Poder simbólico alternativo e identidade étnica no Brasil: estudo do Instituto do Negro Padre Batista na sua luta pelos direitos de igualdade racial

June 13, 2017 | Autor: Bas' Ilele Malomalo | Categoria: População Negra
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Poder simbólico alternativo e identidade étnica no Brasil: estudo do Instituto do Negro Padre Batista na sua luta pelos direitos de igualdade racial1 Bas´Ilele Malomalo2

Palavra-chave: Hibridismo, Religião, Política, Identidade étnica negra

Resumo Esse trabalho faz parte dos estudos das ciências sociais que procuram analisar as relações existentes entre o campo religioso afro-católico e o campo político brasileiro na recomposição das identidades étnicas. É um estudo de caso. Investiga o Instituto do Negro Padre Batista (INPB). Este é uma organização não governamental (ONG) negra de São Paulo que faz parte do movimento eclesial afro-católico da década de 1980, foi fundado pelo falecido Padre Batista em 1987 para atender às demandas dos afro-descendentes. Esse estudo apropria-se da teoria da etnicidade, que ele mesmo constrói a partir do diálogo estabelecido entre a sociologia dos sistemas simbólicos de Bourdieu com outras teorias das ciências sociais, entre outras a sociologia das relações raciais, do rito, dos movimentos sociais, e da pesquisa de campo para analisar de que forma o INPB produz e reproduz a identidade étnica de seus membros e parceiros em termos de direitos de igualdade racial. Definindo, assim, o seu objeto de estudo, o INPB, como uma ONG negra híbrida.

1 Publicado em : MALOMALO, B. . Poder simbólico alternativo e identidade étnica: um estudo do Instituto do Negro Padre Batista.. Religião e Cultura (PUCSP), v. V, p. 63-74, 2006. 2

Mestre em Ciências da Religião, Área de concentração Ciências sociais e religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Membro e pesquisador do Grupo Atabaque – Cultura Negra e Teologia e Pesquisador Associado do NUPE-UNESP.

2 Introdução “O poder simbólico alternativo e identidade étnica: estudo do Instituto do Negro Padre Batista na sua luta pelos direitos de igualdade racial” é o título dado a nossa dissertação de mestrado apresentada no dia 17 de agosto de 2005 na Universidade Metodista de São Paulo. Essa temática faz parte dos estudos das Ciências Sociais denominados Estudos das relações raciais que procuram compreender as relações que se estabelecem entre o campo da religião e o campo da política.

Foram dois anos de pesquisa teórica e de campo, investigando a forma pela qual o movimento negro, através de suas organizações não governamentais (ONGs), no âmbito da sociedade civil e eclesial, tem construído a identidade étnica dos negros no Brasil. Para analisar as relações entre a raça, a religião e a política, o Instituto do Negro Padre Batista (INPB) foi escolhido como objeto de estudo de caso, transfigurado em o campo de análise.

O procedimento analítico adotado nessa pesquisa é o que Pierre Bourdieu (1990) chama, para a investigação do campo social, de “método genético-histórico”, ou o que Maria da Glória Gonh (2000), para a análise dos movimentos sociais, denomina de “método histórico-estrutural”, que consiste em estabelecer a história social do objeto de investigação e analisar as relações estruturais entre os diferentes agentes, atores sociais envolvidos num determinado espaço social. Esse trabalho contou também com a pesquisa de campo, empregando as técnicas de coleta de dados que possibilitaram reunir os materiais tais como revistas, jornais, boletins, panfletos, folderes, produzidos pelo movimento negro, pelo INPB e pelas outras organizações sociais não negras. Usou-se também da observação participativa parcial,

3 realizando entrevistas semi-abertas com os membros, os clientes e os parceiros do INPB. Tudo isso permitiu-nos ter uma idéia bem ampla sobre a maneira como o movimento negro paulistano, representado pelo INPB, produz e reproduz o poder simbólico, a identidade étnica negra, que implica as questões de direitos de igualdade racial no Brasil.

1. Campo da etnicidade

O diálogo estabelecido entre as propostas teóricas escolhidas, levou-nos a construir o quadro teórico-metodológico dessa pesquisa que batizamos de “campo da etnicidade”. O conceito campo é da sociologia de Pierre Bourdieu (2002). Significa que cada campo é uma estrutura social, é um espaço social de luta pela monopolização do poder simbólico. Já o conceito de “etnicidade” inspirou-se da antropologia de Karl Barth (1998). Remete às formas de organizações sociais, políticas, culturais que os grupos humanos elaboram para manter as fronteiras de suas identidades étnicas. Portanto, esse estudo se apoio também nos Estudos das relações raciais praticada no Brasil (Nogueira, 1989; Ianni, 2004). As organizações sociais estudados por nós são aquelas que surgiram entre os anos 80 e 90 chamados de novos movimentos sociais, os “movimentos sociais de combate ao racismo” (Silva, 2003), especificamente falando de ONGs negras chamadas por Franklin Ferreira (2000) de “Negrongs”. Estas organizações sociais são agências de (re) produção de poder simbólico alternativo, isto é, de uma força social não hegemônica que os grupos excluídos fabricam para manter suas identidades étnicas (Santos, 2003). Trata-se de reivindicação de direitos de ter acesso aos bens sociais, aos capitais econômico, político, cultural, social e simbólico, aos direitos da cidadania (Vieira, 2001). Portanto, a luta pelo poder simbólico alternativo travada pelas ONGs negras é uma luta pelo reconhecimento da identidade negra, da cidadania emancipatória negra.

4 Para Jacques D´Adesky (2001), há três tipos de organizações sociais que formam o movimento negro brasileiro: as organizações políticas, culturais e religiosas. O ponto comum entre as ONGs negras é o reconhecimento de sua origem comum, a ancestralidade africana e a sua missão na luta contra o racismo. Deve se dizer que essa divisão é típicoideal, porque na realidade sabe-se que há organizações sociais, mesmo no movimento negro que não podem ser classificadas em nenhuma dessas tipologias. São as organizações sociais que nós denominamos de “híbridas”, “mistas” ou “sincréticas”. O INPB é umas delas. Estas são organizações sociais que possuem ideologias e estruturas mistas. Portanto, os ritos, entendidos como práticas sociais, que elas executam misturam o sagrado com profano, o religioso com o secular. São práticas híbridas (Hall, 2004), sincréticas (Sanchis, 1999), marcadas pela ambigüidade, pela “dupla verdade” do profano/sagrado, econômico/nãoeconômico, nos seus discursos e ritos. É o que Albert Piette (1993) identificou como “religiosidades seculares”, ou Claude Rivière (1989) chamou de “liturgias políticas”. A finalidade desses ritos mistos é reivindicar os direitos culturais, religiosos, econômicos e políticos de seus membros, identificados como negros brasileiros. A FP36 é um exemplo das trocas simbólicas entre a liderança política negra do Partido dos Trabalhadores (PT) de São Paulo e o presidente do INPB que é ao mesmo tempo padre católico negro e coordenador da Pastoral Afro-Brasileira (PAB).

5 (FP36) O deputado Sebastião Arcanjo (PT/SP) e o padre José Enes, IV COEENC, São Paulo, 12 e 13 de julho de 20043.

A luta pelos direitos culturais faz parte da luta pelos direitos humanos. Para Joaquim Herrera Flores (2002), os direitos humanos, no mundo contemporâneo, necessitam dessa visão complexa, dessa racionalidade de resistência e dessas práticas interculturais, nômades e híbridas, para superar os resultados universalistas e particularistas, insistindo, excludentes, que impedem uma análise comprometida dos direitos. As práticas culturais híbridas, religiosas e políticas, executadas pelos grupos sociais, chamados de minorias, movimentos de mulheres, de negros, são ações pro-direitos humanos, com suas bandeiras de direitos reprodutivos, direitos de igualdade racial, que visam a reprodução e manutenção de suas identidades. Essas práticas interculturais são, como afirma Herrera (2002), processos dinâmicos que permitem a abertura, a consolidação e a garantia de espaços de luta, pela particular manifestação da dignidade humana. De fato, as práticas sociais mistas, religiosas e político-jurídicas constituintes do habitus institucional do INPB, tais como abordadas nessa pesquisa, estão na ótica das lutas pelos direitos humanos, pela dignidade humana e pela paz (CONIC, 2003; Novaes, 2001). Estas são vistas como resultados do “saber local”, da política da negociação das diferenças travada pelo movimento negro numa sociedade racista como o Brasil. As reflexões de Hédio Silva Junior (1998; 2002) foram as principais em que essa investigação se fundamentou para entender as conquistas do movimento negro pelos direitos de igualdade racial.

O Brasil, nessa pesquisa, foi encarado como um campo multicultural, uma sociedade multirracial, que funciona como um mercado no qual a distribuição dos bens

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Os documentos desse texto serão reproduzidos conforme a nossa dissertação de mestrado: Fonte Primária (FP) e Fonte Secundária (FS) seguidas de um número em algarismo árabe (por exemplo, FP36).

6 sociais e das raças se fundamenta na desigualdade histórica (Sorj, 2000). O ser branco nela é uma nobreza4, privilégio, enquanto que a identidade negra é carregada pelos seus portadores como angústia (Bastide, 1975).

Para superar a hegemonia da ideologia dos

brancos, as ONGs negras (D`Adesky, 2001; Ferreira, 2000) elaboram estratégias de luta contra o racismo, usando-se da política e da religião, como instrumentos simbólicos para (re) produzir a identidade étnica negra, isto é, o poder simbólico alternativo. Esse é a magia social realizada pelas ONGs negras cujo INPB serviu de campo particular de estudo.

2. Gênese e estrutura da produção da etnicidade no INPB

A análise genético-estrutural aplicada sobre o INPB comprovou que a identidade dessa ONG é híbrida. Em outras palavras, a ideologia e a estrutura do INPB são mistas, são compostas de elementos sagrados e profanos, religiosos e seculares. As razões dessa sua “realidade dupla”, “sincrética”, se relacionam ao contexto sociopolítico do surgimento do seu “mito fundante”. São as mudanças sociais, culturais, religiosas e políticas dos anos 70 e 80, que influenciaram o movimento negro civil e eclesial, que deram também origem ao INPB em 1987. O seu fundador, padre Batista (FP27), como militante do movimento negro eclesial, é filho dessa época. Como sacerdote, o seu ativismo eclesial tem muito a ver com as aplicações do Vaticano II (1962-1965) na América Latina através das conferências de Medellín (1968) e Puebla (979), e a luta do movimento negro contra a (re) produção dos racismos de classe, de gênero e de cor no Brasil contemporâneo.

Uma das características dos movimentos populares, que nasceram nos anos 70 e 80 no Brasil, é o seu hibridismo, isto é, a sua tendência/prática de misturar a religião e a

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Fazendo alusão a idéia de Bourdieu (2003) sobre a nobreza da masculinidade na sociedade cabila.

7 política.

É dessa forma que o carisma do padre Batista é visto como poder simbólico

híbrido que deu também nascimento a uma instituição híbrida em 1987. Pois, o seu carisma é duplamente religioso e político. O INPB é fruto da biografia do seu fundar, que como menor em situação de risco na rua e padre, enfrentou a miséria e o racismo institucional da policia e dos membros da Igreja. Por isso a missão do INPB é inserir social, econômica e politicamente o negro na sociedade nacional. Esse foi o sonho do seu fundador e continua sendo o de seus seguidores.

(FP27) Foto de Padre Batista na primeira missa de ordenação sacerdotal, São Paulo, 22 de abril de 1984.

A hibridade do INPB se verifica também ao analisar a sua estrutura, quando recorremos, primeiro, às práticas que denominamos de ritos históricos (Jornada do Menor, Dia da Criança Negra)5 e aos projetos sociais (Projeto Menina Mãe, Projeto de Bolsas etc). Esses ritos e projetos, nos tempos primórdios do INPB, eram ligados às atividades da Pastoral do Negro que era mais conhecida como Agentes de Pastoral Negros (APNs, fundado em 1983). O nome civil dos APNs era Quilombo Central. Em 1996, o movimento negro eclesial foi cooptado e institucionalizado pela CNBB, sendo batizado com o nome da PAB. Em 2002, com a implementação do escritório da PAB em São Paulo e com a publicação do documento eclesiástico da CNBB sobre a PAB (CNBB, 2002), o processo da

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A Jornada do Menor chamada também de Jornada da Juventude Negra são encontros pastorais organizados pelo padre Batista e seus colaboradores entre os anos 88 e 89 que reuniam as crianças negras e suas famílias; hoje ora o INPB ora a Pastoral Afro-Brasileira procura resgatá-la com o nome de Dia da Criança Negra.

8 autonomia entre o INPB e INPB se radicaliza tanto nos territórios regionais que nacional. Mesmo assim, deve se dizer que o hibridismo é uma realidade que ainda estrutura os ritos e os projetos do INPB e da PAB.

(FP29) Membros da equipe da diretória do INPB. Canto superior esquerda: Lucilene Virmo, Márcia Miranda, Dr. Lino Pinheiro, Dra. Paola Almeida, Dra. Rose, Jaqueline (Procuradoria do Estado), Dra. Andréa, Dra. Paola Martins. Canto inferior esquerdo: Pe. Enes, Dr. Sinvaldo, Dra. Maria, Dra. Maria da Penha.

Apesar das mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir dos anos 80 e 90 que tiveram impactos sérios na organização das organizações sociais6, a análise do estatuto de 1987, revisado em 2001, revela que a estrutura do INPB continua sendo híbrida: seus funcionários (FP29), (re) produtores da etnicidade, são, de fato, agentes mistos. Encontramse, na equipe do INPB, os especialistas do sagrado, os padres e leigos católicos e os especialistas do profano, os advogados católicos e não católicos. Predomina no INPB a diversidade religiosa do que racial. Essa predominância é católica, apesar de encontrar nele uma advogada candomblecista e uma outra evangélica da Igreja Universal de Reino de Deus.

Mesmo com as alterações que houve no estatuto social de 2004, o presidente do INPB continuou sendo um padre católico negro e membro da PAB e do Instituto Mariama, a organização católica fundada pelo Padre Batista em 1989, que integra os bispos, padres e

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Estamos nos referindo no processo de transformação de organizações populares em ONGs, chamado de processo de “onguização” (Gonh, 2002, Burity, 2003)

9 diáconos negros. Em outras palavras, pode se dizer que a forma de organização do INPB é burocrático-clerical.

Entre os clientes do INPB encontram-se clientes puros e híbridos. Os primeiros consumem somente os bens religiosos (missas, batizados afros e encontros da PAB) ou profanos (atendimentos jurídicos, psicológicos; acesso à biblioteca); já a segunda categoria dos clientes transita, mistura seus consumos. Há também clientes não negros, japoneses, judeus, que procuram os serviços oferecidos pelo Departamento Jurídico (DJ) do INPB, mas são minorias.

A divisão dos serviços e das parcerias do INPB possibilitou-nos ampliar a nossa compreensão sobre a sua identidade híbrida. Entre os serviços tidos como ritos ordinários e ritos profanos, identificamos o DJ, o Departamento da psicologia (DP), o Curso de Antropologia, a Biblioteca Sergia de Sá, o Departamento de Comunicação, o Departamento de Educação e os Projeto de Bolsas.

(FP19) Departamento Jurídico. Atendimento Jurídico com Assistência Psicológica, Convênio com as procuradorias do Estado de São Paulo em 2000.

Há também ritos religiosos no INPB. A compreensão desses serviços religiosos passa pela análise do “sonho” do padre Batista e de seus seguidores de fundar um

10 Departamento de Estudo das Religiões. É o sonho coletivo pelo ecumenismo. Apesar da não existência de um escritório para esses fins, o “sonho pelo ecumenismo” já está acontecendo através da organização direta ou indiretamente dos cultos ecumênicos. É aqui que se pode entender a relação do INPB com a PAB como uma forma de “parceria genética” e “ordinária”, “permanente”. Os membros híbridos, os padres e leigos afrocatólicos do INPB, são os agentes que fazem a “intermediação” entre o campo religioso e o campo político; são eles que “sincretizam”, “profanalizam/politizam” o campo religioso da PAB e “sacralizam” o campo político do DJ. Os ritos mistos, como a Marcha Noturna pela Democracia Racial (MNDR), Ato Litúrgico Afro, são liturgias políticas, religiosidade sincréticas que o INPB usa para (re) produzir o poder simbólico étnico em seus membros . O INPB é uma instituição a dupla legitimidade, que através da PAB, portanto, da Igreja Católica, e do DJ conveniado ao Estado, legitima o seu poder simbólico. Há também os parceiros extra-ordinários do INPB: as religiões afro-brasileiras, o Grupo Atabaque (grupo de pesquisa sobre a cultura negra e a teologia fundado pelo ex-professor e amigo do padre Batista), o Instituto Juventude Interativa (trabalha com a juventude negra; ocupa o mesmo prédio da Arquidiocese com o INPB; a sua fundadora é membro da diretoria do INPB), os políticos negros do Partido dos Trabalhadores (PT).

A última questão abordada foi a da transformação ou da reprodução do INPB após a morte do seu fundador. O que se observou é que há uma tendência para a reprodução da estrutura híbrida em consonância com as transformações que ocorreram na sociedade civil e na Igreja Católica no Brasil a partir dos anos 90 e 2004. Essas mudanças re-definem as “antigas alianças” da PAB e do INPB em termos de “novas alianças”, de “parceria após a grande disciplina” eclesiástica romana (Libanio, 1985). A estratégia dessa nova aliança é

11 definida também, nos baseando nas propostas antropológicas de DAMata (1984), em termos de “jeitinho brasileiro”, “malandragem”, “jeitinho étnico negro” dos membros da PAB e do INPB. Para dizer que funciona como uma lei de sobrevivência dos negros numa Igreja e sociedade hegemonicamente brancas. Dessa forma, a aparente separação entre o INPB e a PAB deve ser interpretada em termos do ditado popular que diz “é só para o inglês ver” “que estamos separados”. Na realidade esses dois irmãos gêmeos, a PAB e o INPB, continuam trocando seus “manas” “poderes étnicos”; com isso operam como atores políticos no território nacional da atualidade contribuindo na construção do poder alternativo negro, da identidade étnica negra, isto é, na elaboração de uma nova cultura dos direitos de igualdade racial. A preensão da construção desse “poder de baixo” só nos foi possível combinando os aportes teóricos de poder simbólico bourdieusiano com os da microfísica do poder foulcaudiano (Foucault, 2000).

3. Reprodução da identidade étnica no INPB Como é que o INPB reproduz a identidade étnica? Para responder a essa pergunta, procurarmos, primeiro, definir as noções de produção e reprodução como a dupla face da dialética social. O primeiro conceito remete ao trabalho social feito pelo INPB na fabricação da identidade étnica; o segundo, nos apoiando em Danièle Hérvieu-Léger (1997), remete ao processo de transmissão de identidade negra, de consciência política e religiosa aos membros, clientes e parceiros do INPB. Deve-se tomar em consideração para a compreensão dessa dialética social a presença dos agentes de (re) produção da identidade étnica que trabalham no INPB, e acrescentar também outros elementos. De fato, ao longo da pesquisa, descobrimos que há diversos espaços e elementos que os agentes do INPB

12 usam para construir o poder simbólico alternativo, a identidade étnica de seus membros e parceiros, entre outros, o portal, os ritos históricos, os ritos puros e os ritos mistos.

Foram analisados, de modo especial, esses dois últimos ritos. Sendo assim, as missas, os batizados, os casamentos, encontros afros formam os ritos puros da PAB; enquanto que o Projeto de Bolsa, Os Atendimentos jurídico e psicológico às vítimas de crimes raciais, compõem os ritos profanos do INPB.

Analisamos também os ritos mistos: A MNDR e o Ato Litúrgico Afro. Os dois são liturgias políticas, religiosidades seculares pelo fato de misturarem os elementos políticos e religiosos durante suas produções e execuções. A análise comprovou que esses ritos mistos são acionados pelo INPB diretamente ou através das parcerias como estratégias simbólicas de reprodução da identidade étnica de seus membros, funcionários, clientes e parceiros.

(FS26) Semana da Consciência Negra: “Zumbi dos Palmares: Você está vivo na luta dos movimentos, nas expressões culturais e religiosas do povo negro. Ato Afro-Litúrgico. Promoção: Pastoral Afro Arquidiocesana São Paulo, INPB, coordenadoria ..., catedral da Sé, 20 de novembro de 2004.

O Ato Litúrgico Afro era uma celebração privada dos afro-católicos realizada no dia 20 de novembro na Aparecida do Norte. Com a aprovação da lei da deputada Claudete Alves do PT/SP que institui o dia da Consciência Negra como feriado municipal, essa celebração passou a ser uma liturgia política não confessional, mas ecumênica, com suas repercussões políticas, ocupando os espaços eclesiásticos e governamentais.

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(FP18) VIII Marcha Noturna pela Democracia Racial. “Cidadania Quilombola”, INPB, São Paulo, 12 de maio de 2004.

Sendo o INPB objeto dessa pesquisa, foi analisado, de maneira peculiar, a VIII MNDR (FP18). Esse rito nasceu em 1997 do movimento negro de OAB/SP em parceria com o INPB. Hoje, ele é “um patrimônio histórico” do INPB, lembrando que é sempre celebrado em parceria com outras entidades do movimento negro e não negro da sociedade civil paulistana que luta contra o racismo. A MNDR se articula sempre em torno de um “tema”. O tema da VIII MNDR foi “Cidadania quilombola”. Esses temas são sempre ligados à situação política local (agenda do movimento negro), nacional e internacional. Entre os agentes produtores, encontram-se os líderes políticos, religiosos, artistas e ativistas das ONGs negras. Os líderes políticos da VIII MNDR eram, em maioria, negros do PT/SP. O que nos leva a afirma que, no contexto histórico de 2004, houve uma “petização” do INPB. Entre os líderes religiosos, os pais de santo são os que mais se destacam; eles abriram e fecharam a VIII MNDR: fizeram o pedido de licença aos orixás no palanque montado na frente da Igreja Nossa Senhora da Boa Morte e a lavagem da escadaria da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Paissandu.

O elemento religioso predomina toda simbologia dessa liturgia política de início ao fim. É o que nos leva a dizer que o elemento religioso é parte integrante da identidade institucional do INPB. É através dos discursos e dos símbolos que a MNDR reproduz a

14 identidade étnica dos participantes. Esses discursos funcionam em termos de memórias. São “memórias mistas” que evocam misturando as representações do sagrado e do profano. A sua ordem se apresenta da maneira seguinte: “1a memória: Igreja da Nossa Senhora da Boa morte como palanque sincrético”, essa igreja tem duas lembranças fundamentais: é o local onde passavam os escravizados negros para receber a benção antes de ser enforcados e foi ali que o movimento negro eclesial iniciou seus trabalhos pastorais. A “2a memória: a vocação do cuido das crianças pelo INPB”: “é que quando começa a caminhada, a esquina da rua Tabatigueira traz na memória as crianças abandonadas do Brasil colonial que eram acolhidas pelo bispo do local”; sendo menino da rua, mais tarde como vigário da Catedral da Sé e fundador do Instituto do Negro, o padre Batista tinha na sua atividade militante a orientação dos meninos da rua, os jovens negros sem estudos. A “3a memória: o abolicionismo como nova era da liberdade”: a MNDR que é celebrada no dia 12 de maio é uma contestação do dia 13 de maio (da oficialidade); na Praça Mendes, é lembrada a luta dos abolicionistas como José do Patrocínio, Luiz Gama, Antonio Bento (Mattos, 2005). A 4a memória, no Viaduto Boa Vista e nas ruas Três de Dezembro e Quinze de Novembro, é uma crítica contra a violência física e simbólica da expansão do capitalismo em São Paulo que desembocou na e expulsão dos negros e indígenas que moravam nas regiões do centro da cidade (Borges, 2001). A “5a memória: o caminho da redenção vitoriosa pela política e religião”, antes de chegar no destino final os romeiros da MNDR passam na frente do teatro municipal, território estratégico escolhido pelo Movimento Negro Unificado para expressar publicamente as reivindicações da população negro nos anos 1970 e a chegada à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, o território do sagrado em que se encerra as MNDRs, com a leitura de um Ato público/político e a benção de um babalorixá ou um padre. Enfim, a “6a memória” é a síntese de todas as outras memórias. Representa o poder

15 simbólico alternativo da MNDR na reprodução da identidade étnica negra. Deve se dizer que a MNDR é o rito predileto do INPB para esse fim, mas não o único.

Para verificar de que forma os ritos religiosos, profanos e mistos usados pelo INPB reproduzem a identidade étnica, as respostas dadas pelos informantes, durantes as entrevistas, foram analisadas e classificadas nessa ordem: o poder simbólico do INPB nas representações de seus agentes; reprodução da identidade étnica na visão dos funcionários e das vítimas do racismo. Todas as respostas dadas pelos entrevistados corroboraram a nossa hipótese segundo a qual os ritos puros e os ritos mistos do INPB contribuem na reprodução da identidade étnica dos seus participantes.

Na verdade ele [o INPB] não constrói, ela reconstrói, porque na verdade a autoestima ele evidentemente tem [vítima do racismo]. O que destrói, a auto-estima é o racismo, a discriminação sofrida, porque as pessoas quando nos vêem, quando chegam para o departamento, não vêm em razão da auto-estima, vêm em função da discriminação sofrida, é o que afetou a sua auto-estima, o Instituto busca levar isso à justiça, encaminha ao Departamento Jurídico, para que a pessoa volte ao seu equilíbrio natural (Lino, Advogado do INPB).

Outro achado é que o poder simbólico alternativo no INPB é tecido em “redes e parceria”, quer dizer é o hibridismo que define o trânsito cultural e as trocas do poder simbólico no INPB. Dito em outros termos, o povo negro paulistano não é passivo em relação ao processo de construção do poder simbólico. Uma vez consumido o “mana étnico” do INPB, os bens simbólicos, como povo-cliente ou povo-participante tende a se tornar “vendedor” do mesmo, isto é, reprodutor da cidadania negra, defensor da negritude, dos direitos de igualdade racial. O INPB através de seus ritos étnicos “institucionaliza” o sentimento de pertença à etnia negra e à nação brasileira em seus membros e clientes.

Eu me considero simpatizante porque inclusive hoje eu falo com ousadia às pessoas que eu encontro na sociedade, eu costumo até dizer: olha se você for ofendido racialmente me procura que eu já tenho como ajudar. Sinto o prazer hoje

16 de conduzir uma pessoa que foi discriminada racialmente na sociedade, porque, a pergunta que você me fez com relação porque que eu me considero simpatizante, é por causa de carisma, a forma que eu fui recebido, por eles cuidarem perfeitamente do caso, quando eu cheguei lá e narrei o fato se via que eles sentiam o desejo de se atuar profissionalmente como pessoa, um ser humano, eles me viam como pessoa, percebi que eles tinham desejo de cuidar do caso, realmente sente na alma o desejo de cuidar daquilo que é preconceito, o racismo, o carisma, então isso me apegou muito ao Instituto, e hoje eu tenho um amor muito grande o Instituto, inclusive o meu grande desejo é ser um retribuinte ao Instituto, não só se tratando da marca Instituto, mas poder defender o teu Instituto, para defender uma sociedade está cada dia sendo discriminada no meio racial que é a parte negra, isso aí você vê a todo momento, sente isso na faculdade, sente isso num transporte, se sente sei lá, a cada passo do dia-a-dia, você vê discriminação na nossa sociedade. Sim, Eu tenho a maior ousadia, hoje eu falo do Instituto da alma, eu falo de rocha, eu falo de coração, eu tenho o prazer hoje de pregar sobre o Instituto, sobre o carisma daquelas pessoas, a forma com que eles defendem o interesse social, a forma como eles vêem a discriminação [...] (Assis, Cliente do INPB).

Essa é fala do Assis. A única vítima do racismo atendido pelo INPB que nos concedeu a entrevista. Ele foi vítima do racismo pela primeira vez no âmbito do trabalho em Minas onde militava como líder sindical: foi demitido e perdeu a causa na justiça, segundo ele, por ser negro. A segunda vez foi vítima da injúria racial do motorista no ônibus quando ia visitar a sua família em Minas; chegou a queixar-se aos superiores desse, mas nada adiantou. Pela terceira vez foi também injuriado por um comprador de ônibus em São Paulo enquanto ia trabalhar. O fato de um colega de trabalho ter presenciado o crime e de Assis ser estudante de direito levou-o a processar o seu discriminador via INPB; ele foi atendido pelos profissionais do DP e do DJ. Durante a entrevista o caso dele não tinha ainda recebido o veredicto final, mesmo assim estava satisfeito e orgulhoso de ter levado esse caso em julgamento. O seu contato com o INPB fez com que chegasse a enxergar a vida de uma forma diferente, a tornar-se um defensor dos direitos humanos. Contou-nos que ouviu falar que uma colega da sua empresa foi discriminada racialmente, logo fez questão de se colocar à disposição para orientá-la até o INPB. Essa tomada da nova consciência pelos direitos e a lutar para que eles aconteçam é o que chamamos de

17 reprodução da identidade étnica. Ele se manifesta pela incorporação de um novo habitus étnico de um negro “João ninguém”, cidadão da segunda classe, para um negro brasileiro cidadão tout court.

Conclusão

Essa pesquisa, como disse o professor Dagoberto, durante a nossa defesa, vem contribuir para a compreensão do movimento negro paulistano. Podemos acrescentar dizendo que vem também recuperar as vozes dos militantes negros ligados ao setor da Igreja Católica. Esses formam o que chamamos de movimento negro eclesial. O padre Batista e as organizações sociais que ele fundou, ou ajudou a fundar, como o INPB e os APNs que viria a ser a PAB, são instituições que nos possibilitam compreender as estratégias que o movimento negro eclesial e civil vêm tecendo na sua luta contra a discriminação racial institucionalizando assim o poder simbólico alternativo negro no século XXI, a reivindicação e implementação de uma política pública de reconhecimento dos direitos de igualdade racial. O hibridismo entre a religião e a política, nos limites dessa pesquisa, revelou-se como o fenômeno indispensável para a apreensão da forma como é construído, na modernidade globalizada, o poder simbólico alternativo negro no Brasil.

Sendo um estudo de caso e a primeira pesquisa que analisar o INPB, essa investigação quis somente apontar novos caminhos, portanto está aberta às críticas para sua consolidação. Dessa forma, o debate e o cruzamento de novos dados trazidos pelos outros pesquisadores que se dedicam à temática religião e política tornam-se necessárias para o aperfeiçoamento teórico das hipóteses levantadas pela essa nossa pesquisa.

18 Bibliografia BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. 3a ed. Livraria Pioneira, São Paulo, 1989. BASTIDE, R. “Sociologia do Sonho”. In: CAILLOIS, Roger e GRUNEBAUM, G. E. Van. O Sonho e as sociedades humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978, p.137-148. BARTH, Fredrik. “Grupos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT, Philipe e STREIFFFERNART, Joselyne. Teorias da etnicidade; seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. p. 187-227. BORGES, Rosangela. Axé, Madona Achiropita! Presença da cultura afro-brasileira nas celebrações da Igreja de Nossa Senhora Achioropita, em São Paulo. São Paulo: Palsa/CERE-PUC, 2001. BOURDIEU, P. A dominação masculina. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. _____ . O poder simbólico. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. _____. Coisas ditas. São Paulo: Brasilense, 1990. BURITY, J. “Religião e redes nas políticas sociais: legitimidade e participação das organizações religiosas”. In: Estudos de Religião, n. 25, São Bernardo, 2003, p. 13-47. CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL (CONIC). Relatório sobre a dignidade humana e a paz no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2003.

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