Poesia, desafio ao pensamento (João G. Paiva)

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Poesia, desafio ao pensamento João G. Paiva

Segundo o princípio para o qual é apenas na casa em chamas que se torna visível pela primeira vez o problema arquitetônico fundamental, do mesmo modo, a arte, tendo chegado ao ponto extremo do seu destino, torna visível o seu projeto original.

Com esse parágrafo, Giorgio Agamben conclui seu primeiro livro, O homem sem conteúdo. A via que percorre, para chegar ao ponto interpretativo-extremo em que a arte se colocou, é pela compreensão de que, hoje, ela deu fim a um “ciclo metafísico”. Independente de concordarmos com isso ou não, é verdade que vivemos, para dizer o mínimo, uma era de impasses. Do ponto de vista da poesia, uma das regiões ainda menos afetadas se considerarmos a pintura ou o teatro, muitos problemas parecem não encontrar solução. É nesse contexto, diante das experiências sucedidas e mal-sucedidas do início do século XX, das inquietudes causadas pelo diagnóstico do “incêndio”, comentado por Agamben, que a teoria literária, por fim, virá se fortalecer. O terreno seguro sobre o qual podemos caminhar diz respeito aos acertos de contas com o passado. Os acertos contra tudo aquilo que a modernidade, historicamente, conseguiu desenganar. Na edição n.1 da Revista A! foi publicado um artigo do pesquisador Thiago Castañon, intitulado “Paradigma do sujeito e formas líricas”. Nesse artigo, que é um esboço teórico, encontramos uma pergunta efetiva – possivelmente capaz de desencadear uma série de revisões para a teoria. Quais seriam, afinal, as possibilidades de se definir o poema hoje? E quanto ao atual conceito de lírica? A noção que nos foi legada pelos românticos ainda sobrevive à poesia moderna posterior? Se o próprio Hugo Friedrich considera tal poesia fruto de um “romantismo desromantizado”? E, dando um passo atrás, o conceito seria tão consistente a ponto de abarcar a poesia grega arcaica e os experimentos pós-Mallarmé? O projeto oculto por trás do artigo insinua que não. Por onde começar? Historicamente, pela Grécia, filosoficamente, pelo paradigma do sujeito, pedrafundamental do conceito romântico de lírica. E como espinha dorsal desse viajante entre as eras, temos a complexidade da mímesis. De agora em diante iniciamos uma breve leitura do artigo de Castañon, antes de retomarmos as perguntas. Para combater a ideia substancialista de sujeito, bem como o entendimento tradicional de mímesis, assistimos uma releitura da noção de lírica [lyriké], registrada depois pelos alexandrinos, em

oposição à canção [mélos] – conceito mais exato – denominando, conforme diversos autores, a poesia arcaica grega de poesia mélica. . Tal poesia, muito musical, razoavelmente distante dos latinos, por exemplo, possuía uma voz “saturada de coletividade”, e toda sua força aparentemente “individual”, estaria circunscrita aos valores compartilhados da pólis. Os alexandrinos, no período helenístico, teriam perdido os elos com a indissociável performance que lhe constituía, transformando tudo em literatura “pura e simples”, embora ainda fosse recitada. Ou seja, se ainda não havia lírica, já editavam livros como palavras e metro. Toda voz “individual” daqueles poetas é, na verdade, tarefa cívica; um papel vital na autoconsciência pública da cidade². “Pois em que sentido chamamos, então, a ambos os autores líricos e mélicos, antigos e modernos, de poetas?”. Avançando para os conflitos entre alta/baixa Idade Média, onde os primeiros sinais de um sujeito (como concebemos) parece surgir, o artigo apoia-se centralmente na Trilogia do controle (1984/1986/1988) e Limites da voz (1993) de Luiz Costa Lima. No momento em que a ordem cósmica do cristianismo parece não responder mais às indagações, desgastando-se, a subjetividade surge, aos poucos, para ocupar esse espaço inquieto, desencadeando uma nova poesia. A obra de Guillaume de Machaut, interpretada por Jacqueline de Cerquiglini, aparece como sintoma de um tempo inédito, onde a verdade não pode mais ser garantida “pelo recurso a uma alegoria”, mas por apelo à “experiência”. Então temos a chegada de Dante, Petrarca e da “ordem estabilizadora” da imitatio, com a criação de modelos para uma lógica de controle. Pois, apesar de tudo, a experiência ainda não é legítima por si só, ela precisa confluir com o mecanismo estável da tradição. O soneto aparece fechando a poesia na palavra sem música. E, afinal, para Costa Lima, o indivíduo renascentista, assimilado por seu universo em conflito, ainda não pertence à “espécie do sujeito moderno”. Inicia-se a disputa entre as poéticas escolásticas e humanistas. Daí a importância da conversão da mímesis em imitatio, o modelo serviria para hierarquizar a subjetividade, prevenindo qualquer descontrole. A imitatio conciliava as direções contrárias. .O passo seguinte demonstra que pouco importava aos renascentistas se Aristóteles havia, realmente, excluído a poesia mélica de seus estudos. Ao incluí-la entre as modalidades da mímesis, “em resposta ao aparecimento do eu individual”, os tratadistas da renascença privilegiam a lírica porque, dessa forma, estabeleceriam seus próprios limites.

Vimos que da Antiguidade à Baixa Idade Média a ausência de um sujeito individual não permite distinguir a existência de algo como uma poesia lírica ou uma modalidade de autobiografia. Sendo ambas referidas ao eu que escreve, desde que encontra condições de dar voz ao indivíduo, entretanto, o poeta apenas se distingue do autor da própria biografia pela exigência de se adequar ao princípio da imitatio e pelo respeito às regras de versificação e da elegantia sermonis. Mas desde que a irrupção do romantismo impôs o abandono do preceito clássico, apaga-se o frágil limite entre a autobiografia e poema lírico. Sob a rubrica geral de literatura, como uma das modalidades de expressão do eu, o poema passou a se distinguir primeiramente como o contrário da prosa. Posteriormente, em reação ao realismo, uma tentativa tardia de salvaguardar o poema será dada pelo uso desviante da linguagem, regido pela conotação. Mas como o primado da metáfora conotativa, entendida como figura de semelhança, já não se aplica à parte mais representativa da poesia que deriva de Baudelaire e Mallarmé, consequentemente trata-se de perguntar: com que direito ainda se chamam de “poetas” e “líricos” os autores modernos normalmente identificados com esse nome? (p.105)

É com o romantismo e a consagração daquilo que Auerbach denomina Stilmischung [mistura de estilos] que desaparecem os critérios com que se identificava o poético. A descoberta do “gênio”, a paixão pelo “eu”, confunde todos os preceitos renascentistas; o soneto sobrevive, enquanto forma externa, mas agora sem protagonismo. Ao mesmo tempo a poesia perde em prestígio social, com a ascensão dos regimes burgueses, e os leitores tornam-se esquivos à velha e à nova lírica. Com a perda dos leitores, agora “em oposição a uma sociedade preocupada com a segurança econômica da vida”, ela encaminha-se, progressivamente, para uma condição de negatividade, entrando num universo contrário ao da regulação da imitatio. O passo seguinte, baseado nas hipóteses de Hugo Friedrich, culmina na “despersonalização”, quando Baudelaire rompe a unidade romântica entre poesia e pessoa empírica. E Stéphane Mallarmé cria algo incomparável a tudo que veio antes. “De modo que ‘o leitor pode perguntar-se: esta poesia ainda é lírica?’ A que responde afirmativamente o romanista”. Até então Friedrich serviu como instrumento nas reflexões do projeto – agora há um limite que “ele não se dispõe a ultrapassar”. Amparando-se em palavras do próprio Mallarmé [crise de vers], contra a “fala bruta” da “prosa cotidiana”, reconhecendo que ele ainda identifica “a poesia com o verso”, Thiago Castañon deixa claro o seu diagnóstico de uma encruzilhada: ambas as versões, tanto a romântica do “eu” quanto a despersonalizada, compartilham a mesma recusa da mímesis, “na medida em que permanece compreendida como imitatio“. Erigido em regra desde Valéry e institucionalizado pela crítica imanentista, encontraremos ecos desse pressuposto, de fato, ainda em Blanchot e no Foucault de La pensée du dehors. (p.109)

Por fim, conclui, a negatividade da poesia (e da arte) moderna se converterá em auto-defesa, numa

paulatina normalização do “desvio”, deixando a “subversão de ser subversiva” e abrindo espaço para o hiper-desenvolvimento da teoria literária, realizada nesse pressuposto. O eixo de virada de Costa Lima, que o autor subscreve, é a perspectiva da negatividade como “ponto de partida” ao invés de “ponto de chegada”. Uma sugestão que incomoda tudo e orienta, decididamente, “o crítico atual a refazer o percurso”, desde Aristóteles, quando, na Poética, observa não-identidade entre metro e poesia. Na última frase do artigo cita a fala de Costa Lima numa entrevista: “Na verdade, apenas posso dizer minhas suspeitas. Elas se resumem a que o desafio maior de toda teorização […] está na lírica”. A vantagem dos grandes painéis, vistos como totalidade, se eles obscurecem os detalhes, é que os movimentos bruscos podem ser contemplados quase simultaneamente. O esboço do projeto que o artigo tentou assumir tem a qualidade do todo. Utilizando a mímesis como chave, assim como optando por Aristóteles, Giuliana Ragusa, Ernst Curtius, Erich Auerbach, Walter Benjamin e Costa Lima, em matéria de guias, Hugo Friedrich, como interlocutor de peso, assistimos um condensado desenrolar da história da poesia no ocidente. Embora tenha conferido mais tempo à Grécia, onde a categoria mélica exigia certa explicação, não podemos dizer que muito tenha ficado para trás. E a força vertiginosa que aparece entre dois extremos, o arcaico e o contemporâneo, ambos afastados do “eu”, definição exemplar de lírica, torna compreensível todo ímpeto teórico do projeto. Afinal, se o conceito romântico de lírica permanece definido como expressão da subjetividade, isso significa colocar o romantismo de forma central em nosso pensamento. Por outro lado, identificá-la com a mímesis clássica, traria problemas à poesia moderna. O autor quer combater, a princípio, a concepção normalizada de lírica. Não necessariamente isolando o século XX num conceito próprio e autônomo. A tarefa que se colocou, de refazer o caminho de Aristóteles até aqui, pode significar um encontro com objetos perdidos no passado e teoricamente desvinculados do que assistimos hoje. Mas isso talvez traga um desvio ocasional com as conclusões de Costa Lima, por exemplo, na passagem da Idade Média pro Renascimento (período cada vez mais, mundialmente, rodeado de polêmicas). Ou então com as do próprio Hugo Friedrich. Em seu livro clássico, o autor marca, exatamente, uma linha unitária da poesia moderna, localizando Mallarmé no cerne de sua hipótese de “despersonalização” etc. Isso traz um problema grave: e se Mallarmé estiver deslocado do espaço real em que se encontra e do papel que representou no século XX? Se a recusa ao “eu” tiver sido

apenas em parte? Talvez Baudelaire tenha interferido mais no percurso da poesia como um todo. E Mallarmé, por sua vez, tenha sido principalmente o criador de escolas. Um novo conceito de poesia não pode se firmar sobre experiências de vanguarda filiadas a este universo, quando encontramos, em pleno cânone, poetas que a contradizem. Tal é o exemplo de Czeslaw Milosz, opositor completo do estilo mallarmaico. Por mais brilhantes que sejam as descobertas de Friedrich, é verdade que o seu “sistema” tem sido questionado. Mas, concedendo uma afirmação das hipóteses de Friedrich, algumas perguntas ainda ficariam sem respostas. Por exemplo: a citação de Mallarmé, objetando o verso, é amplamente aceita como uma objeção ao alexandrino, que Victor Hugo representava. A [crise de vers], seria, na verdade, uma crise do verso alexandrino. Talvez o maior desafio desse projeto seja o próprio século XX – junto com o que sobreviveu dele. Trabalhar conceitos, no mundo dos fragmentos, é um desafio grande para a poesia. Não sabemos quais são as possibilidades recentes, a ideia de vanguarda ficou para trás, poderão os ecos do passado nos ajudar? Nas artes plásticas, mesmo com rupturas tão mais brutais ao longo da história, ainda encontramos muitos teóricos conciliadores, capazes de fazer suportar uma unidade conceitual ligando toda trajetória da arte. E o que dizer da poesia, quando até mesmo o soneto, ainda hoje, não é uma forma em extinção? Ou seja, é preciso lembrar que os poetas sempre reivindicaram, dentro do cânone, outros poetas como ancestrais. Eles reivindicam uma história literária da lírica, bem definida, que inclusive ajudou a constituir a própria poesia deles. Independente das eras. Se o teórico parar muito tempo para ouvi-los, pode perder-se no caminho. Vivemos uma época onde a arte alcançou o ponto extremo de seu destino. E é possível que o grande ardil da poesia seja, como ela mesma, tão ágil e concentrado que mal consigamos apanhar. Talvez o pensamento tenha alguma chance. Vamos ver. Temos um teórico a caminho. ¹ Giuliana Ragusa ² G. Most

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