Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história (edited book)

September 13, 2017 | Autor: Flavio M. Heinz | Categoria: Comparative History, Prosopography, Elites
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Poder, instituições e elites 7 ensaios de comparação e história

Flavio M. Heinz (Organizador)

Poder, instituições e elites 7 ensaios de comparação e história

OI OS EDITORA

2012

© Dos autores – 2012 [email protected] Editoração: Oikos Revisão: Luís M. Sander Capa: Flávio Wild Arte-final: Jair de Oliveira Carlos Impressão: Rotermund S. A. Conselho Editorial: Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia) Arthur Blasio Rambo (UNISINOS) Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL) Danilo Streck (UNISINOS) Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ) Ivoni R. Reimer (PUC Goiás) Luis H. Dreher (UFJF) Marluza Harres (UNISINOS) Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL) Oneide Bobsin (Faculdades EST) Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha) Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE) Esta publicação apresenta resultados parciais de pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto PROCAD-NF/CAPES “Composição e recomposição de grupos dirigentes no Nordeste e no Sul do Brasil: uma abordagem comparativa e interdisciplinar”, reunindo equipes do PPGH-PUCRS, PPGS-UFS e PPGCP-UFPR. Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau – Cx. P. 1081 93121-970 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 / Fax: 3568.7965 www.oikoseditora.com.br [email protected]

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Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história / Organizador Flavio M. Heinz. – São Leopoldo: Oikos, 2012. 186 p.; 16 x 23cm. ISBN 978-85-7843-288-1 1. Elite – História. 2. Poder – Instituições. 3. História. I. Heinz, Flavio M. CDU 316.344.42 Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

Sumário Sobre os autores ................................................................................... 7 Apresentação ....................................................................................... 9 Comparação e história na ciência social .............................................. 13 Renato Perissinotto Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina .......................... 33 Ernesto Seidl Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (Brasil: RS, 1891-1930) ......... 61 Flavio M. Heinz Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina (Província de Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande do Sul) ............... 91 Alba Cristina Couto dos Santos Marluza Marques Harres “Um império de cruzes, togas e espadas”. Notas comparativas sobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período monárquico ........................................................... 115 Jonas Vargas Os founding fathers do Parquet: um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público de São Paulo e do Rio Grande do Sul durante o Estado Novo ..................................................................... 145 Marcelo Vianna Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde: a comparação em estudos sobre a atuação da Fundação Rockefeller .. 169 Ana Paula Korndörfer

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Sobre os autores Alba Cristina Couto dos Santos é mestranda em História das Sociedades Ibéricas e Americanas (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Licenciada em História (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e estudante de Ciências Sociais na mesma universidade, desenvolve trabalhos relacionados com associativismo, imaginário religioso e memória coletiva. Ana Paula Korndörfer é doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS. Integrante do Laboratório de História Comparada do Cone Sul, é coautora de Instituições de Saúde de Porto Alegre – Inventário (Ideograf, 2008), e possui textos publicados, entre outros, em História da Medicina: instituições e práticas de saúde no Rio Grande do Sul (EDIPUCRS, 2009). Ernesto Seidl é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Sergipe, onde também coordena o Laboratório de Estudos do Poder e da Política. É autor de diversos artigos sobre elites e grupos dirigentes. Flavio M. Heinz é doutor em História e Sociologia do Mundo Contemporâneo pela Universidade Paris-Ouest, Nanterre. Historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, onde coordena o Laboratório de História Comparada do Cone Sul. É autor de Les fazendeiros à l’heure syndicale: représentation professionnelle, intérêts agraires et politique au Brésil, 1945-1967 (Septentrion/ANRT, 1998), e organizador, entre outros, de Por outra história das elites (Editora FGV, 2006) e Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina (Editora Oikos, 2009) e História social de Elites (Oikos, 2011).

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Sobre os autores

Jonas M. Vargas é mestre em História pela UFRGS e atualmente é aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. É autor de Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul, 1850-1889 (UFSM, 2010). Marcelo Vianna é mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutorando em História pela mesma universidade. Historiador formado pela UFRGS, atuou no Arquivo Histórico do RS e Projeto Memória do Ministério Público do RS. Atualmente participa do Laboratório de História Comparada do Cone Sul/PUCRS. É um dos coautores de Comunidade Negra de Morro Alto: Historicidade, Identidade e Territorialidade (Ed. UFRGS, 2004) e autor de Os homens do Parquet: Trajetórias e Processo de Institucionalização do Ministério Público do Estado do RS (dissertação PUCRS, 2011). Marluza Marques Harres é doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com a tese Conflito e Conciliação no Processo de Reforma Agrária do Banhado do Colégio, Camaquã, RS. Pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Recentemente participou da organização da obra Da Região à Nação: Relações de escala para uma história comparada Brasil – Argentina (séculos XIX e XX) (Editora Oikos, 2011). Renato Perissinotto é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná, atua no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e no Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPR. É coeditor da Revista de Sociologia e Política e um dos coordenadores do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR. Publicou, entre outros, Classes dominantes e hegemonia na República Velha (Unicamp, 1994) e Marxismo como ciência social (Ed. UFPR, 2011).

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Apresentação Na apresentação de uma obra coletiva precedente, eu e Ana Paula Korndörfer chamávamos a atenção para o fato de que, embora gozasse de grande prestígio, a história comparada não possuía, de fato, muitos praticantes*. Como uma das explicações para isso indicávamos a “ausência de um rol claro de procedimentos a serem seguidos”. Com efeito, embora a muitos a referência ao método comparativo fosse frequente, para um número expressivo de profissionais o conjunto de seus procedimentos, sua aplicação, permanecia uma incógnita. “Mais grave”, afirmávamos, “quando alguém se lança a buscá-lo, via de regra não encontra respostas objetivas quanto às suas etapas e consecução”. Na ocasião, alertávamos para a inexistência de um rol de etapas claras a serem seguidas por um comparativista debutante e salientávamos que o cânone da disciplina, a obra de Marc Bloch, e especialmente, dois artigos, “Por uma história comparada das sociedades europeias” e “Comparação”, respectivamente, de 1928 e 1930, ofereciam “linhas gerais para pensar a comparação, não um manual de procedimentos”. Assim, a enorme repercussão dos dois artigos “como porta de entrada da história comparada [...] pode não ter ajudado muito, uma vez que a perspectiva de análise, logo o modus operandi do historiador, poderia ser melhor percebida na leitura do conjunto de sua obra do que nos textos de divulgação sobre as virtudes do método”. Perceber o modus operandi no trabalho do historiador é aqui o nosso motto. Este livro reúne textos de historiadores e cientistas políticos interessados nas possibilidades de utilização do método comparativo – ou tão somente de uma perspectiva ou viés comparativo – na análise histórica e social. Com certa ousadia e liberdade metodológica, estes autores “ataca-

*HEINZ, F. M. & KORNDÖRFER, Ana Paula. “Comparações e comparatistas”. In: HEINZ, F. M. (org.). Experiências nacionais, temas transversais – subsídios para uma História Comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009.

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Apresentação

ram” os mais variados objetos de pesquisa, sempre colocando no centro de suas análises a dimensão comparativa, fosse esta uma possibilidade evidente oferecida por determinado recorte temático ou tipo das fontes disponíveis, fosse uma solução menos óbvia, só possível pelo acionamento de uma operação metodológica complexa. Igreja, governo, parlamento, justiça e cooperativismo são apenas alguns dos cenários aqui investigados através da lente comparativista. Neles circulam grupos de indivíduos com saberes e poderes específicos, especialistas, intelectuais, elites políticas ou profissionais, a própria “carne” dos processos sociais, aqui cotejados com homólogos em outras realidades regionais ou nacionais. O resultado desse processo? Confirmam-se especificidades, é certo, mas se encontram também semelhanças insuspeitas e recorrências surpreendentes. Enfim, é isso o que move os autores e que orienta sua agenda coletiva de pesquisas: o desvelamento do social através da realização de uma boa história social e comparada. Os dois primeiros textos aqui reunidos, “Comparação e História na Ciência Social”, de Renato Perissinotto, e “Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina”, de Ernesto Seidl, tomam o tema da comparação desde a perspectiva da sociologia ou, mais especificamente, da sociologia histórica. O primeiro desenvolve uma densa e instigante reflexão, no plano teórico e metodológico, sobre os sentidos do ato de comparar para os cientistas sociais e as razões para o uso da história nessa empreitada. O segundo texto explora conexões entre Estado, Igreja e variável religiosa na conformação de identidades e na construção do Estado nacional. No próximo texto, “Driblando escalas? Nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (RS: 18911930)”, o organizador deste volume propõe um ensaio mais ou menos livre sobre as possibilidades da comparação ao analisar, a partir de uma arriscada operação de rompimento de escalas, elites políticas e práticas de governo. Separados pelas dimensões regional/nacional/internacional e pelo sistema de recrutamento político, e informados por correntes ideológicas diversas, dirigentes e administrações parecem convergir no desenho de sua atuação política e no perfil de seu relacionamento com elites sociais, grupos médios e oposição.

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Os quatro textos seguintes propõem comparações distintas e oferecem inúmeros exemplos interessantes e tantos outros insights de pesquisa no âmbito da comparação. Em “Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina (Província de Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande do Sul): exercício comparativo”, as autoras Marluza Marques Harres e Alba Cristina Couto dos Santos dedicam-se a perscrutar um determinado modelo de organização econômica, social e profissional, o cooperativismo, a partir de sua inserção em dois subespaços regionais de dois países diferentes. Neste exercício, investigam diferentes variáveis que contribuem para a moldagem das práticas cooperativistas, como a imigração e a legislação. Em “Um império de cruzes, togas e espadas. Notas comparativas sobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período monárquico”, Jonas Moreira Vargas propõe um interessante estudo sobre a prevalência de determinados tipos de recursos familiares associados ao sucesso político em três elites regionais no Oitocentos brasileiro. Assim, o autor nos informa que ter vínculos familiares com o universo da caserna foi um elemento importante para carreiras políticas no sul, possuir “tradição” familiar na profissão jurídica uma variável muito positiva em carreiras na Bahia e, finalmente, ligações com o clero constituíam um fator determinante do sucesso político na província do Ceará. Marcelo Vianna, em “Os Foundig Fathers do Parquet: um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público de São Paulo e do Rio Grande do Sul durante o Estado Novo”, realiza um exitoso estudo de comparação em história social de instituições. Combinando uma perspectiva de micro-história social de elites e técnicas de prosopografia, o autor expõe um perfil dos grupos dirigentes das instituições, indivíduos que concentraram recursos políticos e profissionais nos Ministérios Públicos de dois estados. Por fim, fechando este volume, o texto “Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde: a comparação em estudos sobre a atuação da Fundação Rockefeller”, de Ana Paulo Korndörfer, mapeia o uso do recurso à comparação e possibilidades de pesquisas comparativas na produção acadêmica sobre a atuação da Fundação Rockefeller na América Latina, oferecendo um interessante painel de análise no qual se confundem a atuação da Fundação, a história das políticas públicas de saúde na América Latina e a conformação mais ou menos recente da agenda de pesquisa na área. Flavio M. Heinz

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Apresentação

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Comparação e história na ciência social Renato Perissinotto1 As a minimal claim it can be said that what history is, or should be, cannot be analysed in separation from what the social sciences are, or should be. However, I should want to go much further than this. There simply are no logical or even methodological distinctions between the social sciences and history – appropriately conceived (GIDDENS, 1994, p. 230).

Apresentação Este capítulo pretende responder duas questões. Primeira, como podemos definir exatamente o procedimento comparativo? Segunda, uma vez definido o que entendemos por comparação, qual seria a melhor maneira de operacionalizá-la (i.e., de aumentar o seu rendimento analítico)? Na primeira seção, definimos o que entendemos por comparação e discutimos as possibilidades e limites de sua aplicação nas ciências sociais; em seguida, procuramos apontar os possíveis ganhos teóricas produzidos pela análise comparativa de poucos casos baseada em uma perspectiva histórica (o tipo de trabalho executado pelos chamados “sociólogos históricos” ou “comparativistas históricos”). Quase nada do que será dito neste artigo pode reivindicar o status de originalidade teórica ou metodológica. Há, no entanto, uma intenção sub-

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Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPR. O autor gostaria de agradecer a Paolo Ricci e Marcio Oliveira pela leitura e pelos comentários ao texto e aos membros do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR, que durante todo o ano de 2009 participaram do debate sobre metodologia histórica comparativa. Este texto é, em parte, o resultado das pesquisas feitas para o estágio pós-doutoral no Latin American Centre (Saint Antony’s College, Oxford University), financiado pelo CNPq.

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jacente ao texto que gostaríamos de enfatizar: a defesa de Max Weber como um cânone das ciências sociais. Esse tipo de afirmação pode parecer supérflua, já que Weber é amplamente reconhecido por todos como um dos fundadores do nosso campo científico. O reconhecimento de Weber como “pai fundador”, porém, não implica tratá-lo exatamente como um cânone, isto é, como um intelectual que definiu procedimentos científicos aos quais temos que recorrer ainda hoje para o exercício de nossas atividades. No entanto, grande parte do que é dito atualmente pelos teóricos e metodólogos da análise histórica comparativa não faz muito mais do que reiterar, sob nova linguagem, os procedimentos científicos aplicados e sistematizados por Weber. Essa insistência numa nova linguagem, porém, parece-nos prejudicial ao avanço científico na medida em que obriga os cientistas sociais a fazer um esforço constante de “atualização” em grande parte dispensável, pois pouco traz de novo do ponto de vista epistemológico. Ao insistir na necessidade de reconhecer Weber como um cânone, e não apenas como um pai fundador, pretendemos apenas dizer que devemos valorizar os ganhos que esse autor produziu e adotar uma conduta cumulativa, típica de qualquer ciência, que consiste em aproveitar o que já foi feito (e certamente ultrapassá-lo, se for o caso), em vez de “inovar” constantemente. Que fique bem claro: não negamos os enormes avanços técnicos por que passou o nosso campo científico ao longo do século XX. Estou apenas dizendo que muito do que hoje se apresenta como “novo” no âmbito da análise histórica comparativa (a utilização do prefixo “neo” nunca foi tão abundante) do ponto de vista epistemológico não produz avanços significativos em relação ao que Weber disse nos seus escritos metodológicos. Ao contrário, portanto, do que defendem alguns atualmente, acreditamos que, ao menos para os temas discutidos neste artigo, mais vale a um cientista político estar a par do que foi dito por Weber no início do século XX do que estar familiarizado com as “atualizações” da literatura contemporânea2. 2

Um exemplo paradigmático: todas as considerações teóricas acerca do Estado feitas por um dos mais importantes nomes do “neoinstitucionalismo histórico”, Theda Skocpol, não avançam um passo em relação às formulações weberianas. Cf. Skocpol, 1996, p. 7-9. Como contraponto à ânsia dos cientistas políticos, notadamente americanos, pela “inovação”, ver a tranquilidade com que o historiador contemporâneo Aldo Schiavone lança mão das proposições de Marx, Weber e Polanyi para encaminhar as suas questões de pesquisa. Cf. Schiavone, 2005, especialmente capítulos II, IV e VIII. Kohli e Shue, referindo-se à história intelectual da socio-

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I. Comparação como operação mental Giovanni Sartori (1991, p. 243) já observou que existem duas definições diferentes do procedimento comparativo. Há os que, como Lijphart (1971, p. 682-684), entendem a comparação como uma técnica de pesquisa específica utilizada especialmente no estudo comparativo de poucos casos, diferente, portanto, da técnica estatística; há, por outro lado, os que, como Neil Smelser (1976, cap. I), consideram a comparação uma “operação mental” que pode ser realizada lançando-se mão de técnicas de pesquisa diversas (experimental, estatística, histórica) (RIHOUX e RAGIN, 2009, p. xviii; MAHONEY e RUESCHEMEYER, 2008, p. 11-15; MAHONEY, 2008, p. 337) 3. Neste capítulo assumimos a posição de Smelser (1976, p. 5). Entendemos o método comparativo como uma “operação mental” cujo objetivo primeiro é controlar “variáveis”4. Quando comparamos diversos casos, buscamos essencialmente identificar condições constantes e variantes a fim de estabelecer imputações causais confiáveis. As técnicas específicas de controle de variáveis (experimental, estatística, histórica) diferem enormemente no tipo, na efetividade e na utilidade científica, mas todas elas podem ser entendidas como esforços para explicar fenômenos sociais estabelecendose controle sobre as suas condições de variação. Nesse sentido, tanto a técnica experimental como a estatística e a histórica lançam mão das mesmas operações mentais quando são utilizadas a serviço da comparação. Dife-

logia política no pós-guerra, observam: “A diferenciação exagerada da produção intelectual pode produzir ganhos profissionais de curto prazo, mas inevitavelmente põe a perder nossos melhores propósitos. Gera modismos e falsos começos que frequentemente afligem nossos estudantes, com grandes custos intelectuais para todos nós” (KOHLI e SHUE, 1996, p. 322). Louve-se a honestidade intelectual dos autores, cujo comentário procura qualificar a sua própria contribuição – a abordagem state-in-society –, declaradamente tributária da tradição weberiana, como apenas mais equilibrada que as visões societalistas e estatistas da política. 3 Para evitar confusão terminológica, definimos “método comparativo” como um conjunto de operações mentais que confere maior confiabilidade às proposições causais. A nossa posição, portanto, é a mesma de Sartori, para quem a palavra “método” se refere à estrutura lógica da investigação científica e não às diversas técnicas de pesquisa à disposição dos cientistas sociais. A lógica científica da comparação é uma só e pode ser operacionalizada tanto por técnicas estatísticas como por análises históricas, dependendo do objeto de estudo e do número de casos analisados. Cf. Sartori, 1970, p. 1033-36. 4 Segundo Sartori, o termo “variável” só poderia ser utilizado para coisas mensuráveis. Neste texto, tomo maior liberdade e o utilizo para me referir às condições sociais e políticas que devem ser controladas durante o procedimento comparativo. Cf. Sartori, 1970, p. 1045.

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rem entre si, porém, quanto à questão de pesquisa, à natureza do objeto estudado, ao número de casos analisados, ao tipo de explicação fornecido e às técnicas empregadas5. Assim entendidos, os princípios lógicos do método comparativo foram sistematizados por John Stuart Mill no livro III do seu System of Logic, publicado em 1886. Nesse livro, Mill identificou cinco procedimentos comparativos, cada um com limites e potencialidades próprios: o método da semelhança (agreement method), o método da diferença (method of difference), o método indireto da diferença (indirect method of difference), o método dos resíduos (methods of residues) e o método das variações concomitantes (method of concomitant variations)6. Neste artigo, essencialmente voltado para a análise histórica comparativa, interessam-nos especialmente os métodos da semelhança e o método indireto da diferença (uma importante variação do método da diferença), amplamente utilizados por comparativistas históricos. O método da semelhança é aquele em que se comparam casos muito diferentes entre si, mas que se assemelham quanto à presença do fenômeno a ser explicado e à presença, em todos os casos, de uma única circunstância invariante. Supõe-se que essa circunstância invariante seja a causa do fenômeno em questão. No método da diferença, o investigador compara casos muito similares entre si, mas que se diferenciam quanto à presença (casos positivos) e ausência (casos negativos) do fenômeno a ser explicado. Ao analista cabe investigar se há uma circunstância que, ao mesmo tempo, esteja presente em todos os casos positivos e ausente de todos os casos negativos. O méto-

Para uma análise exaustiva das diferenças entre as diversas técnicas de controle a serviço do método comparativo, ver Smelser, 1976, cap. 6, “Classificação, descrição e mensuração”. Logo no início de seu livro, Smelser (1976, p. 5) observa que os “princípios metodológicos que orientam a investigação comparativa mostrar-se-ão poucos. Mais particularmente, será possível discernir uma surpreendente continuidade entre todos os estudos comparativos aqui resenhados, clássicos e modernos. Essa continuidade reside no fato fundamental de que todos os teóricos e investigadores empíricos que examinaremos estavam tentando controlar e manipular várias condições causais na vida social e, assim, estabelecer um argumento em favor de uma ou outra condição selecionada”. Dito de outra forma, os “princípios metodológicos” são poucos porque a estrutura lógica da comparação não varia; o que varia são as técnicas de pesquisa. 6 A descrição detalhada desses métodos e dos seus respectivos cânones encontra-se em Stuart Mill, 1886, p. 254-259. 5

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do da diferença seria o procedimento típico do método experimental. Um experimento consiste exatamente na produção arbitrária pelo investigador de situações diferentes que lhe permitam comparar o impacto produzido por uma variável, presente ou ausente, de acordo com a manipulação conduzida por ele. Como esse método é muito exigente quanto à capacidade de controle sobre as variáveis, Stuart Mill definiu uma variante menos rígida, chamada por ele de “método indireto da diferença”. O método indireto da diferença faz, na verdade, um uso complementar dos dois métodos anteriores. Como primeiro passo, o investigador utiliza uma série de exemplos que contam com o fenômeno que ele pretende explicar e isola a variável recorrente em todos eles. Como segundo passo, utiliza outros casos que não contam com o fenômeno em questão a fim de avaliar se a variável recorrente encontrada anteriormente está ausente dos casos negativos. No entanto, em vez de um experimento artificial propriamente dito, o pesquisador analisa os casos positivos e negativos tal como eles aparecem na natureza (ou na história, diríamos nós). O método é “indireto” porque a diferença não é produzida diretamente pelo pesquisador, por meio de experimentos artificiais, mas por meio da comparação de casos negativos e positivos cuja existência independe dele (258-259). Outro nome dado a esse método é “Método Conjunto da Semelhança e da Diferença” (The Joint Method of Agreement and Difference) (259)7. O uso desses métodos permite ao investigador descartar causas potencialmente necessárias e suficientes8. Como nos lembra Mahoney, no caso do método da semelhança, como o resultado a ser explicado está em todos os casos escolhidos para estudo, é logicamente impossível que uma causa hipotética não partilhada por todos seja individualmente necessária para explicar o fenômeno. No que diz respeito ao método da diferença, o fenômeno analisado está presente em alguns casos e ausente de outros. Portanto, se uma causa hipotética está presente em todos os casos, positivos e negativos,

O leitor poderá encontrar uma sistematização gráfica desses métodos em Skocpol e Somers, 1997, p. 80. 8 Causa necessária é aquela cuja presença é imprescindível, mas não suficiente, para a produção do fenômeno; causa suficiente é aquela cuja presença basta, mas não é imprescindível, para a produção do fenômeno; causa necessária e suficiente é aquela cuja presença é ao mesmo tempo imprescindível e bastante para a produção do fenômeno. 7

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ela não pode ser considerada suficiente, visto que nem todos os casos que contam com a presença da causa hipotética contam também com a presença do fenômeno. A busca (e a eliminação) de causas necessárias e/ou suficientes é, portanto, uma das características essenciais desses métodos, que, exatamente por essa razão, tendem a ser rejeitados por alguns como inaplicáveis ao estudo dos fenômenos sociais. São três as críticas dirigidas à sua aplicação nas ciências sociais. (i) A impossibilidade de realizar o controle exigido por esses métodos Émile Durkheim rejeitou o uso desses métodos nas ciências sociais, argumentando que sua aplicação seria impossível em sociologia, pois nenhum inventário plausível dos fatos poderia permitir a um investigador estar certo “de que duas sociedades concordam ou diferem em relação a todos os aspectos, exceto um” (1978, p. 113). Acreditamos poder responder a essa crítica de duas maneiras. Primeiramente, é claro que “comparar sociedades”, exigindo-se que o pesquisador tenha pleno controle sobre as variáveis em questão a ponto de garantir que tais sociedades se assemelhem ou se diferenciem em todos os aspectos, exceto um, tornaria tais métodos impraticáveis. Mas o procedimento seria bem menos exigente se nos dedicássemos a comparar não “sociedades”, como sugere Durkheim, mas fenômenos restritos. Nesse sentido, Skocpol e Somers insistem que a aplicabilidade da análise histórica comparativa com base nos métodos sistematizados por Mill só é viável se o problema a ser pesquisado for muito bem delimitado (1997, p. 90). Em segundo lugar, o próprio Durkheim fornece um importante argumento em defesa da aplicação dos métodos de Mill (notadamente o método da diferença) ao estudo dos fenômenos sociais. A eficácia desses métodos certamente aumentaria se comparássemos sociedades “de uma mesma espécie e num mesmo estágio de desenvolvimento” (DURKHEIM, 1978, p. 118 e 121-122). “Sociedades da mesma espécie” facilitam o procedimento comparativo porque aumentam o número de condições comuns às sociedades comparadas (as “condições paramétricas”, segundo SMELSER, 1976, p. 154) e, por conseguinte, diminuem a quantidade de diferenças que terão

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que ser levadas em consideração como possíveis causas pelo analista9. Comparar sociedades da mesma espécie nos permite ainda respeitar outra característica fundamental do método comparativo. Como nos lembra Sartori, o procedimento comparativo não pode ser efetuado entre entidades absolutamente idênticas (já que não faz sentido comparar uma coisa com ela mesma) nem entre entidades absolutamente diferentes (o que impossibilitaria qualquer tipo de controle). Toda comparação pressupõe certo grau de semelhança e de diferença entre as coisas comparadas, evitando-se, assim, comparar o incomparável. Uma boa maneira de fazê-lo, como vimos, é comparar “sociedades da mesma espécie”, o que pressupõe, como recomenda Sartori, o uso de bons critérios de classificação a fim de colocarmos juntos entidades que de fato partilham alguns atributos importantes (SARTORI, 1970, p. 1035-36 e 1040 e 1991, p. 245-249). (ii) A inadequação de escolher os casos pela “variável dependente” Como vimos acima, ao utilizar o procedimento comparativo tal como sistematizado por Mill, devemos escolher os casos em função da presença ou ausência do fenômeno que se quer explicar (a “variável dependente”). Haveria, segundo os críticos, dois problemas nesse procedimento. O primeiro deles consiste na produção de uma amostra enviesada, escolhendose somente os casos que contam com o fenômeno a ser estudado. Esse primeiro problema, do qual o próprio Mill tinha consciência, pode ser evitado, como vimos, escolhendo-se também casos negativos para a análise. O segundo problema reside em escolher casos em que a variável dependente não varia. Desse modo, o analista não teria como medir o impacto de supostas variáveis causais sobre a variável dependente simplesmente porque esta última não varia. Isso, contudo, não é um problema quando o que se procura saber não é o impacto linear de uma variável sobre outra,

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Alexis de Tocqueville (1977), Max Weber (1964), Otto Hintze (1975), Karl Polanyi (2000), Barrington Moore Jr. (1983), Theda Skocpol (1984), Ellen Kay Trimberger (1978) e vários outros autores produziram excelentes resultados aplicando esse procedimento comparativo aos seus respectivos objetos de estudo. A importância da relativa similaridade entre as sociedades como critério para facilitar e tornar mais seguro o procedimento comparativo é defendida também por vários outros autores, clássicos e contemporâneos: Marc Bloch (1998, p. 123), Gerschenkron (1976, p. 64), Przeworsky e Teune (1982, p. 26), Lijphart (1971, p. 687-89).

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mas a presença/ausência de condições necessárias e/ou suficientes para a produção do fenômeno que se quer explicar. Nesses casos, selecionar a partir da variável dependente é adequado. Apenas a título de exemplo, basta pensar na análise weberiana da relação entre protestantismo e capitalismo racional. Weber não se preocupa em saber o impacto quantitativo que a “variável independente” produz sobre a “variável dependente”, mas sim se os casos que contêm a “variável dependente” (capitalismo racional) contam também com a presença da “variável independente” (ética protestante) e, ao mesmo tempo, se os casos negativos evidenciam a ausência desta última10. (iii) Os pressupostos determinísticos desses métodos não se aplicam aos fenômenos sociais Os métodos da semelhança e da diferença, como dissemos, estão preocupados em identificar causas necessárias e/ou suficientes, o que, segundo alguns, geraria dois problemas importantes. Primeiramente, quanto às causas necessárias, os críticos dizem que há potencialmente inúmeras causas desse tipo, a maior parte delas sem importância ou triviais (por exemplo, a existência de seres humanos é necessária para uma revolução social). Da mesma forma, causas suficientes podem ser óbvias ou tautológicas (por exemplo, a guerra é causa suficiente de morte em larga escala). No entanto, Mahoney tem razão ao observar que os cientistas sociais que usam os métodos sistematizados por Mill quase nunca cometem esses erros, conseguindo diferenciar claramente causas necessárias triviais das não triviais e causas suficientes tautológicas das não tautológicas (MAHONEY, 2008, p. 348). O segundo problema, esse bem mais sério, residiria no fato de esses métodos utilizarem pressupostos determinísticos inválidos para entender um mundo social governado por leis probabilísticas. Pressupostos determinísticos podem levar a tomar como causas certas aquelas que são apenas prováveis ou a descartar causas prováveis porque não aparecem como certas (BORGES, 2007, p. 3-4). Dito de outra forma, tais métodos podem equi-

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As expressões “variáveis dependentes” e “variáveis independentes” encontram-se entre aspas porque são inadequadas à perspectiva weberiana da multicausalidade.

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vocadamente eliminar do seu modelo fatores causais probabilísticos, já que um modelo determinístico exclui qualquer causa que não esteja presente em todos os casos. Assim, valendo-se do método da semelhança, um analista que, por exemplo, examinasse três casos de acidente de carro eliminaria a bebida alcoólica como causa se ela estivesse presente em apenas dois casos. Da mesma forma, usando o método da diferença, o analista eliminaria a bebida como causa se ela estivesse presente tanto em casos com acidente como em casos sem acidente (MAHONEY, 2008, p. 349). É verdade que esse tipo de procedimento comparativo, que busca causas necessárias e suficientes, não permite avaliar o “efeito líquido” do impacto de uma variável sobre outra. No entanto, o método mostra corretamente, para manter o exemplo dado por Mahoney, que beber não é nem condição necessária nem condição suficiente para acidentes (uma vez que nem todo acidente é causado por bebida e nem todo motorista que dirige bêbado causa acidente). A crítica acima apenas apresenta o tipo de problema que pode surgir quando se pensa em termos de causação necessária e suficiente sobre situações em que uma causação linear está operando. O método ajuda a descobrir se dirigir bêbado em combinação com outras variáveis é uma causa suficiente (ou quase suficiente) para acidentes de carros numa população específica de casos (MAHONEY, 2008, p. 349-350). Alguns pesquisadores contemporâneos, no entanto, defendem que as exigências colocadas por tais pressupostos podem e devem ser atenuadas para que o uso de tais procedimentos produza resultados frutíferos nas ciências sociais (por exemplo, HALL, 2008). Poderíamos dar inúmeros exemplos de investigadores que usam os métodos sistematizados por Mill e, ao mesmo tempo, tomam todo o cuidado para evitar proposições determinísticas. Basta lembrar, porém, o caso de Max Weber e o seu conceito de “causa adequada”. Weber defende explicitamente o uso do método da diferença na pesquisa sociológica11, porém jamais formula suas proposições explica-

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“Nos demais casos [em que o experimento e a quantificação não são possíveis], e como tarefa importante da sociologia comparada, só resta a possibilidade de comparar o maior número possível de fatos da vida histórica ou cotidiana que, semelhantes entre si, só se diferenciam em um ponto decisivo: o ‘motivo’ ou a ‘ocasião’, que tratamos de investigar precisamente por sua importância prática” (WEBER, 1984, p. 10).

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tivas em termos de causas necessárias e/ou suficientes. O seu objetivo é sempre a identificação de “causas adequadas”, definindo-as da seguinte forma: “Dizemos [...] que uma sucessão de fatos é ‘causalmente adequada’ na medida em que, segundo as regras da experiência, exista a seguinte probabilidade: que sempre transcorra de igual maneira”. Ou por outra: “A explicação causal significa, pois, a seguinte afirmação: que, de acordo com uma determinada regra da probabilidade [...], a um determinado processo [...] observado segue outro processo determinado (ou aparece juntamente com ele)” (WEBER, 1984, p. 11, itálico nosso)12. Como se sabe, a epistemologia weberiana é marcada por uma compreensão complexa da causalidade nos fenômenos sociais. Para o sociólogo alemão, a multicausalidade e a historicidade das ocorrências no mundo social impedem o estabelecimento de relações causais unívocas e universais. Uma causa, por mais fundamental que seja, jamais opera sozinha e nunca exatamente da mesma forma em contextos históricos distintos. Por essa razão, o uso do método da diferença por Weber não implica aderir aos pressupostos determinísticos originalmente presentes na sistematização de Stuart Mill.

2. Por que comparar poucos casos e por que comparar usando a história? Como dissemos no item anterior, a comparação, tal como sistematizada por Stuart Mill e utilizada por inúmeros cientistas sociais, é uma operação lógica passível de ser operacionalizada por diferentes técnicas de pesquisa. Cabe agora defender um modo específico de fazer comparação, isto é, estudos comparativos de poucos casos baseados no conhecimento histórico aprofundado de cada um deles. Na verdade, quando nos referimos a estudos comparativos de poucos casos estamos necessariamente defendendo o uso de uma perspectiva histórica e contextual, já que estudos de N pequeno, i. e., com poucos casos analisados, não admitem o uso de técnicas estatísticas. Por essa razão, a principal crítica que se faz aos estudos de N pequeno é que eles conjugam dois problemas sérios para o controle cientí12

Vale observar ainda que Max Weber sempre define seus conceitos sociológicos em termos probabilísticos. Ver, por exemplo, os conceitos de “relação social”, “poder” e “dominação” em Weber, 1984, p. 21 e 43.

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fico: poucos casos e muitas variáveis. Esse problema (poucos casos, muitas variáveis), por sua vez, inviabilizaria a formulação de inferências causais seguras e, por conseguinte, a produção de ganhos teóricos (isto é, a produção de generalizações). Acreditamos que quatro argumentos podem ser apresentados contra essa crítica. Primeiro argumento: estudos de N pequeno e ontologia causal complexa A crítica acerca da conjugação de poucos casos com muitas variáveis deve ser prontamente aceita, mas deve ser também qualificada, já que os estudiosos que lançam mão de estudos dessa natureza o fazem exatamente porque desconfiam da possibilidade de formulação de leis universais, algo supostamente factível a partir de estudos de N grande. Ao contrário, seus objetivos consistem fundamentalmente na formulação de “generalizações modestas”, historicamente embasadas, válidas para contextos claramente delimitados (TILLY, 1984, cap. 4)13. Esse tipo de estratégia analítica, baseada no conhecimento histórico14 de poucos casos, seria mais adequado a uma outra concepção de causalidade do mundo social que não a causalidade linear (HALL, 2008). O entendimento de que a complexidade e a historicidade dos eventos sociais não podem ser adequadamente captadas por uma visão linear de causalidade nem por uma visão panorâmica de uma infinidade de casos demandaria um tipo de estratégia analítica orientada pela busca de “combinações causais múltiplas” que operariam em contextos específicos e que só poderia ser colocada em prática por meio de estudos de N pequeno e pela análise histórica. Esse tipo de análise seria, assim, em tudo diferente das pesquisas baseadas em técnicas quantitativas, que, segundo Charles Ragin, limitam-se a avaliar separadamente o impacto de cada variável independente sobre a variável dependente. Nesses casos, diz Ragin, o objetivo principal é estimar

Segundo David Fischer, generalizações históricas devem ter duas características fundamentais: a) devem ser espacial e temporalmente limitadas e b) devem ser apresentadas na forma de enunciados probabilísticos. Cf. Fischer, 1970, p. 129. 14 Segundo Charles Tilly, o conhecimento histórico é aquele que revela como o contexto em que os eventos ocorrem e a sequência em que se dão são fundamentais para a definição do resultado que se quer explicar. Assim, o desconhecimento do contexto e da sequência dos eventos comprometeria radicalmente a explicação dos fenômenos sociais. Cf. Tilly, 1984, p. 79; 2005, p. 4, nota 1. 13

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a contribuição separada de cada causa para a produção do resultado analisado e não o efeito diferenciado de uma combinação de causas. As técnicas estatísticas aplicadas às ciências sociais, portanto, não permitiriam pensar em termos de “causação múltipla” (1987, p. 64). Desse modo, diz esse autor, um investigador pode determinar, por exemplo, que a presença de X1 aumenta a probabilidade de Y ocorrer em 10%, enquanto a presença de X2 aumenta a probabilidade de Y em 15%, enquanto X3 e X4 não têm efeito sobre a ocorrência de Y. Concluir-se-ia, então, que, juntos, X1 e X2 aumentariam a probabilidade de Y ocorrer em 25%. Esse objetivo de estimar a contribuição independente de cada causa à probabilidade de ocorrência de Y é inconsistente com o objetivo de determinar as diferentes combinações de condições que causam Y15. Segundo argumento: estudos de N pequeno permitem testar teorias Os estudos aprofundados de poucos casos podem contribuir para testar teorias, confirmando-as, refutando-as (sobretudo se forem formuladas em termos determinísticos) ou reformulando-as. Uma das formas de se reforçar teorias é o estudo de least likely cases (RUESCHEMEYER, 2008, p. 311), isto é, quando se escolhe o caso menos adequado para testar a força de uma proposição explicativa. É o que ocorre, por exemplo, no estudo de Robert Michels sobre os partidos políticos, em que ele aplica a tese da lei de bronze da oligarquia ao partido de discurso democrático mais radical. Se a hipótese passar bem por esses testes mais rigorosos, mais chances ela terá de ser válida para outros casos. 15

Comentários sobre os limites dos estudos de N grande podem ser encontrados em Sartori, 1970 e 1991; Hall, 2008; Tilly, 1984; Mahoney, 2008; Ragin, 1987; Rihoux e Ragin, 2009; Przeworsky e Teune, 1982; Borges, 2007. Não pretendemos, de modo algum, encampar a velha e infrutífera antinomia entre “métodos quantitativos” e “métodos qualitativos”. O nosso objetivo é antes de tudo defender, frente ao uso indiscriminado dessas técnicas, formas alternativas de pesquisa que possam revelar aquilo que os números escondem. Quanto a esse ponto, aliás, vale lembrar, contra certa ingenuidade frente aos procedimentos estatísticos, a frase de Arthur Stinchcombe, para quem “um número nunca é empírico o suficiente” para ser o ponto de partida de construção de qualquer teoria. De fato, para que se chegue a um número demanda-se tanta codificação, com base em pressupostos teóricos nem sempre explicitados, que seria ingenuidade tomá-lo, como fazem alguns, como simples expressão numérica da realidade social. Cf. Stinchcombe, 1978, p. 6-7. Sobre o processo social de produção dos indicadores numéricos como algo que afeta diretamente o resultado das pesquisas, consultar Neil Smelser, 1976, p. 164-165.

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Terceiro argumento: estudos de N pequeno e recusa de modelos causais universais A atenção à historicidade e à complexidade das relações causais permitiria ainda aos estudos de N pequeno baseados em análises históricas evitar o sério problema da homogeneidade do modelo causal, recorrente em estudos de N grande. Nesse tipo de estudo, o pesquisador frequentemente aplica um único modelo causal a todos os casos analisados, partindo do pressuposto de que o efeito da causa é o mesmo em diferentes contextos (HALL, 2008, p. 383 e RAGIN, 1987, p. 167). Ou seja, não se percebe que X pode ter o mesmo impacto quantitativo sobre Y nos contextos A e B, mas o modo pelo qual X afeta Y no contexto A pode ser completamente diferente do modo pelo qual afeta Y no contexto B, exatamente porque o modo de articulação de X com as demais variáveis e com Y pode ser completamente diferente num e noutro contexto16. Nesse sentido, a constatação de correlações entre variáveis pouco nos revela acerca dos processos e mecanismos que vinculam uma variável a outra, processos e mecanismos que podem alterar qualitativamente a natureza da correlação entre elas (BORGES, 2007, p. 7). Não se trata, portanto, de dizer apenas que A causa B, mas como A causa B, detalhando-se a “cadeia causal” entre ambos. Como nos lembra Sartori (1991, p. 253-54), correlações significativas podem ser mal interpretadas se não houver uma teoria que ajude a interpretar os dados e a levar em consideração o contexto para evitar afirmações fictícias. É preciso, portanto, evitar o comparativista ignorante do contexto, isto é, produzir uma (má) informação quantitativa que pode ser usada sem qualquer conhecimento substantivo do fenômeno sob consideração (SARTORI, 1970, p. 1039). Esse tipo de problema levou Charles Tilly a sugerir a inversão dos procedimentos de pesquisa usualmente aceitos. Normalmente, os investi16

Uma ilustração interessante desse fato está presente na discussão de Gerscenkron acerca dos “pré-requisitos” do processo de industrialização. Segundo este autor, os pré-requisitos da industrialização inglesa, por exemplo, simplesmente não existiam em outros contextos mais atrasados, cabendo ao Estado e outras instituições produzirem seus substitutos. Além disso, determinados fatores que desempenharam o papel de causa da industrialização em contextos mais avançados, como na Inglaterra, foram, em países atrasados como a Itália e a Rússia, o efeito desse processo. Cf. Gerscenkron, 1976, p. 113 e 123-24. Dizendo o mesmo em outra linguagem: o que é variável independente na Inglaterra torna-se variável dependente na Itália e na Rússia.

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gadores se dedicam a fazer estudos quantitativos de muitos casos e, somente depois, análises mais aprofundadas sobre casos exemplares que cumprem um mero papel ilustrativo. Para Tilly, nas pesquisas de N grande a familiaridade com o contexto declina dramaticamente e, por isso, estudos históricos detalhados de poucos casos devem ser feitos antes de se proceder à análise estatística de muitos casos, pois o conhecimento do contexto permite validar melhor a comparação (1984, p. 74 e 77). A ignorância dos contextos históricos e culturais dos estudos de N grande levou Tilly a formular o duro julgamento de que “pouco de valor durável para as ciências sociais surgiu de centenas de estudos conduzidos nas últimas décadas que efetuaram análises estatísticas incluindo a maioria dos estados nacionais” (1984, p. 77)17. Quarto argumento: estudos de N pequeno permitem formular novas hipóteses e teorias a partir do conhecimento histórico A recusa de modelos causais universais não implica dizer que os adeptos dos estudos de N pequenos rejeitam a possibilidade de qualquer tipo de generalização e de ganhos teóricos. A comparação exaustiva de poucos casos complexos pode levar à elaboração de novas hipóteses e teorias válidas para contextos similares. Quanto a esse ponto, Rueschmeyer (2008, p. 321322) cita como exemplo os tipos ideais de Weber como uma formulação teórica que nasce da comparação entre casos históricos. Ele lembra que os tipos ideais não são apenas instrumentos descritivos, mas comportam proposições teóricas. Por exemplo, ao estudar a relação entre capitalismo racional e Estado moderno, os tipos ideais weberianos sobre os dois fenômenos permitem dizer que a racionalidade econômica tende a ser maior quanto mais a ordem política se aproxima da racionalidade jurídica, o que é claramente uma generalização causal válida para algumas partes do Ocidente (RUESCHEMEYER, 2008, p. 321-322). No entanto, tal proposição

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Na verdade, os adeptos dos estudos de N grande e de técnicas estatísticas defendem a possibilidade de inserção de dados contextuais, por exemplo, por meio do uso de variáveis dummies que indicariam a presença ou ausência de uma dada qualidade contextual. Cf., por exemplo, Przeworsky e Teune, 1983, p. 13 e 26. No entanto, é preciso observar que o uso desse procedimento de dicotomização pressupõe um profundo conhecimento do contexto histórico dos casos analisados a fim de que essa codificação não seja mera ficção. De qualquer forma, apesar de útil, ele representa sempre uma ostensiva simplificação da realidade. Cf. Rihoux e Ragin, 2009.

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causal nunca é apresentada na forma de uma lei universal. O retorno aos dados históricos permite mostrar que há importantes exceções (a Inglaterra, por exemplo) que exigem uma qualificação melhor daquela proposição. Portanto, estudos de N pequeno conduzem a uma interação mais direta e frequente entre desenvolvimento teórico e dados, uma combinação mais próxima entre pretensões conceituais e evidência empírica (RUESCHEMEYER, 2008, p. 318). Não é verdade, portanto, que estudos de N pequeno não possam produzir ganhos teóricos. Primeiramente, se operacionalizado por meio da lógica comparativa (sobretudo o método indireto da diferença), esse tipo de estratégia analítica não está condenado a produzir um conhecimento estritamente idiográfico, sendo capaz de produzir explicações com alguma possibilidade de generalização na medida em que a comparação histórica permita identificar padrões de ocorrência dos eventos (revoluções, industrialização, construção de Estados nacionais, reforma agrária, etc.). Ao mesmo tempo, porém, por ser uma comparação histórica, esse tipo de procedimento produz “generalizações modestas”, que reconhecem a especificidade dos padrões detectados, válidos para certas épocas e regiões do planeta. A comparação histórica, portanto, permite a produção de generalizações historicamente embasadas, um meio-termo entre o conhecimento estritamente idiográfico e a formulação de supostas leis universais. Como diz Bendix, o objetivo da análise histórica comparativa é formular proposições “que são verdades para mais de uma sociedade, mas não para todas as sociedades” (BENDIX, 1963, p. 539). Portanto, os estudos de N pequeno conferem lugar de destaque à narrativa histórica como passo importante para elaborar teorias com base em “analogias históricas” sem recorrer a “teorias epocais” que formulam explicações universais e apriorísticas sobre épocas inteiras da história humana (STINCHCOMBE, 1978, p. 7 e 19-22). Quanto a esse ponto, Rueschmeyer (2008, p. 323) lembra o exemplo de Theda Skocpol, que, nos seus estudos sobre revoluções sociais, apresenta seus casos por meio de narrativas detalhadas que identificam uma série de eventos causalmente conectados, compara tais narrativas e, por fim, identifica um padrão de estrutura de eventos que é enunciado como causa do fenômeno nos três casos analisados. Em segundo lugar, a comparação histórica é inerentemente preocupada com a identificação de padrões (semelhanças) e de singularidades (di-

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ferenças), sendo, portanto, um instrumento adequado para a produção de classificações pertinentes. Dessa maneira, a comparação histórica nos permite evitar aquilo que Sartori (1991) chamou de catdogs, ficções inexistentes, fruto sobretudo de maus procedimentos classificatórios. Boas classificações representam ganhos teóricos inestimáveis para qualquer ciência e já produzem por si só algum grau de generalização. Em terceiro lugar, a comparação histórica permite ir além da simples constatação da existência de correlação entre variáveis. O conhecimento da história é, por definição, o conhecimento do processo, do modo e da sequência em que os fatos se dão. Sendo assim, a narrativa histórica permite revelar a cadeia causal que preenche o “espaço vazio” entre as variáveis independentes e as variáveis dependentes. Desse modo, a recuperação histórica de um processo permite realizar aquilo que Peter Hall chamou de process tracing (ou “análise sistemática de processos”), isto é, o rastreamento do processo que vai de uma variável causal até o seu efeito.18 É importante observar, entretanto, que a narrativa histórica na análise comparativa não deve ser confundida com a descrição exaustiva e detalhista de uma infinidade de eventos e fatos históricos desconexos. Não se trata, portanto, de apenas “contar história”. Essa narrativa, ao contrário, só reconstruirá efetivamente a “cadeia causal” se for feita em termos de identificação e encadeamento de causas adequadas (para manter a terminologia weberiana), isto é, recuperando aqueles fatos cuja presença (e articulação entre eles) for fundamental para a produção do fenômeno que se pretende explicar19. Por fim, a análise histórica é fundamental para uma perspectiva analítica amplamente utilizada atualmente pelos cientistas sociais, a saber, a perspectiva da path dependence. Segundo Peter Hall, a literatura sobre path dependence enfatiza dois pontos com sérias implicações para a análise cauComo exemplo, esse mesmo autor utiliza a correlação existente entre governos social-democratas e arranjos corporativos de representação de interesse. Diz ele: “Não é suficiente [...] dizer que a presença de social-democratas no governo explica o desenvolvimento de arranjos neocorporativos. Para ter um poder explicativo, qualquer teoria desse efeito deve conter alguma explicação da cadeia causal por meio da qual um conduz ao outro” (HALL, 2008, p. 393, nota 16). Outro exemplo dessa posição pode ser encontrado na seguinte passagem do livro de Karl Polanyi: “Mesmo que consigamos comprovar, fora de qualquer dúvida, que no cerne da transformação estava o fracasso da utopia do mercado, ainda temos que mostrar de que maneira os acontecimentos reais foram determinados por essa causa” (POLANYI, 2000, p. 256). 19 Agradeço a Paolo Ricci por essa observação. 18

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sal. Primeiro, reconhece que os desenvolvimentos causais de grande importância para o entendimento de um dado fenômeno ocorrem com frequência bem no início de uma longa cadeia causal. Segundo, sugere que ocorrências iniciais podem mudar o contexto de um caso tão radicalmente que os desenvolvimentos subsequentes de um mesmo fenômeno terão diferentes efeitos em casos diferentes (HALL, 2008, p. 384-85). Nesse sentido, não se pode pressupor que o impacto do evento x será o mesmo em qualquer contexto. A intensidade e a natureza do impacto de x dependerão do fato de a sua ocorrência se dar antes ou depois de w, por exemplo. Por essa razão, “teorias da path dependence dirigem explicitamente a nossa atenção para a importância da narrativa histórica (sempre em termos de causas necessárias e suficientes). Elas implicam que resultados correntes raramente podem ser explicados apenas com referência ao presente ou ao passado imediato” (HALL, 2008, p. 385). Como dissemos anteriormente, a análise histórica comparada, com seu pendor para reconhecer as singularidades contextuais, desconfia fortemente de modelos causais homogêneos, o que é plenamente coerente com a perspectiva da path dependence. Do que foi dito acima podemos concluir mais uma vez que a comparação historicamente embasada permite evitar tanto generalizações abstratas e vazias, de um lado, como, de outro, a “história total” à la Fernand Braudel, isto é, o conhecimento exaustivo de todos os detalhes de uma época (TILLY, 1984, p. 65-74). Dizer que o conhecimento histórico comparativo está a serviço da produção de generalizações modestas (mas não artificiais) significa dizer que ele pode, sim, gerar ganhos teóricos para as ciências sociais, diferentemente do que dizem os adeptos radicais dos estudos quantitativos de muitos casos. Ao contrário do que sugere Neil Smelser (1976, p. 157-158), portanto, o uso da história comparativa não serve apenas para fins ilustrativos, sendo fundamental para revelar adequadamente as relações causais que produzem os fenômenos sociais em determinadas épocas.

Conclusão O objetivo deste capítulo não foi defender qualquer estratégia de “pureza metodológica”, a nosso ver sempre infrutífera sob qualquer ponto de vista. Os cientistas sociais devem ter uma relação utilitária com métodos e

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técnicas de pesquisa. Dependendo do objeto de análise e da questão de pesquisa, alguns procedimentos são analiticamente mais rentáveis que outros. No entanto, esse não parece ser a espírito que vigora em algumas áreas das ciências sociais contemporâneas. O que presenciamos hoje parece ser a defesa, algumas vezes implícita, outras explícita, de que a única pesquisa realmente válida é aquela ancorada em estudos que abarcam muitos casos e em técnicas estatísticas de controle de variáveis. Sem a menor intenção de refutar a validade desse tipo de estratégia investigativa, procuramos, porém, apontar alguns de seus limites (raramente expostos pelos seus adeptos) e como eles podem ser contornados por formas alternativas de investigação, notadamente o uso da comparação histórica. Por fim, ao expor as vantagens desses procedimentos investigativos, sugerimos que teríamos muito a ganhar com um retorno às contribuições (metodológicas e substantivas) de Max Weber. Toda a terminologia hoje mobilizada pelos sociólogos e cientistas políticos que utilizam a comparação histórica em suas pesquisas – “multicausalidade”, “combinação causal”, “causação conjuntural”, “generalização modesta”, “rastreamento de processos”, “indução histórica analítica”, “path dependence” – não passa, no fundo, de uma nova maneira de expressar proposições teóricas e metodológicas há muito tempo encontradas na epistemologia weberiana. Acreditamos, portanto, que por detrás de toda essa “inovação” há, ao contrário do que sugere Peter Hall (2008, p. 394, nota 19), bem mais do que “alguma simpatia” por Max Weber.

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Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina Ernesto Seidl1 A principal finalidade deste texto é retomar discussões consagradas no campo de estudos sobre construção nacional, formação do Estado e do sistema político e procurar atualizá-las com base em perspectivas menos correntes ou consideradas pelas ciências sociais no Brasil. Dentro de temática muito ampla, a atenção está voltada ao papel e peso da Igreja Católica nos processos argentino e brasileiro de construção nacional. Com ambições muito limitadas – inclusive pela mobilização exclusivamente de fontes secundárias, elemento que, sem si, é muito problemático2 –, procura-se fornecer pistas para problematizações analíticas e encaminhamentos de pesquisa pertinentes.

Nation-building em contextos periféricos Como é sabido, o vasto campo de estudo sócio-histórico voltado para os processos de nation/state-building tradicionalmente vê-se às voltas com quantidade muito grande de variáveis a examinar, e seu conteúdo muda de acordo com as diferentes linhas epistemológico-teóricas disponíveis. Por seu propósito muito específico, o presente trabalho ficará restrito a um exercício que toma em conta apenas a variável religiosa no contexto de formação dos Estados nacionais na Argentina e no Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador do Laboratório de Estudos do Poder e da Política – LEPP. 2 Caberia mencionar rapidamente, ao mesmo tempo a escassez de estudos empíricos (monográficos ou comparativos) e, por outro lado, a disponibilidade de uma bibliografia sobre a “história da Igreja” produzida quase inteiramente por indivíduos comprometidos em algum grau com a instituição. No caso brasileiro, isso é evidente, por exemplo, nas publicações coordenadas por padres, teólogos e “historiadores da Igreja”, no sentido mais ambíguo do termo. Exemplo claro disso é a coleção História Geral da Igreja na América Latina, editada pela Vozes, editora controlada por franciscanos há mais de um século. 1

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Em um nível geral, cabe apontar, de início, uma questão mais ampla da problemática abordada, a qual diz respeito à centralidade do exame das respectivas dinâmicas de formação do Estado nos dois países apontados, tomando-se em conta suas peculiaridades históricas, estruturações sociais e contextos culturais. Pretende-se tornar claro, por essa via, um posicionamento que vai de encontro a vertentes clássicas de estudo de formação estatal, todas elas fundadas, em maior ou menor medida, em uma visão de universalidade do fenômeno político e sobretudo do Estado-nação e, consequentemente, voltadas à observação de suas distintas variações no tempo e no espaço e ao seu enquadramento no espectro de um suposto desenvolvimento político (BADIE, 1980). Em contrapartida, o pressuposto epistemológico em que se baseia a perspectiva aqui defendida centra-se na compreensão dos fenômenos políticos em sua multiplicidade e especificidade, colocando-se justamente a comparação como recurso para a apreensão de variantes históricas e culturais. Dessa forma, o desenvolvimento relativamente recente de uma vertente de caráter culturalista no interior da Sociologia Histórica ou Sociologia do Estado3 tem fornecido um leque de questões de grande fertilidade. Um aspecto central nesta corrente, em particular nas obras de Bertrand Badie, Pierre Birnbaum e Guy Hermet, diz respeito à concepção dos fenômenos de constituição do poder político em termos de dinâmicas que não obedecem a determinantes universais nem a sequências necessárias. Ao mesmo tempo, também apontam a existência de um fenômeno histórico mais amplo de expansão de uma esfera propriamente política ocidental, cuja característica é justamente “autoproclamar-se universal” (BADIE, 1992, p. 69 e segs.). Ou seja, se toda a orientação desta vertente baseia-se nas noções de diversidade e especificidades das manifestações do “político”, indissociáveis das noções de cultura e história, por outro lado ela chama

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Às vezes, também denominada genericamente Política Comparada, trata-se de uma vertente teórica iniciada com trabalhos debruçados sobre padrões comparados de construção nacional, herdeiros notadamente da sociologia de Max Weber e de Norbert Elias. Para uma visualização geral do estado da arte nesse campo no início dos anos 1990, ver especialmente a edição n. 133 (1992) da Revue Internationale des Sciences Sociales, e o artigo de Bertrand Badie & Pierre Birnbaum, intitulado Sociologie de l’État revisitée, publicado na mesma revista, n. 140 (1994); para questões mais gerais sobre a reaproximação entre história, sociologia e estudos da política, ver Déloye (2003), Déloye & Voutat (2002), Offerlé & Rousso (2008) e Tilly (1981, 2001, 2007).

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atenção com muita ênfase ao inegável contexto de sua universalização, entendida como ocidentalização, do fenômeno (BADIE, 1992; BADIE & HERMET, 1993). Partindo da visualização de uma crescente generalização das formas ocidentais do “político” em contextos não-ocidentais, isto é, países ou regiões de tradição totalmente alheia a tal processo (América, África e Ásia) e inclusive, como é o caso da América, de estruturas sociais completamente extintas com a chegada das potências colonizadoras ocidentais, esta perspectiva acaba lançando ampla agenda de questões a serem devidamente encaradas. Como fazem ver com clareza os trabalhos acima mencionados, o processo de difusão de um modelo europeu de formação estatal nacional não pode ser desvinculado de uma ambição do Estado à sua universalidade como estrutura (“melhor”, “mais desenvolvida”, “inevitável”, “moderna”, “racional”) de organização do poder político. De fato, pelo menos a partir do século XVI, a crescente circulação dos governos e das relações internacionais propiciou a formação de um código comum para todos os atores do sistema internacional, favorecendo assim o surgimento de uma cena internacional na qual cada vez mais são difundidas categorias ocidentais de pensamento. A construção dos Estados ditos periféricos – no qual se inserem Argentina e Brasil –, resultado de uma relação de subordinação às metrópoles, coloca em foco a ambiguidade dos processos de homogeneização dos âmbitos políticos. Desde vários pontos de vista, o Estado periférico se estrutura como se sobre ele devessem estabelecer-se as relações de dependência que os unem aos Estados hegemônicos. Por um lado, a dependência propicia a territorialização dos âmbitos políticos, a construção de um centro de poder e a formação de estruturas burocráticas, ainda que, por outro, contribua para limitar a soberania do Estado, a constituição de uma sociedade civil diferenciada e estruturada e o estabelecimento de fórmulas de legitimação suficientemente sólidas. A importação de modelos exógenos, além dos efeitos citados, tem como consequência o surgimento de um Estado híbrido, fruto do transplante de instituições estrangeiras ao interior de sociedades culturalmente diversas, de tradição completamente desconhecida frente ao modelo importado. Posto que suas condições de surgimento e de uso social nunca podem ser reproduzidas em outras situações, por serem resultado de uma história e cultura

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específicas, a estrutura implantada passa por um processo de adaptação e interpretação que implica necessariamente modificações significativas no modelo adotado, a ponto de, em muitos casos, resultar em uma deformação do paradigma original (BADIE & HERMET, 1993, p. 180-209). As implicações analíticas e metodológicas dessa perspectiva são muitas e de difícil resolução. Em primeiro lugar, colocam-se a centralidade e a amplitude do fenômeno, fazendo com que todo pesquisador debruçado sobre tais contextos tenha de tomá-lo devidamente em conta ao conduzir seus estudos, por mais variados que sejam os objetos. Provavelmente o principal efeito negativo acarretado pela desconsideração desta dimensão de análise seja percebido na quantidade não negligenciável de abordagens históricas e sociológicas que veem em fenômenos sociopolíticos recorrentes em países periféricos – com toda sua sorte de ismos (populismo, coronelismo, clientelismo, autoritarismo, personalismo) – manifestações de “atraso”, “subdesenvolvimento”, “excrescência” ou “perversão”, sempre em comparação à “modernidade ocidental”. Tais conclusões, cujos pressupostos ancoram-se em alguns daqueles que Charles Tilly (1985) chamou de postulados perniciosos da Sociologia Histórica – sobretudo o “desenvolvimentismo/evolucionismo” e a “modernização” –, foram por décadas dominantes no cenário das Ciências Sociais e, em especial, nas suas áreas comparativas4. Da mesma forma, aparecem de modo mais sutil em análises que, embora percebam e reconheçam concretamente sua ocorrência – como é o caso relativo às influências “iluminista”, “republicana”, “liberal” e “positivista” nos ideários argentino e brasileiro do século XIX, assim como às artes nativas desde o início da colonização –, não conseguem evitar a armadilha de julgá-las como “ideias fora do devido lugar”, e, portanto, “disfuncionais”, “anômalas”, “absurdas”, etc. Em segundo lugar, surgem os problemas propriamente metodológicos e de caráter operacional ligados ao empreendimento analítico. Assim, se de um lado deve-se tentar apreender os princípios que regem os processos de importação e exportação de modelos, filosofias e ideologias políticas, bem como suas complexas adaptações e readaptações, isto é, suas lógi-

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Uma exposição detalhada e as respectivas críticas endereçadas a estas correntes podem ser encontradas especialmente em Badie (1980, 1983), Badie & Hermet (1993) e Tilly (1985).

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cas de consumo, em contextos culturais diferentes dos de origem, de outro lado, como aponta Coradini (1996), há uma gama importante de questões de metodologia que ainda estão por ser resolvidas. Incluem-se nelas as formas de se lançar luz sobre o conjunto de atores envolvidos nos processos de importação e exportação, através da explicitação dos interesses em jogo e das lógicas de orientação da escolha dos bens envolvidos, e, principalmente, de se capturar com certa precisão os efeitos da importação desses bens sobre as respectivas estruturações sociais importadoras. Quanto a essas dificuldades de operacionalização e de estruturação do objeto dentro da problemática enfocada, não há dúvida de que, além da complexidade analítica em que estão envolvidas, elas devem-se em larga medida ao próprio estágio ainda inicial de sua apropriação por cientistas situados fora do eixo norteamericano e europeu5.

Algumas variáveis Uma vez expostos, de modo muito sumário, o enquadramento central do tema e algumas questões pertinentes à construção do objeto, cabe agora tentar situá-los mais claramente dentro das perspectivas teóricas acima apontadas. Ao mesmo tempo, indicam-se alguns níveis e variáveis de análise a serem privilegiados. Como foi sugerido acima, o ponto de partida para o exame dos processos de formação do Estado nacional no Brasil e na Argentina consiste precisamente em considerar a condição periférica em que se desenvolvem e, portanto, tomar em conta as diferentes possibilidades de criação, adaptação e hibridação encontráveis na constituição de um aparato político centralizado e legítimo. Assim, se uma noção de “Estado”, de instituições político-administrativas “estatais” e de um léxico “político ocidental” estão presentes tanto na Argentina quanto no Brasil, também a existência da Igreja Católica – parte dos empreendimentos colonizadores espanhol e português desde seu início – deve ser apreendida em sua lógica peculiar de instituição

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Podem-se mencionar alguns trabalhos produzidos no Brasil que incluem em sua análise os pressupostos centrais contidos nesta problemática de importação de bens simbólicos; em especial, Coradini (1996), Anjos (2002) e Seidl (2010).

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ocidental estabelecida em um contexto exógeno. É exatamente nesse sentido que se pretende aqui explorar algumas vias para o entendimento do papel muitas vezes ambíguo desempenhado pela Igreja na construção das nações argentina e brasileira, destacando sua atuação subordinada ao Estado como parte do aparato administrativo empenhado no trabalho de dominação social. A longa manutenção da Igreja dentro da órbita do Estado naqueles dois países, garantida constitucionalmente através do regime de padroado, deve ser examinada em sua dimensão funcional como característica reveladora dos problemas de institucionalização e legitimação de uma ordem política leiga. Quanto a este aspecto, seria necessário explorar comparativamente as funções específicas desempenhadas pela Igreja Católica – inteiramente subordinada ao poder estatal, mas significativamente também parte dele – nos trabalhos de dominação e de legitimação sociais (inculcação de símbolos, valores e ideais nacionais, consagração de grupos sociais e de projetos políticos, etc.). Nesse mesmo sentido, seria pertinente introduzir uma questão ainda pouco trabalhada pela bibliografia disponível: as relações entre a formação de uma esfera política e o processo de institucionalização da Igreja pós-padroado por meio da expansão de uma rede escolar religiosa responsável pela educação de grande parte das elites políticas e de outros grupos dirigentes. Isto é, mais além das ligações formais entre os poderes secular e espiritual, de exame sem dúvida necessário, isto constituiria uma tentativa de apreensão da dinâmica de suas relações objetivas em sua maior abrangência.

Estado híbrido e dinâmica política Como mostra amplamente a bibliografia dedicada à formação do Estado na Europa ocidental, este tem sua gênese em um lento processo de centralização do poder político em torno de um monarca que consegue, com maior ou menor êxito, eliminar gradativamente forças sociais e políticas concorrentes (exércitos e outras forças militares privadas, Igreja, forças comerciais, etc.), extinguindo-as ou subjugando-as. Como apontam Badie & Birnbaum (1979, p. 159), entendido como produto de uma formação social precisa e determinada, o “Estado-nação se impõe naturalmente como

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uma fórmula política que traz a marca de uma cultura cuja importância não se poderia subestimar”, sendo sua “invenção controlada e materializada pelos modelos culturais próprios à Europa ocidental”. Especificamente quanto à Igreja e ao poder religioso, muitas são as indicações que ressaltam o peso da variável religiosa na explicação dos vários formatos estatais que tomaram corpo naquele continente. Contudo, em que pese a existência de variações internas consideráveis (recortes entre tradição católica e protestante, com suas variantes nacionais), a constituição de um centro político unificador vai inevitavelmente de par com uma separação relativamente clara entre os poderes religioso e político, fenômeno este que também é mais amplo e se estende a outras esferas sociais, as quais vão progressivamente descolando-se e autonomizando-se umas frente às outras. De fato, o surgimento de uma esfera política autônoma como “modo privilegiado de resolução das tensões e dos conflitos” (Ibid., p. 159), acompanhada de um aparato burocrático-administrativo especializado, implica, neste contexto, uma recomposição do poder religioso, com perda de terreno na esfera social do político. Autores como Bertrand Badie, Pierre Birnbaum e René Rémond, entre outros, ressaltam o peso das relações entre o sistema político e o religioso no processo de dissociação de um nível propriamente “político”. Segundo esta perspectiva, “seria incontestável que o cristianismo desempenhou papel decisivo na construção do Estado”, papel que “não cessou de crescer à medida que a religião cristã proclamou a autonomia do poder espiritual em relação ao poder temporal e desenhou assim, em negativo, os contornos de um campo político específico” (BADIE & BIRNBAUM, 1979, p. 160). De outro lado, se a história europeia de construção estatal nacional tem na secularização da política um fator crucial para sua realização, a realidade dos países situados fora daquela órbita parece ser bastante distinta. Em primeiro lugar, cabe considerar as dificuldades nas tentativas de empreendimento de um aparato político-administrativo dentro de situações históricas e de contextos sociais e culturais distintos do ocidental. Ou seja, não apenas as condições de dispersão do poder por vastos territórios nas mãos de proprietários fundiários geralmente armados (estancieiros, caudilhos, coronéis) – como são os casos brasileiro e argentino –, mas também a própria inexistência de um fenômeno de autonomização da esfera política e burocrática conduziram a dinâmicas estatais.

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Diferentemente da história europeia de construção de uma ordem estatal, as dinâmicas estatais argentina e brasileira são fortemente marcadas por tendências centrífugas que atuaram em sentido contrário à institucionalização de uma ordem política centralizada. A fim de explicar as particularidades das dinâmicas do poder político sobretudo no contexto latino-americano, muitos especialistas encontraram no conceito de neopatrimonialismo6 instrumento-chave na interpretação das constantes tensões resultantes da implantação de modelos híbridos de Estado. Com base nesse recurso analítico, os sistemas políticos da América Latina são compreendidos como estruturados em torno da pessoa do chefe político (presidente, monarca, caudilho, latifundiário) e tenderiam a reproduzir um modelo de domínio personalizado, orientado à proteção da elite no poder e limitando ao máximo o acesso da periferia aos recursos do centro. Embora Argentina e Brasil possam ser enquadrados nestas condições de dispersão e personificação do poder, alguns traços estruturais derivados do período colonial diferenciam seus processos de formação do Estado nacional ao longo do século XIX. Para Trindade (1985a, p. 64), dois aspectos devem ser observada inicialmente na comparação dos casos brasileiro e argentino. Primeiro, as diferenças na organização da economia, relativamente restrita na Argentina quando comparada às conexões mais amplas encontradas no Brasil. Segundo, o peso do legado institucional políticoadministrativo, que, no caso brasileiro, “era mais complexo, engendrou a formação de um estamento burocrático que transmitiu-se intacto em função da forma pacífica da transição para a independência”; no caso argentino, por sua vez, teve-se a “herança de um arcabouço institucional mais simples e descentralizado em função do tipo de controle metropolitano”, cuja estrutura foi totalmente alterada pelo longo e conflitivo processo de unificação nacional. Ao lado desses fatores colocam-se, no exame empreendido por Trindade, três outras variáveis fortes para a compreensão dos diferentes padrões 6

De acordo com Badie & Hermet (1993), deve-se a Samuel Eisenstadt sua sistematização na tentativa de compreensão dos fenômenos políticos em sociedades em desenvolvimento. No Brasil, Raymundo Faoro (1958) renovou as reflexões sobre a constituição do Estado brasileiro ao usar essa categoria e mostrar o peso do legado português dentro da história do país. Outro trabalho apoiado nessa nessa vertente é o de Uricoechea (1978).

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de desenvolvimento político (em sentido não evolucionista) e do timing dos processos de estruturação de um aparato estatal nos dois países estudados. São elas: o perfil das elites políticas e o seu grau de autonomia frente às classes economicamente dominantes; o peso das forças armadas (Exército e, sobretudo, milícias civis ou guardas nacionais); e o grau de dissociação entre o poder político e a Igreja. Na hipótese apresentada pelo autor, “as diferentes formas de interação desses três fatores com o processo de construção da ordem política, durante a segunda metade do século XIX, têm influência decisiva no ritmo de implantação do Estado nacional” (Ibid., p. 67) e podem explicar, em boa medida, a formação precoce de um centro político no Brasil em contraposição à construção tardia do Estado na Argentina.

Igreja e Estado na formação de nações Sem desconsiderar a importância da conjugação de todas as variáveis apresentadas, cabe, a partir daqui, centrar o foco naquela que diz respeito à relação da Igreja com o “político” e seu respectivo peso na elaboração de ordens sociais legítimas. Nessa pista, um primeiro ponto a ser notado no estudo comparativo da vinculação entre Estado e Igreja na Argentina e no Brasil é a inexistência de contrastes marcantes tais como percebidos em outros aspectos (formação das elites políticas e estruturação das forças armadas, por exemplo). De fato, ambos os países são originários de uma história de colonização realizada por potências europeias de longa tradição católica e apresentam em seu desenvolvimento, desde muito cedo, forte presença da Igreja em ambos os territórios, em especial com a atuação pioneira dos jesuítas nas reduções indígenas. Desde o início, o empreendimento colonizador levado a cabo pelas Coroas ibéricas revelava-se uma “cruzada na qual objetivos políticos estavam essencialmente misturados com objetivos religiosos” (CORNEJO, 1972, p. 26), os quais, ao mesmo tempo em que contribuíam para a legitimação da dominação política através de sua “bênção divina”, valiam-se desta para garantir a continuidade e a penetração da instituição encarregada do plano espiritual. Talvez com algumas pequenas variações, tanto o processo colonizador espanhol quanto o português na América Latina tiveram na Igreja um agente valioso.

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Com relação ao caso português, destaca-se a divisão de tarefas ocorrida entre Estado e Igreja na manutenção do domínio colonial e em sua ocupação efetiva, cabendo ao primeiro o papel fundamental de garantir a soberania portuguesa sobre a Colônia, dotá-la de uma administração, desenvolver uma política de povoamento e resolver problemas básicos. Esta tarefa pressupunha, de outro lado, o reconhecimento da autoridade do Estado por parte dos colonizadores que se instalariam no Brasil, seja pela força, pela aceitação dessa autoridade, ou por ambas as coisas. Nesse sentido, o papel da Igreja era relevante, pois, ao ter em suas mãos a educação das pessoas, o controle das almas na vida diária era um instrumento muito eficaz para veicular a ideia geral da obediência e, em especial, a de obediência em relação ao Estado. A condição de baixa diferenciação entre Igreja e Estado e, sobretudo, de subordinação da primeira ao poder monárquico deve ser entendida dentro do padrão de relações estabelecidas entre as Coroas espanhola e portuguesa e a Igreja de Roma. A estratégia católica de conceder a ambas as monarquias o direito de padroado real sobre sua instituição em todos os territórios descobertos, em troca da garantia de organização e proteção da Igreja nas novas terras, permitiu a estruturação de formas complexas de relacionamento entre os dois poderes. Há várias indicações de que as tensões e conflitos constantes que caracterizam suas relações, especialmente no final do século XVIII e ao longo de todo o século seguinte, derivam da problemática de um mau delineamento dos limites de competência de cada esfera e da estreita submissão da Igreja ao poder temporal. Ao contrário do processo secularizador ocidental de constituição do político – objetivado na forma de Estado-nação –, no qual gradativamente vê-se um relativo distanciamento do poder espiritual frente às questões temporais e, em consequência, a afirmação de uma esfera pública cujo princípio de legitimação passa a ser buscado em outras mitologias sociais (“democracia”, “bem comum”, “bem público”, “vontade geral”) –, a dinâmica de construção de uma esfera política nos contextos argentino e brasileiro mostra-se menos dicotomizada. Se durante todo o período colonial o regime de padroado havia vigorado nos territórios conquistados, os processos de independência dos dois países não apenas não implicaram sua extinção, como acabaram por reafirmá-lo através de sua consagração nos textos cons-

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titucionais, fazendo da religião católica a religião oficial do Estado. Por outro lado, se a manutenção da Igreja sob a tutela do Estado e como religião oficial manifesta um interesse em legitimar o “político” com base em princípios de outra esfera (espiritual), coloca-se em estreita conexão a este fato a possibilidade de utilização da instituição católica e de seus quadros como parte do aparato administrativo. Assim, se não eram poucas as dificuldades de constituição de uma estrutura burocrático-administrativa ampla e profissionalizada, dada a escassez de recursos e de instituições formadoras, a incorporação funcional dos serviços da Igreja ao empreendimento estatal obedecia à lógica patrimonialista de se valer, a um preço muito baixo, de estruturas não-profissionais (burocrático-racionais) de administração7. Como já foi referido, por sua presença ao longo de grande parte do território dos países em questão, a Igreja Católica – assim como viria a ser com a Guarda Nacional no Brasil – podia simultaneamente levar a palavra de Deus e a palavra do Estado de modo mais homogêneo àqueles cuja obediência e crença eram fundamentais na criação de um sentimento nacional unitário. Mais próximos dos indivíduos e da comunidade do que qualquer outro agente público, não há dúvidas sobre o poder privilegiado de penetração do clero em meio a uma sociedade altamente dispersa. No entanto, há que se ressaltar outros aspectos peculiares da presença eclesiástica nos contextos estudados. O primeiro deles concerne à intensa atuação da Igreja nos movimentos de independência argentino e brasileiro, bem como em movimentos revolucionários, sociedades secretas e academias entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX (CARVALHO, 1996; CORNEJO, 1972; FARREL, 1976).

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Exemplo significativo e bem-sucedido da utilização de “serviços litúrgicos” na construção de uma ordem social e política no Brasil é o caso da Guarda Nacional, criada sob o molde francês em 1831. Para Uricoechea (1978, p. 304-305), “a contribuição da Guarda Nacional para a criação de um Estado burocrático moderno foi impressionante: a relevância das milícias no processo de construção do Estado reside, entre outras coisas, em sua participação – por vezes exclusiva – na criação e manutenção de uma rotina administrativa de governo local que era uma condição necessária para o desenvolvimento de uma ordem institucional além dos confins da sociedade patriarcal”. Na visão do autor, da qual compartilha Trindade (1985a), o emprego da ordem prebendalista dessa milícia cívica constitui um fator explicativo do sucesso obtido pelo Estado brasileiro em sua constituição quando comparado com a Argentina e outros países latino-americanos.

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O envolvimento expressivo de parte do clero (inclusive de alta hierarquia) não somente nos movimentos independentistas, mas também em uma série de outros mais amplos, não pode deixar de ser relacionado ao fato de a instituição religiosa representar uma porta de entrada privilegiada para ideias, filosofias e ideologias originárias de centros da Europa e dos Estados Unidos. Com efeito, as maiores oportunidades de acesso à literatura ilustrada e de contato direto ou indireto com o pensamento produzido no contexto revolucionário europeu (e norte-americano) permitiram ao clero exercer papel importante, no contexto colonial e posterior, na recepção, reelaboração e divulgação de ideários liberais e iluministas e de suas diversas interpretações. Ainda que referências à participação da Igreja nesses movimentos sejam encontradas nas bibliografias relativas aos dois países, é sobre o Brasil que se dispõe de maior quantidade de informações. Por outro lado, há também indicações de que sua extensão tenha sido mais ampla no caso brasileiro devido à melhor estruturação da Igreja, sobretudo pela maior quantidade de seminários existentes8. Em conhecido estudo sobre a elite política imperial brasileira, José Murilo de Carvalho compara algumas características contrastantes entre magistrados e clérigos e relaciona suas origens sociais e formação com um comportamento diferenciado. Segundo Carvalho (1996, p. 167), “como membros de uma burocracia ou como indivíduos, os padres se distinguiam dos magistrados” e, “apesar do Padroado, a burocracia eclesiástica era fonte constante de conflitos potenciais com o Estado”, diferentemente da tendência estatista e conservadora incorporada pelos magistrados reais. E, segue o autor, “a formação do clero era menos nacional e menos estatista em seu conteúdo; a origem social do grupo como um todo era provavelmente mais democrática; as menores possibilidades de ascensão na carreira torna-

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De qualquer modo, a realidade da Igreja nos dois países diferia muito pouco também nesse aspecto. O seminário de Buenos Aires esteve fechado de 1792 a 1865 e o de Salta, de 1813 a 1852. No Brasil, os seminários dependentes dos bispos (episcopais) só surgiram a partir de 1747, ainda sob os cuidados dos jesuítas. “Com a expulsão da Ordem, vários deles foram fechados temporária ou permanentemente, tal sendo o caso dos seminários da Bahia, Paraíba, Maranhão, Mariana, São Paulo, Pará. O único mais estável foi o do Rio de Janeiro, criado em 1739, independente dos jesuítas. Após a expulsão, o único seminário episcopal a ser criado foi o de Olinda, em 1800” (CARVALHO, 1996, p. 166). Destaque-se que os contingentes de sacerdotes eram proporcionalmente muito semelhantes em ambos os países.

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vam o grupo eclesiástico menos coeso que o dos magistrados”; há ainda um aspecto a ser notado: “a atuação da maioria dos padres era muito próxima da população, tornando-os líderes populares em potencial, em contraste com os juízes encarregados da guarda da lei e que permaneciam pouco tempo em seus postos”. Em relação ao comportamento dos dois grupos, é notável a participação dos padres em praticamente todos os movimentos de rebelião desde 1789 até 1842. Quanto ao fundamento de sua participação, sobretudo dos mais ilustrados, este era dado pelo “ideário das revoluções Francesa e Americana, notadamente no que dizia respeito ao combate ao absolutismo, às liberdades políticas, à democracia. Essas idéias, que não atingiam Coimbra, conseguiam chegar aos seminários brasileiros apesar da precariedade de seu ensino” (ibid., p. 167). Exemplos desse envolvimento são vistos na Inconfidência Mineira – em que, entre nove padres julgados, cinco foram condenados – e nas rebeliões pernambucanas de 1817 e 1824. No entanto, a participação do clero na política não se limitou a esse período mais turbulento da independência. Clérigos permaneceram em postos políticos, com intensa atividade nos debates das questões nacionais. Seu ponto alto foram os períodos em que Feijó assumiu o Ministério da Justiça (1831-1832) e foi Regente do Império (1835-1837), seguido de um retraimento da Igreja dentro do espaço político brasileiro. Entretanto, dadas as condições de estruturação do poder eclesiástico frente ao poder político, a religião não tardaria a voltar ao centro das discussões políticas tanto no Brasil quanto na Argentina. A origem da problemática era, no fundo, a mesma nos dois casos, tratando-se da redefinição da postura da Igreja diante do Estado e da “política” e suas respectivas ameaças sob a forma do “liberalismo secularizador” que chegava com a importação de ideologias estrangeiras. A base de sua ação encontrava-se agora na reação corporativa e ultramontana ao regalismo da política imperial brasileira e à situação de ameaça dos governos liberais argentinos – representados por Mitre, Sarmiento e Rosas – às tradicionais prerrogativas da Igreja Católica. De fato, o ultramontanismo de Pio IX (1846-1878) não fez senão estimular uma questão desde sempre espinhosa na relação Igreja/Estado nos dois países, ou seja, a ampla subordinação e dependência da instituição

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religiosa definida pelo regime de padroado. Sendo assim, no momento em que a Igreja tenta reafirmar sua supremacia frente ao poder temporal, condenando ao mesmo tempo a “modernidade” e todos os seus “vícios”, voltam a ser questionados os limites entre os dois poderes. De acordo com Barros (1971, p. 327), “tais idéias ultramontanas encontraram eco no Brasil algum tempo antes do apostolado intransigente de D. Vital e de D. Antônio Macedo Costa, se não no seio do clero, pelo menos entre o laicato”. Porém, interessa mais que se tenha em conta o contexto de reações e reivindicações liberais e republicanas desencadeadas pelo posicionamento do Vaticano e que acabaram desembocando na dramática Questão Religiosa no Brasil. Em suma, a tentativa da hierarquia católica de definir uma política autônoma frente ao Estado acabou levando-os ao choque concretizado na prisão dos dois bispos leais ao Papa9. Como indica Carvalho (ibid., p. 171), “a ênfase na lealdade eclesiástica levava necessariamente ao conflito com a lealdade ao Estado”. Este último seguia, portanto, sua lógica. Insistia o governo, ao longo do Império, em “não abrir mão do controle da Igreja, pois além de ser ela um recurso administrativo barato [...], possuía grande poder sobre a população, de que o governo indiretamente se beneficiava”. Na Argentina, o período que cobre a segunda metade do século XIX parece ter sido o de maior retrocesso para o poder católico. Depois de quase duas décadas de boas relações com o governo conservador e autoritário de Rosas, a quem beneficiou em troca de proteção contra o anticlericalismo dos unitários10, a Igreja teve seu espaço reduzido em larga medida pela ascensão de governos liberais menos preocupados em lhe garantir seu antigo estatuto. Assim, à semelhança do que ocorreu no Brasil quase concomitantemente, a Igreja esteve na pauta da Assembleia Constituinte argentina como “o tema mais discutido” (sete sobre um total de treze), embora apenas três sacerdotes estivessem presentes, sintomaticamente “talvez a mais baixa representatividade do clero em uma assembleia constitucional” (FARREL, 1976, p. 31). O resultado da emergência de forças políticas “liberais” neste cenário, no que tange ao religioso, concretamente foi a elaboração de

Sobre o desenvolvimento e desfecho da Questão Religiosa, consultar especialmente Barros (1971). 10 Segundo Cornejo (1972, p. 39), Rosas tinha como lema o grito “Religião ou Morte”. 9

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uma Constituição que “rompe com toda uma tradição do estatuto público da Igreja Católica. Todas as constituições anteriores [...] foram mais explícitas no reconhecimento da Igreja. De outro lado, a Constituição consagra a liberdade de culto, mantém o Padroado e suprime o foro eclesiástico” (ibid., p. 31). Tal tendência anticlerical intensifica-se na década de 1880 e atinge seu auge com a série de medidas legais que retiram da Igreja direito sobre serviços públicos importantes, como é visto na subordinação dos tribunais eclesiásticos aos civis (1881), na proclamação da educação leiga (1884), no registro e o matrimônio civis (1884 e 1888) e na secularização dos cemitérios (1888). Ou seja, sem dispensar seu instrumento de controle sobre a hierarquia e a atuação da Igreja, o Estado não mais mantinha a religião católica como única prática legalmente reconhecida, o que não deixava de representar ataque considerável ao poder da instituição. Porém, cabe lembrar, como faz Trindade (1985a, p. 82), que o período em questão enquadra-se em um contexto que previa amplo programa de imigração estrangeira (parte do “projeto modernizador liberal”), no qual a liberdade de direitos civis e religiosos era condição para sua realização. Mais uma vez a comparação com o Brasil revela grande semelhança entre os dois países, pois também nessa época o “liberalismo nacional mais esclarecido, aliado ao cientificismo que ainda engatinha no País” (BARROS, 1971, p. 330), trata com clareza do “problema da imigração” (igualmente como um “projeto de modernização”) e defende a liberdade de direitos, passando, pouco mais tarde, a propor abertamente a separação entre Igreja e Estado11. Graças aos “liberais avançados, republicanos ou não”, e aos “republicanos todos, liberais ou positivistas”, “a questão religiosa se transforma num libelo contra a situação vigente” e envolve a Igreja e o Império.

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“[...] Para o liberalismo de então a separação entre a Igreja e o Estado, se não era a única, era, contudo, a principal condição para tornar o País atrativo ao imigrante, sequioso de uma nova vida, mas não ao preço de suas crenças. Nos anos da questão religiosa, os debates do Parlamento e da imprensa giram com freqüência em torno deste tema: Saldanha Marinho, Cristiano Otoni, Silveira Martins e outros muitos batem repetidamente na mesma tecla” (BARROS, 1971, p. 331).

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Sistema escolar e formação de elites Um último aspecto a ser aqui explorado dentro da problemática das relações entre Igreja e Estado e os processos de construção nacional na Argentina e no Brasil diz respeito ao papel da Igreja na estruturação do sistema escolar e na formação de elites políticas, intelectuais e outras. Como foi referido inicialmente, trata-se de uma dimensão ainda pouco explorada pelas ciências sociais brasileiras (e, até onde se sabe, argentinas) e cuja riqueza pretende-se pelo menos esboçar a partir de algumas pistas encontradas na bibliografia. Tendo em vista a organização dos sistemas educacionais nos dois países, o traço fundamental que os diferencia reside exatamente em sua relação com a instituição católica. Em que pese ambos terem um desenvolvimento semelhante durante o período colonial – dependendo de modo praticamente exclusivo da administração católica do ensino –, o período pós-independência na Argentina marca o início de tendência laicizante que não encontrou paralelo no Brasil. Neste último, a grande maioria das instituições de ensino permanece privada e nas mãos de grupos religiosos, característica que se estenderá até as primeiras décadas da República. De fato, o peso do legado colonial católico na estrutura educacional brasileira do Império e da República deve muito à forte presença de ordens religiosas dispersas pelo território, dentre as quais destacam-se os jesuítas. Com grande autonomia frente a Roma e à Coroa portuguesa, obedecendo a regras próprias à cada instituição e com políticas definidas em relação a questões vitais da colonização, sua penetração e consolidação como proprietárias de grandes extensões de terras lhes permitiu desempenhar tarefas importantes em um contexto de baixa institucionalização estatal. Quanto à tarefa propriamente educativa, sobressai o empenho dos padres jesuítas em estar presentes em diversas áreas da Colônia e de responder pelo fornecimento de um nascente ensino formal, obviamente não desvinculado do objetivo catequizador de seu empreendimento institucional. Assim, se por um lado sua preocupação, ao que parece, era menos com a educação do que com a “difusão de um credo religioso” – dado um ensino marcado pelo dogmatismo e a abstração –, por outro lado há que se considerar o sucesso de sua obra mais ampla. Quando foram expulsos do Brasil, “a obra que

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pretendiam realizar estava praticamente consolidada: o país estava unido em torno de uma mesma fé, sob uma mesma coroa” (WEREBE, 1971, p. 366). A expulsão dos jesuítas do território brasileiro representou desagregação ainda maior para o campo educacional, o qual passou a ser assegurado de modo irregular por outras ordens religiosas e por leigos. A partir das primeiras décadas do século XIX, intensifica-se a participação religiosa no ensino secundário12, ampliada com o retorno dos jesuítas, que retomam suas atividades no setor educacional e fundam importantes colégios, tais como o de São Luís, em Itu (1867); o Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (1886); e o Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo (1870) (ibid., p. 374). Em 1837, é criado o Colégio D. Pedro II, por muito tempo o único estabelecimento secundário oficial do país e que, apesar de público, teria forte orientação religiosa, sendo em muitas ocasiões dirigido por religiosos. Pelo lado argentino, como foi mencionado, percebe-se desde muito cedo em suas constituições a previsão de um sistema educacional de caráter público. Já nos textos de 1819 e 1826 impõe-se formalmente ao Congresso Nacional a “obrigação de formar planos uniformes de ensino público, fazer construir escolas nacionais e prover e manter os estabelecimentos deste gênero”. Os primeiros decretos tiveram por objetivo organizar o ensino superior. “Rivadavia havia feito vir da Europa professores hábeis que deram, sobretudo ao ensino das ciências, um poder e uma extensão desconhecidas até então nas Universidades da América espanhola” (HIPPEAU, s. d., p. 2). Com efeito, a este quadro vieram dar reforço as ideias contidas no “projeto modernizador liberal” impulsionado pela “geração de 80”, fortemente influenciada pelas ideologias “laicizantes” e “cientificistas” do liberalismo europeu e, em particular, do francês. Como enfatiza Farrell (1976, p. 38), “o laicismo escolar era cópia do espírito laico reinante na Europa [...], cuja problemática será trazida para cá por Amadeo Jacques. A problemática europeia trasladou-se para o país, como uma antecipação do que vai ocorrer várias vezes na história posterior, por ideólogos da direita ou da 12

Em 1820, os padres lazaristas fundam o Colégio Caraça de Minas Gerais, segundo os moldes tradicionais jesuítas, tornando-se uma das mais importantes escolas secundárias do Império. No final do período monárquico, surgem também as primeiras escolas secundárias vinculadas a grupos protestantes, sobretudo metodistas. Cf. Werebe (1971, p. 375). Sobre o período posterior, consultar Nagle (1977).

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esquerda”. Nesse sentido, a lei sarmentina de 1884 proclamando a exclusão do ensino religioso das escolas públicas consagrava o esprit du temps reinante que se coloca em nome do “Estado” ou da “nação”, isto é, da “política” entendida como “racional”, “moderna” e comprometida unicamente com questões temporais. À intensa ofensiva “liberal” sobre domínios da Igreja Católica na Argentina esta reagirá com a adoção de um plano de reorganização que implica a criação de escolas em todos os níveis. Buscava-se, desta maneira, “formar, frente à elite liberal, uma elite católica que possa com o tempo chegar aos níveis de decisão política e a partir daí cristianizar as instituições sociais, do modo como os liberais haviam-nas laicizado” (FARRELL, 1976, p. 62). O estabelecimento dessas escolas católicas, em sua maioria a cargo de ordens religosas, fortalecia o prestígio da Igreja, ao mesmo tempo em que a aproximava tanto das classes médias emergentes quanto das classes altas, temerosas frente ao fenômeno imigratório e ao novo movimento operário que surgia. Compartilhando em larga medida esses temores, a Igreja encontrava na aproximação com aquelas camadas sociais um caminho para tentar retomar sua antiga posição no espaço social e político argentino. De par com essa tentativa de “cristianização” das elites dirigentes via sistema escolar, a organização de um laicado e a criação de instituições católicas (“centros”, “círculos”, “movimentos”) que levavam a palavra da Igreja para junto das camadas populares tiveram papel estratégico no processo de reorganização da instituição como força nacional relativamente autônoma e capaz de difundir seus valores e princípios. A intensa atuação pastoral e doutrinária da Igreja no “mundo operário”, de um lado, e a formação de uma intelligentsia de dirigentes católicos detentores de recursos sociais importantes (revistas, jornais, notoriedade), de outro, permitiram à Igreja readquirir gradualmente prestígio e influência na sociedade argentina do início do século, condição que foi reforçada pela ascensão do nacionalismo na década de 1930 e somente abalada pela perseguição empreendida por Perón em 1954. No que toca ao período posterior à separação entre Igreja e Estado no Brasil, o estudo de sua relações ao longo das primeiras décadas da República revela dinâmica não muito distinta daquela vigente no Império, em que pese a condição formalizada de distinção entre os dois poderes. Ou

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seja, mesmo sendo proclamada uma Constituição republicana que abole o regime de união entre Igreja e Estado – e, portanto, desvincula a instituição eclesiástica do aparato burocrático-administrativo do país –, permanece objetivamente uma situação de interpenetração das esferas temporal e espiritual, com todas as disputas decorrentes dessa condição. De modo semelhante ao processo argentino de retomada de um projeto revitalizador pela Igreja Católica após a ascensão de um “projeto liberal” que lhe era ofensivo, o caso brasileiro demonstra um momento fundamental de estruturação da instituição sobre novas bases, as quais, mais do que nunca, passarão por uma estreita relação com o universo da “política” e seus determinantes. Vale dizer, se a dependência e subordinação da Igreja frente ao Estado eram agora extintas pelo novo regime, com a própria abolição do regime de padroado, nada permite afirmar que aquela tenha limitado sua atuação ao plano meramente espiritual de ação doutrinária. Pelo contrário, mantémse e até mesmo acentua-se a presença cotidiana da Igreja na maioria dos eventos sociais, notadamente os de caráter “político”, da “vida nacional”, fortalecida pela expansão de uma rede escolar católica. Em pesquisa sobre as elites do clero católico na República Velha brasileira, Sérgio Miceli (1988) aponta para várias dessas questões. De forma geral, sua obra consiste em demonstrar, de um lado, os condicionantes do processo de “construção institucional” da Igreja Católica após sua separação do Estado e, por outro – em estreita conexão com esse processo –, a multiplicidade de determinantes sociais na formação da elite daquela instituição e suas relações com outras esferas sociais, em especial a esfera política. Miceli tem um de seus focos postos no exame do estabelecimento e manutenção de estreitas conexões entre o clero católico e as elites políticas regionais ao longo da Primeira República. Ao evidenciar a simultaneidade do processo de autonomização da Igreja frente ao Estado após o declínio do governo monárquico e o consequente fim do regime de padroado – o que resulta no que Miceli chama de “‘estadualização’ do cenário eclesiástico”13 –, são abor13

Como demonstra Miceli (1988, p. 67),”ao brindar todos os estados brasileiros com pelo menos uma diocese, a Igreja passou a dispor de um sistema interno de governo que se pautava pelas linhas de força que presidiram à montagem do pacto oligárquico [...]”. “A política de ‘estadualização’ foi implementada através de estratégias diferenciadas conforme o peso político e a contribuição econômica de cada unidade federativa para a manutenção do pacto oligárquico

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dados não apenas a funcionalidade das trocas entre as altas esferas católicas e os membros das oligarquias locais, mas também os reflexos dessas relações sobre os mecanismos de formação da elite do clero. Como se pode perceber com certa nitidez, se, de um lado, a estreita conexão das frações mais altas da hierarquia católica com as elites dirigentes regionais foi fundamental para a criação de uma estrutura institucional religiosa sólida – posto que esta se autonomizava frente ao Estado tanto no aspecto material e financeiro quanto no organizacional e doutrinário –, de outro lado, os critérios de ocupação de cargos de liderança não ficaram imunes às influências determinadas pelos grupos detentores de recursos sociais significativos, tais como propriedades econômicas, um determinado capital político e social e, ligado sem dúvida a estes trunfos, um capital de honorabilidade. Outro aspecto para o qual o trabalho de Miceli e também os de outros pesquisadores (DE BONI, 1980; TRINDADE, 1982) chamam a atenção diz respeito à constituição, com maior intensidade a partir do início do século, de um mercado de ensino fortemente dominado pelas escolas católicas, e que, de acordo com Miceli (ibid., p. 23), foi a “alavanca mais dinâmica e rentável dos empreendimentos eclesiásticos no período em apreço”. Por outro lado, se esta expansão da rede educacional sob o domínio da Igreja se deu em quase todo o país, parece ter sido no Rio Grande do Sul, como mostram De Boni e Trindade, que ela alcançou maior intensidade e importância dentro da dinâmica social14. Diretamente relacionada à vinda de padres e religiosos de várias ordens da Europa – iniciada já na metade do século passado – à região de imigração daquele estado, a criação de casas de formação eclesiástica, noviciados, seminários e educandários viu surgir dos diversos estabelecimentos instalados uma elite que, “aos poucos, acompanhando a ascensão econômica da imigração, foi-se projetando no

e, consequentemente, em função da margem de influência e prestígio já conquistada pela Igreja, do grau de receptividade à sua contribuição por parte dos círculos dirigentes locais e do potencial de mobilização dos católicos como grupos articulados de pressão a ponto de influir sobre as decisões governamentais suscetíveis de afetar as áreas vitais de interesse para a própria organização eclesiástica”. 14 Uma lista extensa contendo os nomes das escolas, as ordens religiosas à que pertenciam e as datas em que foram instaladas em Porto Alegre e no resto do Rio Grande do Sul é fornecida por De Boni (1980, p. 246-247). Uma análise da dinâmica de implantação e expansão institucional católica naquele estado pode ser encontrada em Seidl (2003).

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cenário estadual e nacional. Esta elite, na Igreja, assumiu posições relevantes de mando e liderança, com padres, bispos e cardeais de renome internacional” (DE BONI, 1980, p. 245). Como parte de um projeto mais amplo de reorganização católica naquele estado, que visava a atingir toda a vida social (incluindo, além das paróquias, também sindicatos, organizações patronais, cooperativas, jornais, etc.), o controle de uma rede extensa de escolas (que culminaria com a criação de uma universidade na década de 40) espalhadas ao longo de toda a região permitia à Igreja uma influência de grande peso na formação intelectual daquelas camadas sociais que dispunham dos recursos necessários para desfrutar do ensino privado que lhes era oferecido. Um dos resultados da forte presença católica no âmbito educacional e cultural no Rio Grande do Sul, de acordo com as indicações de Trindade, foi a constituição na década de 20 de uma “geração católica” reunindo grande diversidade de elementos, a qual, “além de atuar no domínio do político, do científico, do religioso e do universitário, trabalhou em todos os setores da atividade humana desde o plano moral, que orienta diretamente na privacidade de cada indivíduo, até a atividade profissional” (1982, p. 39). Formados principalmente dentro de uma “rigorosa” tradição intelectual jesuítica15 – e em larga medida em oposição à “geração positivista” que se destacou até os anos 30 –, seus integrantes lograram organizar-se em diversas instâncias do espaço social, como a esfera educacional (tanto nas escolas ginasiais quanto posteriormente nas faculdades de maior prestígio, como Medicina, Engenharia, Direito e Filosofia) e a esfera política (Liga Eleitoral Católica). Embora tal projeto de rearmamento institucional da Igreja Católica, como o chama Miceli (1979), pareça ter sido mais vigoroso no Rio Grande do Sul, ele não pode ser desvinculado de uma estratégia que também engloba os grandes centros nacionais, onde terá maior repercussão. Como mos-

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A presença da ordem dos jesuítas no Rio Grande do Sul, não considerando as primeiras missões que foram expulsas, remonta à vinda de padres espanhóis em 1842. Suas atividades docentes iniciaram-se em 1869, no Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo, já com os jesuítas alemães, que, a partir do seu fechamento como externato em 1907, dedicaramse intensamente ao Colégio Anchieta, em Porto Alegre, criado em 1890 e “principal responsável pela formação da ‘geração católica’”. Para maiores detalhes, ver Trindade (1982) e Monteiro (2011).

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tra aquele autor, desde o início dos anos 20 a Igreja aferra-se ao “ideal de ampliar suas esferas de influência política através da criação de uma rede de organizações paralelas à hierarquia eclesiástica e geridas por intelectuais leigos”. Deste modo, a instituição empenhou-se em “preservar e expandir sua presença em áreas estratégicas como o sistema de ensino, a produção cultural, o enquadramento institucional dos intelectuais, etc.”, e, “em troca da manutenção de seus interesses em setores onde a intervenção do Estado se fazia sentir de modo crescente (o sistema educacional, o controle dos sindicatos, etc.), a Igreja assumiu o trabalho de encenar grandes cerimônias religiosas das quais os dirigentes políticos podiam extrair amplos dividendos em termos de popularidade” (ibid., p. 51). Desta forma, a união, já não mais legalmente formalizada, entre a “cruz e a espada” mostrava agora sua funcionalidade a ambas as partes. Não apenas Estado e dirigentes políticos eram auxiliados e legitimados no trabalho de organização do país, mas também a Igreja Católica adquiria espaço e estrutura próprios aos seus objetivos institucionais. Quanto às relações entre Igreja e campo intelectual, duas instituições de enquadramento intelectual receberam a incumbência de congregar o núcleo de intelectuais leigos que passaram a atuar como porta-vozes orgânicos dos interesses da Igreja: a revista A Ordem (1921) e o Centro Dom Vital (1922). Ao criar centros de difusão doutrinária e de tomada de posição sobre uma série de questões temporais, reunindo e formando uma intelectualidade socialmente reconhecida, a Igreja ampliava significativamente seu espectro de atuação no espaço social16 e entrava com maior força nas disputas pela definição e classificação das questões “sociais” e “políticas” a serem legitimamente tratadas. Da mesma forma que outros grupos de intelectuais, o que incluía uma fração escolarizada do Exército, reivindicavam uma “vocação para

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Entre as agremiações organizadas pela Igreja, destacam-se a Ação Universitária Católica, que mobilizava estudantes das grandes cidades, o Instituto Católico de Estudos Superiores (embrião da futura Pontifícia Universidade Católica), editoras (Agir), além de organizações ligadas à esfera literária, como a revista Festa (publicada no Rio de Janeiro). Cf. Sérgio Miceli,1988, p. 52. De modo semelhante, também na Argentina é criada em 1928 a revista Criterio, a qual ganha relevo nos anos 1930, subordinando-se às rígidas normas da Ação Católica e à censura eclesiástica. Cf. Fausto & Devoto, 2004, p. 219.

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elite dirigente”, como aponta Daniel Pécaut (1990), também os intelectuais seduzidos pelo movimento católico organizado em torno do Centro Dom Vital manifestavam sua posição frente à “grande questão” da época: “como organizar a nação”. “[...] Leitores de Joseph de Maistre, Charles Maurras, Henri Massis, Léon Bloy, Jacques Maritain e outros – sonhavam com uma contrarrevolução católica. Jackson de Figueiredo (um dos principais expoentes desse grupo e dirigente do Centro Dom Vital) acreditava que somente a religião poderia assegurar a base da nação”. Alceu Amoroso Lima, outro líder intelectual católico e também dirigente do Centro, “transformou-se em guardião vigilante de uma ordem moral e, após 1930, em incansável defensor da tutela da Igreja sobre o ensino público” ( ibid., p. 28). Tomando a própria “cultura” como seu veículo, a criação de meios variados de divulgação do pensamento católico – simpatizante de um nacionalismo conservador – mostrou ser instrumento de peso na constituição da Igreja como ator social de primeira grandeza, um dos próprios pilares de construção da nação.

Considerações finais Como foi indicado inicialmente, o exercício de comparação aqui realizado não propôs respostas definitivas sobre o papel da variável religiosa nos processos de construção nacional argentino e brasileiro. Sua função consistiu em trazer elementos para uma problematização coerente do tema e, a partir daí, apontar possibilidades de construção de objetos de pesquisa. Dentro desta orientação, destacou-se a fertilidade analítica de abordagens da Sociologia Histórica que rompem com pressupostos deterministas, ao mesmo tempo em que abrem um espectro de exame de fenômenos políticos e, dentro destes, dos processos de formação estatal em contextos extraeuropeus ou “periféricos”. Dentro dos propósitos do estudo, a intenção principal com o uso de tais enfoques foi tentar esboçar as especificidades dos fenômenos estatais e, de modo mais amplo, da própria dinâmica de construção do “político” em determinados contextos sociais e culturais, buscando-se, assim, escapar às comparações tradicionais num suposto modelo ocidental. Noções como “importação”, “readaptação” e “hibridação” de modelos políticos e outros

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bens simbólicos servem, deste modo, como instrumentos analíticos valiosos para pensar a constituição de uma esfera “política” interpenetrada por outras esferas sociais em determinados meios culturais, como é o caso das sociedades latino-americanas. Nessa direção, o exame das relações entre Igreja e Estado no período de construção nacional argentino e brasileiro revela alto grau de imbricação entre essas duas esferas, as quais inclusive permanecem por muito tempo indistintas, servindo a Igreja como fonte privilegiada de serviços administrativos ao precário aparato estatal. Também dentro desta ótica deve ser entendido o constante envolvimento direto do clero na política formal, ou então, de modo ainda mais intenso, em movimentos políticos revolucionários e em alianças com frações da elite dirigente, indicando a existência de contextos sociais nos quais a dimensão política é supervalorizada, isto é, contextos de hiperpolitização, como dizem Bertrand Badie e Guy Hermet. Conforme visto, tanto a Argentina quanto o Brasil apresentam em seus processos de construção política um padrão de relacionamento entre Igreja e Estado que segue em larga medida os mesmos traços. Ambos os países têm na longa subordinação da Igreja ao poder do Estado um instrumento funcional ao empreendimento de construção de uma unidade nacional e, ao mesmo tempo, uma forma de cerceamento de poderes concorrentes ao centro político. Sintetizando a discussão em linhas gerais, Fausto & Devoto (2004, p. 136) apontam que “as elites de ambos os países tinham perseguido objetivos comuns de uma modernização que implicava redução do espaço da Igreja Católica e a criação de um Estado laico”. Por outro lado, e de modo ambíguo, “também em ambos os países, as próprias elites limitavam o processo, ao combiná-lo com a ideia de utilidade da Igreja como mecanismo de controle e consenso social”. Encarregado de levar a palavra da Igreja sem jamais deixar de lado aquela do Estado, o clero católico difundiu por vastos territórios a ideia de obediência ao Estado, por menos clara que esta fosse, levando aos habitantes uma série de novas categorias identitárias e de lealdade, como “nação” e “nacionalidade”. Nesse aspecto, o peso da Igreja dentro do sistema escolar adquire especial relevância e se constitui, provavelmente, no principal traço divergente entre as realidades argentina e brasileira, embora não se creia que ele possa explicar – sem ser conjugado com outras variáveis – as

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diferenças nos seus padrões de construção do Estado. De todo modo, este é um ponto que merece investigação comparativa sistemática que implique exploração de grande variedade de fontes.

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Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (Brasil: RS, 1891-1930)1 Flavio Heinz Neste texto, analisamos certas características da trajetória social e intelectual das equipes dirigentes de dois partidos governantes, o Partido Republicano Rio-Grandense e o Partido Colorado (Uruguai), no final do século XIX e primeiras três décadas do século XX, a partir de duas variáveis principais: [1] primeiro, a orientação intelectual dominante nos meios políticos e partidários em questão, focalizando a problemática da recepção e incorporação política e programática do “positivismo” entre os republicanos castilhistas e do “krausismo” pelos colorados uruguaios sob a égide do batllismo; [2] segundo, o impacto das origens sociais e da orientação intelectual e política dominante em cada grupo partidário na formação das políticas públicas e consequente definição dos perfis social e econômico do Estado nacional uruguaio e do RS. Busca-se verificar nestas elites elementos que permitam explicar a convergência de práticas político-administrativas ao longo destes anos: ênfase no dirigismo econômico estatal; disciplinamento ideológico; direcionamento não oligárquico da ação estatal, incorporação de novos grupos sociais e expansão em número e qualidade das políticas sociais. Para tanto, algumas questões orientam nossa reflexão: Quais as possibilidades e os limites da análise comparada quando oscilamos entre casos de diferente grandeza, como este de tipo nacional/regio-

1

Este texto foi originalmente publicado em espanhol sob o título “Elites, estado y reforma en Uruguay y Brasil meridional: castilhismo y batllismo en perspectiva comparada – El caso de las elites de Rio Grande do Sul en la transición del siglo XIX al XX”. In: REGUERA, Andrea. Los rostros de la modernidad – Vías de transición al capitalismo, Europa y América Latina, siglos XIX-XX. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2006.

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HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

nal? Como pensar a questão da circulação e recepção de ideias políticas no final do século XIX na região platina? Se pensarmos a disseminação de práticas e a implementação de políticas como oriundas do ambiente político e intelectual vivenciado pelas elites políticas, como entender que a partir de circunstâncias políticas e intelectuais diferenciadas em curso no Uruguai e no RS tenha sido possível o aparecimento de um modelo – em princípio – semelhante de intervenção pública e reforma social? ***** Este texto discute o papel das elites políticas do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, e de seu ambiente intelectual – com a influência doutrinária do positivismo comtiano –, para a consolidação e disseminação de uma ideia de intervenção estatal de caráter reformista e “modernizador” assumida pelos governos do Partido Republicano Rio-Grandense durante o período da República Velha (1889-1930). Nesta perspectiva, da ação das elites rio-grandenses resultariam políticas públicas que influenciaram fortemente a definição do cenário econômico regional e que seriam, anos mais tarde, a inspiração política e intelectual das políticas de regulação social e intervenção econômica postas em ação durante o 1º período Vargas (19301945). Ao longo de nossa apresentação, buscaremos oferecer elementos para a comparação do caso em questão com o processo em curso no Uruguai durante o período de intensa mobilização reformista econômica e social dito batllista das administrações do Partido Colorado, entre 1903 e 1933. Um estudo sobre as experiências de gestação e formação de políticas públicas na América Latina deveria necessariamente interessar-se pela ótica da ação de grupos/elites dirigentes e pela história do pensamento político que orientou os processo de modernização do Estado latino-americano em curso no começo do século XX. Assim, a comparação, por exemplo, das equipes governantes ligadas ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), no período 1891-1930, sob a influência do castilhismo2, e do Partido

2

Por castilhismo entende-se o período de influência política das ideias de Júlio Prates de Castilhos (1860-1903), fundador do PRR, do jornal republicano A Federação e principal liderança republicana do Rio Grande do Sul. Castilhos foi deputado à Constituinte Nacional e autor da

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Colorado, no Uruguai, sob o batllismo3, mapeando traços intelectuais e ideológicos e tentando perceber sua influência na ação política destes grupos nos respectivos Estados, ofereceria algumas pistas para o entendimento das formas de produção do welfare state e/ou do estado nacional-desenvolvimentista no continente. Caracterizados pela relativa autonomia de suas iniciativas políticas em relação aos setores oligárquicos então economicamente dominantes no Rio Grande do Sul e no Uruguai, os grupos dirigentes em questão marcaram suas ações pela implementação acelerada de políticas públicas agressivas de intervenção e modernização econômica ou de reforma social, definiram o padrão da presença estatal no desenvolvimento econômico de suas regiões – que persistiria por boa parte do século XX – e a nova configuração social dos centros urbanos, sobretudo pela incorporação subordinada de novos grupos sociais urbanos – classes médias e operariado – ao campo político. No que toca especificamente ao caso brasileiro, em um já clássico texto sobre o surgimento da perspectiva desenvolvimentista e do Estadoprovidência no país, Alfredo Bosi indicava a presença, ainda em fins do século XIX, de uma matriz positivista no modelo desenvolvimentista brasileiro – antecipando-a, portanto, em muito à perspectiva cepalina – e a associava a ideias que à época circulavam nas capitais platinas e cuja incorporação nos meios políticos e intelectuais era acompanhada por uma redefinição do papel atribuído ao Estado na regulação social e na intervenção na

carta constitucional do Rio Grande do Sul (Constituição de 14/7/1891), tendo dirigido o estado entre 1892 e 1897. Mesmo após sua morte, Castilhos seguiu sendo a principal referência política e moral dos republicanos do Rio Grande do Sul. Seu governo e, por analogia, seu período de maior influência na política regional foram caracterizados pelo autoritarismo governamental, intervencionismo econômico, disciplina férrea imposta aos militantes republicanos, defesa ideológica das virtudes da ditadura científica positivista e pelo combate sistemático à dissidência e à oposição. Foi sucedido por Antônio Augusto Borges de Medeiros, herdeiro e propagandista de sua obra política. Borges foi constituinte em 1891, desembargador em 1892 e chefe de polícia em 1895, e governou o Rio Grande do Sul entre 1897 e 1908 e entre 1913 e 1928; daí a denominação do período em análise também como castilhista-borgista. 3 Por batllismo entende-se o longo período de influência de José Batlle y Ordoñez, duas vezes presidente, na vida política uruguaia. Para o nosso interesse neste artigo, limitar-nos-emos a tratar o período conhecido como primeiro batllismo, entre os anos de 1903 a 1933. O termo batllismo será aqui utilizado para nos referirmos às ações e à obra governamental de caráter reformador empreendida pelo grupo político do Partido Colorado, liderado por Batlle durante todo o período, e não apenas durante seus dois mandatos presidenciais, i.e., 1903-1907 e 1911-1915.

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vida produtiva do país. Segundo o autor, a “historiografia política [apenas] começa[va] a aclarar os modos pelos quais um ideário importado [havia] podi[do] nutrir uma ideologia de longa duração capaz de legitimar a ação intervencionista do poder público em um contexto local e, depois da Revolução de Trinta, nacional” (BOSI, p. 277). No desenvolvimentismo brasileiro haveria, assim, a marca evidente do positivismo instrumentalizado e militante que os dirigentes republicanos, isto é, pertencentes aos quadros do Partido Republicano Rio-Grandense4, haviam implantado regionalmente, no sul do país, em sequência ao golpe republicano, sobretudo a partir da Constituição Rio-Grandense de 14 de julho de 1891 e da vitória sobre os opositores federalistas5 na Revolução de 1893-1895. Se a chamada Constituição do 14 de Julho inovava pela organização proposta para o Estado e pelos dispositivos fiscais previstos, a vitória sobre os opositores marcava o início de um período de hegemonia dos republicanos liderados por Júlio de Castilhos no cenário regional, situação que só seria brevemente ameaçada por ocasião de um novo enfrentamento armado, em seguida à última recondução do mandato do presidente do Estado, Borges de Medeiros, em 1923. Na mesma época, experiências sociais análogas se desenvolviam na foz do Prata, o que permitia ver na experiência rio-grandense um viés mais sistêmico, menos “exótico”. Com efeito, como notou Bosi, “não se trata[va], a rigor, de uma idiossincrasia local. As mesmas ideias informavam os projetos estatizantes dos colorados uruguaios [...]6. O Rio Grande do Sul, o

Fundado ainda sob a monarquia, em 1882, o PRR foi a força hegemônica da política regional durante todo o período da República Velha, isto é, de 1889 a 1930, passando por contestações episódicas em 1891-92, pela guerra civil conhecida como Revolução Federalista, entre 18931895, e pela Revolução de 1923. 5 O Partido Federalista, criado em 1892, recuperou parte expressiva das antigas lideranças que, sob a monarquia, dirigiram o Partido Liberal e controlaram a política na Província do Rio Grande. Durante praticamente todo o período, o Partido Federalista representou a principal força política de oposição à hegemonia republicana no Rio Grande do Sul. 6 Do industrialismo utópico de Saint-Simon e do positivismo social de Comte emerge a primeira “vertente ideológica voltada para retificar o capitalismo mediante propostas de integração das classes a ser cumprida por uma vigilante administração pública dos conflitos”. Para Bosi, a inspiração profunda desta vertente é ética e, “tanto em Saint-Simon quanto em Comte, evoluiu para um ideal de ordem distributivista”. Assim, o positivismo social, “transferido quase em estado puro para o contexto republicano gaúcho (ou variamente combinado com o racionalismo krausista, no Uruguai colorado), deu à nova configuração econômica modelos de ação política cuja coerência interna ainda impressiona” (BOSI, p. 282). 4

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Uruguai e a Argentina, ressalvadas as diferenças de escala, eram formações sócio-econômicas similares. Nas três, a economia pecuária e exportadora, firmemente implantada ao longo do século XIX, teve de enfrentar, desde os fins deste, a alternativa menor, mas dinâmica, da policultura voltada para o mercado interno e das novas atividades urbanas de indústria e serviços. Agricultores operosos carentes de crédito oficial, industriais de pequeno e médio porte estabelecidos nas cidades maiores e uma crescente classe de assalariados vindos com as grandes migrações europeias passaram a constituir polos de necessidades e projetos não raro opostos aos velhos estancieiros e ganaderos. [...] Daí terem-se formado, nas três regiões contíguas, grupos de pressão que demandavam políticas de estado resistentes, quando não francamente contrárias ao laissez-faire propício ao setor oligárquico-exportador” (BOSI, p. 281). Se é verdade que a ideia da origem rio-grandense e positivista do “desenvolvimentismo” brasileiro não é partilhada pelo conjunto dos historiadores brasileiros, torna-se, contudo, cada vez mais frequente o recurso à pista regional e à variável positivista para a explicação das origens da ideia da intervenção e da regulação social que caracterizaram o Estado brasileiro pós-30 (CARVALHO, 2001, p. 111-112). Assim, a ascensão de Vargas ao poder em 1930, num quadro de cisão intraoligárquica, esconderia um significado importante, a saber, o deslocamento para o primeiro plano da cena política do Estado brasileiro de uma perspectiva diversa daquela das elites regionais envolvidas na condução política da república oligárquica que, no Brasil, sucedera a monarquia: as elites gaúchas, representadas na figura de Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda de Washington Luís e presidente do Estado do Rio Grande do Sul, traziam ao centro do poder federal a experiência administrativa e política da gestão do Partido Republicano RioGrandense, fortemente antiliberal nas práticas econômicas e doutrinariamente autoritário na esfera política. Este “ideário reformista, comum aos tenentes e aos líderes do Partido Republicano Rio-Grandense, irá fundamentar o programa da Aliança Liberal7 vitoriosa em outubro de 30” (BOSI, p. 280).

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Nome dado à coalizão partidária encabeçada por Vargas nas eleições presidenciais de 1930.

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Alçado à presidência por uma coalizão envolvendo elites regionais periféricas – ou simplesmente não incluídas no pacto governativo federal –, dissidências políticas da elite paulista e tenentes – jovens oficiais do Exército que, nos anos 20, haviam angariado prestígio e simpatia junto à população por meio de ações armadas espetaculares e uma ambígua agenda política reformista e antioligárquica –, Vargas era provavelmente o mais liberal dos políticos rio-grandenses de estatura nacional, o que o credenciava para uma disputa presidencial nacional. Mas este membro da chamada “geração de 1907”, testado nas posições diretivas do PRR e na presidência do Rio Grande do Sul, era também um profundo conhecedor das possibilidades que a direção centralizadora dos negócios do Estado e a prática política autoritária ofereciam para governante (LOVE, 1975). Assim, na raiz das transformações brasileiras pós-1930 estaria a experiência política e administrativa de quase 40 anos dos republicanos rio-grandenses, e o positivismo teria sido o núcleo intelectual e doutrinário desta experiência. “Parece indiscutível [...] que a mais tarde denominada ideologia desenvolvimentista foi gestada não na década de 1940, ou no pós-guerra, mas na década de 1920; e que sua raiz encontra-se no positivismo8, o qual liberava-se de sua forma inicial para, através do crédito e do intervencionismo, afirmar seu princípio doutrinário da busca da harmonia social” (FONSECA, 1988, p. 17).

Positivismo e krausismo Lideranças intelectuais e políticas republicanas, ainda sob o Império, interessavam-se pelas possibilidades do discurso do “progresso dentro da ordem”, perfeitamente ajustável às necessidades das elites brasileiras no

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Para Bosi, o “termo développement no sentido forte de progresso material e social já comparece em Saint-Simon e no jovem Comte [que fora seu secretário particular]. Para estabelecer o sistema seria indispensável instaurar uma economia planejada que regulasse o desenvolvimento da nação como um todo. A Lei interviria, se preciso, até o limite de abolir o instituto da herança, um dos maiores óbices criados ao progresso por manter privilégios individuais em detrimento da solidariedade social. [...] Quanto aos ganhos pecuniários que a produção trouxesse para o capital, poderiam ser redimidos de qualquer mancha egoísta pela instituição de uma sociedade altruísta, termo cunhado então para designar um regime próspero e distributivo [...]. Nascia, deste modo, o ideal reformista do Estado-Providência: um vasto e organizado aparelho público que ao mesmo tempo estimula a produção e corrige as desigualdades do mercado” (BOSI, p. 273-274).

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período. Assim, as “instituições imperiais deveriam ser abolidas, entre as quais a escravidão, e o ‘marasmo’ do Império deveria ser substituído por um governo disposto a enfrentar os grandes problemas do país, como o seu atraso: era preciso, pois, romper com a estagnação para alcançar o progresso”. No caso do Rio Grande do Sul, abandonar seu caráter exclusivamente pecuário e fomentar a policultura e a imigração, capacitando a economia local para ganhar o mercado nacional e enfrentar as crises com menor vulnerabilidade. Assim, o progresso [...] não deixava de significar desenvolvimento das forças produtivas capitalistas [...]” (FONSECA, 1988, p. 14). Ao se situarem doutrinariamente, através do positivismo, de forma antagônica ao liberalismo, os republicanos gaúchos aproveitaram para denunciar a incapacidade deste em fazer frente aos problemas administrativos, bem como sua propensão a gerar o caos político. O positivismo aparecia aos olhos dos republicanos gaúchos como “uma doutrina científica que possibilitava a organização da política e da administração do estado de uma forma verdadeiramente democrática, onde o bem geral, a incorporação do proletariado à sociedade e a administração pública voltada para os interesses das classes produtoras se realizava completamente. No positivismo o PRR encontrou um modelo para as instituições políticas autoritárias que implantou no estado” e “através dele [...] construiu um discurso não-oligárquico e [...] apresentou estas instituições como as únicas capazes de responder às necessidades da população” (PINTO, p. 108). Paralelamente, a expansão da ideologia krausista9 em meio aos setores emergentes da elite política uruguaia – e também argentina –, em fins do século XIX, também significou o atendimento a certas necessidades de afastamento e liberação do peso da tradição católica, de combate ao cientificismo positivista (por demais representativo, nestes países, das pretensões

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Relativo ao pensamento e à doutrina de Karl Christian Friederich Krause, nascido em Eisenberg, em 1781, e morto em Munique, em 1832. Krause, que elaborou um sistema filosófico próprio, o “racionalismo harmônico”, foi introduzido no espaço intelectual ibérico da década de 40 do século XIX, através de traduções de obras de dois de seus discípulos, Heinrich Ahrens e Guillaume Tiberghien. A disseminação da doutrina krausista entre intelectuais liberais espanhóis a levou, em seguida, ao conhecimento e incorporação ao ambiente político e intelectual de várias nações hispano-americanas, como o Uruguai e a Argentina. No Brasil, o pensamento krausista ficou restrito às faculdades de Direito e pouco ou nenhum efeito teve no que concerne a uma eventual incorporação pelas elites políticas.

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intelectuais da oligarquia) e, por fim, de incentivo à mobilização política. Segundo Monreal, a atração exercida pelo sistema krausista se dera porque: (a) “en tanto que sistema amplio y armónico, el krausismo oferecía respuestas o al menos vías de reflexión para todas las cuestiones que inquietaban el hombre del siglo XIX. En los numerosos libros escritos por Krause [...] aparecían concepciones metafísicas, religiosas, morales, pedagógicas acompañadas frecuentemente de propuestas para la acción”; (b) “se trataba de [...] un sistema espiritualista que reemplazaba la antropología y la cosmología cristianas pero que guardaba puntos de contacto con ellas. Las almas liberales se sentían liberadas del dogma católico y de los preceptos de la moral cristiana, pero adherían a un deísmo fundado en la razón y a una moral del deber”; (c) “el krausismo se manifestaba también como una filosofía que lanzaba a sus discípulos a la acción y los comprometía en la transformación de la sociedad. No se trataba solamente de comprender y de explicar el hombre y el mundo, sino de transformalos” (MONREAL, p. 169-170). Ainda às margens do Prata, a incorporação das ideias de Krause não foi menos significativa em meio à elite política argentina. Analisando a influência do krausismo na formação intelectual dos dirigentes da União Cívica Radical, nos primeiros anos do século XX, por exemplo, David Rock afirmou que a “ideología radical efectiva estaba fuertemente impregnada de un tono notoriamente ético y trancendentalista. Su énfasis en la función orgánica del Estado y en la solidaridad social presentaba un agudo contraste con el positivismo y el spencerismo de la oligarquía, y a menudo tenía notables reminiscencias de Krause. La importancia de estas ideas, que habitualmente se expresaban de una manera confusa e incoherente, era que armonizaban con la noción de la alianza de clases que el radicalismo terminó por representar, y que habría sido mucho más difícil de alcanzar si hubiera adoptado doctrinas positivistas” (ROCK, p. 63). É interessante notar que, embora contrastados no discurso, os sistemas de ideias presentes na região, krausismo e positivismo, acabavam sugerindo uma percepção comum, não oligárquica e, em certa medida, solidarista, às elites políticas emergentes do Partido Colorado e do Partido Republicano Rio-Grandense, e isso porque o positivismo [político] adaptado em sua variante sul-brasileira realçava muito mais os compromissos dos governantes com a inter-

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venção reguladora e harmonizadora no mundo social, ou ainda a necessidade de incorporação das classes, do que o tom cientificista e socialmente determinista que caracterizava sua apropriação pelas oligarquias platinas.

A ação política explicada pela ideologia A perspectiva que vê na ação dos dirigentes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), formação política regional hegemônica na maior parte do período que vai do golpe republicano de novembro de 1889 à ascensão de Vargas ao poder em 1930, uma intenção modernizadora e antioligárquica, sustentada pela disciplina partidária e coesão ideológica positivista, opõe-se a outra que percebe tal perspectiva exatamente como a resultante do trabalho de mistificação política e pregação doutrinária deste partido, armadilha ideológica à qual teriam sucumbido os historiadores atuais. Esta clivagem é aqui ilustrada pelas teses relativas ao Estado rio-grandense no período da República Velha, com os trabalhos de Ronaldo Herrlein Jr. (2000), Luiz Roberto Pecoits Targa (2002) e Gunter Axt (2001). Para Targa, amparado em vasta documentação de natureza econômica e fiscal, é no Rio Grande do Sul que se funda o Estado burguês brasileiro, muito antes deste esboçar-se no restante do país. O autor sugere que a análise histórica e econômica influenciada pela perspectiva centro-periferia invisibilizou o fato de que a revolução burguesa no Brasil se dera, primordialmente, no Rio Grande do Sul, única região do país a substituir no início da República o Estado oligárquico-patrimonial a partir da realização de três “tarefas” fundamentais pela vanguarda republicana e positivista no poder: (a) a criação da autonomia do Estado em relação à classe dominante, obtida através da derrota da “fração mais numerosa, militar e politicamente mais poderosa da classe dominante regional: a dos pecuaristas do Partido Liberal da fronteira sudoeste (Campanha)”, na revolução de 1893-1895; (b) a realização da separação entre esfera pública e esfera privada, entre 1895 e 1906, através da retomada e oferta à colonização de terras públicas ilegalmente apropriadas pelas oligarquias rurais no período final do Império; e (c) a realização de uma reforma fiscal, abandonando a estrutura fiscal do Estado oligárquico, patrimonialista e mono-agro-exportador, substituindo-se o imposto de exportação pelo imposto territorial, gravando primordialmente

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a grande propriedade e tornando o erário menos dependente face às suas receitas clássicas, i.e., impostos de importação e exportação (TARGA, 2003a, p. 7). O Estado buscaria diversificar (ampliando os itens da base exportadora) e desonerar as exportações, diminuindo já em 1893 as taxas aplicadas às exportações, variando de percentuais de 9, 10 e 13 durante o Império para 4, 6 e 10 naquele momento, segundo a mercadoria. Durante o período, reduziu-se a participação das exportações no conjunto das receitas totais do Estado de 53,8%, em 1893, para 19,5%, em 1929. Se a pecuária seguia mantendo uma participação elevada (média de 53,2%) no valor total das exportações, sua taxa de crescimento foi de apenas 3,74%, enquanto que a uma taxa que é quase o dobro desta (6%), a participação dos produtos da região de povoamento e agricultura majoritariamente familiar foi em média de 32%. Em outra frente, o Estado se ocupa da criação de um imposto territorial em vista da substituição das receitas declinantes da exportação. A partir de 1902, instituiu a cobrança relativa ao valor venal da terra e à sua extensão, imposto que seria reformado em 1912 e 1913 (TARGA, 2003b, p. 9). Por outro lado, o imposto sobre exportações, que em 1903 representava 38% das receitas, caiu para 10% em 1929; o imposto territorial subiu de 10 para 12%; o imposto sobre a transferência de propriedades rurais caiu de 15 para 11%; o imposto sobre a indústria e profissões manteve-se estável; aquele sobre o consumo subiu de 6 para 16% do total das receitas. “Não por acaso, medidas similares de tributação da terra estava sendo tomadas pelo presidente Batlle no vizinho Uruguai em um corpoa-corpo flexível e brioso com os ganaderos. O governo colorado não só taxou os campos de gado como buscou recuperar para o patrimônio público as tierras fiscales que estavam nas mãos de latifundiários grileiros. O paralelo da política fundiária de Batlle com as intervenções de Castilhos e Borges na retomada pelo estado das terras devolutas é flagrante [...]” (BOSI, p. 285). Assim, os governos do Partido Republicano Rio-Grandense teriam deliberadamente buscado reorientar o modelo de acumulação vinculado às exportações pecuárias para um modelo voltado ao mercado interno e ao estímulo à produção das novas zonas coloniais. Ao operar esta mudança, o projeto econômico do Estado associou-se à perspectiva dos novos agentes sociais, desvinculados do latifúndio, que promoviam a diversificação da

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base produtiva estadual e conferiam dinamismo à economia regional. De forma análoga, no caso uruguaio, afirma-se que, “para Batlle, o Estado devia intervir nos problemas sociais e econômicos. Devia ser o árbitro entre o capital e o trabalho, apoiando o mais fraco, o trabalho [...] No econômico deu um novo papel ao Estado e neste sentido não era um liberal. Com sua estratégia de estatização e nacionalização desenvolveu as chamadas funções secundárias do estado. Apoiando-se em Ahrens, Batlle viu que o Estado não apenas devia cumprir o papel de ‘juiz e gendarme’, mas também proporcionar o desenvolvimento econômico e o progresso social” (ARTEAGA, p. 139). Os gastos públicos foram decisivos para a promoção das transformações e da expansão da economia gaúcha, contribuindo para que se instaurasse um círculo virtuoso, na medida em que o crescimento propiciava a ampliação das receitas públicas. Para Ronaldo Herrlein Jr., levadas em conta as condições do período, a “postura ideológica conservadora e o caráter geral da intervenção econômica do Estado revelaram-se extremamente progressistas, favorecendo o desenvolvimento integrado e harmônico da economia regional” (HERRLEIN, p. 82).

A explicação pela ideologia como mistificação No extremo oposto, situa-se a perspectiva historiográfica que percebe uma mistificação na leitura do processo político-econômico como resultante de um determinado ambiente intelectual e doutrinário. Para ela, o declínio da política liberal de concessões de serviços e o alargamento do intervencionismo estatal verificados no Rio Grande do Sul, sobretudo nos anos 1900/1910, “nada têm a ver com eventuais determinações da cartilha positivista”, mas derivariam de “respostas programáticas engendradas pela elite dirigente e pela aliança dominante de frações de classe [...], no sentido de construção da hegemonia política e econômica [...], agregando valor a interesses específicos, em detrimento de outros” (AXT, p. 413). Se alguns autores veem na ação política dos republicanos rio-grandenses uma intencionalidade modernizadora orientada pela ideologia positivista, aqui a perspectiva é outra: a exitosa política fiscal do governo Borges de Medeiros, sobretudo os aspectos concernentes ao imposto territorial, por muitos saudada como impulsionadora da diversificação econômica e da dinamização das expor-

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tações, é vista por um outro prisma, o da busca pura e simples do fortalecimento do aparelho estatal. Com uma abordagem sofisticada que privilegia a reconstrução do peso das tramas e ajustes políticos locais e postula a percepção do pragmatismo político e da instrumentalização da doutrina como variáveis indispensáveis para o entendimento do espaço político regional, Axt incorpora uma crítica de natureza eminentemente historiográfica à sua análise histórica. Diz ele: “O autor [Targa] diferencia a trajetória histórica paulista e gaúcha, sustentando que a primeira foi ‘um produto da ordem econômica’, ao passo que a segunda foi ‘conduzida pelo primado do político’. Esta tese, que se coloca na inteira contramão do marxismo, leva a extremos a ideia de especificidade do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil. A insistência no descolamento do estado das injunções econômicas que fermentam o tecido social, investe o estamento burocrático de uma capa sacerdotal, capaz de converter a política em algo quase divino, na medida em que o discurso político é captado como transformador da ordem social” (AXT, p. 15). Não é nosso propósito aprofundar a discussão historiográfica subjacente, mas sugerir indícios para pensar o possível papel do PRR e da influência doutrinária do positivismo na percepção sobre o desenvolvimento econômico presente na política varguista pós-1930. Contudo, é interessante notar que os autores em questão tendem interpretar o debate e a posição de cada um no debate a partir das questões postas pelos agentes históricos analisados. Assim, se Axt ironicamente identifica em Targa um “vigoroso paladino da missão renovadora do Estado”, Herrlein Jr., num longo comentário em rodapé onde relativiza e põe em perspectiva a associação ação/discurso, ponto central da crítica de Axt aos autores que tendem a superestimar o caráter intencionalmente modernizador da “vanguarda” republicana, aproveita para criticar Axt por assumir “figura simétrica ao discurso da oposição liberal contra o ‘inchaço’ e o arbítrio do Estado, de cujo controle fora excluída” (HERRLEIN, p. 66, n. 13). Assim, de certa forma, a oposição político-histórica – e que se tornou “folclórica” – rio-grandense entre “chimangos” (republicanos) e “maragatos” (federalistas) parece encontrar eco entre os historiadores.10 10

Note-se que esta não é uma observação de menor relevância, uma vez que esta oposição é, de tempos em tempos, recuperada na interpretação de outros aspectos e clivagens da vida política

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Sem descuidar das possíveis armadilhas ideológicas postas à análise historiográfica11, a perspectiva historiográfica aqui sugerida é aquela iniciada por Bosi e desenvolvida, com maior ou menor grau de simplificação analítica, por Targa e Herrlein Jr. Ela percebe a agenda do Estado para os diferentes setores como desvinculada de uma tradição liberal-oligárquica. Esta, primordialmente orientada para a satisfação e preservação da continuidade dos interesses da principal elite proprietária, encontrava-se invariavelmente assentada sobre a agroexportação e com franco acesso aos recursos do poder estatal. Gozando de ampla autonomia federal e possuindo os mecanismos para controlar o fortalecimento da oposição e evitar a competição política, o PRR apresentava uma percepção própria sobre a natureza das relações que deveriam existir entre as instituições públicas e as classes sociais. O estímulo à expansão do mercado interno e a preservação de uma certa autonomia da autoridade pública face às demandas de grupos sociais e econômicos parecem melhor caracterizar esta política: “The state should be self-sufficient, avoiding budget deficits and inflation […]. It should at all e cultural do Rio Grande do Sul. O último episódio desta natureza talvez tenha sido o clima de extrema radicalização política que envolveu a sociedade regional quando da chegada ao governo estadual de Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre, do Partido dos Trabalhadores, entre 1999 e 2002. Vários intelectuais ocuparam os espaços de mídia escrita e eletrônica, seja para denunciar a polarização histórica que divide os gaúchos desde a Revolução Federalista, ou talvez, num recuo ainda maior, desde a Revolução Farroupilha, seja para identificar nos agentes políticos contemporâneos traços das identidades políticas do passado. Assim, se o governo petista era identificado pela oposição, na linha direta da tradição castilhista, como de tipo autoritário, com “flagrantes” tendências ditatoriais, na melhor das hipóteses “estatizante e contra o mercado”; a oposição era, por sua vez, identificada pelo partido no poder como “desinteressada pela sorte dos demais grupos sociais, elitista, intolerante e rancorosa frente à legitimidade popular do governo”, críticas gerais que caberiam perfeitamente no discurso de uma liderança do PRR sobre os oponentes federalistas! 11 Com efeito, parece haver por vezes certo exagero – para não dizer clara ausência de cautela metodológica – na convicção com que Targa trata a vinculação ideologia/ação política: “L’intervention de l’État dans l’économie gaúcha avait un caractère doctrinaire. Elle ne s’est pas traduite dans un discours creux, puisque les Positivistes l’on vraiment pratiqué pendant 37 ans (1893-1930) durant lesquels ils restèrent au pouvoir au Rio Grande do Sul. Elle n’avait rien à voir avec une pratique squizofrenique d’intervention économique accompagnée de la défense verbale des principes du laissez-faire, qui a caracterisé la démarche de l’élite paulista. Au Sud, il n’y avait pas de contradiction entre idéologie et les pratiques d’intervention de l’État. Celui-ci était envisagé comme responsable de la régulation de l’économie et de la société et était donc chargé de corriger la direction perverse que pouvait prendre l’économie de marché. L’intervention de l’État s’accordait parfaitment à cette représentation de son rôle, dans la mesure où il cherchait à socialiser les services publiques, à éviter la formation de monopoles, à promouvoir le bien-être social et à ne jamais favoriser un seu secteur ou groupe de capital” (TARGA, 2002, p. 407).

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costs avoid unnecessary intervention in the economy, particularly when such intervention favored certain groups at the expense of others. Ideally the state should face an economy made up of independent producers engaged in free competition, its proper role being the maintenance of the conditions necessary for such competition. It should also abstain from interfering in class conflict originating from the regular operation of capitalism. […] [T]he state had its own needs and imperatives which should not be sacrificed to the demands of classes and groups” (BARETTA, p. 55-56).

Contraponto: alguns traços do reformismo batllista Uma série de reformas foram incluídas na agenda do Estado uruguaio sob a influência de José Batlle y Ordoñez. Segundo nos sugere José Claudio Williman, retomando algumas conclusões de Nahum e Barrán, entre os “temas do reformismo” batllista encontram-se a percepção de que os problemas centrais do país (desigualdade, pobreza, monocultura, debilidade financeira do Estado) resultavam de uma estrutura centrada no latifúndio pecuarista. O questionamento do latifúndio levou o “reformismo” a questionar a propriedade privada como direito absoluto, não para negar legitimidade à propriedade, mas, fundamentalmente, para invalidar certos abusos, e a maneira com que este questionamento operou foi semelhante àquele verificado no sul do Brasil: a defesa da recuperação das tierras fiscales indevidamente tomadas pelos latifundiários (em discussão já no primeiro governo Batlle) e o estabelecimento de um Cadastro de Terras (a partir de 1908) (WILLIMAN, p. 68-69). Também, os governantes do batllismo viram na expansão da agricultura, tanto em área plantada como tecnológica, a fonte principal para a reforma de um mundo rural marcado pela pecuária e social e culturalmente relacionado à oposição política do Partido Nacional. A expansão da área agrícola já existente ou a introdução de novos projetos de colonização apresentavam-se aos olhos das lideranças batllistas como alternativas à frequente instabilidade social das áreas de pecuária extensiva, esteio da mobilização do Partido Blanco. Tal como no caso rio-grandense, a política fiscal constituía a base da ação reformadora do batllismo nas áreas rurais. “El régimen tributario constituyó para el ‘reformismo’, el instrumento por medio del cual pretendió

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enfrentar las características negativas del latifundio pastoril y promover el cambio en los procesos de explotación, con esperanzadas repercusiones en el orden social” (WILLIMAN, p. 70). A contribuición inmobiliaria passou a ser calculada sobre um preço médio regional de venda das terras12 diminuído de 20%, e os ingressos de receita daí produzidos permitiram ao Estado desonerar parte dos salários dos funcionários da administração pública, eliminando alguns descontos previstos em lei e impulsionando um crescimento da renda destes setores. Ainda, algumas iniciativas do período, como a imposição aos latifundiários com área superior a 300 ha do cultivo agrícola de pelo menos 5% da área, obtiveram pronta oposição dos setores proprietários e nunca foram aprovadas na Câmara de Deputados. Se as medidas impositivas são inegavelmente as mais espetaculares, também a criação de uma infraestrutura mais adequada à dinamização da economia agropastoril passou a ser objeto da ação do governo, sobretudo com a expansão do crédito e a interiorização do sistema bancário, através do Banco de la República e do Banco Hipotecario del Uruguay, e a expansão da malha viária, sobretudo com melhoramentos para a navegação fluvial. Por outro lado, medidas de proteção a indústrias locais iriam se multiplicar nos primeiros anos do período e culminariam com a Lei de 12 de outubro de 1912, que desonerou importações de matérias-primas e insumos industriais. Segundo Marcos Alves de Souza, “as principais modernizações empreendidas pelo batllismo foram de âmbito econômico e social, principalmente as que revisaram a relação Estado/economia, bem como o processo de industrialização, as políticas agropecuárias e fiscais, além das políticas sociais e da legislação trabalhista”. Além das estatizações e nacionalizações generalizadas em alguns setores de serviços (bancos, setor de seguros, ferrovias, por exemplo), houve ampliação do protecionismo aduaneiro, estimulando a indústria, e um número crescente de questões incorporadas à agenda social13 do Estado. Ainda, é necessário citar a expansão do ensino público e laico, primário14 e secundário, ainda no primeiro período de pre12 13

Na verdade, foram estabelecidos preços médios para cada uma das 140 zonas fiscais do país. Por exemplo, em seu segundo mandato presidencial, a partir de 1911, Batlle coloca em pauta a regulação das relações de trabalho, com a fixação de jornadas de oito horas diárias, descanso remunerado, sistema de aposentadoria, previsão de indenizações por acidente ou demissão e interdição do trabalho de menores.

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sidência, e a melhoria de condições gerais de saneamento, pavimentação e habitação durante a primeira década do batllismo (SOUZA, p. 48-49). Na origem das transformações acima citadas, o batllismo encontrara no racionalismo krausista a base ideológica inspiradora de sua ação política: “Con base en el espiritualismo, el racionalismo y el krausismo (la vida en armonía, que es la expresión de la armonía divina) que le animaban, Batlle desarrolló su humanismo con creencia de que el hombre es un sujeto capaz de llevar adelante los cambios sociales dentro de una estructura liberal y democrática. Para eso era necesario alentar la participación de todos los ciudadanos en la vida política. Batlle pensaba que el Uruguay, como sociedad nueva, podía evitar los errores del viejo continente y convertirse en una especie de laboratorio social, de ‘país modelo’” (ARTEAGA, p. 139). Como bem afirma Susana Monreal, a política fundada nos princípios do direito era, para Krause e seus seguidores, a doutrina dos princípios e dos meios da reforma do Estado e da sociedade (MONREAL, p. 180).

A elite republicana e a elite batllista Numa obra clássica sobre a política gaúcha no cenário da República Velha, O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930, Joseph Love referia-se às lideranças republicanas do Rio Grande do Sul como pertencendo a um novo eixo político assentado nas relações Serra – Litoral, e não mais Campanha – Litoral15. Embora Love não tenha se dedicado à elabora14 15

Reformas nesse sentido fora introduzida primeiramente em 1877, no Governo Varela. Província sob a monarquia e Estado da federação sob a república, situado no extremo meridional do Brasil, o Rio Grande do Sul pode ser dividido, para efeitos explicativos, em quatro grandes regiões: (a) a Campanha, correspondendo à metade sul do território, incluindo toda a área de fronteira com o Uruguai e, em certa extensão, com a República Argentina, é região de excelentes campos naturais e concentra historicamente as grandes propriedades de terra e a atividade pecuária tradicional do Estado; (b) a Serra é a designação genérica da metade norte do Estado, incluindo a região das Missões e do Planalto próximas ao Estado de Santa Catarina, abrigando uma pecuária economicamente menos importante que aquela do sul, bem como alguma atividade agrícola; (c) a Zona Colonial compreende áreas da encosta da Serra Geral e da própria Serra, a leste e ao norte da capital. A Zona Colonial concentrou a parte substancial das correntes imigratórias de origem europeia (basicamente de origem alemã ou italiana) do século XIX no sul do Brasil e foi, a partir da segunda metade daquele século, o centro de uma produção agrícola rica e diversificada, baseada numa estrutura tipicamente camponesa e voltada para o mercado interno regional; (d) o Litoral compreende a costa atlântica e o sistema da Lagoa dos Patos, incluindo as grandes cidades comerciais do Estado, como a capital, Porto Alegre, e a cidade portuária de Rio Grande.

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ção de um perfil social dessas lideranças, ele retomou a perspectiva já presente na obra regional clássica de Sérgio da Costa Franco, Júlio de Castilhos e sua época, de que a cisão entre republicanos e federalistas revelava um corte no interior da classe proprietária entre aqueles estancieiros da região da Campanha, defensores intransigentes dos privilégios de classe e da primazia de seus interesses na agenda do Estado, e aqueles da Serra, menos abastados e menos vinculados ao circuito econômico exportador da pecuária regional e, portanto, mais inclinados a atender às demandas oriundas das classes médias e do espaço social da pequena propriedade de origem imigrante. Ainda, os laços destes proprietários serranos com os comerciantes do Litoral estariam na origem de um novo equilíbrio tendente a colocar em destaque as preocupações de uma gama ampla de setores econômicos e indicar a impossibilidade de permanecer-se atrelados a uma agenda centrada no atendimento exclusivo dos interesses dos grandes proprietários da Campanha. Esta nova configuração afastaria a elite dirigente ligada à “aristocracia” fundiária do sul do Brasil e representada nas fileiras do Partido Liberal, durante a monarquia, e do Partido Federalista, durante a República, do centro do poder regional. Esta percepção, contudo, avança pouco, uma vez que sugere uma “excepcionalidade da política gaúcha”, isto é, a presença de uma cisão no seio da elite rio-grandense, como resultante de um certo determinismo geográfico e econômico. Assim, estancieiros da Serra comporiam as fileiras do Partido Republicano, enquanto os estancieiros da Campanha representariam a base social dominante do Partido Federalista, derivando daí tomadas de decisão em boa parte “autoexplicativas”. Tratase daquilo que Gunter Axt chamou de ‘matiz marxista-mecanicista’ ou “tipológico” da explicação histórica sobre o estado gaúcho na República Velha, embora pouca ou nenhuma vinculação com o materialismo histórico possa ser observada nos autores referidos (AXT, p. 11, 16-17). Por sua vez, numa tese defendida na Universidade de Pittsburgh em 1985, Sílvio Baretta analisou comparativamente propriedades sociais de líderes republicanos e federalistas16 e encontrou certa consistência nas in-

16

A amostra investigada incluiu 29 inventários que puderam ser recuperados sobre um total de 148 líderes republicanos e outros 25 inventários sobre um total de 111 líderes federalistas.

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formações generalizadas anos antes por Franco e Love a partir de dados de algumas lideranças políticas: lá estavam a maior presença de lideranças federalistas na região da Campanha, a localização da origem de vários líderes republicanos na região da Serra e, por fim, a presença da classe média urbana e de intelectuais nos quadros do Partido Republicano. Contudo, a investigação encontrou uma surpreendente indiferenciação entre os padrões de fortuna de federalistas e republicanos.17 Para o autor, o Partido Republicano “was in its core a party of urban intellectuals. But urban should not be construed here as meaning that these intellectuals, who had gone to the best universities Brazil had to offer, were opposed in principle to ranchers and to landowners. On the contrary, the most important among them – Júlio de Castilhos, Assis Brasil and Demétrio Ribeiro, for instance – were ranchers themselves. […] What distinguishes them from the Federalista cattle-raisers is that the Republicans were also professionals and intellectuals, and saw themselves as such. It is because they saw their identity, at least their political identity, in broad ideological terms that they were able to bridge the gap between landowners and the rising urban classes – merchants, small industrialists and bureaucrats, among others. Ultimately, loyalty to the party and to Republican ideas mattered more than social origins. This and the demands for political and economic democratization made republicanism compatible with urban aspirations” (BARETTA, p. 211). Também, comparativamente às lideranças federalistas, mais concentradas na região de Bagé e em alguns poucos municípios da Fronteira e apresentando vínculos familiares entre si, os republicanos talvez fossem entre si menos “parecidos” como grupo. O equivalente republicano ao cluster ‘vizinhança’ para os federalistas era o fato de que muitos haviam sido colegas na Faculdade de Direito de São Paulo: “Their common education and common ideological environment shaped their party in the same way as familiy and neighborhood ties shaped the Federalistas” (BARETTA, p.

17

Há que referir-se aqui ao problema da sobrerrepresentação da fortuna “legal” presente nos inventários, sobretudo no que tange às lideranças federalistas, geograficamente concentradas na região de fronteira com o Uruguai. Possivelmente, como de hábito na elite proprietária da região, parte das lideranças investigadas deveria possuir propriedades e ativos substanciais no país vizinho, o que evidentemente “desaparece” na análise dos inventários.

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210). Esta aproximação em virtude de uma formação comum pode ser percebida num levantamento pioneiro efetuado por Walter Spalding, onde, de 30 lideranças republicanas cuja formação profissional pôde ser identificada, 2/3 aparecem como tendo estudado na Faculdade de Direito de São Paulo. Ainda, o fato de mais da metade de um total de 37 líderes republicanos cuja idade pôde ser confirmada ter nascido no período 1855-1864 sugere o entendimento da adesão ao movimento republicano também por um viés geracional. Numa amostra de 69 altos funcionários (secretários de Estado, diretores, vice-diretores e chefes de seção) atuantes em três secretarias de Estado no período 1891-1930, reencontramos um perfil caracteristicamente urbano: 20 de 52 altos funcionários cuja localidade de nascimento foi possível recuperar eram originários da capital; de 48 funcionários com formação universitária, 22 eram formados em Direito, 11 em Engenharia e 7 eram médicos. Entre estes altos funcionários, o tempo médio de permanência em um cargo de secretário de Estado (na Secretaria do Interior e Exterior) foi de 6,8 anos; de um diretor geral, 5,6 anos; dos diretores da 1ª , 2ª e 3ª diretorias, respectivamente, de 5,5, 6,6 e 5 anos em média. Esta média elevada de permanência em um cargo de chefia aponta para uma possível estabilidade da carreira administrativa.18 Mas se os trabalhos que buscam investigar o perfil social das elites políticas regionais ainda são incipientes no Brasil, oferecendo à análise o conhecimento de apenas algumas poucas propriedades sociais das lideranças, no caso uruguaio há pelo menos uma grande investigação de tipo prosopográfico permitindo extrair significativos traços coletivos das direções batllistas. Referimo-nos ao estudo de José P. Barrán e de Benjamin Nahum

18

Dados de uma pesquisa em curso sobre o perfil prosopográfico das lideranças do Partido Republicano Rio-Grandense. Numa ampliação desta amostra, reunindo agora 392 funcionários das mais variadas atividades, nas três secretarias – excluindo apenas tarefas administrativamente pouco especializadas, como porteiros e estafetas – encontramos médias ainda mais elevadas: 8,4 anos na Secretaria do Interior e Exterior; 7 na Secretaria de Obras Públicas; e 9,8 na Secretaria da Fazenda, perfazendo uma média geral de 8,4 anos de dedicação ao serviço público. Se é possível que esse número não impressione se comparado a algumas longevas carreiras públicas verificadas durante a monarquia, o fato é que o quadro de ampliação acelerada de serviços e, portanto, de incorporação de novos funcionários sugere mais uma vez, face às médias assinaladas, uma situação de estabilidade de carreira destes funcionários.

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no terceiro tomo da obra Batlle, los estancieros y el Imperio Británico. Nahum e Barrán trabalharam sobre uma amostra de dirigentes batllistas organizada a partir de duas listagens originais: a primeira de 81 ministros, chefes políticos ou representantes eleitos ao Senado e à Câmara de Deputados e cujos mandatos tiveram duração de nove ou mais anos, entre 1905 e 1913; a segunda, de 24 dirigentes batllistas (altos funcionários, dirigentes de instituições autônomas e membros do serviço diplomático) ingressados na atividade pública entre 1911 e 1914 e com presença média no cargo de 5 anos cada. Do total de 105 dirigentes, os autores obtiveram dados biográficos19 para 66. Sobre o perfil obtido para este grupo, apontamos a seguir alguns traços gerais. Uma primeira constatação é a longevidade, logo a representatividade do grupo em questão, com 14 anos em média de atuação política como legisladores, chefes políticos, ministros e presidentes, entre 1879 e 1933. Por outro lado, destaca-se o caráter precoce de seu ingresso na vida política, com uma idade média de 36,5 anos ao incorporar-se ao grupo dirigente, idade que cai para 34,5 anos quando tomamos apenas o grupo que ingressou entre 1911 e 1915, período de maior avanço do processo reformista, o que permite sugerir uma associação entre juventude e radicalização reformista. Por outro lado, o caráter urbano do movimento é inegável: 68,5% dos líderes estudados haviam nascido em Montevidéu, isso quando a capital do país não chegava a representar 30% da população. Descontados aqueles nascidos em outros países, o interior uruguaio não contribuía com mais que 26,5% das lideranças batllistas. A elite batllista é também uma elite extremamente bem “escolarizada”, com 77,2% dos dirigentes incluídos na amostra possuindo título universitário. A Faculdade de Direito era a origem mais comum destas lideranças com formação superior: 59% dos dirigentes estudados formaram-se ali (o que corresponde a 76% de todas as

19

As 19 variáveis incluídas no estudo foram: ano de nascimento; idade ao ingressar na vida política; idade ao aderir ao batllismo; local de nascimento; nacionalidade dos pais; se foi dirigente estudantil; se realizou viagem de estudos à Europa; se o pai tinha atividade política; se possuía militância anticlerical notória; se buscou ingressar na Escola Elbio Fernández; número de anos de atividade política; se participou na Revolução do Quebracho; se participou do grupo colorado na guerra de 1904; se foi empregado público antes de assumir o cargo político; se teve emprego público posterior ao cargo; se possuía título universitário; se era jornalista; e, por fim, se era escritor profissional.

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lideranças com título universitário). Outros 7 dirigentes eram médicos (11%) e 5 engenheiros (8%) (NAHUM e BARRÁN, p. 101-102). Em relação à origem social das lideranças batllistas, Nahum e Barrán encontram 16 líderes – entre eles o próprio Batlle – filhos de dirigentes e homens de Estado do século XIX e que, enfim, eram membros do “patriciado”, “pertenecían a los estratos sociales superiores pero raramente a las clases economicamente altas” (NAHUM e BARRÁN, p. 98); outros 26% eram considerados de origem humilde, enquanto que 6% originavam-se nos estratos econômicos superiores do país; 17% eram filhos de imigrantes, o que sugere também a origem entre os estratos “humildes” ou médios da população; por fim, em 18 casos ou nos restantes 27% da amostra não foi possível indicar a condição social de origem das lideranças, embora a constatação de que existe entre eles uma esmagadora maioria de titulados universitários sugira também uma origem social nos setores médios. A origem imigrante é também um dado interessante, uma vez que sugere a presença de um componente socialmente includente na política uruguaia e, particularmente, nos meios batllistas, no início do século XX: 24 casos ou 36% do total descendiam de pai ou mãe (ou ambos) estrangeiro, enquanto 17 ou 24% eram confirmadamente filhos de pai e mãe uruguaios; os demais 25 não puderam ter identificada a origem dos pais, embora apresentem, em muitos casos, sobrenomes de origem claramente italiana. De qualquer forma, ainda que considerássemos apenas o percentual “seguro” de 36% de origem estrangeira, o dado é surpreendente se comparado ao caso brasileiro. Embora não tenhamos dados para o Rio Grande do Sul, o que constitui o foco de nosso interesse, dados disponíveis para outras regiões do país sugerem um contraste impressionante com a experiência de incorporação e ascensão de filhos da imigração no campo político no Brasil. Referimo-nos ao trabalho, empreendido por Joseph Love e Bert Barickman, de análise e nova tabulação de dados sobre três elites políticas regionais no período 1889-1937, logo contemporâneas à elite dirigente rio-grandense analisada neste artigo, e que haviam sido objeto de três estudos importantes20 realizados nos anos 1970: as elites de São Paulo, Minas Gerais e 20

Os estudos originais são as teses de doutoramento de WIRTH, John. Minas Gerais in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1977; LEVINE, Robert M. Pernambuco in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1978; e LOVE, Joseph L. São Paulo in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1980.

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Pernambuco. Nele, a partir de uma amostra de 753 ocupantes de altos cargos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, nos níveis nacional e regional, constata-se que “menos de 1% da elite política nasceu no estrangeiro, e apenas 4% tinha ao menos um dos pais nascidos no exterior”! E, completam os autores, “this is striking, given the mass immigration Brazil experienced in this period. Moreover, there was little difference among the states. Despite the fact that São Paulo received half of all Brazil’s immigrants for the period studied, its elite contained only one foreign-born member (N=239) – Miguel Costa, who accompanied his parents to Brazil from Argentina as a child” (LOVE e BARICKMAN, p. 9). Estes dados sugerem uma maior permeabilidade do campo político para as populações oriundas da imigração no caso uruguaio, bem como o acesso franqueado à vida pública para as classes subalternas ou setores médios, em clara dissonância com o que se passava no Brasil à época, onde o sistema partidário da Primeira República simplesmente inviabilizava o ingresso na vida política de candidatos situados fora das redes sociais dominantes em cada estado. Contudo, e embora não tenhamos dados produzidos para o caso do Rio Grande do Sul no que tange à incorporação das populações oriundas da imigração na cena política regional, acreditamos que, mesmo sem apresentar números semelhantes ao uruguaio, uma maior incidência de participação de populações de origem imigrante pode ter se verificado, sobretudo se levarmos em conta a intensa participação das regiões de imigração (Zona Colonial) nas disputas que marcaram a política regional “intraelites”, como a Revolução Federalista (1893-1895) e a Revolução de 1923.

Considerações finais Este artigo apresenta uma proposta arriscada, a de expor o caso da ação das elites governantes no Rio Grande do Sul tendo como pano de fundo a comparação entre duas realidades históricas e políticas de diferente escala: o próprio caso gaúcho, sob a República Velha, e o caso do Estado nacional uruguaio. A regra da cautela metodológica sugere não se misturar laranjas e maçãs, mas, face às flagrantes assimetrias sugeridas pela simples confrontação de um caso regional a outro nacional, impõe-se uma série impressionante de similitudes nas práticas e resultados obtidos ao longo

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dos períodos. As elites governantes em Montevidéu e Porto Alegre puseram ênfase no dirigismo econômico estatal e orientaram a ação pública num sentido não oligárquico, visando diversificar a base econômica e direcionar o investimento público a setores outros que a grande propriedade fundiária. Buscaram promover a incorporação de novos grupos sociais (como o proletariado urbano, por exemplo) e expandiram em número e qualidade as políticas sociais. Mesmo que os resultados não sejam completamente equivalentes, os aspectos comuns não podem ser ignorados: batllistas e republicanos castilhistas representaram, em certa medida, a manifestação, no sul da América do Sul, de uma tendência reformista “mundial” em curso nas primeiras décadas do século XX. De certa forma, a peculiar formação do federalismo brasileiro desde o declínio da presença militar no centro do poder republicano e da tomada de controle do núcleo do poder federal pelos representantes da elite paulista, a partir de 1894, associada à pactuação da política de governadores, garantiu um grau bastante amplo de autonomia às elites políticas regionais capazes de mobilizar recursos políticos – e este era o caso no Rio Grande do Sul. Prova disso, se necessário fosse, seria o fato de ter vigido no estado, durante quatro décadas, e em completo desacordo com a Constituição Federal brasileira, a carta constitucional “castilhista-positivista” do 14 de Julho de 189121. Assim, a elite republicana gaúcha pôde exercer, como elite regional, um poder normalmente exercido por governos nacionais, seja na estruturação de um complexo sistema fiscal regional e na formulação de políticas de proteção e estímulo a diferentes setores produtivos, seja, num registro menos nobre, na perseguição formal e institucional da oposição política. Se sugerimos que práticas intervencionistas e políticas reguladoras originam-se no ambiente político e intelectual vivenciado pelas elites políticas, como entender que a partir de circunstâncias políticas e intelectuais diferenciadas, como aquelas em curso no Uruguai e no Rio Grande do Sul, tenha sido possível o aparecimento de um modelo – em princípio – seme-

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Simbolismo da data à parte, o caráter algo jacobino da ação dos republicanos gaúchos, já analisado por Hélgio Trindade, aparece também entre os reformistas batllistas.

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lhante de intervenção pública e reforma social? Ora, o autoritarismo e o disciplinamento ideológico positivista das elites governantes gaúchas não se aproximavam do racionalismo krausista, em tudo uma experiência intelectual mais liberal e tolerante. Não obstante, nos dois casos as elites tiveram como estratégia a formulação de agendas públicas de desenho semelhante. É possível imaginar que não se trata aqui de uma simples coincidência: positivismo, krausismo, georgismo eram sistemas de ideias populares entre grupos letrados em fins do século XIX e veiculavam proposições coerentes com as necessidades de modernização e de incorporação social dos diferentes atores de um mundo urbano radicalmente novo e complexo. O Estado pensado pelas elites em análise é, oscilando-se dos matizes mais liberais aos mais autoritários, e na confluência das prédicas positivista e krausista, um Estado próximo, que intervém, provê, acolhe e planeja. Este Estado se tornara indispensável aos olhos de uma parte expressiva das elites intelectuais e políticas, emergentes e contemporâneas à fase de esgotamento das instituições liberais e oligárquicas de fins do século XIX. Mas talvez encontremos no timing dos processos uma diferença importante entre a experiência republicana rio-grandense e a experiência batllista. Assim, enquanto os resultados das políticas gestadas sob o batllismo se fizeram sentir na vida econômica e social uruguaia já nas primeiras décadas do século, com um extraodinário empuxe no conjunto da atividade econômica nacional e uma melhoria acentuada nos indicadores sociais – e isso sobretudo pelas maiores e melhores possibilidades de utilização de recursos que só uma administração nacional, não submetida a qualquer constrangimento jurídico-institucional superior, era capaz de mobilizar –, o mesmo não ocorreu no Rio Grande do Sul. No caso rio-grandense, os efeitos das políticas devem necessariamente ser analisados no longo prazo. Com efeito, apesar dos indicadores econômicos e sociais favoráveis, a vitalidade das políticas dos republicanos gaúchos só parece poder ser medida plenamente na perspectiva de seu sentido histórico: o Rio Grande do Sul castilhista e positivista não como um fim em si mesmo, mas como laboratório da era Vargas, como espaço de gestação de uma perspectiva intervencionista, centralizadora e reguladora que seria, a partir de 1930, estendida ao conjunto da federação e da sociedade brasileiras. Nas palavras de um historiador regional, “como administrador e como político, é fundamental vê-lo

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[a Vargas] como um representante típico do castilhismo” (FRANCO, 1993, p. 18). De fato, Vargas, que se lançara na política sob a proteção e o apadrinhamento de Borges de Medeiros, conhecia perfeitamente as possibilidades oferecidas a uma gestão de conflitos patrocinada pelo Estado e entendia como poucos as virtudes da centralização das políticas do Estado e da contenção forçada dos grupos de oposição. Nesse sentido, como se daria a transição do universo regional, logo restrito da experiência republicana sulina para esta sociedade que estava contribuindo para gerar? É sabido que, embora a adesão doutrinária dos dirigentes republicanos pudesse sugerir uma atitude de abertura e estímulo à intervenção em situações de desequilíbrio dos agentes produtivos ou de desarmonia social, a doutrina impunha, em certos casos, elementos restritivos ao desenvolvimento econômico “puxado” pelo Estado, como a ênfase dada à moralização e ao orçamento equilibrado. “Como instituição mais evoluída da sociedade, o Estado deveria dar o exemplo, não gastando demasiadamente, recorrendo o mínimo a empréstimos e seguindo à risca a norma das finanças sadias; ao contrair déficit ou recorrer a empréstimos, o Estado dava mau exemplo, ao gastar o que não era seu. E, ao priorizar determinados setores, regiões ou classes, feria seu princípio de Estado Neutro: em tese, não haveria por que dar crédito à indústria, por exemplo, sem que no mesmo montante fossem atendidos os anseios da agricultura” (FONSECA, 1988, p. 15). Estes princípios, embora seguidos pela elite dirigente republicana com empenho desigual, segundo circunstâncias históricas e conveniências políticas, permitem mostrar as dificuldades que a aplicação da doutrina acabava por oferecer ao desenvolvimento econômico. Mesmo que advogando maior intervenção sobre o mercado e sobre a sociedade, o positivismo, “apesar de representar a gênese do desenvolvimentismo”, apresentava limitações concretas ao desenvolvimento capitalista. Este necessitaria, para além de maior intervenção e planejamento, de “meios mais eficazes para consegui-lo”, como, por exemplo, através do fortalecimento da indústria face ao setor agrícola. “Ausência de crédito, orçamento equilibrado e Estado Neutro são propostas inconsistentes com qualquer projeto de crescimento capitalista a longo prazo.” Com a chegada de Vargas à chefia do Estado riograndense, em 1928, verifica-se uma inflexão na rigidez positivista em al-

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guns dos itens centrais da política econômica do governo borgista, a saber, o equilíbrio orçamentário, a questão do crédito e os empréstimos externos. “O saneamento financeiro como objetivo primordial do governo cederia espaço, mesmo que timidamente, à proposta de que a tarefa do Estado era promover o desenvolvimento econômico [...]” (FONSECA, 1988, p. 15-16) [grifo nosso]. Concluindo, enfatiza-se aqui que, desde sua ascensão ao poder, o governo Vargas incorporou à agenda pública uma perspectiva desenvolvimentista que, na sua origem, derivava da peculiar apropriação do positivismo comtiano no seio de uma elite política regional emergente, e isso num quadro de transição política nacional e de superação do modelo políticoadministrativo monárquico pela experiência republicana. Neste quadro, a reconfiguração do campo político regional, precipitada pela dinâmica do processo político nacional, desalojara a principal elite regional, hegemônica econômica e politicamente durante o Império – os proprietários/criadores da região da Campanha outrora reunidos no velho Partido Liberal –, e abrira caminho para um realinhamento de forças políticas em torno de um grupo de jovens lideranças republicanas não vinculadas àquelas tradicionais regiões. De certa forma, contrariamente ao mainstream do movimento republicano nacional, que herdara o caráter não conflitual das práticas políticas sob a monarquia e cuja transição para o liberalismo político de feição oligárquica se fizera de forma “natural” e suave, o republicanismo gaúcho, em contestação aberta por parte de uma elite com sólidos e históricos laços com o poder central e regional, buscou numa maior coesão e disciplina ideológica a chave para o enfrentamento e execução de seu projeto político. A política econômica dos republicanos rio-grandenses ganhou densidade e sua experiência ajudou a consolidar a posição estratégica do Estado gaúcho no concerto político nacional ao longo da Velha República. Ao incorporar esta experiência, uma vez na chefia do Estado brasileiro após a Revolução de outubro de 1930, Vargas reconhecia talvez melhor do que ninguém as virtudes do modelo regional e suas limitações.22 “[...] O desen22

“O sentimento de que as indústrias locais e o mercado interno mereciam prioridade e proteção se reavivaria toda vez que os positivistas se defrontassem com a questão abrangente do desenvolvimento nacional. [...] [O] discurso industrialista, com maior ou menor ênfase antiimperialista, só receberia acolhimento oficial ao longo do consulado getuliano [de Getúlio Vargas]

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volvimentismo nasceu em plena ‘república oligárquica’, ainda sob a hegemonia da burguesia agrária e comercial, e por influência do positivismo. Ao ganhar autonomia enquanto proposta de organização econômica e social, entretanto, romperia, mesmo paulatinamente, com alguns princípios básicos do positivismo.” Fomentando o crédito, ampliando a captação de empréstimos externos e mesmo chegando a aceitar a possibilidade de déficits, deixava-se em segundo plano a austeridade e lançava-se na busca do crescimento, negando-se, de certa forma, a própria prédica positivista. “Esta negação implicaria, em última instância, a consciência de que a economia capitalista diferia da economia mercantil, ou mesmo da economia doméstica: o desenvolvimentismo desde logo supunha capitalismo, embora não o explicitasse” (FONSECA, 1988, p. 18). Quadro comparativo Batllismo

Castilhismo/borgismo

Periodização

1903-1933

1889-1930

Líderes políticos

José Batlle y Ordoñez

Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros

Modelo socioeconômico dominante

Agroexportador pecuarista

Agroexportador pecuarista

Sistema de ideias

Krausismo/Liberalismo/Cientificismo Positivismo (não político)

Positivismo (político)

Forma de organização original

Aparece como facção do Partido Colorado Aparece como movimento republicano sob a monarquia para transformar-se depois no Partido Republicano Rio-Grandense

Possibilidade de dissidência Sim no partido governante

Não

Oposição política

Partido Nacional – Blancos

Partido Federalista

Episódios de violência política e guerra civil

Sim

Sim

Liberdade de imprensa

Sim

Sim, relativa

que foi incorporando, lenta e pragmaticamente, as sugestões aventadas pela ala marchante dos nossos empresários. O dirigismo estatal e o progressismo burguês encontrariam, a partir dos meados da década de 30, uma zona de intersecção de que ambos se beneficiariam. [...] [O] pendor industrializante dos homens de 30 era temperado por um respeito, igualmente comtiano, pelo ideal do equilíbrio orçamentário. [...] [A] práxis republicana no Rio Grande, ampliada pelo grupo que subiu ao poder na Revolução de Outubro, interferia no processo de acumulação da burguesia ora mediante instrumentos fiscais, tributando ou isentando, ora mais diretamente, pela encampação de redes de transportes segundo o lema da socialização dos serviços públicos” (BOSI, p. 292-294).

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HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista Vitória militar sobre a oposição

Guerra Civil (1904)

Revolução Federalista (1893-95) e Revolução de 1923

Possibilidade de livre competição eleitoral para a oposição

Não, na maior parte do período

Não, nunca

Sistema político dominante

Democracia representativa com exclusivismo colorado

Ditadura republicana

Perfil social dominante da equipe dirigente

Setores médios urbanos

Elites rurais “não centrais” e setores médios urbanos

Peso da imigração na origem das lideranças

Sim

Não

Perfil social das lideranças de oposição

Elites rurais

Elites rurais (majoritariamente da região da Campanha)

Relação com movimento operário

Incorporação/conciliação

Incorporação/conciliação

Intervenção e regulação social

Sim

Sim, mas limitada em função da legislação maior (federal)

Intervenção e regulação econômica

Sim, ampla

Sim, parcial

Instrumento mais comum em política econômica

Política fiscal

Política fiscal

Protecionismo econômico

Sim

Sim, mas limitado em função da legislação maior (federal)

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Poder, instituições e elites

Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina (Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande do Sul) Alba Cristina Couto dos Santos1 Marluza Marques Harres2 O cooperativismo constitui uma prática associativa com grande destaque nas sociedades latino-americanas. A tradição desse associativismo, formada ao longo de todo o século XX, tem revelado uma profunda capacidade de adaptação a diferentes contextos e crises. Dificilmente poderíamos falar de um modelo universal de cooperativismo, embora se possam encontrar, nas mais diversas experiências, um fundo comum, que pode ser traduzido nos ideais de um humanismo social que persiste orientando a prática desse associativismo. Existe uma pluralidade de estruturas e métodos, cujo desenvolvimento tem desafiado, de modo positivo e inovador, a preservação dos valores e princípios cooperativistas. Privilegiando valores como a democracia e a participação igualitária, o cooperativismo configura-se, ao mesmo tempo, como associação de pessoas e como empresa econômica, representando a construção de uma inserção diferenciada. Neste artigo, apresentamos os resultados parciais de uma pesquisa que viemos desenvolvendo nos últimos anos objetivando investigar e analisar comparativamente importante período do cooperativismo rural no Rio Grande do Sul (Brasil) e na Província de Buenos Aires (Argentina), abrangendo as décadas de 1950, 1960 e

Licenciada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2009/2) e mestranda em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2 Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande Sul. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 1

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SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

1970.3 Sistematizamos, no texto ora apresentado, alguns aspectos da trajetória do cooperativismo nos dois países, em especial a questão legal, a montagem da rede de cooperação, a interação com o Estado e a preocupação com a política cultural-educativa das cooperativas nas décadas destacadas acima. A abordagem comparativa, inspirada na perspectiva de Marc Bloch de buscar comparar sociedades próximas em termos espaciais e temporais, abertas a influências mútuas e sujeitas ao compartilhamento de traços de origens e condicionamentos comuns, amplia a capacidade de identificar e compreender o peso das particularidades e diferenças nos fenômenos estudados. Concordamos ainda com as colocações de Mancuso a respeito da existência de três pontos perceptíveis no estudo comparativo da História: o de contribuir para que o estudo histórico seja construído e através dele surjam novas questões para cada caso estudado, o resgate de relações que até então não eram identificadas e o auxílio para compreender as transformações dos espaços temporais (MANCUSO, 2005, p. 272).

Presença de imigrantes Na Argentina o cooperativismo, como experiência associativa, aparece já no século XIX, com os imigrantes europeus. No Brasil, encontramos, também no século XIX, a difusão do ideal cooperativista e algumas experiências pioneiras, mas somente no início do século XX temos registro das primeiras cooperativas agrárias, o que ocorreu em áreas de colonização alemã e italiana. A respeito da imigração, cabe destacar que, a partir do processo de independência, esses países passaram a receber de modo expressivo imigrantes de diversas partes da Europa. No Brasil, uma das políticas adotadas no que se refere à recepção de imigrantes foi a povoação das províncias do Sul, ou seja, as regiões fronteiriças e conflituosas do país. Este movimento ganhou força nas décadas de 1820 e 1830 e caracterizou-

3

Este texto apresenta resultados parciais da pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos intitulada “Cooperativismo Rural. Estudo comparado: o Rio Grande do Sul e a Província de Buenos Aires (1950-1970)”, realizada no período entre 2008 e 2010 por Marluza Marques Harres, com apoio dos bolsistas de iniciação científica Alba Cristina Couto dos Santos e André Ricardo de Andrade. A ele agradecemos pela leitura e sugestões apresentadas a este texto.

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Poder, instituições e elites

se como uma imigração centralizada, organizada e subsidiada pelo Estado; ou seja, os imigrantes receberam terras concedidas nas províncias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Na província de Buenos Aires, a promoção de uma política de colonização se deu no início da década de 1820, oferecendo terras e crédito aos imigrantes. Contudo, as colônias de imigrantes não floresceram na Argentina em função de dificuldades econômicas referentes à comercialização, ao tipo de terras, aos locais de instalação e ao tamanho das unidades de exploração. Segundo Fausto & Devoto (2004), nenhuma das colônias sobreviveu. A imigração espontânea teve mais sucesso e foi significativa para esse país. Desde 1810 estava estabelecida na Argentina, através da Primeira Junta de Governo, a liberdade de imigração, o que favoreceu a entrada de comerciantes europeus, ingleses e franceses, que se beneficiaram tanto das liberdades comerciais quanto do fim do monopólio colonial. A imigração europeia para a Argentina se intensificou a partir da década de 1830 por conta do vazio demográfico que as guerras de independência e civis deixaram no Litoral. Iniciou-se o povoamento em cidades e vilas da região, bem como em algumas zonas rurais, sobretudo do sul de Buenos Aires4. As cooperativas agrícolas passaram a integrar a lógica econômica, introduzidas, principalmente, pelos imigrantes; mas, com o tempo, passaram a ser instrumentalizadas pelos governos, o que aconteceu tanto na Argentina quanto no Brasil. Compreendemos cooperativa como “sociedades de pessoas, organizadas em bases democráticas, que visam não só a suprir seus membros de bens e serviços como também a realizar determinados programas educativos e sociais” (PINHO, 1965, p. 8). Como ideal de cooperação solidária, a prática cooperativista penetrou no Brasil nos finais do século XIX. Sua institucionalização estaria ligada aos problemas de abastecimento, provocados pelo crescimento dos centros urbanos e industriais. Surgiu como uma proposta para eliminar, mesmo que parcialmente, a crise, sendo apoiada primeiramente por grupos de produtores mercantis e, após a década de 30, pelo Estado. Segundo

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Ver mais sobre o estudo comparativo da população de Argentina e Brasil em: Fausto, Bóris; Devtoto, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 40-50.

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SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

Mendonça (2002, p. 17), desde 1910 um projeto de cooperativização agrícola já era defendido por quadros ligados ao Ministério da Agricultura, sem, contudo, redundar em medidas efetivas. O fato é que a presença e a experiência dos imigrantes alemães e italianos na região Sul e dos japoneses na região Sudeste ajudaram a consolidar o movimento, incialmente com completa independência em relação à estrutura estatal. Segundo os autores Lauschner & Lens (1969), o Rio Grande do Sul foi um dos estados do Brasil que mais contribuiu para o desenvolvimento do cooperativismo no Brasil, embora se encontrem experiências em outros estados já no final do século XIX.5 Especialmente em relação ao cooperativismo agrário, a experiência gaúcha foi decisiva, primeiro nas zonas de colonização alemã, com as “Caixas Raiffeisen”, e depois na zona italiana, com as primeiras cooperativas vinícolas. A introdução e difusão dessa forma de organização contaram com o apoio de algumas lideranças, como o Pe. Teodoro Amstad, cuja atuação se destacava na área de colonização alemã, e Stéfano Paternó, o grande mentor do cooperativismo na área de colonização italiana. Na Argentina, uma primeira experiência de busca de cooperação em bases associativas surgiu em 1898 no meio rural. Imigrantes franceses provenientes de Aveyron (França) se instalaram na localidade de Pigué, Província de Buenos Aires, onde decidiram criar uma sociedade que suprisse os danos causados pelo granizo nas plantações. Esta sociedade recebeu o nome de “El Progreso Agrícola” e, para muitos, não pode ser considerada uma cooperativa rural por excelência, pois seu objetivo era apenas assegurar um seguro à lavoura (IZQUIERDO, 1972). A Liga Agrícola Ganadera, fundada em 1904, em Junín, Província de Buenos Aires, representa integralmente uma cooperativa agrária, oferecendo aos associados diversos serviços relativos à qualificação da lavoura e comercialização das colheitas. As cooperativas fizeram com que os agricultores argentinos não dependessem mais dos armazéns de ramos gerais, pois ofereciam o que os produtores precisavam para seu trabalho e distribuíam a renda de forma justa, eliminando intermediários.

5

No ano de 1891 surgiu, em São Paulo, a Associação Cooperativista dos Empregados da Companhia Telefônica na cidade de Limeira, e, em 1895 foi fundada, em Pernambuco, a Cooperativa do Proletariado Industrial de Camaragibe.

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Poder, instituições e elites

A primeira comparação que estabelecemos diz respeito à forma como o cooperativismo foi criado nas duas regiões, na Província de Buenos Aires e no Estado do Rio Grande do Sul. Em ambas, foi fundamental a presença de imigrantes originários da Europa, sendo uma marcada por programas de colonização subsidiados e outra por forte presença de imigração espontânea. No Estado do Rio Grande do Sul, a marca da colonização permanece até hoje, e foi neste meio que o cooperativismo floresceu. Nesta encontramos a vontade e perseverança de lideranças, uma delas religiosa, movendo e fomentando o cooperativismo, enquanto na Argentina o que se destaca é a vontade coletiva, caracterizando um estilo e motivações diferentes.

Legislação e políticas públicas até 1949 O cooperativismo no Brasil surgiu sem um marco jurídico preexistente, e os primeiros decretos não afetaram a independência do movimento associativista que estava em andamento. A orientação legal da década de 1930 apresentou outras características, conformando efetivamente uma política estatal cooperativista, e o Decreto-lei nº 22.239 de 1932 tem sido reconhecido por muitos estudiosos como o marco jurídico do cooperativismo. Esta legislação se apresenta com um traço bastante paternalista, que comprometeu a autonomia das associações. O mérito principal deste Decreto foi definir as cooperativas como sociedades de pessoas e não de capitais, acrescentando tratar-se de uma forma jurídica sui generis. A Lei incorporou também, pela primeira vez, a figura do retorno das sobras proporcionalmente às operações, sem vinculá-lo ao capital. Para Pinho (1965), a promulgação da Lei de 1932 desfez confusões, até então frequentes, entre cooperativas e outras sociedades, como sindicatos. Entretanto, os dispositivos apresentam algumas falhas consideradas imperdoáveis, como “limitação do valor das quotas-partes de cada associado; quorum de funcionamento e deliberação das assembleias; indivisibilidade do fundo de reserva; e singularidade pessoal do voto” (LIMBERGER, 1982, p. 13). A década de 1930 é um período de grande relevância para o cooperativismo brasileiro, pois este passou a integrar a estratégia econômica e política do poder público para o campo. As cooperativas foram instrumento de desenvolvimento rural, especialmente no âmbito da pequena propriedade,

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organizando os produtores rurais e a sua produção, transferindo-lhes além do crédito e da renda, tecnologia para processar o produto e acelerar a industrialização no campo. Na Argentina, como já indicado, muitas cooperativas rurais surgiram nas primeiras décadas do século XX, inspiradas pelos ideais de Rochdale. Porém estas cooperativas rurais encontravam-se num estado de isolamento, representavam os sócios em determinadas localidades e raramente se relacionavam umas com as outras. Esta barreira seria quebrada com o surgimento das Federações, cooperativas de segundo grau que representavam pessoas jurídicas, ou seja, as cooperativas, e eram constituídas por determinadas categorias de cooperativas, podendo ser rurais, de seguros agrícolas e urbanas. As Federações rurais defendiam os interesses comuns entre as cooperativas associadas, representando-as diante dos poderes públicos, difundindo os ideais do cooperativismo, promovendo a educação, facilitando a exportação. A Federação pioneira no território argentino surgiu no ano de 1922, na localidade de Rosário, com o nome de Asociación de Cooperativas Rurales Zona Central. Inicialmente contou com dez cooperativas associadas nas Províncias de Santa Fe e Córdoba. Em 1927, esta Federação mudou seu nome para Asociación de Cooperativas Argentinas (ACA) e, em 1944, sua sede central foi transferida para a Província de Buenos Aires. Esta é, sem dúvida, a Federação com maior destaque no movimento cooperativista argentino, devido ao fato de acompanhar ativamente toda a evolução do cooperativismo rural argentino, Com o crescimento que o cooperativismo argentino alcançou, tornou-se importante normatizar nacionalmente o funcionamento das cooperativas. No dia 20 de dezembro de 1926, foi aprovada a Lei nacional nº 11.388 sobre o Regime Legal das Sociedades Cooperativas. Esta Lei possibilitou o reconhecimento do cooperativismo como uma organização democrática com finalidade socioeconômica. A Lei 11.388 também aceitou os princípios dos Pioneiros de Rochdale6 e expressou um forte sentido dou6

Os 28 tecelões em situação de greve e de demissão em massa começaram a esboçar, desde fins de 1843, o que em dezembro do ano seguinte se traduziria na cooperativa de consumo, que, na sobriedade operária, surgiu pequena e modesta, e desenvolveu-se ininterruptamente até nossos dias (SCHNEIDER, 1994, p. 10).

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trinário, destacando a neutralidade política, étnica e religiosa e o desenvolvimento da educação. Após esta lei ser sancionada, surgiram muitas outras federações e, com elas, o processo de difusão dos princípios de ajuda mútua e solidariedade entre os sócios que se tornaram valores culturais fortemente predominantes. No Rio Grande do Sul, o avanço das cooperativas foi crescente, mas somente na década de 1950 surgiram as primeiras Federações de Cooperativas Agrícolas, com o propósito de representação administrativa e econômica, ou seja, com as funções estabelecidas pela Associação Internacional de Cooperativas. As primeiras federações foram: a Federação das Cooperativas do Vinho do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOVINHO), em 1952; a Federação das Cooperativas de Arroz do Rio Grande do Sul (FEARROZ), em 1953; a Federação das Cooperativas Tritícolas do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOTRIGO), em 1958; a Federação das Cooperativas de Lã do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOLAN), em 1959; e a Federação das Cooperativas de Carnes do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOCARNE), no ano de 1969. Examinando os dois casos, fica claro que, na década de 1920, a Argentina já apresentava uma organização de cooperativas de segundo grau gerenciando os interesses agrários dos cooperados. Neste mesmo período, o cooperativismo no Brasil estava caminhando a passos lentos. Como destacado anteriormente, a primeira legislação que contribuiu definitivamente para o sistema cooperativo foi o Decreto-Lei de 1932, mas, ao mesmo tempo, feriu muitos dos princípios cooperativos. Em relação ao movimento de organização e ao respaldo jurídico observa-se um grande descompasso: o cooperativismo argentino estruturou-se bem antes do brasileiro. Outra diferença fundamental se refere aos princípios de autonomia e autogestão do cooperativismo argentino. O que se percebe na experiência do cooperativismo no Rio Grande do Sul é, incialmente, a presença e influência religiosa e, depois, uma forte intervenção do Estado, centralizando o poder administrativo e burocrático no Ministério da Agricultura.

Intervenção estatal, legislação e políticas públicas No Brasil, as normas legais para o cooperativismo sofreram várias alterações, dificultando a formulação e aplicação efetiva de uma política

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cooperativista. Este breve histórico legislativo serve para que entendamos as barreiras que o cooperativismo sul-rio-grandense enfrentou. Em 1933, o Decreto nº 23.611 revogou o Decreto de 1932 e trouxe consigo os chamados consórcios profissionais-cooperativos, ou seja, corporações sem comprometimento com as características básicas do cooperativismo. Em 1934, institui-se o cooperativismo sindicalista com o Decreto nº 24.647. Em 1938, o Decreto nº 581 revigorou o de 1932, assumindo, de alguma forma, a ortodoxia rochdaleana. A legislação de 1938 dispôs sobre o registro, fiscalização e assistência das cooperativas. Os registros seriam entregues no Ministério da Agricultura por duas razões: a primeira, por se tratar, na maioria dos casos, de cooperativas rurais; e a segunda, por ser este ministério o mais antigo e, por isto, o mais aparelhado. A década de 1940 avançou na preocupação com o crédito, sendo criada a Caixa de Crédito Cooperativo (CCC) por meio do Decreto-Lei nº 5893/1943, tempos depois transformada em Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC) através da Lei nº 1.412/1951. A tentativa de regulamentação e controle ampliou-se com o Conselho Nacional do Cooperativismo (CNC), criado por meio do Decreto nº 46. 438/1959. Este conselho ficou responsável pelo “estudo, recursos, consulta, articulação, interpretação, definição de princípios econômico-sociais e diretrizes técnico-doutrinárias e educativas, planejamento, difusão cultural, investigação socioeconômica e legal do cooperativismo brasileiro” (LIMBERGER, 1982, p. 20). A composição do Conselho era formada por representantes de diversos órgãos: Ministério da Agricultura, Ministério do Trabalho, Ministério da Indústria e Comércio; Ministério da Educação e Cultura; Ministério da Fazenda; Banco do Brasil, BNCC; Serviço Social Rural; Conselho Nacional de Estudos Cooperativos (CNEC) e União Nacional de Associações Cooperativas (UNASCO), que era uma entidade de representação nacional do cooperativismo criada em 1956. Na medida em que o governo aprofundava a política de cooperativização, fez-se necessário constituir formas de organização nacional das cooperativas, revelando-se logo as dissenções e rivalidades também nesse meio. Desde 1956, o movimento cooperativo era dividido em duas alas de representatividade nacional: União Nacional de Associações Cooperativas (UNASCO) e Associação Brasileira de Cooperativas (ABCOOP). Por con-

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ta das divergências internas das duas organizações, tornou-se difícil o atendimento tanto das necessidades das próprias cooperativas como das políticas econômicas do Estado que demandavam a participação das cooperativas. Em 02 de dezembro de 1969, no IV Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Belo Horizonte, foi criada a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Essa nova instituição surgiu como resultado da decisão do então governo militar de encerrar os desentendimentos internos das representantes nacionais do cooperativismo, correspondendo também à vontade dos cooperados, que se sentiam desassistidos. Com essa medida, o governo militar pôde: concentrar o poder e o controle do Estado sobre as cooperativas; inviabilizar as representações democráticas e a possibilidade de participação e decisão das sociedades cooperativas em sua estrutura de representação, ou seja, na OCB; usar os recursos públicos do cooperativismo numa estrutura superior controlada, sem beneficiar diretamente a autonomia das organizações de base, entre outras providências (FERREIRA, 2006, p. 01). No Regime Militar, a política de modernização agrícola encontrou dificuldade para manter-se. As cooperativas com expressividade estavam no campo e possibilitaram assim, o apoio necessário para o desenvolvimento dos planos econômicos. Com a implementação de um novo modelo político, a agricultura empresarial articulou-se com a indústria, imprimindo uma nova visão baseada no cultivo intensivo do solo, na utilização de insumos químicos e no emprego de máquinas industrializadas. Essa mudança na política para o campo teve impacto sobre o cooperativismo. O Decreto-Lei nº 59/1966 revogou expressamente nove instrumentos legais, considerados conquistas do movimento cooperativo, que até então estavam vigentes. Em meio à crise financeira aberta com a retirada brusca das isenções tributárias e a carência de recursos, as deficiências no quadro operacional das cooperativas apareceram de maneira mais expressiva, agravando as dificuldades. No exame desse contexto crítico são enfatizadas “a ausência de educação cooperativista dos associados e dirigentes e a falta de capacitação técnico-administrativa e empresarial dos dirigentes e técnicos” (LIMBERGER, 1982, p. 22). Lauschner & Lens (1969, p. 180) realizaram um estudo sobre esta crise. Dentre as 173 cooperativas canceladas durante o período 1960-1969,

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102 o foram nos últimos dois anos e meio. “Mostra tal fato o corte violento que foi feito no processo rápido de surgimento de cooperativas e a total inversão de tendência do processo, após a introdução do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Na Argentina, as relações do cooperativismo rural com o Estado ocorriam por meio da representação feita pelas federações e pela confederação. O cooperativismo rural argentino defendia a ideologia da não intervenção estatal, porém, durante o período estudado, manteve constantes relações com o Estado, visando à defesa dos seus interesses. Durante o governo do general Juan Domingo Perón, uma politica de sacrifícios para o setor rural resultou do I Plano Quinquenal de Governo (1947-1951), cuja principal fonte de financiamento vinha do Instituto Argentino de Promoción del Intercambio (IAPI). Esse órgão tinha como função intervir e controlar as importações e exportações realizadas pela Argentina, tomando parte direta nas transações de compra e venda dos produtos agropecuários, o que acabou gerando saldos positivos para o governo (LATTUADA, 1986, p. 86). O desenvolvimento veio com o Segundo Plano Quinquenal (19531957) na medida em que foram sendo aplicados múltiplos incentivos econômicos. De modo geral, o programa previa: uma política de colonização e de reordenamento do uso da terra; o aumento da mecanização para a produção agropecuária; a capacitação técnica para os produtores; a fixação antecipada dos preços visando a uma melhor remuneração para os agricultores; o fomento da indústria agropecuária regional, e preferentemente cooperativa, entre outras providências indicadas. Este Segundo Plano reservava um papel importante para o cooperativismo, estabelecendo como meta: “fomento especial para la organización cooperativa de los productores agropecuarios, las cuales deberán transformarse en las unidades básicas de la economía social-agraria, que progresivamente participarían de la colonización, comercialización interna e externa e industrialización de la producción agropecuária” ( LATUADA, 1986, p. 99). Perón também teve uma preocupação especial com o crédito, um grande aliado de sua política, alavancando o crescimento econômico no meio rural. Um dos principais agentes de crédito era o Banco de la Nación Argentina, que desde a década de 1930 já operava neste sistema. Em 1946, o

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Consejo Agrario Nacional passou a atuar juntamente com o Banco de la Nación, registrando, no mesmo ano, vínculo com 70% das 600 cooperativas agrárias que existiam na argentina (BLACHA, 2006, p. 29). A política adotada por Perón pretendeu atender a todos os segmentos, pequenos, médios e grandes produtores, por meio do crédito ágil e barato. Facilitou o acesso ao crédito para assistência técnica, introdução de máquinas agrícolas, novas ferramentas de trabalho e sementes para que os trabalhadores rurais pudessem produzir, acelerando, assim, o processo capitalista. Outro instrumento forte de poder que o presidente argentino utilizou foi o discurso, por meio do rádio, da televisão ou diretamente ao público. Nos discursos, Perón falava de uma sociedade ideal, uma nova Argentina que precisava da ajuda do produtor rural, e para isso seria fornecido todo o material de trabalho de que este precisasse. Para sensibilizar o setor rural, nos discursos o presidente procurava demonstrar os benefícios que sua política agrária trazia (LATTUADA, 1986, p. 92). Algumas federações, como a Asociación de Cooperativas Argentinas (ACA), conseguiram entrar no sistema de créditos fornecidos pelo Banco de la Nación. Visando ao incremento da venda de grãos das cooperativas sócias, a ACA pediu, no ano de 1950, a ampliação do crédito para financiar as operações de venda da produção dos associados para o Instituto Argentino de Promoción del Intercambio – IAPI (BLACHA, 2006, p. 33). Por meio da compra de grãos efetuada pelo IAPI, a ACA passou a ser a principal Federação de venda de grãos, como também efetuou uma espécie de troca de favores com o Estado. Enquanto o Estado fornecia crédito por intervenção de Perón, a ACA vendia seus produtos para o órgão autárquico. Em 1952, o Banco de la Nación passa a ter uma Gerência Departamental de Cooperativas, revelando a importância destas na política governamental, por um lado facilitando-lhes o crédito, mas por outro ampliando o controle sobre as mesmas, e incentivando inclusive o surgimento de novas agências representativas. Em março de 1950, autoridades nacionais e provinciais se reuniram na Primeira Conferência de Cooperativas Agrárias, ato que constituiu uma nova associação de cooperativas. Esta recebeu o nome de Asociación de Cooperativas Agrarias Bonaerenses e agia sob total intervenção do Estado, sendo beneficiada pelo mesmo. Segundo Mateo, “esta nueva federación se

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beneficia con la primera adjudicación de 125 máquinas agrícolas que llegan al país a mediados de 1950 y con envases necesarios para la cosecha”. Após saber deste fato, as duas maiores federações de cooperativas da Província de Buenos Aires, FACA e ACA, não permaneceram caladas e se manifestaram. A ACA afirmava não ter intenção nenhuma de estabelecer um conflito com o Estado, mas posicionou-se contra todo apoio que o governo ofereceu preferencialmente para a Asociación de Cooperativas Agrarias Bonaerenses, pois não considerava adequado o governo instalar uma outra entidade na mesma zona onde já funcionava uma deste gênero (MATEO, 2002, p. 12). Além disso, neste mesmo ano também foi fundada a Asociación de Cooperativas Agrarias Ltda. (ADCA), que também tinha sua sede na Província de Buenos Aires, possuindo um grande número de cooperativas filiadas. O principal objetivo desta federação era a produção de grãos dos seus associados. O crítico período do pós-guerra se configurou como um contexto de forte intervenção nos dois países. Os primeiros 40 anos de história do cooperativismo agrário argentino serviram para formar uma estrutura firmemente constituída, que seria um dos pontos de apoio da política agrária durante a presidência de Perón. O quadro de relações na Argentina guarda diferenças, pois já existia uma cooperativa de terceiro grau, uma Confederação Intercooperativas Agropecuárias que congregava a maioria de federações (PINHO, 1965, p. 74). Nas duas regiões, as políticas públicas demonstraram interesse em fomentar e articular com as cooperativas uma estratégia de ação econômica. Com décadas de crise e de apoio à industrialização, a atração pelas cidades cresceu significativamente, fazendo com que os governos federais também voltassem seus olhares para o campo, a fim de evitar o êxodo rural e assegurar o aumento da produção de bens agropecuários, especialmente para exportação.

Renovação na década de 1970 A Argentina teve uma importante mudança no início da década de 1970. No ano de 1971, a Secretaría de Estado de Agricultura y Ganadería passou a integrar o Ministério de Economía y Trabajo, estando o cooperativismo representado no Consejo Asesor de Política Agropecuária. Neste

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Conselho, o cooperativismo tinha a representação da CONINAGRO, que defendia os interesses dos produtores rurais e todo assunto que possuísse alguma relação com o movimento cooperativista rural argentino. Neste mesmo ano, foi criado, pela Lei 19.219, o Instituto Nacional de Acción Cooperativa (INAC), que passou a autorizar, controlar e fomentar as cooperativas naquele país. Em 1972, foi aprovada a Lei 19.550, que reformulava o regime das sociedades comerciais, de alguma forma presente desde 1889 no Código do Comércio. Esta lei teve relativa importância, pois criou um artigo onde estabelecia o cooperativismo como parte específica, uma sociedade que não visava a lucros. Percebendo a necessidade de criar uma nova lei nacional de cooperativas que reformulasse a antiga, o cooperativismo passou a organizar-se rapidamente e propôs uma nova lei no ano de 1973, que se concretizaria na Lei 20.337. Durante 47 anos, a Lei 11.388 foi um exemplo de doutrina do cooperativismo argentino, sendo uma iniciativa anterior ao caso brasileiro. Além disso, a nova Lei 20.337/73 manteve os princípios cooperativos proclamados anteriormente, detalhando, adaptando e renovando novos aspectos. O modo como o cooperativismo cresceu exigiu uma lei que se adaptasse a nova realidade do movimento. Nesta mesma época, no Brasil presenciaram-se mudanças e a criação de novos órgãos estatais, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no Decreto-Lei nº 1.110, que substituiu o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA). A regulamentação veio em 1971 pelo decreto nº 68.153. Este instituto era responsável pela fiscalização das cooperativas e por dar continuidade à política de cooperativas de reforma agrária iniciada pelas instituições IBRA e INDA. A reformulação da máquina estatal foi acentuada com o INCRA, introduzindo outro sentido para a reforma agrária. A fase de renovação da legislação cooperativa surgiu com a Lei nº 5.764, de 1971, a qual foi gestada com plena participação das próprias interessadas. Esta importante lei considerou muitos pontos problemáticos do Movimento Cooperativo Nacional referentes à estrutura econômica; à natureza associativa; ao cunho organizacional; à área operacional; aos meios e às cooperativas de caráter misto. Por essa lei, o Ministério da Agricultura determinou ao INCRA que promovesse um maior incentivo ao cooperati-

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vismo rural, pois o governo federal entendia que esta era a melhor forma de normalizar o abastecimento, reduzir os conflitos fundiários e promover o desenvolvimento agrícola. Para Perius (1994, p. 24), a lei carregava as marcas da interferência do Estado na vida das cooperativas, mas cabe também destacar que abriu as portas para a educação cooperativista ao destinar 5% das sobras líquidas das cooperativas para serem investidos em um Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social. Neste contexto, evidencia-se que, tanto na Argentina quanto no Brasil, obtiveram-se renovações nas estruturas cooperativas. No entanto, a intervenção estatal brasileira se fez mais presente que na Argentina, marcando o período de forte centralismo estatal.

Experiência com a juventude cooperada Na Argentina, o envolvimento da juventude nas cooperativas agrárias de primeiro grau foi frequente, o que ocorria de diversas formas. Já na década de 1930, encontram-se o incentivo e a fundação de clubes agrários, contando estes com apoio e orientação do conselho de administração da cooperativa. O trabalho realizado afirmava os valores culturais do cooperativismo, como solidariedade, ajuda mútua e participação responsável. A Associação de Cooperativas Argentinas (ACA) incentivava a formação de centros juvenis nas cooperativas primárias, para que os jovens pudessem desenvolver suas atividades regionalmente também. O incentivo à participação ativa dos jovens surgiu como uma forma de renovar a energia, aperfeiçoar e ampliar o movimento cooperativista. Em 20 de maio de 1944, partiram do interior da Argentina as delegações juvenis, conduzidas pelo presidente e membros do conselho administrativo desta Associação, para um Congresso Agrário em Olavarría, onde foram recebidas pela juventude agrária cooperativista local e por representantes de outros centros do sudeste e sudoeste de Buenos Aires. Tal congregação resultou na declaração de princípios das juventudes cooperativistas agrárias e no incentivo à institucionalização dos grupos juvenis em todas as cooperativas. Por meio da criação de um Consejo Central se tentou aglutinar as Juventudes Agrárias Cooperativistas (JAC) com o objetivo de capacitação e elevação da qualidade de vida no meio rural (MATEO, 2006, p. 69 e 70).

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A Escuela Cooperativa Móvil, fundada pela Asociación Cooperativa Argentina (ACA), passou a funcionar a partir de 1963, levando às cooperativas filiadas os princípios do cooperativismo. Itinerantes, instalavam-se nas dependências das cooperativas filiadas, ali permanecendo por uma semana, com uma equipe de profissionais qualificados ministrando cursos e palestras sobre o cooperativismo, sua organização, economia, contabilidade, legislação e comercialização (CRACOGNA, 1968, p. 119), além de abordar temas como a ecologia, a cooperativa frente à globalização, evolução de serviços, administração e como funciona a juventude agrária cooperativista. Muitos jovens, após a conclusão do curso, aderia à causa adotada pelo movimento militante cooperativista. El cooperativismo, por su doctrina y organización democrática, se transforma en un verdadero sistema socio-económico corrigiendo los abusos de los sistemas capitalistas y colectivistas y facilitando un mejor desarrollo de las relaciones de justicia e igualdad entre los hombres. El cooperativismo pretende crear así una nueva sociedad basada en el respecto mutuo y la democracia (ACA, 1984, p. 17).

A Escuela Cooperativa Móvil busca divulgar a filosofia cooperativista e formar pessoas aptas e capacitadas. Leva seus programas a distintos lugares do país, sejam povoados rurais ou cidades com estrutura urbana. Atua com os centros juvenis de cooperativas associadas, juntamente com a ACA. O ensino é aberto para jovens, estudantes e docentes do ensino primário, secundário e universitário, fornecendo conhecimento sobre a doutrina econômica e social cooperativa. Desde sua fundação, o movimento juvenil cooperativista argentino tem seu trabalho voltado para a difusão da cultura entre os trabalhadores rurais, demonstrando capacidade de informar os associados, promover a ajuda mútua, tornando o campo um espaço em que podem ser praticados valores coletivos e educação. No Rio Grande do Sul, este incentivo para uma educação cooperativa surgiu através de convênios entre os governos federal e estadual e as cooperativas. A primeira experiência foi a dos Clubes 4S (Saber, Sentir, Saúde e Servir). Este movimento juvenil iniciou no Brasil no ano de 1952, no Estado de Minas Gerais, através do apoio ao Serviço Público de Extensão Rural. No ano de 1956, o movimento surgiu em São Lourenço do Sul, no Estado do Rio Grande do Sul. O projeto de extensão rural foi o princi-

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pal patrocinador dos Clubes 4S e fundamenta as razões de criação destes clubes no estado. Sua filosofia é: “capacitar os jovens para a produção agrária competente e eficiente administração do lar”. Baseados no princípio “aprender fazendo”, os jovens do campo aprendiam novas técnicas de agropecuária; serviços domésticos; noções de saúde e de alimentação, além de desenvolverem o associativismo e o espírito de liderança (RIZZO, 1989, p. 34). Em 1959, foi firmado convênio entre a prefeitura de Porto Alegre, o governo do Estado, na ocasião sob o comando de Leonel Brizola, e a Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural – ASCAR.7 A sua finalidade era a execução de um amplo programa de extensão articulado com as entidades já existentes no município. A prefeitura comprometeu-se a cooperar financeiramente com as ações da ASCAR no campo: auxílio aos agricultores na organização e aproveitamento dos seus recursos naturais; orientação técnica; promoção do desenvolvimento comunitário; assistência econômica às famílias; incentivo à criação de clubes agrícolas juvenis 4S. Diante desta notícia, podemos perceber a expansão do programa e da implantação dos Clubes 4S, inclusive implantados na capital do estado, a fim de atender a sua zona rural. Segundo Rizzo (1989, p. 34), os objetivos principais destes clubes foram dar oportunidade ao jovem de conhecer e experimentar tecnologias agropecuárias de gerência, bem-estar social e administração do lar; viabilizar a participação da juventude em cursos profissionalizantes, dirigidos aos diversos setores da economia; desenvolver o espírito crítico, criativo e prático do jovem; e desenvolver o espírito associativo e de liderança comunitária. Os clubes recebiam apoio das cooperativas associadas, por meio do fornecimento de insumos e da comercialização de sua produção. A assistência técnica lhes era proporcionada pelos extensionistas rurais (engenheiros, agrônomos e técnicos), e tinham acesso aos meios de comunicação através da igreja local. O Estado do Rio Grande do Sul recebeu também o projeto-piloto denominado Centro Cooperativo de Treinamento Agrícola (CCTA). Este projeto foi apresentado em 1954, no III Congresso Nacional dos Municípios,

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Correio do Povo, Porto Alegre, 3/01/59, p. 7.

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em forma de tese, pelo engenheiro agrônomo Francisco Gago Lourenço Filho. Após esta experiência, criou-se um CCTA para todo o país, mostrando que a estrutura do Centro era eficaz no atendimento ao jovem filho de agricultor. Os CCTA provocaram o interesse das Caixas Rurais, prefeituras e comunidades que almejavam a instalação dos centros em seus municípios. Em 1958, a notícia intitulada “Novos Centros Cooperativos de Treinamento Agrícola” indicava a implantação do CCTA no estado, que deveria responder pela intensificação da educação rural, conforme projeto do Conselho Nacional de Educação Rural (CNER). O objetivo do CNER era treinar os jovens filhos de agricultores, sob o regime cooperativista, em técnicas agrícolas e pecuárias para despertar-lhes e firmar o interesse pelo meio onde viviam, evitando o êxodo rural.8 As cidades do Rio Grande do Sul que ganharam o CCTA com o auxílio das Caixas Rurais foram: Dois Irmãos e Cerro (1959); São Francisco de Assis e Panambi (1960) e Júlio de Castilhos (1961). No ano de 1965, um novo acordo foi firmado entre o Ministério da Educação e Cultura, juntamente com o Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário (INDA), e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, representado pelo Instituto Gaúcho de Reforma Agrária e pela Secretaria da Educação e Cultura, buscando a reformulação e dinamização dos CCTAs. Entre os objetivos constavam: (1) Melhorar a adaptação do homem ao meio rural, organizar um plano que tivesse atividades práticas agrícolas e zootécnicas, desenvolver um programa entrosado no trabalho do campo, sempre com práticas, tentando civilizar o homem e o meio e elevá-lo cultural e economicamente. (2) O regime cooperativista pretendia dar capacitação profissional aos jovens filhos de agricultores e criadores, ou ainda àqueles que tinham uma tradição no meio rural. Sempre perseguindo os objetivos, capacitá-los a melhorar tecnicamente os métodos de produção e criação. Além deste treinamento, dar ensinamentos e assistência aos adultos, cursos rápidos para moças e esposas de agricultores nas lides domésticas. (3) Os centros tinham ainda como objetivo orientar a energia e a inspiração criadora dos jovens, em favor de suas comunidades, renovando-lhes as condições

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Correio do Povo, Suplemento Correio Rural, Porto Alegre, 19/09/1958, p. 19.

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gerais, individuais e sociais, despertando no jovem a capacidade de liderança, para que desenvolvesse a comunidade rural a que pertencesse, de modo a integrá-la no desenvolvimento rural brasileiro (CORRÊA, 1969, p. 155). Em primeiro lugar, fica clara a pretensão do CCTA de evitar o êxodo rural destes jovens através dos estudos, fazendo com que eles se sentissem integrados na comunidade rural e no país. Além disso, estimulava o desenvolvimento da região a que pertencessem, através da viabilização das técnicas agrícolas. E mais, não podemos deixar de destacar a importância destes centros na divulgação do sistema cooperativo através da educação; mesmo que visassem no primeiro momento à promoção financeira dos envolvidos, desenvolvia também a capacidade de liderança e decisão do jovem cooperativado, exercitando a democracia e autogestão. O processo educativo se dava por meio de três modalidades de treinamento. No Treinamento Integral, o jovem passava por todas as atividades do projeto, principalmente, as que se apresentavam relacionadas com a cultura e criação da região. Daí a importância das atividades serem significativas para a região. Deveriam ter idade entre 15 e 20 anos, com instrução mínima da quinta série do Ensino Fundamental. No Treinamento em Atividades Específicas, o jovem permanecia no centro somente o tempo necessário (não ultrapassava três meses) para adquirir conhecimentos técnicos e práticos sobre aquilo que queria aprender especificamente. Durante a sua permanência no CCTAs, poderia receber e executar tarefas, cooperar em outros projetos, conforme sua capacidade e interesse. Por fim, havia o Treinamento em Atividades Restritas. Este treinamento não era direcionado somente para jovens. Por ser intenso e de curta duração (cinco dias), servia também para os agricultores e suas esposas, dependendo do curso. Além dos Treinamentos, participavam de outras atividades educacionais: realizando encontros educacionais informais com os agricultores, para discutirem problemas da região, transmitiam-se informações técnicas e tantos outros assuntos que interessavam ao meio. Dentre eles estava o cooperativismo. Participavam desses encontros os técnicos, assistentes sociais, educadoras sanitárias, técnicas em nutrição e técnicas em recreação. Desta forma, o jovem se instruía e vivenciava a realidade de uma cooperativa educacional, desenvolvendo um relacionamento íntimo com o sistema cooperativista.

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Poder, instituições e elites É através da educação cooperativista e pela experiência que adquirem na prática de uma entidade deste tipo, como sócio ou como membro de sua diretoria, que preparamos os jovens para o futuro, organizando os produtores de sua zona a juntos promoverem a defesa de seus interesses (CORRÊA, 1969, p. 160).

Encontramos a presença da igreja através da Frente Agrária Gaúcha (FAG), a partir de 1968, fomentando a educação juvenil e associativa no meio rural. Outras iniciativas surgiram na década de 1970, iniciativas de algumas cooperativas isoladas, como da Cooperativa Agropecuária Alto Uruguai (COTRIMAIO), que passou a realizar cursos de formação voltados para os jovens a partir de 1979. A Cooperativa Tritícola de Panambi Ltda. (COTRIPAL), em conjunto com a Secretaria Municipal de Ensino e Cultura, desenvolveu um programa de educação nas escolas – entre as disciplinas estava o cooperativismo – nos municípios de Panambi, Pejuçara e Condor.9 No Encontro Gaúcho de 1978, chamava-se a atenção para as motivações externas que conduziam o movimento cooperativista gaúcho, necessitando, assim, reforçar o caráter solidário e integrado do sistema. O fortalecimento e autonomia do Movimento Cooperativista só se darão, portanto, a partir de um processo de desenvolvimento dos recursos humanos em consonância com tais objetivos, considerando-se não apenas os quadros diretivo e funcional, mas também o corpo associativo, como recursos humanos a serem permanentemente desenvolvidos em número e qualidade crescente (MARQUES, 1978, p. 1).

Mesmo nos movimentos culturais e doutrinários, percebe-se a forte intervenção do Estado no Brasil, sendo muitas vezes o fomentador da educação nas cooperativas em âmbito regional. Na Argentina, esta iniciativa coube às Federações, que, muito cedo, na década 1940, passaram a investir em programas de educação voltados para os jovens do campo. A educação permanente para os recursos humanos revigora o sistema frente às necessidades cambiantes da realidade, o que não acontece com os treinamentos esporádicos de técnicas e mecanismos de desenvolvimento. Não evidenciamos no Brasil uma declaração de princípios da juventude, como aconteceu na Argentina. A preocupação com os jovens, desde o

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Para saber mais sobre a presença da juventude e as experiências cooperativas, ver: Vânia Rizzo, 1989.

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primeiro momento, era com a contenção do êxodo rural, estimulando, assim, a educação, o conhecimento e o bem-estar no meio rural. Já na Argentina, este trabalho foi direcionado para o ensinamento e fortalecimento do sistema cooperativo.

Considerações finais Tanto no Rio Grande do Sul como na Argentina, as origens do cooperativismo remontam ao final do século XIX e vinculam-se às experiências trazidas pelos imigrantes europeus. Para a Argentina, “el crecimiento del número de cooperativas fue progresivo en todo el país, especialmente en la región central, y tuvo su momento de mayor expansión entre mediados de la década de 1940 y 1950.”10 Entretanto, um exame do número de associados revela uma forte expansão do cooperativismo até o início dos anos de 1970. Algumas associações foram particularmente importantes no desenvolvimento do movimento cooperativo argentino, como Agricultores Federados Argentinos, criada em 1932 por iniciativa da Federação Agrária Argentina, que impulsionou, a partir dos anos de 1950, a criação de Centros Cooperativos Primários em diversas localidades, incluindo o norte de Buenos Aires. A Federação Agrária Argentina estimulou a criação, em 1947, da Federação Argentina de Cooperativas Agrárias (FACA), que chegou à década de 1970 como a mais importante empresa cooperativa de comercialização de grãos do país. A Associação de Cooperativas Argentinas (ACA) foi a primeira cooperativa das cooperativas agrárias que funcionou neste país, estando em funcionamento na atualidade. Para o Rio Grande do Sul, os períodos de destaque pela expansão expressiva das cooperativas e federações de cooperativas são as décadas de 1950 e 1970. Segundo José Odelso Schneider, em 1961 eram apenas três as Cooperativas Centrais, chegando a sete em 1978. Quanto às Federações de Cooperativas, havia cinco em 1961, num total de 11 em todo o país, e oito em 1981, com destaque, no âmbito rural, para a FECOTRIGO, FECOVI-

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LATTUADA, Mario. El cooperativismo agrário ante la globalización. Buenos Aires: Siglo XXI, 2004. p. 25.

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NHO, FEARROZ, FECOLÃ, FECOERGS, FECOCARNE. No Rio Grande do Sul, a propaganda e a cultura do associativismo cooperativo encontraram outras formas de difusão, como o sindicalismo rural influenciado pela igreja e também os movimentos sociais rurais, que foram os grandes estimuladores e orientadores para a organização dos pequenos e médios produtores rurais em cooperativas. Talvez seja pertinente examinarmos, para o caso gaúcho, os incentivos e a contribuição representada pelas orientações e promoções destas outras associações para a formação de uma cultura cooperativa. Nas duas regiões, Província de Buenos Aires e Rio Grande do Sul, o cooperativismo foi um importante fator para o desenvolvimento econômico, responsável pela integração dos produtores rurais nos moldes de produção capitalista, embora sem perder, pelo menos em termos de princípios, a percepção da capacidade alternativa oferecida por esse sistema de produção e relação comercial. A organização cooperativa, especialmente quando pensamos nos pequenos e médios produtores, abriu canais para o diálogo com o poder público, estabelecendo novas formas para negociações e representações de interesses. Talvez na atenção à educação, especialmente na Argentina – em mãos da própria rede de cooperativas e organizada operacionalmente no âmbito do sistema cooperativo agrário –, ainda tenham permanecido vivos muitos dos princípios inspiradores do cooperativismo, no sentido de buscar construir outras relações econômicas. Isso não impediu, entretanto, a estruturação de um sistema agrário cooperativo aberto ao mundo dos grandes negócios, atuando e funcionando na lógica do capitalismo Neste sentido, a estruturação do cooperativismo rural nas duas regiões em nada diferiu. Em relação ao Rio Grande do Sul, há que aprofundar a reflexão sobre o que exatamente significava a diferença, em termos doutrinários, representada pela influência do catolicismo que caracterizou parte expressiva da experiência cooperativista no estado sulino.

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Referências bibliográficas ACA. Escuela Cooperativa Movil. Asociación de Cooperativas Argentinas. Buenos Aires: ACA, 1984. ACA JUVENTUDES. Escuela Móvil. Disponível em: www.acajovenes.com.ar/escmovil.htm>. Acesso em: 29 maio 2008.

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