POEMAS DE AMOR E MORTE (antologia sincrônica da poesia brasileira)

May 26, 2017 | Autor: Adalberto Müller | Categoria: Poesia Brasileira
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POEMAS DE AMOR E MORTE (antologia sincrônica da poesia brasileira)

Organização e Prefácio Lígia Cademartori Adalberto Müller

Apresentação Benedito Nunes

2012

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SUMÁRIO

AMOR Eu tenho um coração maior que o mundo Soneto da Fidelidade – Vinícius de Moraes Cântico dos Cânticos – Oswald de Andrade Soneto (Necessito de um ser humano) – Mário Faustino Navegação Amorosa – Manoel Botelho de Oliveira Chanson d’amour – Neide Archanjo Nupcial – Gilberto Mendonça Teles Poema inspirado por Marta – Fernando Ferreira de Loanda Soneto do amor total – Vinícius de Moraes O sol da meia noite – Italo Moriconi Malícia – Augusto Meyer Óleo sobre tela – Vera Americano Chuva de granizo – Mário Domingues Dama negra (O gondoleiro do amor) – Castro Alves Esfinge – Teófilo Dias Encontrei-te. Era o mês…Que importa o mês? agosto… - Alphonsus de Guimarães Eu te trago, ainda frescas e orvalhadas – Onestaldo de Pennafort Não, nada aqui – Armando Freitas Filho Declaração de Lereno – Domingos Caldas Barbosa Os seios – Teófilo Dias Vagabundo – Álvares de Azevedo Marília, teus olhos – Tomás Antonio Gonzaga Nova Passante – Carlito Azevedo Retrata o poeta as perfeições desta dama – Gregório de Matos Esprema a vil calúnia muito embora – Tomás Antonio Gonzaga O que é mais longo que um caminho? – Elizabeth Hazin Que amor é esse que, desperto, dorme – Ivan Junqueira Definição de Amor – Gregório de Matos

Ele me guia a mim, não eu a ele Otelo – Martins Fontes Não te cases com Gil – Cláudio Manoel da Costa A uma pastora tão formosa como ingrata – Alexandre de Gusmão Sofer por gosto – Domingos Caldas Barbosa Contra Naturam – Carlito Azevedo Mineração do outro - Carlos Drummund de Andrade O mundo que venci deu-me um amor – Mário Faustino Logrador – Antonio Cícero Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro – Carpinejar Mulheres – João Moura Jr. 2

Amor, esse sufoco/Amor, então – Paulo Leminski As coisas da casa – Marcelo Sandmann Faz a imaginação de um bem amado – Cláudio Manoel da Costa Recordação – Gonçalves Dias Nel mezzo del camin… - Olavo Bilac Duas Almas – Alceu Wamosy O adeus de Teresa – Castro Alves Teresa – Manuel Bandeira A D. Bárbara Heliodora – Alvarenga Peixoto Me chupe com muita pena – Armando Freitas Filho Mapa – Orides Fontela Não prometo que as laranjas amadureçam – Carpinejar Amor e medo – Casimiro de Abreu Vendo a Anarda, depõe o sentimento – Manoel Botelho de Oliveira Não saberia dizer a hora – Eucanaã Ferraz Helena – Alexei Bueno

E ele e os outros me vêem Aceitação – Cecília Meireles Romance das três irmãs ou Miramar – Onestaldo de Pennafort Ismália – Alphonsus de Guimaraens A noiva – Maria Lúcia dal Farra Voa, suspiro meu, vai diligente – Beatriz Francisca de Assis Brandão A mulher que diz que ama – Ana Eurídice Eufrosina de Barandas Lamento de Penélope – Luciana Martins Ao amor búfalo – Elizabeth Veiga Exercício – Maria Rita Kehl Ausência – Virna Teixeira Minha alma fria, e já desenganada – Ana Eurídice Eufrosina de Barandas Te procuro/Minha voz – Alice Ruiz Porco poeta, que me sei, na cegueira, no charco – Hilda Hilst Penélope – Orides Fontela Ulysses – Ana Cristina César Que este amor não me cegue nem me siga – Hilda Hilst Nada disfarça o apuro do amor – Ana Cristina César Por que sou forte – Narcisa Amália Mudança – Lélia Coelho Frota

E a paixão será arquivada Moda do corajoso – Mário de Andrade História natural – João Cabral de Melo Neto Antonico e Corá – Fagundes Varela O amor que é cá do Reino – Domingos Caldas Barbosa Dois sonetos de amor ao pé – Glauco Mattoso Necrológio dos desiludidos do amor – Carlos Drummond de Andrade Namoro a cavalo – Álvares de Azevedo Sob os ramos – Pedro Kilkerry Três sonetos dramáticos – Artur Azevedo

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Separação – Affonso Romano de Sant’Anna Na presença de duas damas – Gregório de Matos Ars amandi – José Paulo Paes

MORTE Tudo que pensa passa As coisas que te cercam, até onde – Paulo Henriques Britto Ansiosamente a áspera ladeira – Eduardo Guimarães Animal barbado – Ronaldo Costa Fernandes Quando se morre – Contador Borges Fogo dos rios (3 fragmentos) – Fernando Paixão As peras – Ferreira Gullar A J.P. Sartre – José Paulo Paes Meios de Transporte – João Cabral de Melo Neto A flor e a fonte – Vicente de Carvalho O tempo – Anderson Braga Horta Constat – Carlos Loria Visão do último trem subindo ao céu – Joaquim Cardozo

Ela veio chegando ao ritmo do pulso… Da morte – José de Anchieta Nova concepção da morte – Ferreira Gullar Como a morte se infiltra – João Cabral de Melo Neto A morte – Ivan Junqueira Mais fiel que a sombra…/Rosas floreceram… – Maria Angela Alvim Se nasce morre nasce – Haroldo de Campos Decadência – Raul de Leoni

O corpo é que nem véu largado sobre um móvel Epitáfio que não foi gravado – Felipe D’Oliveira O morto – Manoel de Barros O morto – Thiago de Melo Velório – Francisco Alvim Um morto, barco à deriva – Moacir Amâncio órfico science – Ricardo Schmitt Carvalho O defunto – Pedro Nava Momento num café – Manuel Bandeira A uma taça feita de um crânio humano – Castro Alves Vida obscura – Cruz e Sousa Improviso do rapaz morto – Mário de Andrade Morte da India – Augusto Frederico Schmidt Os mortos – Carlos Drummond de Andrade Quando eu morrer – Castro Alves 4

Os nomes – Manuel Bandeira Convívio – Carlos Drummond de Andrade Vozes da morte – Augusto dos Anjos

Ao gozo, ao gozo amiga… Margem – Francisco Alvim Lápides 1 e 2 – Paulo Leminski Mocidade e morte – Castro Alves Sempre distante amor e perto anseio – Maria Angela Alvim Acalanto – Paulo Henriques Britto Soneto do amor total – Vinícius de Moraes Minha bela Marília, tudo passa – Tomás Antonio Gonzaga A Carolina – Machado de Assis Não me deixes – Gonçalves Dias Lembrança de morrer – Alvares de Azevedo Temor – Junqueira Freire A saudade – Silva Alvarenga Vou morrendo devagar – Domingo Caldas Barbosa Epitalâmio – José Paulo Paes Coup d’étrier – Castro Alves Soneto (Bronze e brasa na treva:diamantes) – Mário Faustino

Não te aflijas com a pétala que voa… Estudo n. 4 – Murilo Mendes Eternidade – Jorge de Lima 4o. motivo da rosa – Cecília Meireles Soneto do empinador de papagaio – Lêdo Ivo Lembrança de morrer – Alvares de Azevedo O arranco da morte – Junqueira Freire Viver – Mário Quintana AMORTEMOR – Augusto de Campos Os lados – Paulo Mendes Campos Restauradora – Henriqueta Lisboa Uma criatura – Machado de Assis Desejo – Junqueira Freire

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APRESENTAÇÃO

Esta Antologia não carece de apresentação. O prefácio da obra, por ambos autores assinado, já diz tudo. E por isso nos aventuramos a só acrescentar a tão primorosa escolha, um simples escólio, que propõe, a modo de diversão ou jogo de abertura, alternativas ao amplo e satisfatório repositório acerca do bifurcado tema da seleta ora publicada – Amor e Morte. A primeira alternativa seria dispor de um segundo foco, que não suprime o já adotado e que a ele se acrescenta, para o tema do amor – a cruciante oposição que, por exemplo, se divisa em Mário Faustino, entre juventude e velhice, entre o esplendor e a decadência do corpo, prenunciando a morte, como no soneto Nam Sibyllam... (Lá onde um velho corpo desfraldava / as trêmulas imagens de seus anos ) e no fragmento ( Juventude / a jusante a maré entrega tudo) desse poeta. A segunda alternativa ampliaria o tratamento da morte em Carlos Drummond de Andrade, dando-se conhecimento ao leitor de algumas de suas grandes elegias, como Estâncias (Amor? Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra / onde: talvez entre grades solenes...), Permanência (Agora me lembro um, antes me lembrava outro), Nudez (Não cantarei amores que não tenho), Os últimos Dias (Que a terra há de comer. / Mas que não coma já), Elegia (Ganhei (perdi) meu dia) e, ainda, reforçaria a linha humorística apresentada em torno do mesmo tema, com o aditamento da tonalidade sarcástica de Falta pouco (Falta pouco para acabar / o uso desta mesa pela manhã) ou Cantilena

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Prévia (Don don dorondondon / É o castelo de Drummond que vai à penhora) de A falta que ama. Esses acréscimos mostrariam, afinal, que a bifurcação temática inicialmente proposta nada mais é do que uma cômoda divisória, fazendo realçar aquilo que não consegue esconder: a conjunção ou a fraternidade entre Amor e Morte de que falou Leopardi (Irmãos gêmeos que são, Amor e Morte / engendrou-os a sorte), e que expressaram, em uníssono, as toantes e ressoantes vozes ouvidas nesta Antologia, principalmente as daqueles dois poetas, Carlos Drummond de Andrade e Mário Faustino, que melhor e de longa data conheço.

Belém, março, 2005. Benedito Nunes

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Prefácio

Reúnem-se aqui poemas que partilham uma afinidade básica: é de amor e morte que falam. Evocam os chamados temas de sempre, os temas líricos por excelência. Escritas em diferentes épocas e distintos lugares, as composições repercutem sentidos coincidentes ou opostos. Sucedem-se sem obedecer à ordem no tempo nem à seqüência de estilos. O que importa são as relações que os poemas estabelecem entre si, quando postos em ordem que não a habitual. Um possível fio narrativo se insinua na seleção e organiza os poemas em temas – amor e morte – e em seções que aproximam composições com propriedades em comum: imagens similares, ecos semânticos, gradação de sentidos. Em lugar de títulos, as seções são identificadas pelo que sugerem certos versos, como o de Tomás Antonio Gonzaga – ‘eu tenho um coração maior que o mundo’ – que dá início à antologia. Os poemas da primeira seção têm como característica a expressão da intensidade amorosa. Imagens marítimas, figurações do olhar percorrem vários poemas. A celebração e o júbilo amoroso não dispensam, porém, indagações sobre a verdadeira natureza desse sentimento, como nos poemas dos contemporâneos Elisabeth Hazin e Ivan Junqueira, postos aqui em diálogo imaginário com Gregório de Matos, que responde, na contramão, com sua peculiar definição de amor. ‘Ele me guia a mim, não eu a ele’ é o verso de Alexandre Gusmão que anuncia a seção 2, onde a consciência da falta se sobrepõe ao entusiasmo da paixão. A tensão, provocada pelo inacessível objeto de desejo, aguça os versos de poetas antigos, modernos e novos. A presença do feminino, na seção 3, seja como expressão, seja como motivo, é ilustrada pelo verso de Ana Cristina César ‘e ele e os outros me vêem’. A pluralidade da condição de ser mulher, de que fala Maria Lucia Dal Farra, manifesta-se em vozes antigas e modernas que nomeiam diversas circunstâncias femininas: de noiva, de Penélope, de búfalo enfurecido.

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Na seção seguinte, o excesso de sentido atribuído ao tema amoroso é revertido pelo tom irônico, satírico ou burlesco das criações. ‘E a paixão será arquivada’ é o verso de Mário de Andrade que sugere a dessacralização do amor em poemas como os de Fagundes Varela, Arthur Azevedo, Carlos Drummond de Andrade, Affonso Romano de Sant’anna. A morte ganha também múltiplas inflexões poéticas. Na seção 5, o verso de Paulo Henriques Britto – ‘tudo que pensa passa’ – é emblemático das figurações da morte sem transcendência. O pressentimento da morte e a dolorida consciência da finitude reúnem composições na seção 6, de José de Anchieta a Haroldo de Campos, prenunciadas pelos versos de Ferreira Gullar: ‘ela veio chegando ao ritmo do pulso, sem pressa nem vagar e sem perder impulso’. Na seção 7, é da morte do outro que se trata, e o verso que a ilustra é de Mário de Andrade: ‘o corpo é que nem véu largado sobre um móvel’. Às previsíveis presenças de poetas como Castro Alves, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, somam-se outras, como do bissexto Pedro Nava, ou de Francisco Alvim, com seu peculiar estilo narrativo. Na seção 8, o carpe diem dos versos de Junqueira Freire – ‘ao gozo, ao gozo, amiga, o chão que pisas a cada instante te oferece a cova’ – ressoa em composições como as de Maria Ângela Alvim, Paulo Leminski, Vinicius de Moraes. Culmina a seção 9 com a noção de integração no infinito, de que é prenúncio o conhecido verso de Cecília Meireles ‘não te aflijas com a pétala que voa’, que encontra ressonâncias em composições de Mario Quintana, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Gonçalves Dias, Machado de Assis. O leitor verá que são muito variadas e distintas as figurações poéticas do amor e da morte. Há o amor que idealiza seu objeto a ponto de sacralizá-lo e prestar-lhe culto. Mas existe outro que percebe seu caráter de efemeridade e contingência. Há poetas que celebram o encontro; outros, a busca, do modo como propõe Rainer Maria Rilke, em Primeira elegia de Duíno, ao indagar se não seria tempo de quem ama libertar-se do amado, como a flecha que supera o arco para ser, no vôo, mais do que apenas flecha. Há amor como falta e amor como complementação. Amor compungido e amor burlesco. Festa, falha, farsa. Multiforme é o sentimento, e diferentes as vozes que dele falam. Por isso, vale o lugar à parte para a concepção feminina do amor, que abriga ela própria muita diversidade. 9

A simbolização da transitoriedade mostra, do mesmo modo, faces variadas. A morte, como forma de completude possível, superação e emancipação do homem, está presente em muitos poemas. Mas, em outros, o enquadramento é trágico. Seguem a vertente de Sófocles, ao conceber a finitude humana como punição divina, contingência sem a aura heróica que lhe conferiu Homero. Na obra de muitos poetas contemporâneos, a morte surge sem qualquer sentido particular que não seja o de limite humano. É destituída de transcendência. Parecem seguir Heráclito na recomendação de que não se deve conjecturar à toa sobre as coisas supremas. Em outras composições, porém, o tema faz-se inseparável da reflexão sobre a temporalidade, de que é exemplar o singularíssimo poema longo de Joaquim Cardozo, que ecoa em composição de Ana Cristina César. Versos conversam, o leitor irá perceber. Mas àqueles a quem a poesia encanta de modo a não requerer formalidade nem sistematização, para quem um poema é só um poema, aqui e agora, a liberdade da leitura prevalecerá sempre. A montagem por seções é algo que acompanhará, se quiser. Poderá, porém, desconsiderá-la e selecionar livremente os poemas que lhe interessam ou que o acaso trouxer - e deflagrar, assim, o diálogo que realmente importa: o do leitor com o poema ou, em clave mais livre, com o verso. Pois não é de todo impossível que alguns versos possam abrir caminho a uma constelação de signos, e fazer com que o leitor sinta, como disse Manoel de Barros, quebrar-se dentro de si “um engradado de estrelas”. Poemas e poetas não foram selecionados por representarem o melhor da poesia brasileira. A palavra antologia, em sua origem grega, dá idéia de colheita de flores. Coleta que – sabe-se – não exclui o fortuito, o aleatório, ao recolher o belo com sua promessa de possível felicidade. E, se a delimitação dos temas excluiu da seleção vozes reconhecidas, permitiu o reencontro com outras que têm estado injustamente esquecidas. Os organizadores sabem que, no momento mesmo em que veja o índice, o leitor pensará em outros recortes, outros poetas, outros poemas. Fatalidade e função das antologias é serem sempre incompletas e condicionadas por incontornável parcialidade. Uma antologia, inevitavelmente, estimula a organização de outras. O que já é um bom motivo para fazê-la. Reunir poemas que falam de amor e morte não é, claro, prática inocente nem despida de intenções. Maria Rita Kehl, em ensaio de Os sentidos da paixão (Companhia 10

das Letras, 1987), denunciava: “o mercado se apropria de eros propondo o narcisismo; o amor de cada um por si mesmo. E se apropria de thánatos propondo aquilo que as classes média e alta consideram suas conquistas maiores: o conforto e a segurança”. Os poemas que seguem, exemplos da vitalidade de nossa produção poética, navegam contra a corrente. Expõem-se aos riscos, nomeiam o que tende ao esquivo, experimentam a transposição dos limites. São outros modos de ver e dizer o amor e a morte, em páginas que estão aí para atestar a maturidade e a riqueza de expressão da literatura brasileira. * As obras que serviram de base para estabelecimento de textos constam das referências bibliográficas. As datas apostas ao nome dos poetas correspondem, quase sempre, à primeira publicação dos poemas em livro. Em alguns casos, como nos de Gergório de Matos e José de Anchieta, a data é estimada. Alguns textos foram renomeados, de outros foram extraídos fragmentos, por efeito de composição da antologia. Os organizadores

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Amor SEÇÕES

Eu tenho um coração maior que o mundo ele me guia a mim, não eu a ele e ele e os outros me vêem e a paixão será arquivada.

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Eu tenho um coração maior que o mundo Tomás Antônio Gonzaga

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SONETO DE FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Estoril, outubro, 1939 VINÍCIUS DE MORAES [1957] Livro de sonetos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

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CÂNTICO DOS CÂNTICOS PARA FLAUTA E VIOLÃO(fragmento)

oferta Saibam quantos este meu verso virem Que te amo Do amor maior Que possível for canção e calendário Sol de montanha Sol esquivo de montanha Felicidade Teu nome é Maria Antonieta d’Alkmin No fundo do poço No cimo do monte No poço sem fundo Na ponte quebrada No rego da fonte Na ponta da lança No monte profundo Nevada Entre os crimes contra mim Maria Antonieta d’Alkmin Felicidade forjada nas trevas Entre os crimes contra mim 15

Sol de montanha Maria Antonieta d’Alkmin Não quero mais as moreninhas de Macedo Não quero mais as namoradas Do senhor poeta Alberto d’Oliveira Quero você Não quero mais Crucificadas em meus cabelos Quero você Não quero mais A inglesa Elena Não quero mais A irmã da Nena Não quero mais A bela Elena Anabela Ana Bolena Quero você Toma conta do céu Toma conta da terra Toma conta do mar Toma conta de mim Maria Antonieta d’Alkmin E se ele vier Defenderei E se ela vier Defenderei E se eles vierem Defenderei 16

E se elas vierem todas Numa guirlanda de flechas Defenderei Defenderei Defenderei Cais de minha vida Partida sete vezes Cais de minha vida quebrada Nas prisões Suada nas ruas Modelada Na aurora indecisa dos hospitais Bonançosa bonança OSWALD DE ANDRADE [1945] Cântico dos cânticos para flauta e violão. Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, vol. 3.

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SONETO

Necessito de um ser, um ser humano Que me envolva de ser Contra o não ser universal, arcano Impossível de ler À luz da lua que ressarce o dano Cruel de adormecer A sós, à noite, ao pé do desumano Desejo de morrer. Necessito de um ser, de seu abraço Escuro e palpitante Necessito de um ser dormente e lasso Contra meu ser arfante: Necessito de um ser sendo ao meu lado Um ser profundo e aberto, um ser amado. MÁRIO FAUSTINO [1955] O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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MADRIGAIS I Navegação amorosa

É meu peito navio, São teus olhos o Norte, A quem segue o alvedrio, Amor Piloto forte; Sendo as lágrimas mar, vento os suspiros, A venda velas são, remos seus tiros.

II Pesca amorosa

Foi no mar de um cuidado Meu coração pescado; Anzóis os olhos belos; São linhas teus cabelos Com solta gentileza, Cupido pescador, isca a beleza.

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III Naufrágio amoroso

Querendo meu cuidado Navegar venturoso, Foi logo soçobrado Em naufrágio amoroso; E foram teus desdéns contrário vento, Sendo baixo o meu vil merecimento.

MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA [1705] Manuel Botelho de Oliveira.Música do Parnaso. Rio de Janeiro: INL, 1953.

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CHANSON D’AMOUR

Posto que é noite, em tua pele uma fímbria de mar permanece. Com a boca recolho ondas algas espumas. E feliz enuncio que és azul e serás azul para todo o sempre. Um azul que nem conheces. NEIDE ARCHANJO [1999] Todas as horas e antes — Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2004.

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NUPCIAL

Um dia as minhas mãos de chumbo e sortilégio se estenderão isentas como uma flor madura ou gesto repentino ao sol fotografado. Os meus dedos sem rumo habitarão teu reino fechado sobre o mar numeroso e noturno. E as tuas mãos sem nunca deslizarão mil dádivas sobre o tempo prescrito e decifrado. Teu corpo de silêncio e espuma, palpitante e liberto do mármore, do sal e dos vestidos imperecíveis, teu corpo sereno muito além das tempestades, submerso e nupcial como os peixes marinhos, teu corpo em plenitude me estenderá seus vínculos no idioma das águas. E seremos destino de afogados, amantes das profundezas, noivos cujos gritos já trêmulos 22

dormirão como as algas malferidas de tanto aroma e claridade. GILBERTO MENDONÇA TELES [1967] Poemas Reunidos. Rio de Janeiro: J. Olympio / Brasília: INL, 1978.

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POEMA INSPIRADO POR MARTA O mar nos búzios ressoando ando, mar alto, amorfo, anódino, sou vento, vento a tarde toda, beira-mar, marinho o porto, e acinzento o horizonte. Pareço nuvem, chovo, interrompo encontros, na grávida cidade a ingrávidos amores. Sonido de bonde vem, e com ele uma mulher a pensar em Cingapura. Impiedoso vento, ventoinha, ventarola, na ventana os cabelos lhe umedeço, venturoso levo-lhe o mar. Amar. FERNANDO FERREIRA DE LOANDA [1964] Do amor e do mar. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1964.

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SONETO DO AMOR TOTAL

Amo-te tanto, meu amor… não cante O humano coração com mais verdade… Amo-te como amigo e como amante Numa sempre diversa realidade. Amo-te afim, de um calmo amor prestante, E te amo além, presente na saudade. Amo-te, enfim, com grande liberdade Dentro da eternidade e a cada instante. Amo-te como um bicho, simplesmente, De um amor sem mistério e sem virtude Com um desejo maciço e permanente. E de te amar assim muito e amiúde É que um dia em teu corpo de repente Hei de morrer de amar mais do que pude. Rio, 1951. VINÍCIUS DE MORAES [1957] Livro de sonetos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

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O SOL DA MEIA NOITE o sol da meia noite são teus olhinhos de calor? dona você pulveriza o tempo, você uma parede surge por trás, de repente como lagarto verde sobre o verde quando assusta o dia, você movente em torno do poste cabelos bulindo cinzentos são os prédios da cidade que me abraçam que me apertam calor das galerias, dos encanamentos, dos subways… ITALO MORICONI JR. [1988] Léu. Rio de Janeiro: Taurus: 1988.

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MALÍCIA Dizes: — “É lindo o teu olhar, querida!” E, então, ficas a olhar, num suave enleio, essa mulher que um belo dia veio encher de vida a tua vida. Dizes: — “É lindo o teu olhar, querida, Como se nele o céu aparecesse…” É lindo. Mas, repara: ao fundo, vê-se A tua imagem refletida. AUGUSTO MEYER [1957] Poesias. Rio de Janeiro: São José, 1957.

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ÓLEO SOBRE TELA Quando olhei, teu cabelo escorregava sobre a testa, uma ruga atravessava redenção e juras. Vi teu cabelo a resvalar sobre uma fenda do tempo, imagens costuradas, citações. Ao te olhar, Me vi. VERA AMERICANO [2002] Arremesso livre. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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CHUVA DE GRANIZO para Maira Weber • 1995 chuva de granizo: o viso de tudo através do vidro (chove cacos de vidro) nada ninguém atravessa ouvido (janela: lágrima espessa) tua imagem não se inverte na minha retina (chuva fina) toda chuva é temporária: no vapor teu nome escrito ao contrário MARIO DOMINGUES [2001] Paisagem transitória. São Paulo: Ciência do Acidente, 2001.

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O GONDOLEIRO DO AMOR Barcarola DAMA NEGRA Teus olhos são negros, negros, Como as noites sem luar… São ardentes, são profundos, Como o negrume do mar; Sobre o barco dos amores, Da vida boiando à flor, Douram teus olhos a fronte Do Gondoleiro do amor. Tua voz é a cavatina Dos palácios de Sorrento, Quando a praia beija a vaga, Quando a vaga beija o vento; E como em noites de Itália, Ama um canto o pescador, Bebe a harmonia em teus cantos O Gondoleiro do amor. Teu sorriso é uma aurora, Que o horizonte enrubesceu, — Rosa aberta com o biquinho Das aves rubras do céu; Nas tempestades da vida, Das rajadas no furor, 30

Foi-se a noite, tem auroras O Gondoleiro do amor. Teu seio é vaga dourada Ao tíbio clarão da lua, Que, ao murmúrio das volúpias, Arqueja, palpita nua; Como é doce, em pensamento, Do teu colo no langor Vogar, naufragar, perder-se O Gondoleiro do amor!? Teu amor na treva é — um astro, No silêncio uma canção, É brisa — nas calmarias, É abrigo — no tufão; Por isso eu te amo, querida, Quer no prazer, quer na dor… Rosa! Canto! Sombra! Estrela! Do Gondoleiro do amor. Recife, janeiro de 1867.

CASTRO ALVES [1870] Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

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ESFINGE Tuas pupilas alaga Não sei que acerba ternura, Cuja luz cruel me afaga, Cujo afago me tortura. Unge-te o seio moreno Um perfume sufocante, Suave como um calmante, Pérfido como um veneno. Freme-te a alma fatal No frágil corpo nervoso, Como um filtro perigoso Numa prisão de cristal. Para estancar os desejos, Que teu sangue tantalizam, Teus lábios prodigalizam Dentadas por entre beijos. Com sarcasmos me apunhalas; Depois, as feridas cruas Ameigas com a luz que exalas Dos teus olhos — negras luas. Tua palavra me é dura Às vezes, pelo sentido, E doce pela brandura Com que me trina no ouvido.

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Há uma alma que suspira Em cada ponto do espaço Quando caminhas: teu passo Murmura como uma lira. No movimento discreto Revelas, por entre gazes, Todo um poema correto Escrito em versos sem frases. Os teus lençóis apaixonas Com a gentileza, que apuras Nas langorosas posturas Em que o teu corpo abandonas. Dos primores, de que és feita, A nenhum dou primazia: É do conjunto a harmonia Que os meus sentidos sujeita. E eu te amo, beleza fátua, Minha perpétua loucura, Como o verme a flor mais pura, E o musgo a mais bela estátua! TEÓFILO DIAS [1882] Poesias escolhidas. Antonio Candido, org. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960.

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ENCONTREI-TE. ERA O MÊS... QUE IMPORTA O MÊS? AGOSTO,

Encontrei-te. Era o mês… Que importa o mês? agosto, Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março, Brilhasse o luar, que importa? ou fosse o sol já posto, No teu olhar todo o meu sonho andava esparso. Que saudades de amor na aurora do teu rosto, Que horizonte de fé no olhar tranqüilo e garço! Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto, Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março. Encontrei-te. Depois… depois tudo se some: Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira… Era o dia… Que importa o dia, um simples nome? Ou sábado sem luz, domingo sem conforto, Segunda, terça ou quarta ou quinta ou sexta-feira, Brilhasse o sol, que importa? ou fosse o luar já morto! ALPHONSUS DE GUIMARAENS [1899] Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

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EU TE TRAGO, AINDA FRESCAS E ORVALHADAS... Je t’apporte l’enfant d’une nuit d’Idumée. Stéphane Mallarmé

Eu te trago, ainda frescas e orvalhadas Da noite e do silêncio das estradas Ermas, por onde vim com o pensamento Cheio de ti e de arrependimento, Estas flores silvestres que trescalam Perfumes fortes como as bocas falam… Colhidas, como sonhos, no caminho Em que voltava para teu carinho, Que elas te digam a ternura ansiosa Que houve na grande noite harmoniosa Que fez o esquecimento e fez as flores Do silêncio das flores interiores… E, de aspirá-las, sentirás no ouvido Um barulho de folhas, um zumbido De asas e uma frescura de água boa Como um olhar suave que perdoa… ONESTALDO DE PENNAFORT [1927] Interior. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1927.

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NÃO. NADA AQUI Não. Nada aqui e submerge pois a natureza abdica de todo espelho e cai em si das nuvens sozinha, ao sol sem saber, sem quebrar o silêncio de suas sombras mesmo quando transborda e o luar cria um lago ou algo parecido: um olhar que alaga este lugar.

ARMANDO FREITAS FILHO [1985] 3 x 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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DECLARAÇÃO DE LERENO Queres que eu diga, Cara, o meu nome, Cara inimiga, Eu to direi. Eu sou Lereno, De baixo estado, Choça nem gado Dar poderei. Mas se tu queres Melhor morada, Vem, minha amada, Que eu ta darei. Entra em minha alma, Entra em segredo, Contente e ledo Te adorarei. DOMINGOS CALDAS BARBOSA [1798] Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

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OS SEIOS

Como serpente arquejante Se enrosca em férvida areia, Meu ávido olhar se enleia No teu colo deslumbrante. Quando o descobres, no ar Morno calor se dissolve Do aroma em que ele se envolve, Como em neblina o luar. Se ao corpo te enrosco os braços, A terra e os céus estremecem, E os mundos febris parecem Derreter-se nos espaços! E tu nem sequer presumes Que então, querida, até creio Sorver, desfeito em perfumes, Todo o sangue do teu seio. Depois que aspiro, ansiado, Do teu níveo colo o incenso, 38

Minh’alma semelha um lenço De viva essência molhado. Deixa que a louca se deite Nesse torpor que extasia, E que o vinho do deleite Me espume na fantasia; Pois não há ópio ou hachis Que me abrilhante as idéias Como as fragrâncias sutis Que fervem nas tuas veias! TEÓFILO DIAS [1882] Poesias escolhidas. Antonio Candido, org. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960.

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VAGABUNDO Eat, drink, and love; what can the rest avail us? Byron, Don Juan Eu durmo e vivo ao sol como um cigano, Fumando meu cigarro vaporoso, Nas noites de verão namoro estrelas, Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso! Ando roto, sem bolsos, nem dinheiro… Mas tenho na viola uma riqueza: Canto à lua de noite serenatas… E quem vive de amor não tem pobreza. Não invejo ninguém, nem ouço a raiva Nas cavernas do peito, sufocante, Quando, à noite, na treva, em mim se entornam Os reflexos do baile fascinante. Namoro e sou feliz nos seus amores, Sou garboso e rapaz… Uma criada Abrasada de amor por um soneto Já um beijo me deu subindo a escada… Oito dias lá vão que ando cismando Na donzela que ali defronte mora… Ela ao ver-me sorri tão docemente! Desconfio que a moça me namora…

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Tenho por meu palácio as longas ruas, Passeio a gosto e durmo sem temores… Quando bebo, sou rei como um poeta, E o vinho faz sonhar com os amores. O degrau das igrejas é meu trono, Minha pátria é o vento que respiro, Minha mãe é a lua macilenta, E a preguiça a mulher por quem suspiro. Escrevo na parede as minhas rimas, De painéis a carvão adorno a rua… Como as aves do céu e as flores puras Abro meu peito ao sol e durmo à lua. Sinto-me um coração de lazzaroni, Sou filho do calor, odeio o frio, Não creio no diabo nem nos santos… Rezo a Nossa Senhora e sou vadio! Ora, se por aí alguma bela, Bem doirada e amante da preguiça, Quiser a nívea mão unir à minha Há de achar-me na Sé, domingo, à missa. ÁLVARES DE AZEVEDO [1853] Lira dos vinte anos. Edição preparada por Maria Lúcia dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Poetas do Brasil)

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MARÍLIA, TEUS OLHOS...

Marília, teus olhos São réus e culpados Que sofra e que beije Os ferros pesados De injusto Senhor. Marília, escuta Um triste pastor. Mal vi o teu rosto, O sangue gelou-se, A língua prendeu-se, Tremi e mudou-se Das faces a cor. Marília, escuta Um triste pastor. A vista furtiva, O riso imperfeito Fizeram a chaga, Que abriste no peito, Mais funda e maior. Marília, escuta Um triste pastor. Dispus-me a servir-te; 42

Levava o teu gado À fonte mais clara, À vargem e prado De relva melhor. Marília, escuta Um triste pastor. Se vinha da herdade, Trazia dos ninhos As aves nascidas, Abrindo os biquinhos De fome ou temor. Marília, escuta Um triste pastor. Se alguém te louvava, De gosto me enchia; Mas sempre o ciúme No rosto acendia Um vivo calor. Marília, escuta Um triste pastor. Se estavas alegre, Dirceu se alegrava; Se estavas sentida, Dirceu suspirava À força da dor. Marília, escuta Um triste pastor. Falando com Laura, Marília dizia; Sorria-se aquela, 43

E eu conhecia O erro de amor. Marília, escuta Um triste pastor. Movida, Marília, De tanta ternura, Nos braços me deste Da tua fé pura Um doce penhor. Marília, escuta Um triste pastor. Tu mesma disseste Que tudo podia Mudar de figura; Mas nunca seria Teu peito traidor. Marília, escuta Um triste pastor. Tu já te mudaste; E a olaia frondosa, Aonde escreveste A jura horrorosa, Tem todo o vigor. Marília, escuta Um triste pastor. Mas eu te desculpo, Que o fado tirano Te obriga a deixar-me, Pois busca o meu dano Da sorte que for. 44

Marília, escuta Um triste pastor. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA [1792] Poesias e Cartas chilenas. Ed. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: INL, 1952.

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NOVA PASSANTE

1. sobre esta pele branca um calígrafo oriental teria gravado sua escrita luminosa — sem esquecer entanto a boca: um ícone em rubro tornando mais fogo suor e susto tornando mais ácida e insana a sede (sede de dilúvio) 2. talvez um poeta afogado num danúbio imaginário dissesse que seus olhos são duas machadinhas de jade escavando o constelário noturno: a partir do que comporia duzentas odes cromáticas — mas eu que venero (mais que o ouro verde raríssimo) o marfim em alta-alvura de teu andar em desmesura sobre uma passarela de relâmpagos súbitos, sei que tua pele pálida de papel 46

pede palavras de luz 3. algum mozárabe ou andaluz decerto te dedicaria um concerto para guitarras mouriscas e cimitarras suicidas (mas eu te dedico quando passas no istmo de mim a isto este tiroteio de silêncios esta salva de arrepios) CARLITO AZEVEDO (1991) Sublunar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.

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RETRATA O POETA AS PERFEIÇÕES DESTA DAMA COM GALHARDO ASSEIO

Podeis desafiar com bizarria Só por só, cara a cara, a bela Aurora, Que a Aurora não só cara vos faria Vendo tão boa cara em vós, Senhora: Senhora sois do sol, e luz do dia, Do dia, que nascestes até agora, Que se Aurora foi luz por uma estrela, Duas tendes em vós, a qual mais bela. Sei, que o sol vos daria o seu tesouro Pelo negro gentil desse cabelo Tão belo, que em ser negro foi desdouro Do sol, que por ser d’ouro foi tão belo: Bela sois, e sois rica sem ter ouro Sem ouro haveis ao sol de convencê-lo, Que se o sol por ter ouro é celebrado, Sem ter ouro esse negro é adorado. Vão os olhos Senhora tende tento: Sabeis os vossos olhos o que são? São de todos os olhos um portento, Um portento de toda a admiração: Admiração do sol, e seu contento, Contento, que me dá consolação, Consolação, que mata o bom desejo, Desejo, que me mata, quando os vejo.

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A boca para cravo é pequenina, Pequenina sim é; será rubi Rubi não tem a cor tão peregrina, Tão peregrina cor,eu a não vi: Vi a boca, julguei-a por divina, Divina não será, eu não o cri: Mas creio, que não quer a vossa boca Por rubi, nem por cravo fazer troca. Ver o aljôfar nevado, que desata, A Aurora sobre a gala do rosal; Ver em rasgos de nácar tecer prata, E pérolas em concha de coral: Ver diamantes em golpes de escarlata Em picos de rubi puro cristal, É ver os vossos dentes de marfim Por entre os belos lábios de carmim. No peito desatina o Amor cego Cego só pelo amor do vosso peito; Peito, em que o cego Amor não tem sossego, Só cego por não ver-lhe amor perfeito: Perfeito, e puro amor em tal emprego Emprego assemelhando à causa efeito, Efeito, que é mal feito ao dizer mais, Quando chega o Amor a extremos tais. Tanto se preza o Amor do vosso amor, Que mais prazer o tem em amor tanto, Tanto, que diz o amor, que outro maior Não teve por amor, nem por encanto: Encanto é ver o Amor em tal ardor, Que arde tão bem o peito, por espanto; 49

Tendo de vivo fogo por sinal Duas vivas empolas de cristal. A dizer eu das mãos não me aventuro, Que a ventura das mãos a tudo mata, Mata Amor nessas mãos já tão seguro, Que tudo as mãos lavadas desbarata: A cuja neve, prata, e cristal puro Se apurou o cristal, a neve a prata: Belíssimas pirâmides formando Onde Amor vai as almas sepultando. Descrever a cintura não me atrevo, Porque a vejo tão breve, e tão sucinta, Que em vê-la me suspendo, e me elevo, Por não ver até agora melhor cinta: Mas porque siga o estilo, que aqui levo, Digo, que é a vossa cinta tão distinta Que o Céu se fez azul de formosura, Só para cinto ser de tal cintura. Vamos já para o pé: Mas, tate-tate! Que descrever um pé tão peregrino, Se loucura não é, é desbarate, Desbarate, que passa o desatino: A que me desatine, me dá mate O picante de pé tão pequenino, Que pé tomar não posso em tal pegada, Pois é tal vosso pé, que em pontos nada. GREGÓRIO DE MATOS [16- ] Obra poética. Ed. James Amado. 4ª. Edição. Rio de Janeiro: Record, 1999, vol. 2.

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ESPREMA A VIL CALÚNIA MUITO EMBORA,

Esprema a vil calúnia muito embora, Entre as mãos denegridas e insolentes, Os venenos das plantas E das bravas serpentes; Chovam raios e raios, no meu rosto Não hás de ver, Marília, o medo escrito; O medo perturbado, Que infunde o vil delito. Podem muito, conheço, podem muito, As fúrias infernais, que Pluto move; Mais pode mais que todas Um dedo só de Jove. Este deus converteu em flor mimosa, A quem seu nome deram, a Narciso, Fez de muitos os astros, Qu’inda no céu diviso. Ele pode livrar-me das injúrias Do néscio, do atrevido, ingrato povo; Em nova flor mudar-me, Mudar-me em astro novo. Porém se os justos céus, por fins ocultos, Em tão tirano mal me não socorrem, 51

Verás então que os sábios, Bem como vivem, morrem. Eu tenho um coração maior que o mundo, Tu, formosa Marília, bem o sabes: Um coração, e basta, Onde tu mesma cabes. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA [1812] Poesias e Cartas chilenas. Ed. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: INL, 1952

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QUARTO POEMA O que é mais longo do que um caminho? O que chora no escuro além da fonte? O que vai, não volta e nunca é longe? O que machuca essa boca é o amargo espinho? Por que tem a saudade a cor do plátano? Era vidro. Sabias quando o deste? (Por que flutua assim sem que se quebre?) Era pouco. Sabias quando o tinhas? (Por que flutua assim sem que se acabe?) E as promessas? e os sonhos? e as carícias? Estava escrito nos astros o encontro? Não nos dera o poema um dia apenas? Por que não pode o sonho contra o tempo? Por que não pode o tempo contra o sono? ELISABETH HAZIN [1994] O arqueiro e a lua. Recife: FUNDARPE, 1994.

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QUE AMOR É ESSE QUE, DESPERTO, DORME

Que amor é esse que, desperto, dorme e quando acorda faz-se ambíguo sonho, transfigurando o belo no medonho e em noite espessa a vida multiforme? Então amor é só o que suponho, o que não digo por ser tão informe que fôrma alguma lhe é jamais conforme como este molde em que teimoso o ponho? Será amor o que se esquiva à fala ou à linguagem que o pretende claro? E o que seria esse tremor mais raro que ao aflorar parece que se cala? Amor oblíquo que olha de soslaio, mas que ilumina e queima como raio… IVAN JUNQUEIRA [1982] Cinco movimentos. Rio de Janeiro: Gastão de Holanda Editor, 1982.

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DEFINIÇÃO DO AMOR

ROMANCE Mandai-me, Senhores hoje que em breves rasgos descreva do Amor a ilustre prosápia, e de Cupido as proezas. Dizem, que da clara escuma, dizem, que do mar nascera, que pegam debaixo d’água, as armas, que Amor carrega. Outros, que fora ferreiro seu Pai, onde Vênus bela serviu de bigorna, em que malhava com grã destreza. Que a dous assopros lhe fez o fole inchar de maneira, que nele o fogo acendia, nela aguava a ferramenta. Nada disto é, nem se ignora, que o Amor é fogo, e bem era tivesse por berço as chamas se é raio nas aparências. Este se chama Monarca, ou Semideus se nomeia, cujo céu são esperanças, cujo inferno são ausências. Um Rei, que mares domina, 55

um Rei, o mundo sopeia, sem mais tesouro, que um arco, sem mais arma, que uma seta. O arco talvez de pipa, a seta talvez de esteira, despido como um maroto, cego como uma Topeira. Um maltrapilho, um ninguém, que anda hoje nestas eras com o cu à mostra, jogando com todos a cabra-cega. Tapando os olhos da cara, por deixar o outro alerta por detrás à italiana, por diante à portuguesa. Diz, que é cego, porque canta, ou porque vende gazetas das vitórias, que alcançou na conquista das finezas. Que vende também folhinhas cremos por cousa mui certa, pois nos dá os dias santos, sem dar ao cuidado tréguas; E porque despido o pintam, é tudo mentira certa, mas eu tomara ter junto o que Amor a mim me leva. Que tem asas com que voa e num pensamento chega assistir hoje em Cascais logo em Coina, e Salvaterra. Isto faz um arrieiro com duas porradas tesas: e é bem, que no Amor se gabe, 56

o que o vinho só fizera! E isto é Amor? é um corno. Isto é Cupido? má peça. Aconselho, que o não comprem ainda que lhe achem venda. Isto, que o Amor se chama, este, que vidas enterra, este, que alvedrios prostra, este, que em palácios entra: Este, que o juízo tira, Este, que roubou a Helena, este, que queimou a Tróia, e a Grã-Bretanha perdera: Este, que a Sansão fez fraco, este, que o ouro despreza, faz liberal o avarento é assunto dos Poetas: Faz o sisudo andar louco, faz pazes, ateia a guerra, o Frade andar desterrado, endoudece a triste Freira. Largar a almofada a Moça, ir mil vezes à janela, abrir portas de cem chaves, e mais que gata janeira. Subir muros, e telhados, trepar cheminés, e gretas, chorar lágrimas de punhos gastar em escritos resmas. Gastar cordas em descantes perder a vida em pendências, este, que não faz parar oficial algum na tenda. O Moço com sua Moça, 57

o Negro com sua Negra, este, de quem finalmente dizem, que é glória, e que é pena. É glória, que martiriza, uma pena, que receia, é um fel com mil doçuras, favo com mil asperezas. Um antídoto, que mata, doce veneno, que enleia, uma discrição sem siso, uma loucura discreta. Uma prisão toda livre, uma liberdade presa, desvelo com mil descansos, descanso com mil desvelos. Uma esperança, sem posse, uma posse, que não chega, desejo, que não se acaba, ânsia, que sempre começa. Uma hidropisia d’alma, da razão uma cegueira, uma febre da vontade uma gostosa doença. Uma ferida sem cura, uma chaga, que deleita, um frenesi dos sentidos, desacordo das potências. Um fogo incendido em mina, faísca emboscada em pedra, um mal, que não tem remédio, um bem, que se não enxerga. Um gosto, que se não conta, um perigo, que não deixa, um estrago, que se busca, 58

ruína, que lisonjeia. Uma dor, que se não cala, pena, que sempre atormenta, manjar, que não enfastia, um brinco, que sempre enleva. Um arrojo, que enfeitiça, um engano, que contenta, um raio, que rompe a nuvem, que reconcentra a esfera. Víbora, que a vida tira àquelas entranhas mesmas, que segurou o veneno, e que o mesmo ser lhe dera. Um áspide entre boninas, entre bosques uma fera, entre chamas Salamandra, pois das chamas se alimenta. Um basalisco, que mata, lince, que tudo penetra, feiticeiro, que adivinha, marau, que tudo suspeita Enfim o Amor é um momo, uma invenção, uma teima, um melindre, uma carranca, uma raiva, uma fineza. Uma meiguice, um afago um arrufo, e uma guerra, hoje volta, amanhã torna, hoje solda, amanhã quebra. Uma vara de esquivanças, de ciúmes vara e meia, um sim, que quer dizer não, não, que por sim se interpreta. Um queixar de mentirinha, 59

um folgar muito deveras, um embasbacar na vista, um ai, quando a mão se aperta. Um falar por entre dentes, dormir a olhos alerta, que estes dizem mais dormindo, do que a língua diz discreta. Uns temores de mal pago, uns receios de uma ofensa um dizer choro contigo, choromigar nas ausências. Mandar brinco de sangrias, passar cabelos por prenda, dar palmitos pelos Ramos, e dar colar pela festa. Anel pelo São João, alcachofras na fogueira, ele pedir-lhe ciúmes, ela sapatos, e meias. Leques, fitas, e manguitos, rendas da moda francesa, sapatos de marroquim, guarda-pé de primavera. Livre Deus, a quem encontra, ou lhe suceder ter Freira; pede-vos por um recado sermão, cera, e caramelas. Arre lá com tal amor! isto é amor? é quimera, que faz de um homem prudente converter-se logo em besta. Uma bofia, uma mentira chamar-lhe-ei mais depressa, fogo salvaje nas bolsas, 60

e uma sarna das moedas. Uma traça do descanso, do coração bertoeja, sarampo da liberdade, carruncho, rabuge, e lepra. É este, o que chupa, e tira vida, saúde, e fazenda, e se hemos falar verdade é hoje o Amor desta era. Tudo uma bebedice, ou tudo uma borracheira, que se acaba co dormir, e co dormir se começa. O Amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve temor de artérias. Uma confusão de bocas uma batalha de veias, um rebuliço de ancas, quem diz outra coisa, é besta. GREGÓRIO DE MATOS [16 -] Obras completas. Edição James Amado. Salvador: Janaína, 1968, vol 5.

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Ele me guia a mim, não eu a ele Alexandre de Gusmão

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OTELO

Quem minha angústia suportar, prefira a morte, redentora, à desventura de não poder, nas vascas da loucura, distinguir a verdade da mentira. Infrene dúvida, implacável ira, esta que me alucina e me tortura! — Ter ciúmes da luz, formosa e pura, do chão, da sombra e do ar que se respira! Invejo a veste que te esconde! a espuma que, beijando teu corpo, linha a linha, toda do teu aroma se perfuma! Amo! E o delírio desta dor mesquinha, faz que eu deseje ser tu mesma, em suma, para ter a certeza de que és minha! Martins Fontes [1917] Poesia. Cassiano Ricardo, org. Rio de Janeiro: Agir, 1959 (Nossos clássicos).

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NÃO TE CASES COM GIL, BELA SERRANA

Não te cases com Gil, bela Serrana; Que é um vil, um infame, um desastrado; Bem que ele tenha mais devesa, e gado, A minha condição é mais humana. Que mais te pode dar sua cabana, Que eu aqui te não tenha aparelhado? O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado, Tudo aqui acharás nesta choupana. Bem que ele tange o seu rabil grosseiro, Bem que te louve assim, bem que te adore, Eu sou mais extremoso e verdadeiro. Eu tenho mais razão, que te enamore; E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro: Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore.

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA [1768] Obras de Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Cultrix, 1992.

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A UMA PASTORA TÃO FORMOSA COMO INGRATA

Pastora a mais formosa, e desumana, Que fazes de matar-me alarde, e gosto: Como é possível que um tão lindo rosto Unisse o Céu a uma alma tão tirana? Cruel! Que te fiz eu, que me aborreces? Tens duro coração, mais que um rochedo! Sou tigre, ou sou leão, que meta medo, Que apenas tu me vês desapareces? Por ti tão esquecido ando de tudo, Que o gado no redil deixei faminto; O sol me fere a prumo, e não o sinto; A ovelha está a chamar-me, e não lh’acudo. Lá vai o tempo já, que em baile, e canto Eu era no lugar o mais famoso; Agora sempre aflito, e pesaroso Só o que eu sei é desfazer-me em pranto. Há pouco que encontrei alguns Pastores, 65

Que iam comigo ao monte após o gado, Que não me conheceram de mudado. Que tal me têm parado os teus rigores! Até o rebanho meu, que um dia viste Tão nédio antes que eu enlouquecesse, Não come já, nem medra, e se emagrece Por dó, que tem de ver-me andar tão triste. Ele me guia a mim, não eu a ele, Que vou nos meus pesares enlevado; Bem pode o lobo vir, levar-me o gado À minha vista, sem que eu dê fé dele. Não sei que nuvem trago neste peito, Que tudo quanto vejo me entristece; A flor do campo parda me parece; Até ao mesmo sol acho imperfeito. Do alegre prado fujo para o escuro Encontro mais triste dos rochedos; Ali pergunto às feras e aos penedos Se alguém é mais que tu cruel e duro? Ali ouço soar rompendo o mato Do ribeirinho as saüdosas águas: E em competência vão as minhas mágoas Dos olhos despedindo outro regato. Este mal, que hoje sofro, eu o mereço, Que ingrato desprezei quem me queria; Agora que me vê, faz zombaria Que bem vingada está no que padeço.

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Então não conhecia o que amor era; Também me ria do tormento alheio; Oh quão cedo (inda mal) o tempo veio Que o conheço já mais do que quisera. ALEXANDRE DE GUSMÃO [1841] Vários escritos inéditos políticos e literários. São Paulo: Edições Cultura, 1943.

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SOFRER POR GOSTO Todo o mundo está pasmado De me ver andar assim, Ando cumprindo o meu fado, Ninguém tenha dó de mim. Estou preso e mui bem preso, Amor foi o meu malsim, Mas prisões d’Amor são doces, Ninguém tenha dó de mim. Já não tenho liberdade, Que rendê-la a Amor eu vim, Sou cativo por meu gosto, Ninguém tenha dó de mim. Todos chamam mal d’Amor Mal perverso, mal ruim, Eu padeço sem queixar-me, Ninguém tenha dó de mim. Eu adoro a uma ingrata Não há gênio mais ruim, Assim mesmo gosto dela, Ninguém tenha dó de mim. Tenho dito, não importa Que o meu bem me trate assim, Que esta vida toda é dela, Ninguém tenha dó de mim. Eu bem sinto a minha vida Quase posta já no fim, Mas morrer d’Amor me alegra, Ninguém tenha dó de mim. DOMINGOS CALDAS BARBOSA [1798] Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

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CONTRA NATURAM

1. o melhor amor, contra naturam, ama-se por isso amo (carícia em riste) por isso amas (não asas, azagaias): corais no corpo contra o tédio do amor (essa mistura de torpor gaia inconsciência e palavras em estado de ronsard) 2. rosnar, antes: mandíbulas à mostra por todo o corpo 3. (tatear num corpo que se despe a nudez que se crispa) 4. sonar, este, como aliás qualquer deus não pede menos do que pavor não pode menos que atear chispas

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5. e sua mestria: com pontas de fogo tatuar águas-vivas

CARLITO AZEVEDO [1991] Sublunar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.

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MINERAÇÃO DO OUTRO

Os cabelos ocultam a verdade. Como saber, como gerir um corpo alheio? Os dias consumidos em sua lavra significam o mesmo que estar morto. Não o decifras, não, ao peito oferto mostruário de fomes enredadas, ávidas de agressão, dormindo em concha. Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento, e cada abraço tece além do braço a teia de problemas que existir na pele do existente vai gravando. Viver-não, viver-sem, como viver sem conviver, na praça de convites? Onde avanço, me dou, e o que é sugado ao mim de mim, em ecos se desmembra; nem resta mais que indício, pelos ares lavados, do que era amor e, dor agora, é vício. O corpo em si, mistério: o nu, cortina de outro corpo, jamais apreendido, assim como a palavra esconde outra voz, prima e vera, ausente de sentido. 71

Amor é compromisso com algo mais terrível do que amor? — pergunta o amante curvo à noite cega, e nada lhe responde, ante a magia: arder a salamandra em chama fria. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE [1962] Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

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O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR,

O mundo que venci deu-me um amor, Um troféu perigoso, este cavalo Carregado de infantes couraçados. O mundo que venci deu-me um amor Alado galopando em céus irados, Por cima de qualquer muro de credo, Por cima de qualquer fosso de sexo. O mundo que venci deu-me um amor Amor feito de insulto e pranto e riso, Amor que força as portas dos infernos, Amor que galga o cume ao paraíso. Amor que dorme e treme. Que desperta E torna contra mim, e me devora E me rumina em cantos de vitória… MÁRIO FAUSTINO [1955] O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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LOGRADOR

Você habita o próprio centro de um coração que já foi meu. Por dentro torço por que dentro em pouco lá só more eu. Livre de todos os negócios e vícios que advêm de amar lá seja o centro de alguns ócios que escolherei por cultivar. Para que os sócios vis do amor, rancor, dor, ódio, solidão, não mais consumam meu vigor, amado e amor banir-se-ão do centro rumo a um logrador subúrbio desse coração. ANTONIO CICERO [1996] Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

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ESTIVE SEMPRE DE PÉ NO ÔNIBUS, ESPREMIDO ENTRE O FERRO Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro da cadeira e o rumor dos passageiros. Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos. Estive sempre de pé no ônibus, me defendendo ao largo do corrimão de tantos rumos, alianças e ponteiros com paradas diferentes. E o brado irritante do cobrador ainda a exigir um passo à frente. O fato de não ter sido é mais trabalhoso do que a fama. Prossegui a me imaginar, sondando o que poderia ter vivido. Disperso, anônimo, no comício do mar e nas trevas. Diminuindo o risco, reduzimos a possibilidade de nos libertar. O medo, o medo, o medo é o que nos faz escolher. Descobre-se um amor na iminência de perdê-lo. CARPINEJAR [2001] Terceira sede. São Paulo: Escrituras, 2001.

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MULHERES

Por que temos que amar tanto as mulheres? Viveríamos decerto mais tranqüilos — a mulher é um jantar de mil talheres — em companhia apenas de um ou dois livros. Pound percebia o ronronar de invisíveis antenas estando em companhia delas. A mulher é uma lista de impossíveis: é ela o verdadeiro mundo às avessas. E que não venham chamar de misógino este que, no máximo, é um misantropo (deseja estar sozinho, ma non troppo) e que ama tanto o sexo feminino sem que uma boa razão para isso exista que chega a ser um fero feminista. JOÃO MOURA JR. [1988] Páginas Amarelas. São Paulo: Duas cidades, 1988.(Claro Enigma)

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O AMOR, ESSE SUFOCO o amor, esse sufoco, agora há pouco era muito, agora, apenas um sopro ah, troço de louco, corações trocando rosas, e socos PAULO LEMINSKI (1987) Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987. AMOR, ENTÃO, Amor, então, também, acaba? Não, que eu saiba. O que eu sei é que se transforma numa matéria-prima que a vida se encarrega de transformar em raiva. Ou em rima. PAULO LEMINSKI (1983) Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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AS COISAS DA CASA Trazia nas mãos pressurosas o ramo das rosas do arrependimento. E no botão da rosa mais vistosa a abelha venenosa que bulia por dentro.

A raiva invadiu a casa numa labareda violenta. Crestou tudo! Agora os dois carregam baldes de água para dentro, espionados pelos vizinhos, que olham de longe, por trás de gelosias engelhadas. MARCELO SANDMANN [2000] Lírico renitente. São Paulo: 7Letras, 2000.

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FAZ A IMAGINAÇÃO DE UM BEM AMADO Faz a imaginação de um bem amado, Que nele se transforme o peito amante; Daqui vem, que a minha alma delirante Se não distingue já do meu cuidado. Nesta doce loucura arrebatado Anarda cuido ver, bem que distante; Mas ao passo, que a busco, neste instante Me vejo no meu mal desenganado. Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo, E por força da idéia me converto Na bela causa de meu fogo ativo; Como nas tristes lágrimas, que verto, Ao querer contrastar seu gênio esquivo, Tão longe dela estou, e estou tão perto. CLÁUDIO MANUEL DA COSTA [1768] Obras de Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Cultrix, 1992.

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RECORDAÇÃO

Nessun maggior dolore… Dante

Quando em meu peito as aflições rebentam Eivadas de sofrer acerbo e duro; Quando a desgraça o coração me arrocha Em círculos de ferro, com tal força, Que dele o sangue em borbotões golfeja; Quando minha alma de sofrer cansada, Bem que afeita a sofrer, sequer não pode Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos Rebeldes, uma lágrima não vertem Do mar d’angústias que meu peito oprime: Volvo aos instantes de ventura, e penso Que a sós contigo, em prática serena, Melhor futuro me augurava, as doces Palavras tuas, sôfregos, atentos Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida Longa, bem longa, não bastara ainda por que de os ver me saciasse!… O pranto Então dos olhos meus corre espontâneo, Que não mais te verei. — Em tal pensando 80

De martírios calar sinto em meu peito Tão grande plenitude, que a minha alma Sente amargo prazer de quanto sofre. GONÇALVES DIAS [1846] Cantos. Edição preparada por Cilaine Alves da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Poetas do Brasil)

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NEL MEZZO DEL CAMIN…

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha… E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje, segues de novo… Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo. OLAVO BILAC [1888] Poesias. Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Poetas do Brasil)

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DUAS ALMAS

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada, entra, e, sob este teto encontrarás carinho: Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho, vives sozinha sempre, e nunca foste amada… A neve anda a branquear, lividamente, a estrada, e a minha alcova tem a tepidez de um ninho. Entra, ao menos até que as curvas do caminho se banhem no esplendor nascente da alvorada. E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa, essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua, podes partir de novo, ó nômade formosa! Já não serei tão só, nem irás tão sozinha: Há de ficar comigo uma saudade tua… Hás de levar contigo uma saudade minha… ALCEU WAMOSY [1914] Coroa de sonho. Poesias. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1925.

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SOB OS RAMOS

É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora, No meu cavalo — sob a loira poeira Que chove o sol — e vai-me a vida inteira No meu cavalo, pela estrada afora. Ai! desta em que te escrevo alta mangueira Sob a copada verde a gente mora. E em vindo a noite, acende-se a fogueira Que se fez cinza de fogueira agora. Passa-me a vida pelo campo... E a vida Levo-a cantando, pássaros no seio, Qual se os levasse a minha mocidade... Cada ilusão floresce renascida; Flora, renasces ao primeiro anseio Do teu amor... nas asas da Saudade! PEDRO KILKERRY [1907]

In: CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de Cultura, 1970.

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O "ADEUS" DE TERESA

A vez primeira que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus… E amamos juntos… E depois na sala “Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala… E ela, corando, murmurou-me: “adeus.” Uma noite… entreabriu-se um reposteiro… E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus… Era eu… Era a pálida Teresa! “Adeus” lhe disse conservando-a presa… E ela entre beijos murmurou-me: “adeus!” Passaram tempos… sec’los de delírio Prazeres divinais… gozos do Empíreo… …Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse — “Voltarei!… descansa!…” Ela, chorando mais que uma criança, Ela em soluços murmurou-me: “adeus!” Quando voltei… era o palácio em festa!… E a voz d’Ela e de um homem lá na orquestra Preenchiam de amor o azul dos céus. 85

Entrei!… Ela me olhou branca… surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!… E ela arquejando murmurou-me: “adeus!” São Paulo, 28 de agosto de 1868. CASTRO ALVES [1870] Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

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TERESA

A primeira vez que vi Teresa Achei que ela tinha pernas estúpidas Achei também que a cara parecia uma perna Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) Da terceira vez não vi mais nada Os céus se misturaram com a terra E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. MANUEL BANDEIRA [1930] Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

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A D. BÁRBARA HELIODORA (SUA ESPOSA REMETIDA DO CÁRCERE DA ILHA DAS COBRAS)

Bárbara bela, Do Norte estrela, Que o meu destino Sabes guiar, De ti ausente Triste somente As horas passo A suspirar. Por entre as penhas De incultas brenhas Cansa-me a vista De te buscar; Porém não vejo Mais que o desejo, Sem esperança De te encontrar. Eu bem queria A noite e o dia Sempre contigo Poder passar; Mas orgulhosa Sorte invejosa, Desta fortuna Me quer privar. Tu, entre os braços, Ternos abraços Da filha amada

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Podes gozar; Priva-me a estrela De ti e dela, Busca dous modos De me matar! ALVARENGA PEIXOTO [1865] Poesias. In: LAPA, M. Rodrigues. Vida e obra de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: INL, 1960.

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ME CHUPE COM MUITA PENA Me chupe com muita pena nesta cama bravia encapelada de lençóis de espuma; todo mar revolto não cabe aqui neste leito e transborda pelo chão e as roupas bóiam no naufrágio sob a luz da lâmpada.

ARMANDO FREITAS FILHO [1985] 3 x 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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MAPA Eis a carta dos céus: as distâncias vivas indicam apenas roteiros os astros não se interligam e a distância maior é olhar apenas. A estrela vôo e luz somente sempre nasce agora: desconhece as irmãs e é sem espelho. Eis a carta dos céus: tudo indeterminado e imprevisto cria um amor fluente e sempre vivo. Eis a carta dos céus: tudo se move. ORIDES FONTELA [1983] Trevo. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro Enigma)

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NÃO PROMETO QUE AS LARANJAS AMADUREÇAM

Não prometo que as laranjas amadureçam arredondadas, que a colmeia transborde brasas, que a horta de verduras seja eito de ventura. Não peço que leias pensamentos, muitos deles te feririam. Quero te deixar enfurecida, ofender tua insônia. Quero bombear mais rápido teu sangue, ciscar no idioma uma palavra que te maltrate. Quero ser tua impaciência esfriando devagar, rir de tua loucura ajeitando as malas. O jogo de cena contenta os casais que ensaiam seus papéis. Não a nós, aprumados na contenda. Nossos corpos foram moldados à discordância. A mesma proximidade que mata, salva. CARPINEJAR [2001] Terceira sede. São Paulo: Escrituras, 2001.

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AMOR E MEDO I. Quando eu te fujo e me desvio cauto Da luz de fogo que te cerca, oh! bela, Contigo dizes, suspirando amores: “— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!” Como te enganas! meu amor é chama, Que se alimenta no voraz segredo, E se te fujo é que te adoro louco… És bela — eu moço; tens amor — eu medo!… Tenho medo de mim, de ti, de tudo, Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes, Das folhas secas, do chorar das fontes, Das horas longas a correr velozes. O véu da noite me atormenta em dores, A luz da aurora me entumece os seios, E ao vento fresco do cair das tardes Eu me estremeço de cruéis receios. É que esse vento que na várzea — ao longe, Do colmo o fumo caprichoso ondeia, Soprando um dia tornaria incêndio A chama viva que teu riso ateia!

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Ai! se abrasado crepitasse o cedro, Cedendo ao raio que a tormenta envia, Diz: — que seria da plantinha humilde Que à sombra dele tão feliz crescia? A labareda que se enrosca ao tronco Torrara a planta qual queimara o galho, E a pobre nunca reviver pudera, Chovesse embora paternal orvalho! II. Ai! se eu te visse no calor da sesta. A mão tremente no calor das tuas, Amarrotado o teu vestido branco, Soltos cabelos nas espáduas nuas!… Ai! se eu te visse, Madalena pura, Sobre o veludo reclinada a meio, Olhos cerrados na volúpia doce, Os braços frouxos — palpitante o seio!… Ai! se eu te visse em languidez sublime, Nas faces as rosas virginais do pejo, Trêmula a fala a protestar baixinho… Vermelha a boca, soluçando um beijo!… Diz: — que seria da pureza d’anjo, Das vestes alvas, do candor das asas? — Tu te queimaras, a pisar descalça, — Criança louca, — sobre um chão de brasas! No fogo vivo eu me abrasara inteiro! Ébrio e sedento na fugaz vertigem, Vil, machucara com meu dedo impuro 94

As pobres flores da grinalda virgem! Vampiro infame, eu sorveria em beijos Toda a inocência que teu lábio encerra, E tu serias no lascivo abraço Anjo enlodado nos pauis da terra. Depois… desperta no febril delírio, — Olhos pisados — como um vão lamento, Tu perguntaras: — qu’é da minha c’roa?… Eu te diria: desfolhou-a o vento!… Oh! não me chames coração de gelo! Bem vês: traí-me no fatal segredo. Se de ti fujo é que te adoro e muito, És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!… Outubro, 1858.

CASIMIRO DE ABREU [1859] As primaveras. Edição preparada por Wagner Camilo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Poetas do Brasil)

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VENDO A ANARDA DEPÕE O SENTIMENTO A serpe, que adornando várias cores, Com passos mais oblíquos, que serenos, Entre belos jardins, prados amenos, É maio errante de torcidas flores; Se quer matar da sede os desfavores, Os cristais bebe co'a peçonha menos, Porque não morra cos mortais venenos, Se acaso gosta dos vitais licores. Assim também meu coração queixoso, Na sede ardente do feliz cuidado Bebe cos olhos teu cristal fermoso; Pois para não morrer no gosto amado, Depõe logo o tormento venenoso, Se acaso gosta o cristalino agrado.

MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA [1705] Manuel Botelho de Oliveira.Música do Parnaso. Rio de Janeiro: INL, 1953.

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GRAÇA

Não saberia dizer a hora em que me desfizera de tudo o que não era teu, quando cada coisa se deixou cobrir por tua presença sem margens e deixou de haver um lado que fosse fora de ti. EUCANÃA FERRAZ [2004] Rua do mundo. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2004.

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HELENA No cômodo onde Menelau vivera Bateram. Nada. Helena estava morta. A última aia a entrar fechou a porta, Levaram linho, ungüento, âmbar e cera. Noventa e sete anos. Suas pernas Eram dois secos galhos recurvados. Seus seios até o umbigo desdobrados Cobriam-lhe três hérnias bem externas. Na boca sem um dente os lábios frouxos Murchavam, ralo pêlo lhe cobria O sexo que de perto parecia Um pergaminho antigo de tons roxos. Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas, Compuseram seus ossos quebradiços, Deram-lhe à boca uns rubores postiços, Envolveram-na em faixas perfumadas. Então chamas onívoras tragaram A carne que cindiu tantas vontades. Quando sua sombra idosa entrou no Hades As sombras dos heróis todas choraram. 6/5/1992

ALEXEI BUENO [1993] Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

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E ele e os outros me vêem Ana Cristina Cesar

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ACEITAÇÃO

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens e sentir passar as estrelas do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos. É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, que desejar que apareças, criando com teu simples gesto o sinal de uma eterna esperança. Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar. CECÍLIA MEIRELES [1939] Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

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ROMANCE DAS TRÊS IRMÃS OU MIRAMAR C’erano tre zitelle E tutti tre d’amore.

Nós éramos três irmãs Num castelo ao pé do mar. A primeira era Marfida, A segunda Guiomar. A terceira por desgraça Miramar se foi chamar. Nós éramos três irmãs, Todas las tres por casar! A primeira tinha um colo Para um punhal se cravar. A segunda tinha uns braços, Oh, quem mos dera a abraçar! A mais formosa de todas, Tinha os olhos cor do mar. Logo por desgraça dela Miramar se foi chamar! Mira, mira, que remira, Passa os dias a mirar As ondas que vão e vêm. Nas águas verdes do mar. Nós éramos três irmãs 101

Num castelo ao pé do mar! Cavaleiros que passavam, No seu lindo galopar, Cavaleiros que passavam, Marfida que ia a espiar. Tanto espiou, que algum dia Um deles que ia a apear. Tão bem que a mão lha pedia, Que ela a não soube negar. Montou logo na garupa, Puseram-se a galopar. Passava mais de ano e dia Que tinham ido a casar, Em derredor do castelo Se escuta um belo cantar. O trovador que trovava, Guiomar que ia a escutar. A voz que entrava no ouvido, A saia de lhe apertar! Chamam dois xastres, a saia Não na podem consertar. Só um frade é que o podia, Que o remédio era casar. Tão cheinha que ela estava Das trovas de aquel trovar! Chamam um frade, ali mesmo Muito bem que os vai juntar. Miramar, a malfadada, Estava mirando o mar. Passam dias, passam noites, Passam anos de contar, Miramar, a malfadada, Estava mirando o mar. Arde o castelo com o fogo 102

Que o demo foi atear. Miramar, a malfadada, Estava mirando o mar!

ONESTALDO DE PENNAFORT [1931] Espelho d’água & Jogos da noite. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1931.

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A NOIVA Ela passa (no mínimo) por dez camadas de felicidade indivisível, situadas entre a nudez e o esplendor das vestes coloridas _ e isso porque o quadro é inacabado: e assim é certamente pela convicção de que a alegria não se conta, o gozo não se enumera. O que eleger como primeiro? Que face apontar, que estágio da vida referir ao único noivo? A ele tão pouco para o que há nela de plural? MARIA LÚCIA DAL FARRA [2002] Livro de Possuídos. São Paulo: Iluminuras, 2002.

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VOA, SUSPIRO MEU, VAI DILIGENTE Voa, suspiro meu, vai diligente, Busca o Lar ditoso onde mora O eterno objeto, que minha alma adora, Por quem tanta aflição meu peito sente. Ao meu bem te avizinha docemente; Não perturbes seu sono: nesta hora, Em que a Amante fiel saudosa chora, Durma talvez pacífico e contente. Com os ares, que respira, te mistura; Seu coração penetra; nele inspira Sonhos de amor, imagens de ternura. Apresenta-lhe a Amante, que delira; Em seu cândido peito amor procura; Vê se também por mim terno suspira. BEATRIZ FRANCISCA DE ASSIS BRANDÃO [1856] Escritoras brasileiras do século XIX. Zahide Muzzart, org. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.

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A MULHER QUE DIZ QUE AMA A mulher que diz que ama Certamente mente, mente. Glosa Sendo notória a má fama Que os homens têm no amor, É ser forte, é ter valor A mulher que diz que ama. O seu mimoso programa Ao mundo é bem evidente: E quando algum diz que sente, Por nós, ânsias de morrer, Num continuo padecer: Certamente mente, mente. ANA EURÍDICE EUFROSINA DE BARANDAS [1845] O ramalhete ou flores escolhidas no jardim da imaginação. Porto Alegre: EDIPUCRS / Nova Dimensão, 1990.

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LAMENTO DE PENÉLOPE de rima em rima vou removendo a resina de poeta sem verso e sem poema de mulher sem nome e sem semema de anjo sem sêmen e só dilema de rio em rio vou cavando o fundo atrás de sono vou fazendo do leito o escorredouro de minha mágoa tristeza e abandono tendo ele se perdido na ilha de Circe — aqui do meu lado só há o fantasma — fui vendo sem que ninguém visse que amor não é coisa que se plasma vou arrastando o corpo pela casa vou varrendo pedaços de asa vou desfazendo a costura das colchas de cama — Eis o destino desta dama. LUCIANA MARTINS [2003] Espetáculo das sensações alheias. Curitiba: Medusa, 2003.

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AO AMOR BÚFALO Que heras venenosas te recubram o avesso dos cabelos onde a idéia de amor brotou torta da cratera desde o início. E o tempo em temporais de areia seja-te leve ó meu suplício. Nada foi verdadeiro na vereda de finos artifícios que teceram com palha a fogueira das malícias, benesses pesadelas: teu passo elefantino e orgulhoso com seus troféus de espanto e garrotes novos à garota agradecida. Seja-te leve esse esconjuro de sal e ardósia, esta laje com jeito e faina de esfiapar-te da lembrança, catavento de cartas de amor despedaçadas. ELISABETH VEIGA [2002] Sonata para pandemônio. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

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EXERCÍCIO

Pular no fosso onde você não está. Exercício de amar à distância, na perda total. O abandono é uma perfeição. Amar sem saber de nada, até onde se esgarça, onde há que se pisar em brasas, a pão e água, sem bênção nenhuma. Amar na decadência e no perigo. Amar o medo disso. Amar no vazio, no vácuo, até o nada completo onde ainda sou capaz de desenhar seu rosto — com que tinta? MARIA RITA KEHL [1996] Processos primários. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

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AUSÊNCIA o que as palavras escondiam de delicadeza no meio da violência o amor na voz que não cabe neste silêncio e a fotografia sobre a mesa nunca enviada … são as palavras que sofrem aqui, onde tudo termina. VIRNA TEIXEIRA [2005] Distância. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

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MINHA ALMA FRIA, E JÁ DESENGANADA

Minha alma fria, e já desenganada, Despida de ilusões e fantasia Em gostoso sossego aqui vivia, Dos prazeres do mundo já deixado. Eis que por novo acaso sou tirada Do profundo letargo, em que jazia; Pela mais agradável simpatia, Aos Elíseos minha alma é transportada! Magnético poder a ti me prende; É só fria amizade? Não: eu minto; Tanto fogo amizade não acende. Que descubro! Oh céus! Belo Filinto! Que repentina luz me aclara e fende! É amor... é amor que por ti sinto! ANA EURÍDICE EUFROSINA DE BARANDAS [1845] O ramalhete ou flores escolhidas no jardim da imaginação. Porto Alegre: EDIPUCRS / Nova Dimensão, 1990.

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TE PROCURO te procuro nas coisas boas em nenhuma encontro inteiro em cada uma te inauguro

MINHA VOZ minha voz não chega aos teus ouvidos meu silêncio não toca teus sentidos sinto muito mas isso é tudo que sinto ALICE RUIZ [1984] Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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PORCO-POETA QUE ME SEI, NA CEGUEIRA, NO CHARCO Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco À espera da Tua Fome, permita-me a pergunta Senhor de porcos e de homens: Ouviste acaso, ou te foi familiar Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve O verbo amar? Porque na cegueira, no charco Na trama dos vocábulos Na decantada lâmina enterrada Na minha axila de pêlos e de carne Na esteira de palha que me envolve a alma Do verbo apenas entrevi o contorno breve: É coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso. Sangra, estilhaça, devora, e por isso De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora. É verbo? Ou sobrenome de um deus prenhe de humor Na péripla aventura da conquista? HILDA HILST [1989] Amavisse. São Paulo: Massao Ohno, 1989.

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PENÉLOPE

O que faço des faço o que vivo des vivo o que amo des amo (meu “sim” traz o “não” no seio). ORIDES FONTELA [1983] Trevo. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro Enigma)

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ULYSSES E ele e os outros me vêem. Quem escolheu este rosto para mim? Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo estilete da minha arte tanto quanto eu temo o dele. Segredos cansados de sua tirania tiranos que desejam ser destronados Segredos, silenciosos, de pedra, sentados nos palácios escuros de nossos dois corações: segredos cansados de sua tirania: tiranos que desejam ser destronados. o mesmo quarto e a mesma hora toca um tango uma formiga na pele da barriga, rápida e ruiva, Uma sentinela: ilha de terrível sede. Conchas humanas. ANA CRISTINA CESAR [1985] Inéditos e dispersos. Armando Freitas Filho, org. São Paulo: Ática, 1985.

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QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE NEM ME SIGA

Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida. HILDA HILST [1995] Cantares do sem nome e de partidas. São Paulo: Massao Ohno, 1995.

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NADA DISFARÇA O APURO DO AMOR

Nada disfarça o apuro do amor. Um carro em ré. Memória da água em movimento. Beijo. Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao céu. Aguço o ouvido. Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar clandestino da felicidade. Preciso me atar ao velame com as próprias mãos. Sirgar. Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que nunca ouvi, pássaros que gemem. ANA CRISTINA CESAR [1985] Inéditos e dispersos. Armando Freitas Filho, org. São Paulo: Ática, 1985.

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POR QUE SOU FORTE Dirás que é falso. Não. É certo. Desço Ao fundo da alma toda vez que hesito... Cada vez que uma lágrima ou que um grito Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço... E toda assombro, toda amor, confesso, O limiar desse país bendito Cruzo: - aguardam-me as festas do infinito! O horror da vida, deslumbrada, esqueço! É que há dentro vales, céus, alturas, Que o olhar do mundo não macula, a terna Lua, flores, queridas criaturas, E soa em cada moita, em cada gruta, A sinfonia da paixão eterna!... E eis-me de novo forte para a luta. (Resende, 7.9.1886)

NARCISA AMÁLIA [1872] Escritoras brasileiras do século XIX. Zahide Muzzart, org. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.

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MUDANÇA A Walmir Ayala Duas salas de cal me esperam, clariabertas,luz ferida. Ainda não é a morte. Outro princípio? O ser gasta a sua vez de viver, e gosta. Viver de vez , que amor consuma tudo corroa em cal toda recusa toda sombra que me case à sua alvura que o amado faça em mim a sua casa. Ah bem-querer-vos amor meu de domingo e retas claras e de abraços em cúpulas sonhadas abertas para o mar do céu aberto como a flor sobe no ar, não destinada a nada que não sejam suas pétalas seu caule vertical na luz do dia no gratuito arroubo de ser flor. Assim, donatário, te amaria floriria para ti a rosa nossa 119

em mim – me habitarias! (Mas digo não ao trauma vigilante da paixão, sua garra, sua devoração.) Mudança, mudança, sem tardança, há que prover dona da casa, um fluido, um fluido cúmplice, um bem chegar que imante portas a colheres, luz à letra, janelas aos vestidos, silêncio à campainha a cama aos armários da cozinha, o amor ao sono, há que vibrar o que está solto numa casa prover princípios às coisas perdidas reperplexas. Ordenação do caos, presença amante! Difícil princípio difícil nossa fragilidade é tão tocante! Ah um afeto, um só comoveria, moveria tão mais em lã a ênfase do esforço de ser em pé, reunir, mobiliar com as coisas do existir o branco espaço inerte. Ser, sem subterfúgio, assumir-me, habitar-me, depois ser visitada sempre e sempre. Difícil princípio no princípio era o caos. Abrir os olhos na manhã toneladas de cansaço me contemplam do fundo dessas pirâmides me arrasto - um alfinete pesa em minha mão – derrocam as barrocas do desgosto 120

sobre a cabeça implume a pele doce. Que importam portas como fazer colheres colham,água ágüe livros livrem, a luz luza o armário armárie, o corpo corpe a alma se anime como que tudo colha, livre, luza, anime, seja? Ah vida das coisas, ah vida, ah minha vida tudo minhas filhas, minhas donas carentes, exigentes de meu cuidado, informação, consentimento? Tenho um cordeiro, uma pomba e uma fonte nos longes azulados ando longe ando léguas partidas para vê-los preciosos, ditosos, tão seamantes! Curto é meu fôlego, meu amor minguante curto é meu fôlego hora de minha morte! Quem me ajuda, quem me companhia nesta calçadinha minha minha neste meio-fio vida e morte que devo atravessar sem atropelo? Cordeiro, pomba minha água da fonte, caminha me naufraga entre a nuvem e a florbela, a louçania da vida eterna ! Me naufraga! Não ainda, não, ainda não, 121

não. Enquanto, singro minha mudança danço minha mudança minha ininterrupta balança - onde meu número, minha rua, minha cidade – danço minha dança de amor, para o que for o mundo me desmonta o coração com sua seta ouço vozes lá fora, são chamados presenças, familiares vozes feitas para a mágoa e para o afeto. Abro devagar as mãos fechadas. Elas consentem, e se enchem lentamente de terra. LÉLIA COELHO FROTA [1971] Poesia lembrada. Apresentação de Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

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E a paixão será arquivada. Mário de Andrade

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MODA DO CORAJOSO

Maria dos meus pecados, Maria, viola de amor… Já sei que não tem propósito Gostar de donas casadas, Mas quem que pode com o peito! Amar não é desrespeito Meu amor terá seu fim. Maria há-de ter um fim. Quem sofre sou eu, que importa Pros outros meu sofrimento? Já estou curando a ferida. Se dando tempo pro tempo Toda paixão é esquecida. Maria será esquecida. Que bonita que ela é!… Não Me esqueço dela um momento! Porém não dou cinco meses, Acabarão as fraquezas E a paixão será arquivada. Maria será arquivada. Por enquanto isso é impossível 124

O meu corpo encasquetou De não gostar senão de uma... Pois, pra não fazer feiura, Meu espírito sublima O fogo devorador. Faz da paixão uma prima, Faz do desejo um bordão, E encabulado ponteia A malvadeza do amor. Maria, viola de amor!… MÁRIO DE ANDRADE [1926] Poesias completas. Belo Horizonte: Vila Rica, 1993.

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HISTÓRIA NATURAL

1 O amor de passagem, o amor acidental, se dá entre dois corpos no plano do animal, quando são mais sensíveis à atração pelo sal, têm o dom de mover-se e saltar o curral. O encontro realizado, juntados em casal, eis que vão assumindo o cerimonial que agora é já difícil definir-se de qual: se ainda do semovente ou já do vegetal (pois os gestos revelam o ritmo luminal de planta, que se move mas no mesmo local).

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No fim, já não se sabe se ainda é vegetal ou se a planta se fez formação mineral à força de querer permanecer tal qual, na permanência aguda que é própria do cristal, que não só pode ser o imóvel mais cabal mas que ao estar imóvel está aceso e atual

2

Depois vem o regresso: sobem do mineral para voltar à tona do reino habitual. Vem o desintegrar-se dessa pedra ou metal em que antes se soldara o duplo vegetal. Vem o difícil desemaranhar-se mal, desabraçar-se lento dessa planta dual

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que enquanto embaraçada lembrava um cipoal (no de parecer uma sendo mesmo plural). Vem o desabraçar-se sem querer, gradual, de plantas que não querem subir ao animal certo por compreender que o bicho inicial a que agora regressam (já vão no vegetal), certo por compreender que o bicho original a que já regressaram desliados, afinal, não mais se encontrarão no palheiro ou areal multi-multiplicado de qualquer capital. JOÃO CABRAL DE MELO NETO [1959] Quaderna.Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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ANTONICO E CORÁ

HISTÓRIA BRASILEIRA

Homenagem ao gênio desconhecido — à primeira inspiração brasileira, o Sr. Tenente-Coronel Antônio Galdino dos Reis.

Corá tinha vinte anos, Antonico pouco mais; Eram ambos dous pombinhos Sem iguais. amavam-se; neste afeto Ninguém dúbios laços veja, Eles estavam ligados… Pela igreja. Corá na voz, nos requebros, Era mesmo uma espanhola, Antonico um Alexandre Na viola. Quatro anos de venturas Passaram os dous no ermo;

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Mas as ditas deste mundo Têm um termo. O nosso herói obrigado, Por uma questão urgente, Teve de deixar a esposa De repente. Corá chorou por três noites, Por três noites lamentou-se; Mas no fim dessas três noites… Consolou-se. Aonde fora Antonico? Bem não sei, nem bem me lembro, Findava-se o mês, suponho, De setembro; Passou outubro, novembro, Dezembro e entrou janeiro, Antonico demorou-se O ano inteiro! Corá, cujos róseos sonhos Mudavam-se em pó e fumo, Tomou sem mais cerimônias Outro rumo. Mas onde estava Antonico? Não sei; dessas longes plagas Guardo apenas na carteira Notas vagas. O que sei é que no cabo 130

De três ou de quatro meses Procurou quem lhe fizesse Dela as vezes. (Dela, previno-te, amigo, Que me refiro a Corá, Como ao correr desta história Se verá.) Ora bem, eis envolvido Antonico um belo dia No crime horrendo que chamam Bigamia! Mísero o gênio do homem! A diversão não o cansa! Tem por lei dos atos todos A mudança! Dous anos mais são passados, E Antonico, quem diria! De sua segunda esposa Se enfastia! Recorda-se dos encantos, Da figura alta e faceira, Dos requebros, dos olhares Da primeira! Maldiz o gênio versátil Que o fez mudar de mulher; Nem mais um beijo à segunda Dá sequer!

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Jura, jura, como jura Bom marido e bom cristão, Sanar de antigos direitos A lesão. Uma tarde se prepara, E a pé, qual romeiro monge, Põe-se contrito a caminho Para longe. Chegando à mísera aldeia, Cumprindo o triste fadário, Vai logo bater à porta Do vigário. Era tarde, mas o padre, Cheio de santo fervor, Ouviu as queixas do aflito Pecador. Meu amigo, disse, é noite, Vai dormir um poucachinho, Volta amanhã, falaremos Bem cedinho. Passa revista em teus erros, Em todos, em todos, filho, Deus te lançará de novo No bom trilho! Assim falou, e Antonico, Fazendo uma reverência, Foi conversar com a pobre Consciência. 132

No dia seguinte, humilde, Nos largos peitos batendo, Voltou à casa do gordo Reverendo. Estava deitado o padre Sobre um mundo de lençóis, Na cama em que repousaram Seus avós. Cama grande, forte, larga, Fabricada para dois, Cujo peso arrastaria Trinta bois! — Bom dia, senhor vigário. — Bom dia, à confissão vem? — Sim, senhor, pode atender-me? — Muito bem: Não é mister levantar-me, Daqui o ouço, não acha? — Benzem-se, e as rezas começam Em voz baixa. Findas as rezas: — Acuse-se, Murmura o bom reverendo. Antonico enxuga os olhos E tremendo Principia: — Ah, padre, padre, Cometi um tal delito Que sou de Deus e dos homens 133

Maldito! Dos homens… ah! se souberem Da ação tão negra e tão feia, Por certo que apodrecera Na cadeia! — Não tenhas medo, prossegue, Filho, em tua confissão; Deus nunca nega aos culpados O perdão. Furtaste acaso? — Não, padre. — Violaste algum penhor? — Não. — Caluniaste, fala! — Fiz pior! — Pior! Juraste então falso? Feriste alguém? — Não, senhor. — Mataste, filho, mataste? — Fiz pior! — Pior? Pior?! Então conta O que hás feito, se quiseres Que te absolva! — Ah! meu padre! Casei com duas mulheres! — Casou com duas mulheres! Com duas! o padre exclama; E treme, agita-se, pula Sobre a cama. E uma feminil cabeça, Ao som desta rude voz, 134

Surge dentre as vastas ondas De lençóis; E ardendo por ver o monstro Bi-casado, a erguer-se vai, Quando um grito de seus lábios Rubro, sai! — Corá!… exclama Antonico. — Compaixão!… brada Corá. — O que é isto? indaga o padre, — Que será? E Corá logo mergulha, Antes que a luta apareça, No meio dos travesseiros A cabeça. — O que é isto? O caso é grave, Novo, intrincado, eu o creio! Explica-te, filho, fala Sem receio. — Quer que eu fale, que me explique, Que esclareça o fato, quer? Não, dê-me sem mais rodeios A mulher! A mulher que me pertence, Que aí repousa a seu lado! É isto que eu chamo um feio, Vil pecado! O padre franze os sobrolhos, 135

Esfrega as orelhas bentas, Passa a língua pelos lábios, Coça as ventas. E fala: — Sossega, filho, Tudo, tudo arranjaremos, Chega-te aqui para perto, Conversemos: — Que tal a tua segunda Mulher? Faceira? Garbosa? Clara ou morena? Morena? Graciosa? Gorda? — Gorda, sim, meu padre. — Olhos negros? — Lindos olhos! — São ciladas à virtude! São escolhos! — São… quanto a braços, pescoço, Cabelos… — Oh! lindos, belos! Que lindo colo! Que braços! Que cabelos! — Bonitos, hein? diz o padre Contente esfregando as mãos, Pois obremos, filho, como Bons cristãos: — Traze-ma, pois, e contigo Levarás esta, formosa, Legítima, incontestável Boa esposa:

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— A carne de tua carne, Mais o osso de teu osso; E assim se expressando, a porta Mostra ao moço. Como as cousas se passaram, Leitor, não guardo memória… Concluí como quiserdes Esta história. FAGUNDES VARELA [1869] Cantos e fantasias e outros cantos. Edição preparada por Orna Messer Sevin. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Poetas do Brasil)

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O AMOR QUE É CÁ DO REINO O amor que é cá do Reino É um amor caprichoso, O do Brasil todo é doce, É bem bom, é bem gostoso. Gentes, como isto Cá é temperado, Que sempre o favor Me sabe a salgado; Nós lá no Brasil A nossa ternura A açúcar nos sabe Tem muita doçura, Oh! Se tem! Tem. Eu tremo se o meu bem vejo Enfadadinho e raivoso; Mas o momento das pazes É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc. Um certo volver dos olhos, Inda um tanto desdenhoso, No meio disto um suspiro É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc. Um dizer-me vá-se embora Com um adeus cicioso E um apertinho de mão É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc. Um ir ver-me da janela Com um modo curioso E então assoar-se a tempo É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc.

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Um temer um ladrãozinho Que me assaltasse aleivoso Bater-lhe por isso o peito, É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc. Ao moço que me acompanha Um perguntar cuidadoso, Um ai de desassustar-se, É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc. Quando triste estou em casa A recordar-me saudoso, Um recadinho que chega É bem bom, é bem gostoso Um escrito em duas regras Dum modo mui amoroso, Um misturado de letras É bem bom, é bem gostoso. Gentes etc. Vir a gente rebulindo Ao chamado imperioso, Ouvir-lhe apre inda não chega! É bem bom, é bem gostoso Gentes etc. Chegar aos pés de nhanhá, Ouvir chamar preguiçoso, Levar um bofetãozinho É bem bom, é bem gostoso. DOMINGOS CALDAS BARBOSA Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1980.

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DOIS SONETOS DE AMOR AO PÉ

28 PSICANALÍTICO

Não tem muitos mistérios o meu ego: O pé, símbolo fálico evidente, ilustra todo o tal do inconsciente com sonhos coloridos, pois sou cego. Se existe algum complexo que carrego, de Édipo não era, certamente. O nome grego só me vem à mente porque “pé inchado” é o étimo que pego. É de inferioridade o meu complexo, explica Freud, e, à luz do que analisa, a fixação no pé ganha seu nexo. Só há libido quando alguém me pisa. Sola na cara é estímulo do sexo. Mais grossa a sola, mais a língua é lisa.

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46

HINDU

Na Índia a felação é tão falada que tem nos “Kama Sutra” um texto inteiro. Lá diz que um servo, como chupeteiro, resolve quando a fêmea não quer nada. Me contam que na mais baixa camada os cegos são mantidos em puteiro e, em troca de comida ou por dinheiro, batalham pra chupar gente abastada. Queria fazer parte desta casta e, além de chupar rola, ser forçado a toda a obrigação dum pederasta: Após ao superior o cu ter dado, ralar a língua vil na sola gasta e suja (Vou gozar!) de seu calçado. GLAUCO MATTOSO (1999) Centopéia: sonetos nojentos e quejandos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999.

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PRETENDE O POETA INTRODUZIR-SE, COM A PRIMEIRA, OU SEGUNDA

Dá-me o Amor a escolher de duas uma demônia, ou Inácia, ou Apolônia, e eu não me sei resolver: a ambas hei de querer, porque depois de as lograr, mais fácil será acertar, que nos risco da eleição o seguro é lançar mão de tudo por não errar. Assim será: mas que monta isto que fazer pertendo, se dirão, que estou fazendo sem a hóspeda esta conta: qual delas será tão tonta, que se acomode aos desares de partir com seus pesares amor, assistência, e tratos, se as damas não são sapatos, que se hajam de ter aos pares. Mas se debaixo da lua não val mais esta, que estoutra eu não deixo, uma por outra, nem escolho outra por uma, não há dúvida nenhuma, 142

que ambas são moças de porte, e se não mo estorva a morte, ambas me hão de vir à mão, Inácia por eleição, e Apolônia pela sorte. Isto que remédio tem, sejam entre si tão manas, que repartindo as semanas, vá uma, quando outra vem; que eu repartirei também jimbo, carinho, e favor, por que advirta algum Doutor, que sendo à lógica oposto, na aritmética do gosto pode repartir-se o amor. GREGÓRIO DE MATOS [16--] Obra poética. Ed. James Amado. 4ª. Edição. Rio de Janeiro: Record, 1999, vol. 2.

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NECROLÓGIO DOS DESILUDIDOS DO AMOR

Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito. Do meu quarto ouço a fuzilaria. As amadas torcem-se de gozo. Oh quanta matéria para os jornais. Desiludidos mas fotografados, escreveram cartas explicativas, tomaram todas as providências para o remorso das amadas. Pum pum pum adeus, enjoada. Eu vou, tu ficas, mas nos veremos seja no claro céu ou turvo inferno. Os médicos estão fazendo a autópsia dos desiludidos que se mataram. Que grandes corações eles possuíam. Vísceras imensas, tripas sentimentais E um estômago cheio de poesia… Agora vamos para o cemitério levar os corpos dos desiludidos encaixotados competentemente (paixões de primeira e de segunda classe). Os desiludidos seguem iludidos, sem coração, sem tripas, sem amor. 144

Única fortuna, os seus dentes de ouro não servirão de lastro financeiro e cobertos de terra perderão o brilho enquanto as amadas dançarão um samba bravo, violento, sobre a tumba deles.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1934) Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

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NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi: mas a desgraça, Que rege minha vida malfadada, Pôs lá no fim da rua do Catete A minha Dulcinéia namorada. Alugo (três mil réis) por uma tarde Um cavalo de trote (que esparrela!) Só para erguer meus olhos suspirando A minha namorada na janela… Todo o meu ordenado vai-se em flores E em lindas folhas de papel bordado… Onde eu escrevo trêmulo, amoroso, Algum verso bonito… mas furtado. Morro pela menina, junto dela Nem ouso suspirar de acanhamento… Se ela quisesse eu acabava a história Como toda a comédia — em casamento… Ontem tinha chovido… Que desgraça! Eu ia a trote inglês ardendo em chama, Mas lá vai senão quando… uma carroça Minhas roupas tafuis encheu de lama… Eu não desanimei. Se Dom Quixote No Rocinante erguendo a larga espada 146

Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Fui mesmo sujo ver a namorada… Mas eis que no passar pelo sobrado, Onde habita nas lojas minha bela, Por ver-me tão lodoso ela irritada Bateu-me sobre as ventas a janela… O cavalo ignorante de namoros Entre dentes tomou a bofetada, Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo Com pernas para o ar, sobre a calçada… Dei ao diabo os namoros. Escovado Meu chapéu que sofrera no pagode… Dei de pernas corrido e cabisbaixo E berrando de raiva como um bode. Circunstância agravante. A calça inglesa Rasgou-se no cair de meio a meio, O sangue pelas ventas me corria Em paga do amoroso devaneio!… ÁLVARES DE AZEVEDO [1873] Lira dos vinte anos. Edição preparada por Maria Lúcia dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Poetas do Brasil)

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TRÊS SONETOS DRAMÁTICOS

ARRUFOS

Não há no mundo quem amantes visse Que se quisessem como nos queremos; Mas hoje uma questiúncula tivemos Por um capricho, por uma tolice. — “Acabemos com isto!” ela me disse. E eu respondi-lhe assim: — “Pois acabemos!” E fiz o que se faz em tais extremos: Tomei do meu chapéu com fanfarrice, E tendo um gesto de desdém profundo, Saí cantarolando. (Está bem visto Que a forma aí contrafazia o fundo). Escreveu-me, voltei. Nem Deus, nem Cristo, Nem minha mãe, volvendo agora ao mundo, Eram capazes de acabar com isto!

148

O INCESTO O Incesto. Drama em 3 atos. Ato primeiro: Jardim. Velho castelo iluminado ao fundo. O cavaleiro jura um casto amor profundo. E a castelã resiste… Um fâmulo matreiro Vem dizer que o barão suspeita o cavaleiro… Ele foge, ela grita… — Apito! — Ato segundo: Um salão do castelo. O barão, iracundo, Sabe de tudo… Horror! Vingança! — Ato terceiro: Em casa do galã, que, sentado, trabalha, Entra o barão armado e diz: — “Morre, tirano, Que me roubaste a honra e me roubaste o amor!” O mancebo descobre o peito. — “Uma medalha! Quem ta deu?” — “Minha mãe!” — “Meu filho!” Cai o pano… À cena o autor! À cena o autor! À cena o autor!

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IMPRESSÕES DE TEATRO A Guimarães Passos Que dramalhão! Um intrigante ousado, Vendo chegar da Palestina o conde, Diz-lhe que a pobre da condessa esconde No seio o fruto de um amor culpado. Naturalmente o conde fica irado. — “O pai quem é?” pergunta. — “Eu”, lhe responde Um pajem que entra. — “Um duelo!” — “Sim! Quando? Onde?” No encontro morre o amante desgraçado. Folga o intrigante… Porém surge o mano, E vendo morto o irmão, perde a cabeça, Crava o punhal no peito do tirano. É preso o mano, mata-se a condessa, Endoidece o marido… e cai o pano, Antes que outra catástrofe aconteça. ARTUR AZEVEDO [1909] Rimas, Rio de Janeiro: Companhia Industrial Americana, 1909.

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SEPARAÇÃO Desmontar a casa e o amor. Despregar os sentimentos das paredes e lençóis. Recolher as cortinas após a tempestade das conversas. O amor não resistiu às balas, pragas, flores e corpos de intermeio. Empilhar livros, quadros, discos e remorsos. Esperar o infernal juízo final do desamor. Vizinhos se assustam de manhã ante os destroços junto à porta: - pareciam se amar tanto! Houve um tempo: uma casa de campo, fotos em Veneza, um tempo em que sorridente o amor aglutinava festas e jantares. Amou-se um certo modo de despir-se, de pentear-se. Amou-se um sorriso e um certo modo de botar a mesa. Amou-se um certo modo de amar. No entanto, o amor bate em retirada com suas roupas amassadas, tropas de insultos malas desesperadas, soluços embargados. Faltou amor no amor? Gastou-se o amor no amor? Fartou-se o amor? No quarto dos filhos outra derrota à vista: bonecos e brinquedos pendem 151

numa colagem de afetos natimortos. O amor ruiu e tem pressa de ir embora envergonhado. Erguerá outra casa, o amor? Escolherá objetos, morará na praia? Viajará na neve e na neblina? Tonto, perplexo, sem rumo um corpo sai porta afora com pedaços de passado na cabeça e um impreciso futuro. No peito o coração pesa mais que uma mala de chumbo. AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA (1992) Poesia reunida 1965-1999. Porto Alegre: L&PM, 2004, v. 2.

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ARS AMANDI

amar amar amar qual ama o nascituro a mama o incendiário a chama o opilado a lama JOSÉ PAULO PAES [1973] Um por todos (poesia reunida). São Paulo: Brasiliense, 1986.

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Morte SEÇÕES

Tudo que pensa passa Ela veio chegando ao ritmo do pulso… O corpo é que nem véu largado sobre um móvel Ao gozo, ao gozo, amiga Não te aflijas com a pétala que voa.

154

Tudo que pensa passa. Permanece a alvenaria do mundo, o que pesa. Paulo Henriques Britto

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AS COISAS QUE TE CERCAM, ATÉ ONDE

As coisas que te cercam, até onde alcança a tua vista, tão passivas em sua opacidade, que te impedem de enxergar o (inexistente) horizonte, que justamente por não serem vivas se prestam para tudo, e nunca pedem nem mesmo uma migalha de atenção, essas coisas que você usa e esquece assim que larga na primeira mesa — pois bem: elas vão ficar. Você, não. Tudo que pensa passa. Permanece a alvenaria do mundo, o que pesa. O mais é enchimento, e se consome. As tais Formas eternas, as Idéias, e a mente que as inventa, acabam em pó, e delas ficam, quando muito, os nomes. Muita louça ainda resta de Pompéia, mas lábios que a tocaram, nem um só. As testemunhas cegas da existência, sempre a te olhar sem que você se importe, vão assistir sem compaixão nem ânsia, 156

com a mais absoluta indiferença, quando chegar a hora, a tua morte. (Não que isso tenha a mínima importância.)

PAULO HENRIQUES BRITTO [2004] Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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ANSIOSAMENTE, A ÁSPERA LADEIRA Ansiosamente, a áspera ladeira subo, a fatal e ríspida subida, que dizem ser pior que a descida, ao escoar da hora derradeira... Sigo essa estrela, pálida romeira, que promete levar-me a uma outra vida... Mas esse ideal de terra prometida bem pode ser uma ilusão traiçoeira! Sigo, apesar de ouvir a todo instante uma voz d’entre as sombras malfazejas, voz que me diz, palidamente triste: – Embalde segues, doido caminhante! O que existe, não queres nem desejas. E aquilo que procuras, não existe. EDUARDO GUIMARÃES [1908] EDUARDO GUIMARÃES. A divina quimera. Org. e prefácio Monsueto Bernardi. Porto Alegre: Globo, 1944.

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ANIMAL BARBADO

Este animal que se rasura como quem raspa a orelha do porco para a feijoada de fim de semana, este animal feroz e matutino, como um auto-retrato, com seus olhos 3 x 4, observa a paisagem da janela e do outro lado do vidro está ele mesmo, é ele a paisagem que envelhece cada vez que a freqüenta. Este homem ao espelho, gilete de martírios e angústias violáceas, barbeia seu minuto e sua morte, exasperada e afiada servidão, a consciência espumosa da pequena guilhotina. RONALDO COSTA FERNANDES [2004] Eterno passageiro. Brasília: Varanda, 2004.

159

QUANDO SE MORRE

Quando se morre o estômago é a primeira parte que se dissolve mas e os olhos? sei que se fecham e sob as pálpebras (relaxadas) se dilatam mas as imagens de que são feitas as palavras também não voltam ao lugar de onde vieram somente os ossos respondem ao encanto como um poema em branco. CONTADOR BORGES [2002] O reino da pele. São Paulo: Iluminuras, 2002.

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FOGO DOS RIOS (Três fragmentos) 27

Vigia-se a morte com o farol dos dias. Mas ela vem chegando viagem noite adentro com a boca da luz aberta no peito.

84-a

Descobri a morte aos poucos imagens que ceifam como foices. Repentinos amanheceres torcidas árvores e frutas podres. Fui provando seus sabores.

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96

Amanhã estarei morto indecifrável aquém dos sinais. Planto em mim flores convictas e atravessarei a noite montado em centauros céleres. Não esperarei o ritual das lamentações. Urdi o fim que devia ser: luminarei.

FERNANDO PAIXÃO [1989] Fogo dos rios. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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AS PERAS As peras, no prato, apodrecem. O relógio, sobre elas, mede a sua morte? Paremos a pêndula. Deteríamos, assim, a morte das frutas? Oh as peras cansaram-se de suas formas e de sua doçura! As peras, concluídas, gastam-se no fulgor de estarem prontas para nada. O relógio não mede. Trabalha no vazio: sua voz desliza fora dos corpos. Tudo é o cansaço de si. As peras se consomem no seu doirado sossego. As flores, no canteiro diário, ardem, ardem, em vermelhos e azuis. Tudo desliza e está só. O dia comum, dia de todos, é a distância entre as cousas. 163

Mas o dia do gato, o felino e sem palavras dia do gato que passa entre os móveis é passar. Não entre os móveis. Passar como eu passo: entre nada. O dia das peras é o seu apodrecimento. É tranqüilo o dia das peras? Elas não gritam, como o galo. Gritar para quê? se o canto é apenas um arco efêmero fora do coração? Era preciso que o canto não cessasse nunca. Não pelo canto (canto que os homens ouvem) mas porque cantando o galo é sem morte. FERREIRA GULLAR [1954] A luta corporal. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994.

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MORTO A J. P. Sartre

morto sem filho nem árvore livros só enfim a existência feita essência: pó JOSÉ PAULO PAES [1988] Melhores poemas. Seleção de Davi Arriguci Jr. São Paulo: Global, 2000.

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MEIOS DE TRANSPORTE 1 O câncer é aquele ônibus que ninguém quer mas com que conta; não se corre atrás dele, mas quando ele passa se toma; que ninguém quer mas sabe; e que um dia ao sair-se do sono, lá está, semi-surpresa, quase pontual, no seu ponto. 2 Sem pontos de parada, solto nas ruas como um táxi, sem o esperar, querer, sem ter por que, se toma o enfarte: táxi que, de repente, ao lado de quem não se pensava, pára, no meio-fio, toma, quem não o vira ou chamara. JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1974) Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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A FLOR E A FONTE "Deixa-me, fonte!" Dizia A flor, tonta de terror. E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor. "Deixa-me, deixa-me, fonte!" Dizia a flor a chorar: "Eu fui nascida no monte..." "Não me leves para o mar." E a fonte, rápida e fria, Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flor. "Ai, balanços do meu galho, "Balanços do berço meu; "Ai, claras gotas de orvalho "Caídas do azul do céu..." Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte, sonora e fria, Rolava, levando a flor. "Adeus, sombra das ramadas, "Cantigas do rouxinol; "Ai, festa das madrugadas, "Doçuras do pôr-do-sol;

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"Carícia das brisas leves "Que abrem rasgões de luar... "Fonte, fonte, não me leves, "Não me leves para o mar!..." As correntezas da vida E os restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor...

VICENTE DE CARVALHO [1902]. Poemas e canções. São Paulo: Saraiva, 1965

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O TEMPO

Espantados olhos vasculhando a treva (A ignorância nossa do mistério é ceva.) Num lugar da noite (ao lado ou cá dentro) dormem o ontem, o hoje, o amanhã e o sempre. Onde a espada que a armadura rompa, onde a lança que desmantele o escudo e mostre as faces do tempo simultâneas? ANDERSON BRAGA HORTA [1971] Fragmentos da paixão. São Paulo: Massao Ohno, 2000.

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CONSTAT

Me dou conta neste exato momento de que sou o homem que vem pensando desde o início do Tempo desde sempre o mesmo homem vindo sempre vindo até este ponto e este ponto neste exato momento se desconcentra. CARLOS LORIA [1988] Aborigem. Salvador: Código, 1988.

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VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU (fragmento)

IX O último trem da Terra chega à região dos mortos. Uma sonorização extinta penetra pelos ouvidos surdos — Vibração sem música da treva inteira. Composição de todas as fases e freqüências De ondas que, invertidas, se desenham no Mundo Nas mais súbitas e inesperadas imagens de Líssajous. — É a sombra soprando nos tubos magnéticos Que o universo abrangem. — Som de cordas ligadas a móveis suportes, a suportes incertos… Fricções, raspagens, torções, percussões, ponteios, pulsações.

Fuscos Fantásticos

ü ý reflexos sônicos de cordas infirmes þ

Fricções de arcos em violinos de ausentes cravelhas Dedilhados sobre fios soltos… em vôo. Entramos no Extremo do aqui e agora Estamos no não “do não ser” e no não ser, Do agora e além da expansão de Tudo. E a expansão no vazio reflui, reverte sobre si mesma Se volta, se faz avessa; Sua sombra é sua luz.

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O trem penetra num espaço de curvatura nula, Interminavelmente nula. Espaço fibrado sobre uma variedade curvi-pluri-universal. — Região dos Mortos — O trem se torna cada vez mais curto e mais opaco. Está fora das galáxias, dos limites Onde se perdeu a real natureza da expansão; Está na região dos mortos onde Não há mais brotar de dimensões; E as florestas do crescer emurcheceram; No entanto há cicatrizes de lembranças E, dentro delas, pulsos a vibrar; Há marcos de ação e movimento Onde involutiva se pressente uma dor. Região dos Mortos! Duas nuvens a ocupam: Uma infinitamente clara (constituída de simples pontos brancos); Outra ilimitadamente escura (constituída de pontos muito negros) Pontos juntos e disjuntos (pontualmente paralelos) (intimamente interpenetráveis) Juntos: sem distância e sem contato. O trem ao se chocar com as nuvens Delas faz ressoar: explosões sônicas, inertes — Que estavam fechadas dentro do som-imagem — Contida música, oculta no som, no cerne do som — Aquele que não se ouve na solidão-silêncio — E os passageiros ouviram o que era provável de ouvir (dentro da nuvem clara) Os choques dos remos da nave Que voltava Da ilha santa de Delos Trazendo para Sócrates 172

O gosto da cicuta — — E ouviram o que era possível de rezar (dentro da nuvem escura) A voz de Maria Caetana, A que foi professora em Bolonha; A que descobriu a Cúbica de Agnesi; E professou depois no convento das Celestes. A voz de Maria Caetana! Rezando? O trem fugia, fugia através da região do esquecimento. Os passageiros viram o que era parecer de ver No pólen da Nuvem Negra A figura aparecer de Adolf Hitler E no claro pólen da Nuvem Branca Em hábito de monja a Judia: Edith Stein Consultando seus cadernos de filosofia. Na nuvem escura, vocalises do soprano Galli-Curci Cantando a Ária da Loucura. — Somente ouvida na nuvem clara. Nas gotas da nuvem escura — Jesus de Nazaré Nas gotas da nuvem clara — Maria Madalena Sem poder tocá-lo. Nos pontos negros da nuvem prefigura-se Mahatma Gandhi E as cabrinhas que lhe deram o saboroso leite; Nas gotas da clara nuvem, os homens Que ele não pôde impedir de morrerem famintos. Os passageiros do trem viram tudo que era de ouvir, Tudo que era de refletir de ver, Todo o perceber que vem do ver, 173

Todo o conhecer do sentir de ouvir. — Entre os pingos das duas nuvens — No vazio que fica portanto entre elas Está um homem tranqüilamente pescando Limpo, agora, de toda a merde do planeta Onde morou: Alfred Jarry. Está pescando todos os peixes Pois usa dois anzóis: um na nuvem escura outro na nuvem clara Na limalha das duas nuvens-manchas Resultantes da desintegração do último metal, O que está além de todos, na Escala de Mendeleev, Não distingui ninguém que, vivo, tivesse conhecido Eu, Passageiro do Trem, Do trem que agora transfoge a região dos mortos, Eu, passageiro do último trem já próximo do céu.

(sinal de surpresa)

Por fim!… — Ninguém — Ninguém! — ouço falar, de súbito, Uma voz irônica e profunda. Teria sido a de um Rei, de um Imperador? De um Presidente de República? Ninguém! O único meu conhecido no fim para-chegar Do último trem.

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X Pois tudo que é vivido é apenas sabido E tudo que é sabido é apenas sonhado Saber do saber físico Sonho do sonhar eterno — Termo da vida-matéria; região dos sonhos. Sonho Sonho do sonho Sonho do sonho do sonho. …………………………… (Tudo é sonhado)

Viver é saber, sentir, sonhar. Sonho: Gás da Razão fictícia. Razão, simples registro da memória dos homens Que não se perderá no Universo 175

Pois nunca foi conhecida, E dela nada se sabe entre as estrelas. Se o trem partisse mais cedo; Se fosse outra a locomotiva escolhida e revelada; Se passasse ao longo de outros quintais; Se outros passageiros conduzisse. Se o trem partisse de madrugada, Se passasse, ao amanhecer, pelos mesmos subúrbios Assistindo o acordar do povoado; Ou com o sol e o azul do meio-dia; Sentisse a monotonia do entre-tarde e manhã. Para qualquer dessas condições Outros seriam os pontos-acontecimentos De sua viagem. Seriam outros o sonho e o sonho do sonho. Outra a visão do, ao céu chegando, último Trem.

lua lenda sobre perene turvo sonho canto macio ouro luto aberta nuvem fecunda longe ríspido cantar rara terra sofre indefinida coro rio azul lâmpada bigorna figos cloro seres densidade

ü ï ï ï ï ï ý motivo fonético ï ï ï ï ï þ

Quase totalmente apagado Totalmente no adormecido do apagado O trem transurge da região do sonho Opaco Turvo

ü reduzido quase a um ponto-superfície ý þ um ponto supérfluo 176

E diminui de tamanho, diminui, se condensa Ao estado super-nuclear; diminui, minidui, nuidimi. O trem e o seu passageiro são agora uma célula Semelhante à que esteve no ventre materno: Ao céu findando, chegando, nascendo. Vendo a primeira luz, Ouvindo a primeira voz; Sonhando o sonho simples da primeira alegria Dentro do primeiro sono. E continua e diminua, diminui, infradiminui E a reduzir-se, a durezir-se, a ziredur-se… O trem chegou além da região do sonho Totalmente apagado; passou, Como uma partícula neutra, Numa câmara de névoas. XI Enfim como uma partícula neutra, Um simples ponto: menos do que o corte de duas retas Um simples ponto sem a sua reversão sem a sua inflexão sem a sua vizinhança. — os que estavam na estação, quando o trem partiu — e que se fizeram mim mesmo Eterno ponto de cada um. O trem caiu sobre uma superfície suprema E nela se integrou no para-sempre. Caiu num corpo de substâncias infinitas:

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Um Toro, um Anel, um Elo de corrente Uma Aldrava, uma Argola, uma Algema Um toro cortado, torcido e recomposto Num campo de direções sem módulos sem fronteiras sem sentidos Representante de todos os números: Os que são, e os que poderão/poderiam ser. — E no âmago desse espaço, último e total Sem métrica e metria, sem ordem física, Sem orientação e sem origem; — No centro dos centros, do anúncio de todos os possíveis, Erguido em Glória, em Majestade, em Grandeza, O Acontecimento Branco. Divino? Eterno. Rio, 1970

JOAQUIM CARDOZO [1970] Poesias completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

178

Ela veio chegando ao ritmo do pulso, sem pressa nem vagar e sem perder o impulso Ferreira Gullar

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COMO VEM GUERREIRA! Como vem guerreira a morte espantosa! Como vem guerreira e temerosa! Suas armas são doença com que a todos acomete; Por qualquer lugar se mete sem nunca pedir licença; Tanto que se dá a sentença da morte espantosa, Como vem guerreira E temerosa! Por muito poder que tenha, ninguém pode resistir. Dá mil voltas, sem sentir, mais ligeira que uma azenha. Quando manda Deus que venha a morte espantosa, como vem guerreira e temerosa! A uns caça quando comem, sem que engulam o bocado. Outros mata no pecado, sem que o gosto nele tomem. Quando menos teme o homem, 180

a morte espantosa como vem guerreira e temerosa! A ninguém quer dar aviso, porque vem como ladrão; Se não acha contrição, Então mata mais de siso. Quando toma de improviso, a morte espantosa como vem guerreira e temerosa! Quando esperas de viver longa vida, mui contente, ela chega de repente, sem deixar-te aperceber. Quando mostra seu poder, a morte espantosa como vem guerreira e temerosa! Tudo lhe serve de espada, com tudo pode matar; em todos acha lugar para dar sua estocada. Ah terrível bombardada da morte espantosa! Como vem guerreira e temerosa! A primeira morte mata o corpo com quanto tem. A segunda, quando vem, 181

a alma e o corpo arrebata, Co’o inferno se contrata a morte espantosa: como vem guerreira e temerosa! JOSÉ DE ANCHIETA [15-- ] Lírica Portuguesa e Tupi. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo: Loyola, 1984.

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NOVA CONCEPÇÃO DA MORTE

Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso na carne, como sempre ocorre aos seres vivos; um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora, mas do fundo do corpo, onde a morte mora, ou dizendo melhor, onde ela circula como a eletricidade ou o medo, na medula dos ossos e em cada enzima, que veicula, no processo da vida, esse contrário: a morte (decidida sem que se saiba de que sorte nem por quem nem por que nem por que côrte de justiça, uma vez que era morte de dentro não de fora (como as que causa externa engendra) Ela veio chegando ao ritmo do pulso, sem pressa nem vagar e sem perder o impulso que empurra a vida para o desenlace, para o ponto onde afinal o sistema dispara 183

cortando a luz do corpo — e a máquina pára. Muito antes, porém, que ocorra esse colapso, chega o aviso da morte, indecifrado, lapsus linguae, sinal errado ou mal pronunciado no código de sais, ou não compreendido deliberadamente: a gente faz ouvido de mercador à voz que a morte noticia pra não ouvi-la, já que não tem serventia ouvi-la e assim saber que a hora está marcada. Só para entristecer-se ante a noite estrelada? Essa é a morte de dentro, endógena; a de fora, a exógena, provém do acaso, se elabora na natureza ou então no tráfego ou no crime e implacável chega, e nada nos exime da injusta sentença, a moral impoluta, a bondade, o latim, nossa boa conduta, nada: a pedra que cai ou a bala perdida sem razão nos atinge e acaba com a vida. Diz-se que dessa morte, a notícia também nos chega, aleatória antecipação, na pronúncia da brisa e dos búzios, além do que se lê na carta e nas linhas da mão.

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Mas, se vinda de dentro ou fora, não se altera essencialmente o fato: a morte, por si, gera um processo que altera as relações de espaço e tempo e modifica, inverte, em descompasso, o curso natural da vida: uma vertigem arrasta tardes, sóis, desperta da fuligem vozes, risos, manhãs já de há muito apagadas, e as precipita velozmente, misturadas, para dentro de si, como fazem as estrelas ao morrer, cuja massa, ao ser prensada pelas forças de contração da morte, se reduz a um buraco voraz de que nem mesmo a luz escapa, e assim também com as pessoas ocorre. E é por essa razão que quando um homem morre, alguém que esteja perto e que apure o ouvido certamente ouvirá, como estranho alarido, o jorrar ao revés da vida que vivera até tornar-se treva o que foi primavera. FERREIRA GULLAR [1999] Muitas vozes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

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COMO A MORTE SE INFILTRA

Certo dia, não se levanta, porque quer demorar na cama. No outro dia ele diz por quê: é porque lhe dói algum pé. No outro dia o que dói é a perna, e nem pode apoiar-se nela. Dia a dia lhe cresce um não, um enrodilhar-se de cão. Dia a dia ele aprende o jeito em que menos lhe pesa o leito. Um dia faz fechar as janelas: dói-lhe o dia lá fora delas. Há um dia em que não se levanta: deixa-o para a outra semana, outra semana sempre adiada, que ele não vê por que apressá-la. Um dia passou vinte e quatro horas incurioso do que é de fora.

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Outro dia já não distinguiu noite e dia, tudo é vazio. Um dia, pensou: respirar, eis um esforço mais que evitar. Quem deixou-o, a respiração? Muda de cama. Eis seu caixão. JOÃO CABRAL DE MELO NETO [1985] Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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A MORTE

A morte fecha o cerco. Pouco a pouco o seu cheiro se alastra em labaredas e gruda-se aos afrescos, ao mármore, aos tapetes, às úmidas paredes, às cinzas da lareira, à poeira das gavetas. A morte e seu cortejo de esgares e trejeitos, de seráficos dedos cruzados sobre o peito. A morte, essa abadessa que vela desde o berço e que, pontual e neutra, é a única certeza. Ela espia, o olho aceso, sua álgida colheita: são milhares de alqueires em que o homem a semeia. Ninguém lhe abre o segredo: é o fim? Será o começo? 188

Não há nenhum espelho que a mostre por inteiro. Inútil que lhe dês convite ou endereço; ela há de estar à mesa de tua última ceia, esquiva às guloseimas e a tudo o que não seja teu híspido esqueleto servido na bandeja. A morte fecha o cerco. Há em tudo um gosto acerbo de ossos e veias secas. A vida sabe a pêsames. IVAN JUNQUEIRA [1987] O grifo. São Paulo: Nova Fronteira, 1987.

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MAIS FIEL QUE A SOMBRA É A MORTE

Mais fiel que a sombra é a morte. Aquela que não queres ser vem e se perde. E tu gritas: — Vida! Mais fiel que a sombra é a morte.

ROSAS FLORESCERAM EM MEUS CABELOS

Rosas floresceram em meus cabelos. Negras rosas do Egito. Meu corpo espera há séculos e a alma o presencia. Só a morte compreende. MARIA ÂNGELA ALVIM [1950] Poemas. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.

190

SE

se nasce morre nasce morre nasce morre renasce remorre renasce remorre renasce remorre re

re

desnasce desmorre desnasce desmorre desnasce desmorre nascemorrenasce morrenasce morre se HAROLDO DE CAMPOS [1958] Poesia concreta. Iumna Simon & Vinicius Dantas, org. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Literatura Comentada)

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DECADÊNCIA

Afinal, é o costume de viver Que nos faz ir vivendo para a frente. Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente O hábito melancólico de ser... Vai-se vivendo... é o vício de viver... E se esse vício dá qualquer prazer à gente, Como todo prazer vicioso é triste e doente, Porque o Vício é a doença do Prazer... Vai-se vivendo... vive-se demais, E um dia chega em que tudo que somos É apenas a saudade do que fomos... Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos Que somos sombras, que já não somos mais nada Do que os sobreviventes de nós mesmos!... RAUL DE LEONI [1928] Luz mediterrânea. São Paulo: Martins, 1959

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O corpo é que nem véu largado sobre um móvel Mário de Andrade

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O EPITÁFIO QUE NÃO FOI GRAVADO

Todos sentiram quando a morte entrou com um frêmito apressado de retardatária.

A que tinha de morrer, — a que a esperava, — fechou os olhos fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado, consoladora dos aflitos, boca de perdão e de indulgência, corpo sem desejo, voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados, mas tranqüilos... Porque os que a choravam nunca saberiam o rancor sem perdão de sua boca, o desejo saciado de seu corpo, o amargor de sua voz, a sua angústia de arrastar até o fim a alma postiça que lhe fizeram, o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa, a perfeição e o orgulho de pecar.

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A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre e os que a choravam nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito à hora do exausto coração parar o mais distante, o mais imóvel, o que não soluçou o que não pôde erguer as pálpebras pesadas, o que sentiu clamar no sangue o desespero de sobreviver, o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário, o que depôs, sobre a serenidade da morte purificadora, a redenção do silêncio, como uma pedra votiva de sepulcro.

FELIPE D’OLIVEIRA [1926] Obra completa. Lígia Militz da Costa, Maria Berenice Moreira e Pedro Brum Santos, org. Porto Alegre: IEL; Santa Maria: UFSM, 1990.

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O MORTO I A chuva lavou As pessoas do morto E lavou o morto Com a sua fisionomia De torto E com seus pés de morto Que arrastava um rio seco E suas mãos de morto Onde se dependurou Insistente, um gesto oco. À noite enterrou-se O homem Na raiz de um muro Com sua roupa de corpo. E a chuva chegou no horto Desse vitorioso Homem morto Enormes violetas E uns caramujos férteis…

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II Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos. Sentado como um doutor Veja que respeito nutre pelo silêncio… Que morto! Um piano dormindo no fundo de um poço Não é mais cômodo do que um homem morto num porto. Veja que comodidade: Ele não usará seus dedos secos nunca mais para pegar em moças… Que morto! MANOEL DE BARROS [1969] Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

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O MORTO

Qual a verdade que o morto conheceu, além dos muros, e lhe fez cerrar os lábios, estrangulando a palavra porventura essencial? Enfim livre da cegueira, que paisagem contemplou para que o rosto lhe turve tão rude ruga de mágoa? Soube talvez que melhor fora mostrar-se de todo: desvelar inteira a face, seus amores e seus ódios, e não (de medo) exilar-se no recôncavo do sonho, onde fundava universos em que só fulgisse a luz de fabulárias auroras. Certo lhe amarga saber que inútil fora o tormento de escolher entre dois rumos; que o soberbo privilégio sobre a pedra, sobre o pássaro, 198

de assombrar-se ante si mesmo, está proscrito. Que agora irmanados inexistem. Dói-lhe esta mágoa profunda: a de perceber-se enigma e não se ter decifrado. Talvez a mágoa do morto seja mais funda: saber ter sido apenas um erro no pensamento de Deus. THIAGO DE MELLO [1952] Narciso cego. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952

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VELÓRIO

Bichos empalhados pequenos ventiladores incidindo sobre o dossel cujo cortinado — em tiras — fora recortado à tesoura Na cama a morta À meia-noite apareceu a grande pintora também passou por lá o grande poeta acompanhado de seu protegido (de que só me lembro o nome de guerra: Jungle) Moço de classe média entretenu nunca fez nada De uma beleza estonteante que não suportou a perda da mocidade e um dia se matou FRANCISCO ALVIM [2000] Poemas [1968-2000]. São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2004 (Ás de colete).

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UM MORTO, BARCO À DERIVA

Um morto, barco à deriva já sem ponto de partida, também livre de um final que enfim começa outra frase sem arriscar solução. É feito ilha que ele vai boiando em seu próprio tempo, mar que quando se desata não encrespa, água em ondas, nem arrebenta represas. De repente tudo fica como se montasse guarda, imóvel ao passar pastoso mais pesado do que a vida, impossível de barrar. É peso da ausência de alma, aquela mão que o prendia ao corpo do qual liberto esquece a forma da letra, abole todas as pautas.

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Ele exige muito espaço nesse desfluir redondo, germinação do vazio, fonte que não se rastreia, sede que não se interroga e não bebe, é absoluta. MOACIR AMÂNCIO [1992] Do objeto útil. São Paulo: Iluminuras, 1992.

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ÓRFICO SCIENCE

da primeira vez que chico science desceu ao hades onde mora o maracatu subiu com um som de zumbis da segunda vez não conseguiu chegou

partiu

a cabeça em pedaços da primeira vez que mergulhou no mangue caranguejou-se na segunda o cara anjou-se decerto morreu olhando o mesmo mangue caranguemusos sujos de sangue seria siri sua euridicereia? RICARDO SCHMITT CARVALHO [2002] Lascas. Curitiba: Medusa, 2002.

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O DEFUNTO A Afonso Arinos de Melo Franco

Quando morto estiver meu corpo evitem os inúteis disfarces, os disfarces com que os vivos, só por piedade consigo, procuram apagar no Morto o grande castigo da Morte. Não quero caixão de verniz nem os ramalhetes distintos, os superfinos candelabros e as discretas decorações. Eu quero a morte com mau gosto! Dêem-me coroas de pano, Dêem-me flores de roxo pano, angustiosas flores de pano, enormes coroas maciças, como enormes salva-vidas, com fitas negras pendentes. E descubram bem minha cara: que a vejam bem os amigos.

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Que a não esquecem os amigos e ela lance nos seus espíritos a incerteza, o pavor, o pasmo… E a cada um leve bem nítida a idéia da própria morte. Descubram bem esta cara! Descubram bem estas mãos: Não se esqueçam destas mãos! — Meus amigos! olhem as mãos! Onde andaram, que fizeram, em que sexos se demoraram seus sabidos quirodáctilos? Foram nelas esboçados todos os gestos malditos: até furtos fracassados e interrompidos assassinatos. — Meus amigos! olhem as mãos que mentiram às vossas mãos… Não se esqueçam! elas fugiram da suprema purificação dos possíveis suicídios… — Meus amigos! olhem as mãos, as minhas e as vossas mãos! Descubram bem minhas mãos! Descubram todo o meu corpo. Exibam todo o meu corpo e até mesmo do meu corpo 205

as partes excomungadas, as sujas partes sem perdão. — Meus amigos! olhem as partes… Fujam das partes. Das punitivas, malditas partes… Eu quero a morte nua e crua terrífica e habitual, com o seu velório habitual. — Ah! o seu velório habitual. Não me envolvam num lençol: a franciscana humildade, bem sabeis que não se casa, com meu amor pela Carne, com meu apego ao Mundo. E quero ir de casimira: De jaquetão com debrum, calça listrada, plastron… E os mais altos colarinhos. Dêem-me um terno de ministro ou roupa nova de noivo… E assim solene e sinistro, quero ser um tal defunto, um morto tão acabado, tão aflitivo e pungente, que sua lembrança envenene o que restar aos meus amigos de vida sem minha vida.

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— Meus amigos! Lembrem de mim. Se não de mim, deste morto, deste pobre terrível morto que vai se deitar para sempre, calçando sapatos novos! Que se vai como se vão os penetras escorraçados, as prostitutas recusadas, os amantes despedidos, como os que saem enxotados e tornariam sem brio a qualquer gesto de chamada. —Meus amigos! Tenham pena, senão do morto, ao menos dos dois sapatos do morto! Dos seus incríveis, patéticos sapatos pretos de verniz. Olhem bem estes sapatos e olhai os vossos também. Rio, 23-VII-38. PEDRO NAVA [1938] Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

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MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou Os homens que se achavam no café Tiraram o chapéu maquinalmente Saudavam o morto distraídos. Estavam todos voltados para a vida Absortos na vida Confiantes na vida. Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado Olhando o esquife longamente Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade Que a vida é traição E saudava a matéria que passava Liberta para sempre da alma extinta. MANUEL BANDEIRA [1936] Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

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A UMA TAÇA FEITA DE UM CRÂNIO HUMANO (Traduzido de Byron)

“Não recues! De mim não foi-se o espírito… Em mim verás — pobre caveira fria — Único crânio, que ao invés dos vivos, Só derrama alegria. Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte Arrancaram da terra os ossos meus. Não me insultes! empina-me!… que a larva Tem beijos mais sombrios do que os teus. Mais val guardar o sumo da parreira Do que ao verme do chão ser pasto vil; — Taça — levar dos Deuses a bebida, Que o pasto do reptil. Que este vaso, onde o espírito brilhava, Vá nos outros o espírito acender. Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro …Podeis de vinho o encher! Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra taça, Quando tu e os teus fordes nos fossos, Pode do abraço te livrar da terra, E ébria folgando profanar teus ossos. E por que não? Se no correr da vida 209

Tanto mal, tanta dor aí repousa? É bom fugindo à podridão do lodo Servir na morte enfim p’ra alguma coisa!…” Bahia, 15 de dezembro de 1865. CASTRO ALVES [1870] Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

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VIDA OBSCURA

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, Ó ser humilde entre os humildes seres. Embriagado, tonto dos prazeres, O mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste no silêncio escuro A vida presa a trágicos deveres E chegaste ao saber de altos saberes Tornando-te mais simples e mais puro. Ninguém te viu o sentimento inquieto, Magoado, oculto e aterrador, secreto, Que o coração te apunhalou no mundo. Mas eu que sempre te segui os passos Sei que cruz infernal prendeu-te os braços E o teu suspiro como foi profundo! CRUZ E SOUSA [1905] Obras completas. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1923.

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IMPROVISO DO RAPAZ MORTO

Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão. Tem momentos assim em que a gente vivendo Esta vida de interesses e de lutas tão bravas, Se cansa de colher desejos e preocupações. Então pára um instante, larga o murmúrio do corpo, A cabeça perdida cessa de imaginar, E o esquecimento suavemente vem. Quem que então goze as rosas que o circundam? A vista bonita que o automóvel corta? O pensamento que o heroiza?… O corpo é que nem véu largado sobre um móvel, Um gesto que parou no meio do caminho, Gesto que a gente esqueceu. Morto, suavemente ele se esquece sobre as flores do caixão. Não parece que dorme, nem digo que sonhe feliz, está morto. Num momento da vida o espírito se esqueceu e parou. De repente ele assustou com a bulha do choro em redor, Sentiu talvez um desaponto muito grande De ter largado a vida sendo forte e sendo moço, Teve despeito e não se moveu mais. E agora ele não se moverá mais. Vai-te embora! vai-te embora, rapaz morto! Oh, vai-te embora que não te conheço mais! Não volta de-noite circular no meu destino A luz da tua presença e o teu desejo de pensar! 212

Não volta oferecer-me a tua esperança corajosa, Nem me pedir para os teus sonhos a conformação da Terra! O universo muge de dor aos clarões dos incêndios, As inquietudes cruzam-se no ar alarmadas, E é enorme, insuportável minha paz! Minhas lágrimas caem sobre ti e és como um Sol quebrado! Que liberdade em teu esquecimento! Que independência firme na tua morte! Oh, vai-te embora que não te conheço mais! (1925)

MÁRIO DE ANDRADE [1930] Poesias completas. Belo Horizonte:Vila Rica, 1993.

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MORTE DA ÍNDIA

Está morta agora. Não poderá mais fugir Não poderá mais fugir, rindo selvagem. Está morta. Tem os pés frios, os olhos fechados As mãos estão cruzadas. Tudo morto. Menos os cabelos, os cabelos estão vivos, São vermelhos, estão vivos e continuarão a crescer. Olho a morta. E lembro sua maldade livre Lembro sua beleza desigual e ágil Lembro o perfume de jasmim de uma noite Em que a quis tomar nos braços e me contive. Agora o repouso trouxe para ela uma inocência impressionante, Ficou inocente. Vi agora que era uma criança! Está triste tudo. O dia vem nascendo sem sol O vento matinal entra frio pelas janelas. Vejo-a imóvel. A cruz sobre seu coração virgem Flores sobre seu corpo queimado e bárbaro. A morte como que aumentou sua beleza diferente. Há no meu coração um grande sossego final. Penso que não poderá mais fugir, ágil, Correndo pela mata, escondendo-se misteriosamente. Sei bem onde ela está. Irei vê-la sempre. Rezarei humilde pela paz da sua alma que era natural E sem espiritualidade nenhuma, espontânea como as árvores Alma úmida como a relva das madrugadas. Sua morte me dá uma liberdade vertiginosa 214

Respiro o ar da manhã com força e não choro No entanto sei que vão levá-la da minha esperança, Sei que me perderei morto também vivendo, Mas só de contemplá-la neste momento, estou feliz. Me vingo da sua maldade que era impetuosa e simples. Lá embaixo está o mar, os rochedos e a espuma. Lá embaixo está o mar, o mar de ondas enormes. Quando fechou os olhos e ficou imóvel, sua alma Desceu a montanha, entrou pelo mar adentro como um raio. Um grande frio me acordou. A noite morria. Já a vi morta. Sua mão está pendente da rede. Foi uma flor misteriosa que se perdeu e nunca mais florirá. Foi a última flor de uma espécie desaparecida. Lembro do seu perfume. Está morta. O sol não virá hoje. Tudo está quieto. Meu coração está parado. Meus olhos fixam seu corpo. Os seios pequenos. As mãos em cruz. Os lábios. Tudo morto. Menos os cabelos. Sua beleza está fria. Sinto-me inteiramente lúcido. AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT [1934] Canto da noite. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.

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OS MORTOS

Na ambígua intimidade que nos concedem podemos andar nus diante de seus retratos. Não reprovam nem sorriem como se neles a nudez fosse maior. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1962) Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

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QUANDO EU MORRER Eu morro, eu morro. A matutina brisa Já não me arranca um riso. A fresca tarde Já não me doura as descoradas faces Que gélidas se encovam. Junqueira Freire

Quando eu morrer… não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério… Odeio o mausoléu que espera o morto Como o viajante desse hotel funéreo. Corre nas veias negras desse mármore Não sei que sangue vil de messalina, A cova, num bocejo indiferente, Abre ao primeiro a boca libertina. Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério… Que povo estranho no porão profundo! Emigrantes sombrios que se embarcam Para as plagas sem fim do outro mundo. Tem os fogos — errantes — por santelmo. Tem por velame — os panos do sudário… Por mastro — o vulto esguio do cipreste, Por gaivotas — o mocho funerário… Ali ninguém se firma a um braço amigo

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Do inverno pelas lúgubres noitadas… No tombadilho indiferentes chocam-se E nas trevas esbarram-se as ossadas… Como deve custar ao pobre morto Ver as plagas da vida além perdidas, Sem ver o branco fumo de seus lares Levantar-se por entre as avenidas!… Oh! perguntai aos frios esqueletos Por que não têm o coração no peito… E um deles vos dirá “Deixei-o há pouco De minha amante no lascivo leito.” Outro: “Dei-o a meu pai”. Outro: “Esqueci-o Nas inocentes mãos de meu filhinho”… …Meus amigos! Notai… bem como um pássaro O coração do morto volta ao ninho!… São Paulo, março de 1869.

CASTRO ALVES [1870] Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

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OS NOMES Duas vezes se morre: Primeiro na carne, depois no nome. A carne desaparece, o nome persiste mas Esvaziando-se de seu casto conteúdo — Tantos gestos, palavras, silêncios — Até que um dia sentimos, Com uma pancada de espanto (ou de remorso?), Que o nome querido já nos soa como os outros. Santinha nunca foi para mim o diminutivo de Santa. Nem Santa nunca foi para mim a mulher sem pecado. Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos claros à flor da boca. Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo de dizer “Meu Deus, valei-me”. Adelaide não foi para mim Adelaide somente, Mas Cabeleira de Berenice, Inominata, Cassiopéia. Adelaide hoje apenas substantivo próprio feminino. Os epitáfios também se apagam, bem sei. Mais lentamente, porém, do que as reminiscências Na carne, menos inviolável do que a pedra dos túmulos. MANUEL BANDEIRA [1952] Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.

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CONVÍVIO

Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil. Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo. E essa eternidade negativa não nos desola. Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante. E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco. Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes E nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa! A mais tênue forma exterior nos atinge. O próximo existe. O pássaro existe. E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados… Há que renunciar a toda procura. Não os encontraríamos, ao encontrá-los. Ter e não ter em nós um vaso sagrado, um depósito, uma presença contínua, esta é nossa condição, enquanto sem condição transitamos e julgamos amar e calamo-nos.

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Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência, apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1951) Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

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VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos, Tamarindo da minha desventura, Tu, com o envelhecimento da nervura, Eu, com o envelhecimento dos tecidos! Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos! E a podridão, meu velho! E essa futura Ultrafatalidade de ossatura, A que nos acharemos reduzidos! Não morrerão, porém, tuas sementes! E assim, para o Futuro, em diferentes Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, Na multiplicidade dos teus ramos, Pelo muito que em vida nos amamos, Depois da morte, inda teremos filhos! AUGUSTO DOS ANJOS [1912] Eu e outras poesias. Edição preparada por A. Arnoni Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1994. (Poetas do Brasil)

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Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas A cada instante te oferece a cova Junqueira Freire

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MARGEM

Orfeu tange a lira Eurídice e ele estão vivos Estão vizinhos da morte mas ainda vivem e os que estão perto também vivem Atrás deles há um rio onde os mortos mergulham há uma barca e reflexos sombrios na água Na outra margem estão o castelo o prazer e a morte FRANCISCO ALVIM [1981] Poemas (1968-2000). São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2004 (Ás de colete).

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LÁPIDE 1 epitáfio para o corpo Aqui jaz um grande poeta. Nada deixou escrito. Este silêncio, acredito, são suas obras completas.

LÁPIDE 2 epitáfio para a alma aqui jaz um artista mestre em desastres viver com a intensidade da arte levou-o ao infarte deus tenha pena dos seus disfarces

PAULO LEMINSKI [1881] La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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MOCIDADE E MORTE

E perto avisto o porto Imenso, nebuloso e sempre noite Chamado — Eternidade. — Laurindo Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate. Dante.

Oh! eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minh’alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n’amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma… Nos seus beijos de fogo há tanta vida… — Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida. Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea fria.

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Morrer… quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem… Quero boiar à tona das espumas. Vem! formosa mulher — camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas. Minh’alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas… E a mesma voz repete-me terrível, Com gargalhar sarcástico: — impossível! Eu sinto em mim o borbulhar do gênio. Vejo além um futuro radiante: Avante! — brada-me o talento n’alma E o eco ao longe me repete — avante! — O futuro… o futuro… no seu seio… Entre louros e bênçãos dorme a glória! Após — um nome do universo n’alma, Um nome escrito no Panteon da história. E a mesma voz repete funerária: Teu Panteon — a pedra mortuária! Morrer — é ver extinto dentre as névoas O fanal, que nas guia na tormenta: Condenado — escutar dobres de sino, — Voz da morte, que a morte lhe lamenta — Ai! morrer — é trocar astros por círios, Leito macio por esquife imundo, Trocar os beijos da mulher — no visco Da larva errante no sepulcro fundo. Ver tudo findo… só na lousa um nome, 227

Que o viandante a perpassar consome. E eu sei que vou morrer… dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida: Triste Ahasverus, que no fim da estrada, Só tem por braços uma cruz erguida. Sou o cipreste, qu’inda mesmo flórido, Sombra de morte no ramal encerra! Vivo — que vaga sobre o chão da morte, Morto — entre os vivos a vagar na terra. Do sepulcro escutando triste grito Sempre, sempre bradando-me: maldito! — E eu morro, ó Deus! na aurora da existência, Quando a sede e o desejo em nós palpita… Levei aos lábios o dourado pomo, Mordi no fruto podre do Asfaltita. No triclínio da vida — novo Tântalo — O vinho do viver ante mim passa… Sou dos convivas da legenda Hebraica, O estilete de Deus quebra-me a taça. É que até minha sombra é inexorável, Morrer! morrer! soluça-me implacável. Adeus, pálida amante dos meus sonhos! Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos! Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga Os prantos de meu pai nos teus cabelos. Fora louco esperar! fria rajada Sinto que do viver me extingue a lampa… Resta-me agora por futuro — a terra, Por glória — nada, por amor — a campa. 228

Adeus!… arrasta-me uma voz sombria Já me foge a razão na noite fria!… Recife, 7 de outubro de 1864.

CASTRO ALVES [1870] Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

229

SEMPRE DISTANTE AMOR E PERTO ANSEIO

Sempre distante amor e perto anseio, e triste descambar do adeus e a ida em promessa que apenas prometida tanto levou do ser que o fez alheio. De outra morte morrer, opõe receio? Morre um morto após si, já em seguida à perda ao largo de alma tão perdida? Mortos são os que morrem vida em meio. São os vivos de amor, que amor esquece, e, súbito, na morte amadurece antes de tudo mais que vai morrendo. Feridos numa dor que está vivendo no arrastar em gemido e em passo tardo, ter sido, mais que ser, terrível fardo. MARIA ÂNGELA ALVIM [1962] Poemas. Campinas: Editora da Unicamp, 1983.

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ACALANTO

Noite após noite, exaustos, lado a lado, digerindo o dia, além das palavras e aquém do sono, nos simplificamos, despidos de projetos e passados, fartos de voz e verticalidade, contentes de ser só corpos na cama; e o mais das vezes, antes do mergulho na morte corriqueira e provisória de uma dormida, nos satisfazemos em constatar, com uma ponta de orgulho, a cotidiana e mínima vitória: mais uma noite a dois, e um dia a menos. E cada mundo apaga seus contornos no aconchego de um outro corpo morno. PAULO HENRIQUES BRITTO [2000] Macau. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

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MINHA BELA MARÍLIA, TUDO PASSA

Minha bela Marília, tudo passa; a sorte deste mundo é mal segura; se vem depois dos males a ventura, vem depois dos prazeres a desgraça. Estão os mesmos Deuses sujeitos ao poder do ímpio fado: Apolo já fugiu do Céu brilhante, já foi Pastor de gado. A devorante mão da negra morte acaba de roubar o bem, que temos; até na triste campa não podemos zombar do braço da inconstante sorte: qual fica no sepulcro, que seus avós ergueram, descansando; qual no campo e lhe arranca os frios ossos Ferro de torto arado. Ah! enquanto os destinos impiedosos não voltam contra nós a face irada, façamos, sim, façamos, doce amada, os nossos breves dias mais ditosos. Um coração, que, frouxo a grata posse de seu bem difere, a si, Marília, a si próprio rouba, e a si próprio fere.

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Ornemos nossas testas com as flores, e façamos de feno um brando leito; prendamo-nos, Marília, em laço estreito, gozemos do prazer de sãos amores. Sobre as nossas cabeças, sem que o possam deter, o tempo corre; e para nós o tempo, que se passa, também, Marília, morre. Com os anos, Marília, o gosto falta, e se entorpece o corpo já cansado; triste o velho cordeiro está deitado, e o leve filho sempre alegre salta. A mesma formosura é dote, que só goza a mocidade: rugam-se as faces, o cabelo alveja, mal chega a longa idade. Que havemos de esperar, Marília bela? que vão passando os florescentes dias? As glórias, que vêm tarde, já vêm frias; e pode enfim mudar-se a nossa estrela. Ah! não, minha Marília, aproveite-se o tempo, antes que faça o estrago de roubar ao corpo as forças, e ao semblante a graça. TOMÁS ANTONIO GONZAGA [1792] Poesias e Cartas chilenas. Ed. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: INL, 1952

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A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro Em que descansas desta longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe o mesmo afeto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existência apetecida E num recanto pôs um mundo inteiro. Trago-te flores, — restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos malferidos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos. MACHADO DE ASSIS [1906] Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar: 1992, v. 3.

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NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato, A flor dizia em vão À corrente, onde bela se mirava… — “Ai, não me deixes, não! “Comigo fica, ou leva-me contigo “Dos mares à amplidão: “Límpido ou turvo, te amarei constante; “Mas não me deixes, não!” E a corrente passava; novas águas Após as outras vão; E a flor sempre a dizer, curva na fonte: — “Ai, não me deixes, não!” E das águas que fogem incessantes À eterna sucessão, Dizia sempre a flor, e sempre embalde: — “Ai, não me deixes, não!” Por fim desfalecida e a cor murchada, Quase a lamber o chão, Buscava inda a corrente por dizer-lhe Que a não deixasse, não. A corrente impiedosa a flor enleia, Leva-a do seu torrão; 235

A afundar-se dizia a pobrezinha: — “Não me deixaste, não!” GONÇALVES DIAS [1857] Cantos. Edição preparada por Cilaine Alves da Cunha. São Paulo São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Poetas do Brasil)

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LEMBRANÇA DE MORRER

No more! o never more! Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nenhuma lágrima Em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro… Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro… Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia, Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia. Só levo uma saudade — é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas… E de ti, ó minha mãe! pobre coitada Que por minhas tristezas te definhas!

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De meu pai… de meus únicos amigos, Pouco, bem poucos! e que não zombavam Quando, em noites de febre endoudecido, Minhas pálidas crenças duvidavam. Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!… que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Ó tu, que à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores… Se vivi… foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores. Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo… Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu! eu vou amar contigo! Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz, e escrevam nela: — Foi poeta, sonhou e amou na vida. Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protegei o meu corpo abandonado E no silêncio derramai-lhe um canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando, à meia-noite, o céu repousa,

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Arvoredos do bosque, abri as ramas… Deixai a lua pratear-me a lousa! ÁLVARES DE AZEVEDO [1853] Lira dos vinte anos. Edição preparada por Maria Lúcia dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Poetas do Brasil)

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TEMOR Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas A cada instante te oferece a cova. Pisemos devagar. Olhe que a terra Não sinta o nosso peso. Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços. Escondamo-nos um no seio do outro: Não há-de assim nos avistar a morte, Ou morreremos juntos. Não fales muito. Uma palavra basta Murmurada em segredo ao pé do ouvido. Nada, nada de voz, — nem um suspiro, Nem um arfar mais forte… Fala-me só com o revolver dos olhos. Tenho-me afeito à inteligência deles. Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto, Somente pra os meus beijos. Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas A cada instante te oferece a cova. Pisemos devagar. Olha que a terra Não sinta o nosso peso. JUNQUEIRA FREIRE [1855] Poesias completas. Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944.

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À MORTE (Rondó) O prazer, a singeleza, A beleza, que em ti via, Num só dia, (ingrata sorte!) Tudo a morte me roubou. Esculpido na memória Amo, ó Glaura, o teu semblante; Nele vejo a cada instante Essa glória que passou. Volve o rio as puras águas, Vai correndo e não descansa; Assim foi minha esperança, E só mágoas me deixou. O prazer, a singeleza, A beleza, que em ti via, Num só dia, (ingrata sorte!) Tudo a morte me roubou. Neste bosque, em verde leito, Que já foi por ti ditoso, Leio o nome teu saudoso, Que em meu peito o amor gravou. Este monte, que já viste 241

Pelas Graças habitado, Delas hoje desprezado, Feio e triste se tornou. O prazer, a singeleza, A beleza, que em ti via, Num só dia, (ingrata sorte!) Tudo a morte me roubou. Glaura chamo sem conforto, E só Eco me responde: Glaura busco e não sei onde, Nem se morto ou vivo estou. Assim triste passarinho A consorte em vão procura, Que farpada seta dura Do seu ninho arrebatou. O prazer, a singeleza, A beleza, que em ti via, Num só dia, (ingrata sorte!) Tudo a morte me roubou. Voraz tempo não consome, Nem abranda meus pesares, Nem eu deixo estes lugares, Que o teu nome eternizou. Entre os côncavos rochedos Chorarei enternecido, Onde amor compadecido Meus segredos sepultou.

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O prazer, a singeleza, A beleza, que em ti via, Num só dia, (ingrata sorte!) Tudo a morte me roubou. SILVA ALVARENGA [1799] Obras poéticas. Edição preparada por Fernando Morato. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Poetas do Brasil)

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VOU MORRENDO DEVAGAR

CANTIGAS Eu sei, cruel, que tu gostas, Sim gostas de me matar; Morro, e por dar-te mais gosto, Vou morrendo devagar: Eu gosto morrer por ti; Tu gostas ver-me expirar; Como isto é morte de gosto, Vou morrendo devagar: Amor nos uniu em vida, Na morte nos quer juntar; Eu, para ver como morres, Vou morrendo devagar: Perder a vida é perder-te; Não tenho que me apressar; Como te perco morrendo, Vou morrendo devagar: O veneno do ciúme Já principia a lavrar; Entre pungentes suspeitas 244

Vou morrendo devagar: Já me vai calando as veias Teu veneno de agradar; E gostando eu de morrer, Vou morrendo devagar: Quando não vejo os teus olhos, Sinto-me então expirar; Sustentado d’esperanças, Vou morrendo devagar: Os Ciúmes, e as Saudades Cruel morte me vêm dar; Eu vou morrendo aos pedaços, Vou morrendo devagar: É feliz entre as desgraças, Quem logo pode acabar; Eu, por ser mais desgraçado, Vou morrendo devagar: A morte, enfim, vem prender-me, Já lhe não posso escapar; Mas abrigado a teu Nome, Vou morrendo devagar. DOMINGOS CALDAS BARBOSA [1798] Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1980.

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EPITALÂMIO

uva pensa da concha oclusa entre coxas abruptas teu vinho sabe a tinta espessa de polvos noturnos (falo da noite primeva nas águas do amor da morte) JOSÉ PAULO PAES [1967] Melhores poemas. Seleção Davi Arriguci Jr. São Paulo: Global, 2000.

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COUP D’ÉTRIER

É preciso partir! Já na calçada Retinem as esporas do arrieiro; Da mula a ferradura tacheada Impaciente chama o cavaleiro; A espaços ensaiando uma toada Cincha as bestas o lépido tropeiro… Soa a celeuma alegre da partida, O pajem firma o loro e empunha a brida. Já do largo deserto o sopro quente Mergulha perfumado em meus cabelos. Ouço das selvas a canção cadente Segredando-me incógnitos anelos. A voz dos servos pitoresca, ardente Fala de amores férvidos, singelos… Adeus! Na folha rota de meu fado Traço ainda um — adeus — ao meu passado. Um adeus! E depois morra no olvido Minha história de luto e de martírio, As horas que eu vaguei louco, perdido Das cidades no tétrico delírio; Onde em pântano turvo, apodrecido D’íntimas flores não rebenta um lírio… E no drama das noites do prostíbulo É mártir — alma… a saturnal — patíbulo!

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Onde o Gênio sucumbe na asfixia Em meio à turba alvar e zombadora; Onde Musset suicida-se na orgia, E Chatterton na fome aterradora! Onde, à luz de uma lâmpada sombria, O Anjo-da-Guarda ajoelhado chora, Enquanto a cortesã lhe apanha os prantos P’ra realce dos lúbricos encantos!… Abre-me o seio, ó Madre Natureza! Regaços da floresta americana, Acalenta-me a mádida tristeza Que da vaga das turbas espadana. Troca dest’alma a fria morbideza Nessa ubérrima seiva soberana!… O Pródigo… do lar procura o trilho… Natureza! Eu voltei… e eu sou teu filho! Novo alento selvagem, grandioso Trema nas cordas desta frouxa lira. Dá-me um plectro bizarro e majestoso, Alto como os ramais da sicupira. Cante meu gênio o dédalo assombroso Da floresta que ruge e que suspira, Onde a víbora lambe a parasita… E a onça fula o dorso pardo agita! Onde em cálix de flor imaginária A cobra de coral rola no orvalho, E o vento leva a um tempo o canto vário D’araponga e da serpe de chocalho… Onde a soidão é o magno estradivário… Onde há músculos em fúria em cada galho,

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E as raízes se torcem quais serpentes… E os monstros jazem no ervaçal dormentes. E se eu devo expirar… se a fibra morta Reviver já não pode a tanto alento… Companheiro! Uma cruz na selva corta E planta-a no meu tosco monumento!… Da chapada nos ermos… (o qu’importa?) Melhor o inverno chora… e geme o vento. E Deus para o poeta o céu desata Semeado de lágrimas de prata!… Curralinho, 1 de junho de 1870.

CASTRO ALVES [1870] Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

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SONETO Bronze e brasa na treva: diamantes pingam (vibram) lapidam-se (laceram) luz sólida sol rijo ressonantes nas arestas acesas: não vos deram, calhaus (calhaus arfantes), outro leito corrente onde roçar-vos e suaves vossas faces tornardes vosso peito conformar (como sino) como as aves em brado rebentando em cachoeira dois amantes precípites brilhando: tições em selvoscura: salto! beira de sudário ensopado abismo armando amo r amo r amo r a mo r te r amo de ouro fruta amargosa bala! e gamo.

MÁRIO FAUSTINO [1957] O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

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Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser assim. Cecília Meireles

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ESTUDO N.º 4

Quando se acalmará Esta doença fértil a que chamam Vida? Não quero soletrar o horizonte Nem seguir o desenho da onda na areia, Nem quero conversar flores no campo idílico. Quero antes correr a cortina sobre mim mesmo, Transcender minha história E esperar que Deus remova meu corpo. Quero tudo, ou nada: Todas as paixões, todos os crimes, delícias e propriedades. Ou então mergulhar num saco de cinzas, Montar num avião de fogo, e nunca mais descer. MURILO MENDES [1944] As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002.

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ETERNIDADE

Ele reviu-se: não era mais nem corpo nem sombra nem escombros. Como foi isso? Tudo irreal: um barco sem mar a boiar. Ele sentiu-se: recomeçava. Vivera morrendo numa estrela. Ele despiu-se de quê? De tudo que amara. 253

Surdo-mudo cegara. Agora vê. JORGE DE LIMA [1943] Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, vol. 1.

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4.º MOTIVO DA ROSA Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser assim. Rosas verás, só de cinza franzida, mortas intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe, o vento vai falando em mim. E por perder-me é que me vão lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim. CECÍLIA MEIRELES [1945] Mar absoluto. Porto Alegre: Globo, 1945.

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SONETO DO EMPINADOR DE PAPAGAIO

A nada aceito, exceto a eternidade, nesta viagem ambígua que me leva ao altar absoluto que, na treva, espera pela minha inanidade. O que sonhei, menino, hoje é verdade de alva estação que em meu silêncio neva o inverno de uma fábula primeva que foi sol, cego à própria claridade. Na hora do fim de tudo, separados fiquem os dois comparsas do destino que sabe a cinza após o último alento. E a morte guarde em cova os injuriados despojos do homem feito; que o menino empina o papagaio, vive ao vento. LÊDO IVO [1960] Poesia completa 1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

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O ARRANCO DA MORTE Pesa-me a vida já. Força de bronze Os desmaiados braços me pendura. Ah! já não pode o espírito cansado Sustentar a matéria. Eu morro, eu morro. A matutina brisa Já não me arranca um riso. A rósea tarde Já não me doura as descoradas faces, Que gélidas se encovam. O noturno crepúsculo caindo Já não me lembra o escurecido bosque Onde me espera a meditar prazeres A bela que eu amava. A meia-noite já não traz-me em sonhos As formas dela — desejosa e lânguida — Ao pé do leito, recostada em cheio Sobre meus braços ávidos. A cada instante o coração vencido Diminui um palpite; o sangue, o sangue, Que nas artérias férvido corria, Arroxa-se e congela.

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Ah! é chegada a minha hora extrema! Vai meu corpo dissolver-se em cinza; Já não podia sustentar mais tempo O espírito tão puro. É uma cena inteiramente nova. Como será? — Como um prazer tão belo, Estranho e peregrino, e raro, e doce, Vem assaltar-me todo! E pelos imos ossos me refoge Não sei que fio elétrico. Eis! sou livre! O corpo que foi meu, que lodo impuro! Caiu, uniu-se à terra. JUNQUEIRA FREIRE [1854]

Poesias completas. Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944.

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VIVER Quem nunca quis morrer Não sabe o que é viver Não sabe que viver é abrir uma janela E pássaros pássaros sairão por ela E hipocampos fosforescentes Medusas translúcidas Radiadas Estrelas-do-mar… Ah, Viver é sair de repente Do fundo do mar E voar… e voar… cada vez para mais alto Como depois de se morrer! MÁRIO QUINTANA [1986] Baú de espantos, Rio de Janeiro: Globo, 1986.

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OS LADOS Há um lado bom em mim. O morto não é responsável Nem o rumor de um jasmim. Há um lado mau em mim, Cordial como um costureiro, Tocado de afetações delicadíssimas. Há um lado triste em mim. Em campo de palavra, a folha branca. Bois insolúveis, metafóricos, tartamudos, Sois em mim o lado irreal. Há um lado em mim que é mudo. Costumo chegar sobraçando florilégios, Visitando os frades, com saudades do colégio. Um lado vulgar em mim, Dispensando-me incessante de um cortejo. Um lado lírico também: Abelhas desordenadas de meu beijo: Sei usar com delicadeza um telefone, Não me esqueço de mandar rosas a ninguém. Um animal em mim, Na solidão, cão, No circo, urso estúpido, leão, 261

Em casa, homem, cavalo… Há um lado lógico, certo, irreprimível, vazio Como um discurso. Um lado frágil, verde-úmido. Há um lado comercial em mim, Moeda falsa do que sou perante o mundo. Há um lado em mim que está sempre no bar, Bebendo sem parar. Há um lado em mim que já morreu. Às vezes penso se esse lado não sou eu. PAULO MENDES CAMPOS [1951] A palavra escrita. Rio de Janeiro: Hipocampo, 1951.

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RESTAURADORA

A morte é limpa. Cruel mas limpa. Com seus aventais de linho — fâmula — esfrega as vidraças. Tem punhos ágeis e esponjas Abre as janelas, o ar precipita-se inaugural para dentro das salas. Havia impressões digitais nos móveis, grãos de poeira no interstício das fechaduras. Porém tudo voltou a ser como antes da carne e sua desordem. HENRIQUETA LISBOA [1949] Flor da morte. Belo Horizonte: Edições João Calazans, 1949.

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UMA CRIATURA Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas, Com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga à maneira de abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo. Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo. Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso. Para ela o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbável, como Pelo vasto areal um vasto paquiderme. Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo, Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois essa criatura está toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; E é nesse destruir que as suas forças dobra.

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Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida. MACHADO DE ASSIS [1900] Ocidentais. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, v. 3.

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DESEJO

(HORA DE DELÍRIO)

Se além dos mundos esse inferno existe, Essa pátria de horrores, Onde habitam os tétricos tormentos, As inefáveis dores; Se ali se sente o que jamais na vida O desespero inspira: Se o suplício maior que a mente finge, A mente ali respira; Se é de compacta, de infinita brasa O solo que se pisa: Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores Tudo que ali se visa; Se ali se goza um gênero inaudito De sensações terríveis; Se ali se encontra esse real de dores Na vida não possíveis; Se é verdade esse quadro que imaginam As seitas dos cristãos; Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias, Não são uns erros vãos;

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Eu — que tenho provado neste mundo As sensações possíveis; Que tenho ido da afecção mais terna Às penas mais incríveis; Eu — que tenho pisado o colo altivo De vária e muita dor; Que tenho sempre das batalhas dela Surgido vencedor; Eu — que tenho arrostado imensas mortes, E que pareço eterno; Eu quero de uma vez morrer p’ra sempre, Entrar por fim no inferno! Eu quero ver se encontro ali no abismo Um tormento invencível: — Desses que achá-los nas existência toda Jamais será possível! Eu quero ver se encontro alguns suplícios, Que o coração me domem; Quero lhe ouvir esta palavra incógnita: — “Chora por fim, — que és homem!” Que de arrostar as dores desta vida Quase pareço eterno! Estou cansado de vencer o mundo: Quero vencer o inferno! JUNQUEIRA FREIRE [1854] Poesias completas. Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944.

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AGRADECIMENTOS

a Benedito Nunes, pela atenção com que nos distinguiu ao ler e apresentar esta seleção; a Ione Nassar, Graça Ramos, Sérgio de Sá, Francisco Balthar Peixoto, pelos comentários, sugestões e, sobretudo, por partilharem conosco o amor por poemas e livros; a Luis Tavares Ladeira, pela preparação atenta dos originais e pela colaboração na pesquisa; a Constância Duarte, Zahide Muzart e Hilda Flores, pelas informações que contribuíram para que se fizessem ouvir os distintos timbres das vozes femininas; a Alessandra Conceição, pelo simpático apoio; a Luis Lorenzo Rivera e a Alexandre Martins Fontes, muito especialmente, pelo estímulo e pela confiança no projeto.

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