POESIA BRASILEIRA EM CALLALOO

May 30, 2017 | Autor: Ronald Augusto | Categoria: Literary Criticism, Literatura, Literatura negra
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POESIA BRASILEIRA EM CALLALOO1


Ronald Augusto[1]


Em 1995, o volume 18, n.º 4 da revista Callaloo, Fall – Estados
Unidos –, foi integralmente dedicado à literatura negra contemporânea
produzida no Brasil. A partir de então – e efetivando um compromisso
assumido pelo seu editor, Charles H. Rowell –, a obra criativa dos
escritores afro-brasileiros vem sendo estampada em suas páginas com
acentuada regularidade. Provam isso os volumes posteriores de Callaloo. No
vol. 19.1, Winter ('96), excertos da obra Livro de Falas, do poeta mineiro
Edimilson de Almeida Pereira, aparecem junto a uma entrevista concedida
pelo autor. E agora, mais recentemente ('97) o vol. 20.1, Winter, apresenta
ao leitor de língua inglesa uma perspicaz análise teórica e a tradução de
poemas que aderem a um aspecto bastante significativo da cultura
brasileira, isto é, a religiosidade. A desempenhar ambas as tarefas, a de
crítico e de sensível tradutor, está o poeta Steven F. White que, aliás,
morou no Brasil cerca de um ano, estudando e traduzindo a poesia
contemporânea praticada aqui. Vejamos, então, quais as veredas que o poeta-
crítico resolve trilhar na abordagem do assunto.
Resumidamente, o estudo de Steven White, intitulado Reinventing a
sacred past in contemporary afro-brasilian poetry, pretende entre outras
coisas, comparar as práticas correntes das religiões afro-brasileiras com
aquela poesia que tem como alvo tal temática e que, em sua performance,
dialoga estruturalmente com estas práticas. Segue-se ao ensaio a recolha de
poemas de cinco autores negros. Muito acertadamente, White refere que, em
conjunto, o viés aberto ou re-inaugurado pela obra desses poetas, constitui
de certo modo, um contraponto à presença dos sistemas simbólicos do
cristianismo, que marcam indelevelmente alguns espécimes da poesia
brasileira do século vinte. A este propósito, e ao mesmo tempo mostrando
estar a par de algumas referências básicas da nossa tradição poética, o
crítico cita como exemplo o livro de poemas Tempo e Eternidade (1934), de
Murilo Mendes e Jorge de Lima.
Sempre em alto nível, Steven White analisa e traduz os poemas de
Edimilson Pereira, Ricardo Aleixo (MG), Oliveira Silveira (RS), Estevão
Maya-Maya (MA) e Lepê Correia (PE). Suas traduções não se perdem em
malabarismos formais, mas tampouco são servis ou insossas; equiparam-se,
mais ou menos bem, aos originais. Tradução: perder aqui, para ganhar acolá.
Já o roteiro de ensaio, organiza-se em torno da seguinte idéia: é possível
perceber – sem prejuízo das diferenças e peculiaridades que definem cada um
dos autores – um traço comum entre eles, a saber, uma disposição para
recriar através de função poética a sacred past. Por seu turno, este
projeto de recriação confina com um esforço coletivo que objetiva antes
redefinir uma imagined community, do que reivindicar uma comunidade cuja
identidade só se manteria na forma de uma camisa-de-força.
Pois, esta poesia permeável aos influxos das religiões de origem
africana – de tradição nomeadamente iorubana e banto –, põe em sincronia,
um tanto tardiamente se podemos dizer assim, o discurso literário com
aquelas outras formas de expressão estética que, salvo engano, se comportam
como uma autêntica escritura háptico-visual a dar voz e cena a toda uma
preceitística religiosa; formas de linguagem cujo trato com o sagrado e sua
eventual recriação, repercute no âmago delas como se fora uma espécie de
segunda natureza. Simplificando ao máximo, pode-se argumentar, por exemplo,
que, a dança, a música e a escultura – de extração africana –, em termos
semióticos, são manifestações indiciais de divindades e mitologias em
estado de comunicação com o contingente. A figura do indizível se deixa
conjurar e encarna afivelando máscara física, torna-se visível por meio
dessas linguagens não-verbais. A identificação entre fundo e forma se dá de
um modo quase perfeito. Como separar o orixá do corpo inteligente que
rodopia no centro do terreiro?
Mas, como se comporta a poesia na sua relação com o sagrado? Antes
de mais nada, não se pode perder de vista que, em poesia, uma analógica se
projeta sobre um arcabouço lógico-discursivo. Ou seja, a poesia parece, mas
não é. Ela parece dizer – e diz –, mas no fundo não diz, isto é, não é
capaz de dizer algo que se enraíze em máxima, prescrição moral, lição, etc.
E, em razão disso – e fiquemos apenas com este exemplo –, o real que ela
escrutina e ao mesmo tempo finge nos desvelar, comparece aos nossos olhos
vertido em imagem indecisa e, no mais das vezes, conflitante com aquele
real que até há pouco julgávamos conhecer como a palma da mão. Assim,
partindo deste ponto de vista, podemos reformular a indagação: como os
poetas em questão entendem a recriação deste sacred past?
Entre a animada inteligência deles e a esfera do sagrado enquanto
figura, interpõe-se o mundo da linguagem. Em termos de valores estritamente
poéticos, o quesito básico a ser cumprido para recriar tanto o mundo do
além, como este mundo de aquém-túmulo (Guimarães Rosa dixit) é, em última
análise, o desenvolvimento de uma consciência extrema acerca dos limites e
virtualidades daquele mundo mencionado antes dos outros dois: mundo surdo,
o opaco reino das palavras jazendo "ermas de melodia e conceito".2
Aparentemente, Steven White tem ciência disso, e, melhor ainda, dois ou
três dos poetas glosados pelo ensaísta também o sabem.
Por paradoxal que pareça, a recriação – em sentido forte – desse
passado sagrado só se cumpre a contento se o caráter emprestado a esta
poesia não desprezar uma alta dose de irreverência: sucessivos lances
transgressores. E Steven White, com efeito, se esforça em abordar por este
prisma os textos que informam a sua pesquisa, considera-os mesmo
trangressor-works.
Me parece que, neste passo, o ensaísta demonstra seu sadio
interesse de encetar um diálogo crítico com um certo artigo escrito por
este resenhista, e que foi publicado originalmente em 1995 dentro da série
Cadernos Porto&Vírgula, particularmente o de n.º 11, Presença Negra no RS.
O texto em causa, chama-se "Transnegressão".3 Em linhas gerais, pode ser
interpretado como uma diatribe aos recyclers of that same old shit: the
pseudo-proletarian literature of political engagement, na versão de S. F.
White. Grosso modo, a crítica aos elementos de superfície se resume a isto.
Mas, desde uma angulação mais reveladora, o que de fato interessa, é a
censura a uma espécie de modus legitimador que – no respeitante a uma
descrição dessa literatura, negra – visa a transformar em paradigma aquelas
obras em que se observa em primeiro plano, à maneira de um pórtico, a
afirmação da identidade, ou um nós excessivamente ideologizado e, de resto,
dificult to verify, mas indispensável in terms of demanding for the group a
social and political space in a conflictive situation. Um efeito possível:
o poeta se apresentaria como útil depoente, seus poemas, ao fim e ao cabo,
se revelariam como meras provas, documentos: literatura como testemunho,
misto de verismo e depoimento correto.
Mas, indo em sentido contrário, algumas realizações poéticas
transnegressoras põem em xeque esta quase hegemonia do documento e da
essência negra engessada em santuário, reserva natural ameaçada. Não
obstante a crítica radical que os escritores desta estirpe movem contra os
discursos falaciosos, cooptadores, nenhum deles faz vista-grossa ao fato de
que "a poesia que se 'vende', seja por vileza ou por imperícia, está
condenada à morte, sem indulto possível". Trata-se de poesia autocrítica,
intrinsecamente transnegressora, auto-irônica, mas sem escorregar para um
tipo de cinismo fashion que parece ser, em última instância a própria
substância do pós-moderno. Em que pese a virulência das objeções e a recusa
"apaixonada" às posições preservacionistas, que Steven White assinala em
Transnegressão, a tendência do ensaísta é por não negar de todo a
legitimidade delas. Pelo contrário, ele parece mesmo concordar com a sua
(im)pertinência, que propõe, em suma, uma vontade transgressora como
estratégia para produzir know-how inventivo. Razão pela qual, Steven White
à certa altura, ou antes, dando por encerradas as considerações acerca do
meu artigo, escreve, "I believe the texts I have chosen to analyze in this
essay might be considered transgressor-works...".
Entretanto, o dado que talvez eu tenha de levar em conta no estudo
de Steven White – fugindo, de minha parte, a qualquer competição arrivista
– seja que, contrariamente a toda argumentação transnegressora, fica
provado, por meio da penetrante análise que White desentranha dos poemas e
por eles mesmos, fica provado à maravilha, a existência de poesia
inteligente e inovadora, mesmo no âmbito das ideias feitas, lume traiçoeiro
em torno do qual volitam pequenas certezas morais, políticas e religiosas.
As que sobrevivem à incandescência são catalogadas e atravessadas por
alfinete.
Afinal de contas, ao que tudo indica, os poemas de Edimilson de
Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Oliveira Silveira, Estevão Maya-Maya e
Lepê Correia, não se dobram ao fácil, a bem da verdade não parecem estar
"condenados à morte, sem indulto possível", (H. M. Enzensberger dixit).
Isto porque, no fundo e bem vistas as coisas, a recriação de um passado
sagrado serve apenas de pretexto para a retomada de uma outra viagem
imemorial: os poemas, repropondo mitologias, enervando divindades negras,
põem em movimento, isto sim, os fundamentos da operação poética,
transformam "a língua de todos os instantes, numa linguagem de poucos
instantes"; modulam um discurso protéico que se estrutura a partir da
volatilidade dos seus signos. Ouçamos as Flores da Fala de Edimilson de
Almeida Pereira:


As quartinhas

O chão em meialua.



Pedidos e receios que

ao sereno se convertem
em nossos lábios


altares onde os invisíveis
absorvem e mais ofertam
os enigmas do mundo.


O chão em meialua.
Ontem os lábios minguantes
ao sereno.



Hoje templo luta

plenilúnio.






Calunga lungara


Vou pôr em palavras
o que não é possível.
São águas-palavras
que se dissolvem. (...)



Deste modo, só aparentemente a ênfase recai sobre um sacred past. O
que de fato é re-imaginado, ou re-manufaturado, é a linguagem, ela mesma. E
a língua-linguagem se submete; se finge dócil. Oliveira Silveira vira-a ao
avesso, dá-lhe o assentamento de quatro sílabas fincadas em ritmo binário
indescidível entre ser ascendente e descendente. Faz da fala um florete
percussivo:

Eh Xapanã!


Tempo de tanta

doença braba
e lá vem ele,
o da varíola,
o da vassoura
– vem Xapanã.
(...)
Então aceita
nosso singelo
preito, pleito. (...)

Com efeito, a linguagem, no espaço-tempo do poema, passa por uma
brutal metamorfose ao escolher o objeto – o escolho – que, via sagração,
acabará por romper o molde do banal, ou do profano. O objeto-escolho, à
beira do abismo da linguagem, é lavado de si mesmo. Vale dizer, ele
experimenta a sua anamorfose. Ricardo Aleixo "dá um nome novo" à poesia:
Nanã. E o poeta mineiro aceita a sua língua(gem) ferina, feminina. "Senhora
da alvura": o silêncio branco do papel (a água escura), onde "um poema
começa e por onde ele termina".4

Nanã

Mãe sem marido,
avó do universo.
Senhora da alvura.
Nanã, a de rosto
sempre coberto.

Ó poderosa

dona dos cauris,
filha do grande pássaro


Atioró.
Água.
Lama.
Morte.
Mãe do segredo
do mundo.
O úmido.
O que flui.
Água.
Lama.
Filhos.

Teus gestos

lentos
no fundo
da água escura.



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1. Callaloo é uma revista devotada a obra criativa e aos estudos críticos
dos escritores negros das Américas e África(s) publicação trimestral
(Winter, Spring, Summer, Fall) editada por The Johns Hopkins University
Press, com o patrocínio da University of Virginia. Callaloo foi fundada
em 1976.

2. Fragmentos extraídos do poema Procura da Poesia, de Carlos Drummond de
Andrade, e que integra o volume A Rosa do Povo, 1945.

3. Compósito verbal cunhado pelo poeta Arnaldo Xavier, autor de São Pálido
e Roza da Recvsa, entre outros.

4. A frase aspeada se compõe de dois versos (o primeiro e o último,
respectivamente) do poema "Le Don du Poème", de Haroldo de Campos, e é
peça integrante do livro A Educação dos Cinco Sentidos, 1985.
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[1] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta,
músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao
Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992) e Confissões
Aplicadas (2004). Traduções de seus poemas apareceram em Callaloo African
Brazilian Literature: a special issue, vol. 18, n0 4, Baltimore: The Johns
Hopkins University Press (1995), Dichtungsring ( Zeitschrift für Literatur,
Bonn (de 1992 a 2010), colaborações em diversos números, poesia verbal e
não-verbal) www.dichtungsring-ev.de. Artigos e/ou ensaios sobre poesia
publicados em revistas do Brasil e sites de literatura: Babel (SC/SP),
Porto & Vírgula (RS), Morcego Cego (SC), Suplemento Cultural do Jornal A
Tarde (BA), Caderno de Cultura do Diário Catarinense (SC), Suplemento
Cultura do jornal Zero Hora (RS); Revista Dimensão nº 28/29, tradução de
poema de e. e. cummings (MG); Revista ATO (MG); Revista RODA ( Arte e
Cultura do Atlântico Negro (MG); www.clareira.naselva.com;
www.cronopios.com.br; www.germinaliteratura.com.br; www.slope.org; entre
outros. Assina os blogs: www.poesiacoisanenhuma.blogspot.com e www.poesia-
pau.zip.net. Ministra oficinas de poesia e é integrante do grupo os poETs
www.ospoets.com.br. E-mail: ([email protected]).
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