados é a Jam no MAM. Para muitos usuários é inconcebível serem detidos dentro daquele território.

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Da mesma forma, o evento já é amplamente conhecido como espaço de consumo de maconha, até mesmo por estrangeiros. Certa vez, estava sentado e fui surpreendido com um trio de norte-americanos vindos de São Francisco, Califórnia me pedindo fogo para ascender um cigarro de maconha prensada. Era um casal de idade avançada, sendo que a mulher é uma médica e sua filha estava frequentando um curso superior no Brasil. O casal estava acompanhando a garota num passeio turístico pelo Pelourinho e resolveram finalizá-lo no concerto de jazz, onde poderia desfrutar de um cigarro de maconha livremente. Perguntei como eles sabiam que ali teria uma liberdade para isso e a garota me explicou que seu namorado brasileiro já havia apresentado o local a ela.

Figura 11 - Museu de Arte Moderna Salvador. Foto do Solar do Unhão no momento em que começa a apresentação de jazz. Percebemos a presença de usuários ocupando o local assim como diversos casais que frequentam o espaço demonstrando um ambiente tranquilo e heterogêneo. Fonte: Foto tirada em campo.

Um dos usuários com quem mantive contato é um empresário já de meia idade com família e emprego estável. Quase todos os sábados ele era visto na Jam no MAM consumindo aquilo que tinha em posse. Geralmente ele vinha com algumas gramas de maconha suficientes para as três horas de evento. Como ele era bem conhecido, sempre estava acompanhado com amigos, apesar de costumar chegar sozinho. Quando encontrava um conhecido que vinha

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cumprimentá-lo, sua reação de satisfação com o encontro era oferecer um punhado de maconha. Em troca do presente, seu conhecido preparava o cigarro, que muitas vezes era de uma seda de tamanho grande. Para ele, não há constrangimento em se exibir como usuário frequente da droga, principalmente no evento de jazz. Ao perguntar que locais também frequenta na cidade para consumir maconha, ele afirma que vai bastante na praia do Buracão, no bairro do Rio Vermelho. Segundo seu relato, este empresário costuma ir lá sozinho para fumar "altos" baseados e de tamanhos grande. Este é mais um exemplo da construção dos circuitos legalize nos diferentes espaços da cidade de Salvador.

Figura 12 - Jam no MAM. Nesta foto percebemos como o evento de jazz no MAM é povoado. Quando mais pessoas ocupam o espaço, maior é a liberdade dos usuários de drogas em se misturar com os outros frequentadores no centro do local. Fonte: http://www.jamnomam.com.br/espia-so/fotos

No evento de jazz do MAM é possível observar também o uso explícito de bongs e cachimbos artesanais que chamam mais atenção do que fumar em forma de cigarro. Muitas rodas de fumo são formadas e interagem entre si durante todo o evento. Alguns usuários passam todo o evento fumando, e para isso consomem mais ou menos de cinco a sete baseados. Muitos deles trazem diferentes tipos de erva com concentração e potências diferentes entre as conhecidas “solta”, “prensada”, além de algumas ervas cultivadas em

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apartamento, em menor proporção. Muitos são jovens de periferia, do Subúrbio Ferroviário e da Cidade Baixa que frequentam o evento devido a seus preços acessíveis.

Figuras 13 e 14 - Bong e baseado. Na foto da esquerda percebemos a utilização de um bong para o consumo público de maconha no MAM indicando a segurança e a liberdade, próprias de espaços legalize, que permitem que os usuários pratiquem tranquila e abertamente o ato ilícito. Na foto da direita percebemos a confecção de um baseado de tamanho grande, indicando também a despreocupação na exposição do consumo de drogas. Fonte: Fotos tiradas em campo.

Durante algumas semanas me relacionei com um casal de jovens usuários de maconha moradores do centro da cidade. Eles tinham carro próprio, residência e o rapaz inclusive era bem tatuado demonstrando ser de classe média. Em todas as semanas que nos encontramos eles consumiam constantemente maconha durante todo o evento. Isso significa que vinham com uma quantidade considerável e também demonstravam portar uma variedade de maconha de diferentes qualidades provenientes de fontes diversas. Da mesma forma eles eram bem integrados socialmente e sempre agregavam conhecidos para compor rodas de fumo. Ao longo do evento o casal conseguia juntar pelo menos de cinco a sete pessoas formando uma grande roda de fumo onde se compartilhavam de cinco a dez cigarros de maconha por noite. Como criei laços de confiança entre eles, sempre era chamado para integrar o seu grupo e o convite sempre era para poder experimentar uma determinada erva que havia conseguido com um "amigo". Era comum ele dizer: "E ai vei, chega mais. Tô com o barro (maconha de qualidade) aqui. Você vai ver a potência. vai ficar muito louco!" A maioria dos assuntos das conversas era relacionado à maconha e suas diferentes qualidades, fontes e preços. Seus amigos também traziam suas amostras, mas em menor quantidade do que o

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casal, o que somava mais ainda o número de baseados compartilhados pela roda de fumo. É notável o quanto o rapaz fumava de erva por dia. Uma vez me disse que costuma usar um pacote de sedas (papel para enrolar os baseados) com cinquenta unidades em uma semana. Um de seus conhecidos chegou a relatar: "Rapaz, ninguém acompanha ele, é muito cabeção (usuário assíduo), se você for fumar a quantidade que ele fuma você cai no chão!" De fato ele sempre estava fumando e nunca dispensava um trago oferecido por terceiros. Sua companheira fumava em menor quantidade, mas também em maior média que muitas garotas usuárias. Quando perguntei porque frequentam a Jam no MAM, eles responderam: "Ah, aqui a gente fica à vontade pra fumar. Aqui ninguém perturba. Nem os seguranças, nem a polícia." Tal relato demonstra que para eles o lazer é constantemente associado ao consumo de maconha. Outro espaço que eles ocupam é o campus de Ondina da UFBA onde também é legalize. Um vez um rapaz me explicou que passou o dia de sábado todo lá fumando antes de ir ao Solar do Unhão. Esse é outro caso que comprova a produção dos circuitos legalize na capital baiana. Em relação ao uso de cocaína ele afirma que já foi usuário compulsivo, um "escravo" segundo suas palavras, mas que tinha "se libertado" e que agora só consumia maconha. Em nenhum momento durante o trabalho de campo foi percebida alguma operação da polícia no intuito de reprimir os usuários que estavam naquele espaço. Neste sentido, a dinâmica do uso público e explícito de drogas ilegais na Jam no MAM se deu sem maiores constrangimentos por parte dos usuários de drogas que reproduzem aí seus costumes e comportamentos os quais praticam em seus próprios ambientes privados. Não se detectou nenhum ato violento ou surto esquizofrênico resultante desse uso público. Como demonstrado nos outros espaços legalize, é a presença da polícia nos equipamentos urbanos que tende a provocar casos de violência. Não é por acaso que na sua ausência estabelece-se um ambiente mais livre e pacífico tanto para usuários como para não usuários, já que o consumo de drogas ilegais responde a uma série de regras, diretrizes, aprendizados sociais e controles próprios dos rituais formais e informais. É comum também os usuários de drogas que frequentam o Centro Antigo de Salvador ocuparem as praias também para o consumo de maconha. Muitos relatos dos interlocutores demonstram que procuram as praias onde há a maior presença de outros usuários de drogas ilegais e onde há o uso constante destas substâncias. Às vezes nos mesmos finais de semana que frequentam o Pelourinho ou o Museu de Arte Moderna eles vão à praia pela manhã ou tarde para desfrutar do lazer e consumir drogas com seus grupos. Tal dado é importante para

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entender a ideia de circuito do uso de drogas, ou circuitos legalize na medida em que se percebe a interação dos diversos espaços urbanos para essas práticas ilícitas e as escolhas feita pelos usuários de frequentar determinados territórios característicos de seus hábitos. Assim, percebemos a produção e ocupação de territórios específicos para o uso recreativo de drogas. Além disto, muitas redes de usuários de drogas ilegais percorrem trajetos entre os espaços legalize da cidade. Depois da seção de jazz, que termina às 21:00 horas, muitos usuários vão para outras manchas de lazer da capital baiana, como o próprio Pelourinho, ou mesmo outros bairros mais distantes como o Rio Vermelho. Assim, os citadinos frequentemente estendem a programação de lazer, se dirigindo para outras partes da cidade onde buscam consumir substâncias ilegais em determinados espaços específicos. Neste sentido, é possível visualizar um circuito do uso de drogas nos diferentes territórios urbanos. Esta pesquisa focou principalmente o circuito de lazer do Centro Antigo de Salvador e não foi possível aprofundar a observação de outros bairros da cidade como o Rio vermelho, Barra, Imbuí ou Itapoã, mas sabe-se que essas regiões são frequentadas por muitos usuários com quem mantive contato, fazendo parte dos circuitos de uso da maconha da cidade. Da mesma forma, se manifestam as diferentes rodas de fumo (MACRAE; SIMÕES, 2004) que não deixam de ser uma das formas de ocupar territórios e transformar os equipamentos urbanos em circuitos legalize. Estes, portanto, são legítimos por compor um dos circuitos urbanos. A Antropologia Urbana, porém, e principalmente as pesquisas que tenham o lazer na cidade como objeto, carecem de estudos e pesquisas qualitativas que levem em consideração o consumo de drogas. Mais pesquisas ajudariam a entender outros agenciamentos que motivam o consumo coletivo de drogas em espaços públicos urbanos. Concluindo a análise etnográfica sobre o circuito legalize do CAS, a investigação constatou que o uso coletivo de drogas tornadas ilícitas não se restringe aos territórios marginais, ou seja, em espaços dominados por rituais marginalizados ou pela criminalidade, mas sim em centros urbanos de ampla circulação pública e notoriedade cultural, como o Centro Histórico de Salvador e o Solar do Unhão, Museu de Arte Moderna de Salvador. A análise de campo demonstrou que o uso de drogas também faz parte do cotidiano sociocultural e, principalmente, do circuito do lazer do Centro Antigo de Salvador já que na grande maioria dos momentos observados havia o uso de psicoativos ilegais associado à recreação nos seus diferentes equipamentos urbanos. Por conseguinte, chamamos a atenção para a estreita relação entre o lazer urbano e o consumo coletivo de substâncias, sejam lícitas ou ilícitas.

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A depender do local, situação ou contexto, o uso coletivo e explícito de drogas acontece de forma ordeira, ou seja, não é incompatível com o contexto de lazer. Os resultados de nossa pesquisa apontam que, ao contrário do que pensam os proibicionistas, o uso de drogas é um fator de sociabilidade entre as redes que ocupam estes equipamentos urbanos. Foi também observado o funcionamento dos controles informais vigentes entre os usuários de drogas, assim como os sanções formais, basicamente representada pelas autoridades policiais. Outro dado constatado e analisado foi que as atuações da polícia se deram na maioria das vezes na Escadaria do Passo, e quase nunca nas praças de show do Pelourinho, nem na Jam no MAM, onde são realizados eventos fechados e muitas vezes privados. A observação de campo revelou uma desproporção na prática de abordagem que seleciona a camada mais vulnerável da sociedade: jovens, negros e da periferia. Em todo o período de campo, poucos jovens brancos, de bairros nobres foram abordado, revistado, e muito menos detidos ou mesmo agredidos por policiais militares. Tal fato leva à constatação de que, na prática, o que ocorre não é a tentativa de reprimir o uso de drogas em si, mas sim, quem as usa. A segurança privada, especialmente quando feita como serviço terceirizado, geralmente prefere não dar muita atenção ao consumo de drogas e evita reprimir os usuários, diferentemente da segurança pública que age de forma claramente violenta e se comporta de maneira incompatível aos direitos humanos, atacando a integridade física e mental de pessoas que usam drogas, principalmente aqueles em situação mais vulnerável. Assim, de acordo com a pesquisa etnográfica em equipamentos urbanos abertos ao público, de livre acesso às pessoas pobres e vulneráveis, há maior incidência de repressão pelos representantes das sanções formais e dos empreendedores morais. A observação participante realizada também identificou e analisou uma parte dos saberes, estratégias e controles informais que constituem o aprendizado social envolvido na dinâmica de uso explícito de drogas em equipamentos urbanos. No entanto, vale a pena chamar atenção para que o conhecimento adquirido entre pares nos rituais urbanos de uso de drogas não contém informações relacionadas à redução de danos, ou seja, o aprendizado social construído não prevê uma atenção maior à saúde mental e física dos usuários. Isso é perceptível quando se observam as formas pouco higiênicas de consumo das diferentes drogas, por exemplo, quando usam substâncias adulteradas ou de baixa qualidade. Além disso, os controles informais produzidos pelos próprios usuários, muitas vezes não são suficientes para lidar com certas sanções formais, na medida em que muitos consumidores de substâncias psicoativas demonstram um desconhecimento jurídico sobre a

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política de drogas e sobre seus próprios direitos legais enquanto cidadãos. Apesar dos usuários produzirem um aprendizado e respeitarem as regras dos circuitos legalize, a maioria deles ainda se demonstram ignorantes sobre os aspectos legais e morais da atual política de drogas no país. Muitas vezes, quando perguntados, alguns usuários assumem que são contra a legalização das drogas tornadas ilícitas, apesar de as consumirem regularmente. Quando questionados sobre as razões da manutenção da criminalização do uso de drogas, percebi que a discussão ainda não está aprofundada sobre a questão. De toda maneira, como descrito neste trabalho, o consumo de drogas para fins recreativos faz parte do circuito de lazer do Centro Antigo de Salvador, mesmo que não esteja registrado pelos órgãos oficiais. O aprendizado social contido nos rituais sociais produz controles informais de forma a driblar as sanções repressoras. A observação do campo demonstrou que a criminalização da cultura do uso de drogas acaba por selecionar determinados espaços para reprimir e, por conseguinte, grupos sociais que geralmente representam um perfil social mais pobre, negro e vulnerável. Assim, a criminalização dos usuários de drogas é também a reprodução da criminalização da pobreza. Por fim, a partir deste estudo etnográfico feito no Centro Antigo de Salvador podemos cogitar em expandir posteriormente o campo de análise e investigar como se manifesta o circuito das drogas em outros territórios na cidade. Assim, podem se iniciar novos estudos para aprofundar mais sobre a categoria legalize e comparar as diferentes dinâmicas e agenciamentos de outros usuários de drogas, assim como suas relações com outros circuitos de lazer.

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Conclusão. Através de uma abordagem bio-psico-social procuramos dar a ênfase ao contexto de consumo público e explícito de drogas lícitas e ilícitas, aqui representado pela categoria legalize. Assim, tentamos aprofundar as discussões em torno da Antropologia Urbana, através de um trabalho de campo feito em Salvador, Bahia, para descrever a dinâmica do uso de drogas observados em circuitos de lazer urbanos. Nos equipamentos urbanos observados, o uso de drogas se demonstrou muito comum e frequente, mesmo com a presença ostensiva dos representantes das sanções repressoras. Da mesma forma, percebemos uma interação entre estes espaços urbanos, caracterizando a formação de circuitos de uso de drogas. Neste sentido, a conclusão a que chegamos no final da pesquisa de campo e análise dos dados é de que o consumo de drogas ilegais também faz parte das sociabilidades do circuito do lazer da cidade. Como proposto nos objetivos desta pesquisa, identificamos uma ordem, um ritmo e regras de comportamento entre os usuários de drogas na cidade para poder manter o consumo de substâncias psicoativas ilegais de forma explícita. A alternativa para efetivar tais comportamentos de risco é ocupar certos espaços específicos dos equipamentos urbanos e manter um convívio ordeiro e pacífico com a vizinhança ao redor, de modo que não ocasione problemas de relações com a comunidade do local e até mesmo com os setores repressores. Identificamos também a existência de um certo acordo informal entre os representantes das sanções formais e os consumidores de drogas, construindo, assim, uma série de regras ocultas peculiares àqueles que frequentam tais espaços urbanos. Os usuários da cidade obedecem a essa ordem demonstrando que um padrão está internalizado no comportamento deles. Da mesma forma, percebemos que a construção destas regras e uma ordem específica acaba por delinear um circuito urbano de usuários de drogas, caracterizado aqui como circuito legalize. Entendemos também porque em determinados espaços da cidade tais regras se mantêm mais ou menos sólidas em relação ao consumo explícito. A posição geográfica do espaço urbano, os grupos que ocupam estes equipamentos, o contexto de lazer, a tradição de uso destas substâncias em tais locais e uma tolerância social por parte de diversos setores envolvidos diretamente na ocupação destes territórios permitem que estes comportamentos ilegais e marginais aconteçam de forma ordeira e frequente, apesar de proibidos por lei. Neste sentido, percebemos que o significado de tais comportamentos é justamente dado pela sua identidade e seu pertencimento à cultura citadina. Em outras palavras, o uso explícito de

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drogas nos circuitos de lazer urbano significa um dos elementos simbólicos existentes na cultura da cidade. Assim como J. G. Magnani sugeriu, entramos em contato com o universo dos pesquisados e compartilhamos seu horizonte para, numa relação de troca, comparar suas próprias representações e teorias e assim tentamos sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, de que o uso de drogas é muito presente na cidade e nos comportamentos de seus usuários, principalmente nos ambientes de lazer. Para isso, tivemos que investigar os aspectos insuspeitados da lógica do sistema sociocultural, como sugeriu G. Velho, justamente porque as regras do uso de substâncias psicoativas ilegais vive em um universo oculto e invisível para o senso comum. O trabalho de campo descobriu como se dá a organização social destes espaços durante os eventos de lazer. Nos equipamentos urbanos pesquisados sempre havia uma divisão dos territórios entre usuários e não usuários. Percebemos que os espaços legalize respeitavam limites físicos e simbólicos para poderem se consolidar nesses territórios. Os consumidores de drogas ilegais também procuravam estabelecer uma organização mais ou menos definida para poderem transformar seus territórios em pedaços propriamente ditos. Da mesma forma, essa organização é fundamental para driblar os representantes das sanções formais e repressoras. Pelo fato de ser um comportamento ilegal, os indivíduos se dispunham no território de forma bastante peculiar diante das outras redes de grupos para poder se fixar devidamente e construir seus territórios. Para isso, usavam de estratégias para estabelecer um uso resguardado de drogas ilícitas, como atentar para a atuação da polícia, prestar a atenção nos melhores locais para consumir as substâncias, se deslocar para lugares mais legalize e também cooperar com outras redes de grupos em situações arriscadas. O trabalho de campo também demonstrou que nos espaços legalize a comunidade do entorno lida de forma bastante tolerante e até mesmo incentiva o uso, como é o caso dos ambulantes que dependem do comércio de derivados destas substâncias e também de vizinhos que são eles próprios usuários de drogas. Da mesma forma, conseguimos identificar que o Estado participa e até financia a produção dos espaços legalize, como é o caso da Jam no MAM que é subsidiada pelo governo estadual e também o Centro de Culturas Populares e Identitárias que organiza e planeja a programação cultural e os eventos de lazer do Pelourinho durante todo o ano e onde há um consumo explícito de drogas. Em contraponto, o Estado também se relaciona de forma violenta e repressora através da atuação da Polícia Militar que

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tenta inibir o consumo de forma geral, mas acaba por selecionar os locais e as pessoas a serem abordadas e detidas. Por fim, percebemos que há diferenças da forma de consumo destas substâncias ilícitas a depender dos locais e das peculiaridades próprias que cada espaço proporciona. O uso de maconha, por ser mais explícito, ocorre de forma diferente que a cocaína e o LSD, por exemplo. As formas de compartilhamento e disponibilidade também são diferentes em relação às substâncias. Por exemplo, a maconha é mais facilmente compartilhada com terceiros do que a cocaína, que é mais cara. Em relação à problemática desta tese, buscamos entender como se dá o consumo explícito de drogas em equipamentos urbanos, apesar da política de criminalização e repressão. A consolidação desse hábito cultural se perpetua, mesmo que as implicações sociais sejam desqualificadoras e estigmatizantes. Na verdade, para as redes de usuários esse é um fator que lhes garante empoderamento e identidade específica em relação a outros grupos de redes. As sociabilidades dos consumidores de drogas nos circuitos de lazer na cidade se manifesta de forma bastante diversa, na maioria das vezes buscando interagir e integrar outros grupos, destacando a solidariedade entre os mesmos e evitando ocasionar inimizade ou qualquer relação de violência entre eles. No caso desta tese, buscamos debater a possibilidade de uso explícito de drogas ilícitas em espaços públicos, já que atualmente vigora uma legislação que proíbe o uso público de certas drogas. Desta forma, se procurou fazer uma antropologia dos espaços legalize. Acredita-se que, para um melhor entendimento sobre as drogas que possibilite oferecer sugestões para melhorar a vida em sociedade, precisa-se obter mais informação sobre o contexto social onde o consumo acontece, incluindo o conhecimento sobre os costumes e normas dos grupos; como operam diferentemente estilos de uso, como estes costumes (controles) nascem, e como novos usuários os adquirem. Futuras pesquisas deveriam investigar e procurar formas de fortalecer estes controles informais (rituais e sanções) que promovem um uso seguro e desencorajam o consumo descontrolado. Apontamos que o tipo de educação sobre o uso de drogas é adquirido pelo aprendizado social (social learning) do dia a dia. Através de mais pesquisas científicas e debates públicos seria possível estabelecer uma pedagogia do uso de drogas, no intuito de informar e educar sobre os riscos e danos do uso de drogas em geral. Então, professores estariam mais aptos para explicar como estas drogas podem ser usadas de forma segura. Neste sentido, educação sobre maneiras de uso e de evitar riscos e danos não seria um simples incentivo à prática.

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As campanhas relativas às drogas não são realistas nem conseguem estabelecer uma comunicação eficaz com a população usuária para prevenir o uso abusivo de drogas. Para R. Castell e A. Coppel, o ideal para estes tipos de campanhas seria incluir práticas de proteção adotadas pelo "submundo das drogas", ou seja, através do aprendizado social, de modo que os esforços devem envolver os usuários, a família e até amigos. (CASTELL; COPPEL, 1991) Assim, é necessário analisar a dinâmica das drogas nos espaços legalize para, justamente, acrescentar elementos práticos para possíveis novas políticas públicas de regulação do uso público de substâncias psicoativas. Isso torna-se necessário porque as atuais políticas públicas de drogas não respeitam as liberdades dos usuários de certas substâncias psicoativas e nem educam sobre as melhores formas para o consumo. Por isso, R. Castell e A. Coppel sinalizam que na atualidade, os "hetero-controles" têm falhado em relação à erradicação do uso/abuso de drogas. Segundo eles, seria possível um caminho alternativo para atender as demandas sociais em relação ao uso social de drogas. Os poderes públicos poderiam pensar numa ação complementar às respostas sociais com diferentes lógicas na busca do controle do abuso de drogas. Nenhuma lógica isolada seria eficaz diante da complexidade do abuso de drogas

e

os

"hetero-

controles" deveriam ser utilizados de modo mais racional e abrangente. (CASTELL; COPPEL, 1991) Tanto as experiências apontam, quanto o bom-senso indica: o jovem deve ter o direito de saber a verdade sobre as drogas, sem falsidade ideológica, sem mentiras, sem demagogia e sem terror. As informações devem ser objetivas e fidedignas ao referi-las ao contexto vivencial dos jovens e que os tocam, os despertam, os interessam. Assim, não é prudente reduzir a droga como simplesmente “ruim” ou “perigosa”, sendo preferível enfatizar a responsabilidade do usuário no seu controle do produto, que tanto pode levar a experiências ruins como boas, prazerosas ou terapêuticas. Será que a proibição do consumo de drogas não deveria ser repensada? Cabe, pois, reexaminar profundamente a questão legal e analisar as “verdades fabricadas” sobre o consumo das substâncias psicoativas tornadas ilícitas. Coloca-se a questão de saber se a guerra às drogas acaba estimulando mais o interesse pelo uso do que o dissuadindo. Em outras palavras, a política proibicionista incita mais a transgressão do que a obediência, além de disseminar novas formas de delinquência, violência e suborno. Nossa cultura ainda não reconhece plenamente (e menos ainda suporta) o uso controlado da maioria das drogas ilícitas. Os usuários têm sido rotulados de “desviantes” e

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ameaçados pela sociedade como “doentes” que precisam de ajuda, ou como criminosos que merecem punição. Concordamos com R. Bucher que sugere urgentemente um outro modelo de política sem proibições ou medidas repressivas, pois não surtem efeitos desejáveis. Para alcançá-los, segundo ele, precisaríamos de uma promoção mais inteligente, mais afetiva e mais integradora, capaz de incentivar o engajamento da comunidade rumo à instauração de uma melhoria significativa na qualidade de vida, através da identificação progressiva do indivíduo e das autoridades, com valores tais que permitiriam a realização de opções mais humanas e conseguinte adoção de condutas com menores riscos, tanto para a saúde individual e coletiva. (BUCHER, 1996) Parece ser mais eficaz informar sobre os fatos relacionados à maconha do que promover uma falsa concepção colocando pessoas na cadeia por simples posse de drogas e criando um desnecessário clima de medo. Apesar das campanhas enfatizarem que a maconha provoca nos usuários danos no cérebro, psicose, síndrome amotivacional, etc., nenhuma destas afirmações se baseia em dados científicos sólidos. Concordamos, assim, com R. Castell e A. Coppel que alertam contra a visão de que a toxicomania seja uma doença incurável e que fatalmente levaria à delinquência ou à morte. Essa visão obscureceria a experiência cotidiana do usuário que, na verdade, desenvolve seus próprios controles sobre as drogas. Para manter um uso controlado, este deveria estar atento com a dosagem, aquisição, relação com o traficante, entre outros fatores existente no contexto cotidiano. (CASTELL; COPPEL, 1991) O processo de aprendizado social ocorre diferentemente em cada indivíduo, mas sempre haverá um equilíbrio entre a personalidade do indivíduo e o ambiente externo. Portanto, para N. Zinberg, a relação entre a droga, o sujeito (set) e o contexto social (setting) é clara. Todos sabem que os estados psíquicos variam gradativamente em relação ao meio ambiente. Mas esta relação fundamental, na prática, não parece muito clara para os difusores do pânico moral que acaba por construir o senso comum da população. A ideia de que os usuários de drogas são imprudentes esconde o fato de que na verdade, estes produzem socialmente seus rituais sociais que servem como um controle externo bastante eficaz. Com o passar do tempo e das mudanças sociais, no meio cultural, os rituais vão gradativamente se repaginando em sanções sociais mais gerais até que elas se internalizem mudando nas estruturas dos rituais sociais, garantindo mais controle e domínio entre os usuários e a droga. A medida que a sociedade se desenvolve, os valores vão se ajustando com o tempo. O que não é aceito em um momento histórico, pode ser aceito em outro em uma mesma

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sociedade ou cultura. É essencial diferenciar aqueles valores que podem ser integrados à moral social mais ampla e aqueles que não. Logo, é necessário e construtivo esclarecer que a diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas não corresponde aos seus potenciais riscos e danos. Tal classificação, além de ser insuficiente, impede o entendimento de que as drogas ilícitas também podem ter um uso integrado aos valores morais e éticos, porque são passiveis de ser controlados mesmo que provoquem vício. A afirmação de que as drogas ilícitas são mais propensas a causar dependência que o uso de certas substâncias socialmente aceitas é incorreto. Além disso, a noção de que maiores problemas provêm do uso periódico e repetido de intoxicantes do que o uso inicial ou não dependente não é correta. Os usuários iniciantes ou menos frequentes de álcool, ou usuários de barbitúricos podem ter algum acidente de carro ou envolverem-se em alguma briga sob a influência destas drogas. Se o usuário de qualquer substância não aprende usá-la adequadamente em contextos sociais, será até mesmo mais perigoso do que se estivesse com problemas de dependência química. Da mesma forma, é mais adequado analisar questões como dosagem e modo de uso. Separar esses elementos, focando somente a composição química das substâncias leva a resultados inválidos ou incoerentes. Dessa maneira, seguimos os conceitos de R. Bucher, para quem uma prevenção assim concebida ultrapassaria os reducionismos medicalizadores unilaterais, assim como enfoques sanitaristas meramente quantitativos, que acabam se revelando operacionalizações empobrecedoras e moralizações repressivas. (BUCHER, 1996) Também estaríamos de acordo com A. Henman e O. Pessoa que destacam o valor dos controles sociais para o melhor entendimento da questão aconselhando encará-la de outra forma para ver que a solução já está presente nas práticas dos milhões de usuários que passaram pela experiência sem se tornarem nem viciados nem loucos, nem violentos ou criminosos. Segundo estes autores, em todas as partes do mundo e em qualquer tipo de sociedade, existiram controles sociais sobre o uso de diversas substâncias. Ao considerar o assunto com calma, se tornaria evidente que tais controles seriam muito mais efetivos quando partissem da experiência dos próprios usuários, em relação à algumas políticas impostas de fora por "autoridades competentes" sem nenhum entendimento prático. (HENMAN; PESSOA, 1986) Em outros termos, é preciso ter uma certa noção de espaço e de história dos locais e seus respectivos grupos ou redes sociais que frequentam. Quando a droga é ilícita é necessário deter uma série de conhecimentos que vão além dos sugeridos por H. Becker em seu livro

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Outsiders (2008). Ao escrever sobre a carreira do usuário de maconha, o autor não considerou que, além de saber como sentir o barato e administrar seu uso perante a sociedade conservadora, o usuário de drogas ilegais deve saber onde consumir as drogas seja em um espaço privado ou público. Da mesma forma é necessário saber onde há maior possibilidade da repressão das sanções formais, que, no caso, é executada pela polícia militar. As relações e dinâmicas sociais do uso de substâncias psicoativas no meio urbano estão longe de representar um perigo e retrocesso para a cultura e a sociabilidade das metrópoles contemporâneas. O uso de drogas faz parte dos rituais sociais cotidianos dos espaços de lazer e deveria ser direito individual de cada cidadão optar pelo seu uso ou não. Em muitos casos observados, são precisamente as substâncias lícitas as mais consumidas de maneira desordenada e, portanto, as mais fortes geradoras de abusos e dependências. As drogas ilegais, por sua vez, devem ser consumidas da forma mais discreta e ordeira possível para que se evite problemas com as sanções formais repressoras. Além disso, o contexto proibicionista global cria uma situação pesada de guerra que, ao mesmo tempo, deixa a sociedade desnecessariamente alarmada e também se demonstra incapaz de resolver os problemas reais de saúde e criminalidade relacionados às substâncias psicoativas. (BUCHER, 1996) O uso da repressão policial e jurídica aos consumidores e vendedores de drogas tem claros efeitos de controle e estigmatização de setores da sociedade, como observado no trabalho de campo. A pesquisa revelou que o uso público e coletivo de drogas se manifesta diferentemente em determinados equipamentos urbanos. Nos Largos Tereza Batista, Quincas Berro D´água e Pedro Arcanjo, assim como no Museu de Arte Moderna o ambiente acaba sendo mais seguro para o consumo de drogas ilegais. Os seguranças terceirizados não incomodam os usuários, a polícia não está presente e nem aplica a repressão. Além disso, o público mais frequente pertence às camadas médias urbanas, que raramente são abordadas ou detidas pelas autoridades. Por outro lado, em equipamentos urbanos onde há a circulação de camadas pobres e vulneráveis e onde há um livre acesso dos representantes das sanções formais, a repressão aos usuários de drogas é frequente. A observação dos shows do cantor Gerônimo Santana na Escadaria do Passo, na região do Carmo, demonstrou que há uma seletividade por parte da polícia militar, na medida em que aborda majoritariamente membros das camadas mais vulneráveis da sociedade, constatando-se o fenômeno da criminalização da pobreza destacado na literatura contemporânea. (WACQUANT, 2001) Apesar da constante repressão, o

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consumo coletivo de drogas é recorrente nestes espaços, o que põe em questão os efeitos benéficos propalados pelos defensores do proibicionismo. Dessa forma, as justificativas, explicações, recomendações e argumentos que o discurso de "combate às drogas" usa ou inventa para desestimular o consumo, devem ser entendidos menos em razão do próprio fenômeno e mais em função das estruturas de poder e do sistema de normas dominantes que impõem a supremacia da ordem moral, social e econômica vigente. Em suma, esta formação discursiva apresenta-se como uma abordagem unilateral e restritiva, de natureza persuasiva, que fortalece posições radicais contra usuários e dependentes. Como se procurou demonstrar, o responsável pelos danos sociais e individuais relacionados ao uso das drogas é a sua proibição legal ou a sua má regulamentação. A política de guerra às drogas, além de ser uma afronta à liberdade individual e cívica dos cidadãos, aumenta a violência e a criminalidade, ocasiona enriquecimentos ilícitos de grupos específicos e ainda aumenta a corrupção institucional. Assim, como foi exposto, o controle repressivo do uso recreativo de drogas em espaços de lazer urbanos não garante prevenção e nem educação no que tange aos riscos e danos tanto para a saúde física como mental dos cidadãos. Dito isso, as atuais políticas publicas de guerra às drogas se ligam muito mais às demandas neoliberais de criminalização da pobreza e restrição de liberdades (WACQUANT, 2001), do que ofertar educação e prevenção. Além disso, essas políticas perpetuam o caráter racista do modelo proibicionista. É muito relevante, nesse sentido, o alerta de L. Waccquant, segundo quem desenvolver o Estado penal para responder às desordens provocadas pela desregulamentação da economia equivaleria a restabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres. (WACQUANT, 2001) Desta forma, políticas públicas repressivas acabam por reforçar o estigma negativo e a criminalização dos usuários de drogas, que são também usuários da cidade. Os direitos humanos dificilmente se efetivam para a parcela marginalizada da sociedade composta por desempregados, deficientes, desviantes e miseráveis. A estes indivíduos pauperizados e percebidos por grande parte dos bons cidadãos como marginais, os direitos, assim como sua dimensão humana, sempre foram e continuam sendo negados, uma vez que geralmente são tratados, como não cidadãos e como não pertencentes ao gênero humano. Lembremos que essas várias declarações sobre esses direitos não deixaram de construir subjetividades que definem para quais humanos os direitos devem se dirigir.

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No âmbito das políticas públicas no Brasil, atualmente existem demandas tanto no poder legislativo, quanto no judiciário, que provavelmente vão mudar bastante o panorama das leis de drogas no país. Há propostas tanto conservadoras, que ampliam ainda mais a via repressora, quanto também propostas mais tolerantes e flexíveis que chegam ao ponto de propugnarem a descriminalização da cultura do uso de drogas, a legalização do comércio das mesmas e, com isso, propor uma alternativa ao panorama violento provocado pela política de "guerra" às elas. Assim, através da analise etnográfica dos circuitos legalize, pretendemos levar à discussão das políticas públicas contemporâneas sobre drogas, no que tange à sua eficácia e justificativa. Os dados levantados demonstram o quanto o consumo das mais diferentes drogas, corresponde à cultura urbana. Assim, tentou-se fazer uma articulação entre o “saber nativo” e os entraves envolvendo a criminalização dos sujeitos, bem como os acessos destes aos direitos fundamentais da pessoa humana, como uso do próprio corpo, o direito de ir e vir, ou até mesmo de pensamento. Através de uma pesquisa etnográfica do consumo de drogas em Salvador, pretende-se iniciar um debate sobre o dilema da persistência do consumo de drogas ilícitas, apesar da proibição da produção, distribuição, comércio e consumo das mesmas. Acreditamos, então, que devido à legislação proibicionista, não se pode elaborar nenhum tipo de regulamentação para nortear o consumo, tanto público quanto privado de uma grande variedade de substâncias psicoativas na cidade. Seria essa a principal razão para uma série de problemas que são tomados como meras consequências do uso das substâncias e não da maneira caótica como se trata essa questão. Edward MacRae alerta que ao concentrar a atenção no combate a produtos simplesmente, sem se levar em conta os fatores de ordem sociocultural envolvidos nessas práticas, deixa-se de atentar para possibilidades de prevenção e controle dos efeitos indesejáveis, bem mais eficazes que o mero proibicionismo. O aprendizado social construído entre grupos de pares no circuito legalize influencia a percepção dos riscos e danos, tanto para a saúde como para a seus direitos civis dos usuários. Consideramos que a guerra declarada às drogas serve principalmente como um pretexto político para o controle e repressão de camadas menos favorecidas da população e para combater “desvios” sociais minoritários. Este contexto cria uma imagem negativa destas substâncias e estereotipada dos seus usuários. Neste sentido, o fenômeno cultural do uso de drogas de forma pública e explícita acaba produzindo práticas e culturas criminalizadas, ou seja, a política de drogas

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contemporânea reforça estigmas sociais e contamina ainda mais os próprios cidadãos usuários de drogas. Encontramos aí o funcionamento reducionista de uma estereotipação pejorativa, apontado por E. MacRae, que, ao encobrir alguns dos reais problemas estruturais da sociedade, acaba criando um inimigo imaginário, que tem sua utilidade na manutenção de uma certa ordem social. Por conseguinte, isso acaba aumentando a marginalização dos usuários, assim como dificultando o trabalho dos agentes de saúde ou dos representantes do discurso oficial. (MACRAE, 2003) Na verdade, as políticas públicas sobre drogas no país preocupam-se mais em termos da necessidade de prevenir o uso de drogas ilegais, do que em buscar evitar o seu abuso, ou seja, daquele mau uso que pode resultar em importantes ameaças ao bem estar do indivíduo ou da sociedade. Neste sentido, este trabalho procurou descrever a dinâmica social de alguns circuitos legalize para demonstrar que os controles e rituais sociais estabelecidos pelos próprios usuários de drogas são relevantes e devem ser considerados pelas políticas públicas. Assim, é fundamental levantar a discussão sobre a (in)eficácia e (in)coerência das atuais estratégias repressivas que desconsideram o aprendizado social produzido neste fenômeno cultural. De certa forma, os circuitos legalize se constituem em zonas de conforto para os usuários, ou seja, apesar das possíveis sanções sociais formais e informais, o consumo persiste aí com certa frequência e diferentes graus de tolerância social, a depender do equipamento urbano. Além disso, nos espaços legalize o consumo se dá de forma relativamente segura, além de ser um fator de sociabilidade. Não por acaso, a violência observada em campo foi majoritariamente praticada pelo poder público através da repressão policial. A descrição e análise do campo demonstraram uma lógica racional e eficaz no comportamento dos grupos de redes de usuários de drogas ao ocuparem o Centro Antigo de Salvador com o objetivo de consumir coletivamente e de forma recreativa drogas ilegais. Após o período da pesquisa etnográfica, ainda observamos o consumo de drogas nos espaços legalize, com suas especificidades. Os usuários de drogas procuraram garantir a ocupação dos circuitos de lazer. Ao delimitarem seus territórios, ou pedaços nos diversos equipamentos urbanos, muitas vezes estabelecem um acordo informal com a polícia e outros agentes repressivos da vizinhança local. Desta forma, formam-se circuitos urbanos protagonizados pelos usuários de drogas em meio aos circuitos de lazer das cidades. Dito isto, considera-se aqui de fundamental importância procurar um maior entendimento da cultura do uso de

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drogas no intuito de garantir mais amplamente à população em geral seus direitos de ocupar a cidade.

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