POESIA, POÉTICA, SIMBOLISMO, OBRA PICTÓRICA E MATERIALIDADE: A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA DE HAROLDO DE CAMPOS

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POESIA, POÉTICA, SIMBOLISMO, OBRA PICTÓRICA E MATERIALIDADE: A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA DE HAROLDO DE CAMPOS

Prof. Ms.Ernesto de Souza Pachito – UFES – Centro de Artes Doutorando em Literatura – UFES – PPGL - CCHN

Esta apresentação oral tem como tema uma pesquisa de doutoramento que procura estabelecer a conjunção de espírito e matéria na obra de Haroldo de Campos A Máquina do mundo repensada (CAMPOS, 2004), com um capítulo já escrito. O início da redação da tese deu-se pelo seu capítulo I, saltando-se a introdução a ser feita a posteriori. Iniciou-se a expor os motivos, segundo a história, para uma crítica daquilo que poderia ser chamado de “estéticas idealistas”, nas artes. Tal crítica foi levada avante principalmente, mas não somente, por dois artistas-chaves na História das Artes da Modernidade: o pintor Gustave Courbet (1819-1877) e o escritor – e crítico de arte – Charles Baudelaire (1821-1867). Ela se consubstanciou em obras pictóricas e poéticas. O fenômeno, que consiste num aporte de materialidade na obra de arte pictórica (pintura a óleo) e na poesia, foi trazido para a tese a partir não de um procedimento de amostragem – coisa que poderia revelar um espírito de época, grosseiramente falando, e que poderia configurar a sincronia de diversas manifestações de arte com o mesmo traço de materialidade que as obras de Courbet e/ou Baudelaire. No entanto optou-se por um cotejo entre o que a crítica diz de algumas obras desses dois autores, e que pode ser aceito como plausível a partir de reproduções das obras de Courbet que estão em livros e em páginas da internet, e as teorias e/ou ideias que lhes inspiraram enquanto obras de estética e obras políticas.

A revolução artística que se inicia a partir de tais obras, seu efeito estético e a própria significação das mesmas obras, são coisas marcantes na história das artes e suficientes para que, em primeiro lugar, se trace um eixo de desenvolvimento, no tempo, da arte que poderia ser chamada de matérica, ou, materializante. No caso de Baudelaire, trata-se de uma arte que, mesmo sem o resultado plástico, em literatura, de uma representação que fosse quase tangível, densa – em termos de fonologia e/ou imagética –, procura uma região onde há uma indistinção, na imagem que o leitor forma em seu psiquismo, entre coisas concretas e outras coisas, abstratas, ideais, ou espirituais, mesmo. Tal indistinção em imagem – repita-se – é ensejada pelo recurso a um tipo de signo verbal e escrito chamado Símbolo, não em terminologia da semiótica peirceana, mas, segundo a definição, imprecisa, mas funcional, de Wolfgang von Goethe (GOETHE apud ECO, 2000, p. 73). Para Goethe, o Símbolo tem como característica possuir um referente cujos limites – e acrescentar-se-ia: limites em imagem, em visualização interna pelo leitor – perdem-se, estão em regiões inacessíveis à percepção desse leitor. O Símbolo goetheano tem um “objeto”, ou referente, que não é totalmente assimilável pelo leitor dada a sua vastidão. No poema “Correspondences” (BAUDELAIRE, 1985, p. 114), o poeta nos fala de uma mistura de percepções de coisas da paisagem, de sentimentos e de ideias do poeta, imerso naquele momento narrado na paisagem, com um sentimento de Infinito. Tal palavra, “Infinito”, que remete a essa infinitude, apenas pressentida pelo poeta, é Símbolo. É presença, transmitida ao leitor, de impressões, principalmente de uma flutuação para fora de si, efetuada por ambos poeta e leitor, pois, a ideia aqui é de uma indistinção entre sujeito e objeto o que nos leva a uma indistinção possível entre

poeta e leitor, já que ambos os termos estão fundidos num mesmo universo, onde tudo é Um, trata-se de monismo. Courbet traz para a arte esse entendimento materialista de que a vida corporal e suas necessidades e existência precedem qualquer ideia de alma metafísisca, ou qualquer ideia de Divindade – principalmente nos moldes cristãos – e precede qualquer religião, sendo a mente humana a criadora do ente Deus, e não o contrário. Tudo isso num processo histórico em que a luta de classes traria a necessidade, segundo Marx, de ruptura com concepções metafísicas dadas e, principalmente, de se romper com a ideia de adequação de todos a uma conformidade social, a um contrato, que devesse ser mantido pelo cidadão mesmo quando este se encontra numa condição de homem explorado como mão de obra para a indústria. Ou seja, Courbet é revolucionário. Já Charles Baudelaire, em seu poema correspondências, trouxe-nos a ideia da existência de um mundo onde instâncias secretas, distantes, ocultas, para além do mundo conhecido pela ciência, convergem com a esfera da psique do autor/leitor: sua mente, sentimentos, sensações, e, mais converge com o próprio corpo do leitor. Baudelaire valeu-se da magia, uma forma de pensamento metafísico, animista, fetichista e panteísta, alternativo às severas religiões cristãs, tradicionalmente dualistas entre corpo e alma, ou, tradicionalmente, assumindo uma tricotomia entre corpo, psiquismo e alma transcendental cristã. Religiões rígidas e apoiadoras do poder, àquela época. Courbet não é marxista. É amigo de Proudhon. Embora o pintor fosse socialista, sua obra não é vista como panfletária, e há a consideração de que sua obra tenha valor independente de qualquer libelo socialista, tal obra tendo se constituído como obra prima, como é notório, por seus próprios méritos (ARGAN, 1992, p.34).

Depois disso, procedeu-se a leitura analítica de A Máquina do Mundo Repensada (doravante A.M.M.R., em abreviatura) de Haroldo de Campos, em sua Parte I (CAMPOS, 2004, p. 13-32). Em tal Canto do poema haroldiano, encontrou-se aquilo que se supunha, por hipótese, lá estar: uma abertura onde compareceram signos de região agreste, de selva e a figura da onça pintada e um detalhe (close up poético): a imagem evocada pelo signo escrito de um tom amarelo encontrável em seus olhos. As pintas do animal, as veredas do chão: elementos de uma via áspera (ALIGHIERI, 2010, p.25), encontráveis também em Haroldo. Chegou-se, também, na leitura, a outros mais signos de materialidade que podem ser comparados às rime petrose, que este pesquisador traduziu por “rimas pedregosas”, artifício usado por Dante Alighieri em obras suas. Esse estratagema, constituído pela inserção, nos versos, de elementos matéricos cuja imagem suscitada na mente do leitor é deliberadamente calculada pelo poeta. Tais elementos são acidentes para a leitura fluida do poema e a obstaculizam, mobilizando reminiscências da leitura em voz alta na própria leitura silenciosa. Mas, outros elementos fizeram o presente pesquisador, neste trabalho, relativizar a ideia de uma poesia “concretista” em A.M.M.R., posto que nem só de acidentes constitui-se tal obra, mas, de versos mais rarefeitos (até com repetição de palavras), de metrificação e de outros recursos da poesia dantesca, uma obra onde se equilibram matéria (referente de substantivos concretos) e forma abstrata, metrificação, estrutura das rimas, etc. Surge a ideia de um retorno a certa tradição, em poesia, por parte de Haroldo de Campos, que não desmaterializa totalmente o poema – e há matéria na poesia desde Homero – mas, abranda o rigor do ideograma poético e seus cortes e descontinuidades radicais. Um indício para tal comportamento é o contato de Haroldo com o Gênesis bíblico (CAMPOS, 2004) e o Qohélet (Eclesiastes) (CAMPOS, 2004), obras que Haroldo traduziu e que devem tê-lo feito ainda mais próximo de Walter

Benjamin, judeu, cabalista e místico. Outra hipótese em estudo é a da cooptação da arte ideogrâmica, no vale-tudo estético dito pós-modernista e do mercado do fim do século XX. O símbolo mais marcante no primeiro terço de A.M.M.R. é a referência à face de Cristo-Deus. Ao fim do poema, Haroldo, num dos pares de opostos complementares possíveis termina o poema num titubeio entre gnose a agnose. Já Drummond, segundo a narrativa de Haroldo, tinha visto surgir a “A Máquina”, mas, sisudo e cético, continua seu áspero caminho em Minas Gerais, sem crença. O ato de plasmar-se, em poesia, uma quase-materialidade real é tido por presentação, ou seja, presentificação de uma res peculiar frente ao leitor, de um novo ente criado em meio ao mundo pelo poeta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Vol. I, Inferno. Trad. E notas de Italo Eugenio Mauro. 2a. Ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BAUDELAIRE, Charles. As Flores do mal. Trad., introdução e notas de Ivan Junqueira. 1a. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 104-110, 344. CAMPOS, Haroldo de. A Máquina do mundo repensada. 2a. ed. Cotia, SP: Ateliê Ed., 2004. ______. Bere’Shith : a cena de origem. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000. ______. Qohelet/ O-que-sabe Eclesiastes: poema sapiencial. Transcriado por Haroldo de Campos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004. ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Trad. António Guerreiro. 2a. Ed. Lisboa: Ed. Presença, 2000, p. 68-97.

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