POESIA, SÍMBOLO E REVELAÇÃO: UM ESTUDO DA OBRA DE ADÉLIA PRADO À

June 3, 2017 | Autor: joe marçal G Santos | Categoria: Teoria da literatura, Filosofia da Religião
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Anais do IV Congresso da ANPTECRE “Religião, Direitos Humanos e Laicidade” ISSN:2175-9685

POESIA, SÍMBOLO E REVELAÇÃO: UM ESTUDO DA OBRA DE ADÉLIA PRADO À LUZ DE P. RICOUER E P. TILLICH 1 José Antonio S. de Oliveira Mestrando em Ciências da Religião Universidade Federal de Sergipe / CAPES [email protected] Joe Marçal G. Santos Doutor em Teologia Universidade Federal de Sergipe [email protected] ST 13 – RELIGIÃO, MÍSTICA E POÉTICA Resumo: A presente comunicação de pesquisa trata de conceitos norteadores para uma abordagem crítica da poesia de Adélia Prado numa perspectiva teológico-literária. Esta última define-se em torno de um conceito de religião correlativo à cultura, compreendendo o caráter teológico da criação literária como intuição e expressão de “preocupação última”, tal como define Pau l Tillich. O objetivo da comunicação é desenvolver uma relação entre poesia, linguagem simbólica e revelação na obra de Adélia Prado. Para tanto, recorremos à base teórica sobre o símbolo em Paul Ricoeur (A Simbólica do Mal, Edições 70, 2013) que nos aponta para o caráter revelatório do símbolo, em razão daquilo que este comunica para além de si mesmo. A articulação com Paul Tillich nos permite também caracterizar a poesia adeliana, e sua constituição simbólica, como expressão de fé ontológica, que define a experiência do incondicional a partir de uma porção concreta da realidade e que, ao mesmo tempo, se m anifesta como fundamento último de toda a realidade. Em Tillich, fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente, e o que toca o ser humano incondicionalmente deve ser expresso pelo símbolo, porque é somente a linguagem simbólica que suporta o paradoxo do incondicional. Segundo Tillich, o símbolo, ao indicar para algo fora de si mesmo, participa da realidade daquilo que ele indica, nos levando a outros níveis de realidade que, por meio dele, se nos tornam acessíveis; e ainda “abre dimensões e estruturas da alma que correspondem às dimensões e estruturas da realidade e não podem ser inventados arbitrariamente.” (TILLICH, P., Dinâmica da fé, Sinodal, 1985, p. 31). A partir desses conceitos, propomos demonstrar, a partir de uma seleção de poemas, uma distinção de modalidades do caráter simbólico da poesia de Adélia Prado: uma modalidade relativa à sua constituição formal literária, que expressa seu encontro com o mundo, a concretude da vida e do cotidiano; uma segunda modalidade relativa ao que, nesse encontro com o mundo, nos termos de Tillich, toca incondicionalmente à poetisa; e uma terceira modalidade que se dá a partir da sua relação com Deus, evocando com este símbolo de sentido incondicional por excelência, toda uma tradição simbólic oreligiosa cristã. A criatividade poética atua nessas diferentes modalidades simbólicas e de modos distintos. E ainda que Tillich afirme que “símbolos não podem ser inventados arbitrariamente”, encontramos na poesia de Adélia Prado uma inventividade hermenêutica, pela qual as diferentes modalidades simbólicas, e as realidades para quais apontam e das quais participam, se contagiam, se ressignificam e se comunicam entre si. A poetisa tem como objeto a vida em seus diferentes âmbitos, e cria a su a poesia sob a experiência do encontro com esse objeto. Na trivialidade da existência é onde acontece a experiência de sentido incondicional mediado pelas formas simples do cotidiano. A poesia, como criação literária, é símbolo com o qual Adélia Prado expressa sua experiência com o que a toca incondicionalmente na concretude da vida e do cotidiano. Palavras-chave: Poesia. Símbolo. Fé. Incondicional.

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Esta comunicação reporta a projeto de pesquisa em nível de mestrado desenvolvida com o apoio de bolsa de pesquisa da CAPES, e integra o Grupo de Pesquisa Correlativos – Estudos em Cultura e Religião – PPGCIR/UFS.

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INTRODUÇÃO Uma relação entre literatura e religião que compreenda ambas como “criaturas irmãs, seres da linguagem” (SANTOS, 2012, p. 39), permite-nos pressupor que as experiências poética e religiosa são correlativas enquanto experiência de sentido, e, uma vez que se expressam em linguagem simbólica, encontram-se em uma analogia formal. Nosso objeto de estudo, a poética de Adélia Prado2 a partir de poemas selecionados em Miserere, seu último livro no gênero, convida-nos explorar esse pressuposto e indagar a respeito da mutualidade entre a função estética e religiosa no interior da ação criativa humana. Pois, tal pressuposto, que desenvolvemos em conceito, está também presente à consciência da própria poetisa, que afirma o caráter epifânico, isto é, revelatório, da poesia.3 Veremos a seguir, Com Ricoeur e Tillich, que essa relação, além de formalmente analógica, tem implicações existenciais e ontológicas, das quais depreendemos implicações propriamente religiosas. Não se trata de uma metáfora: o caráter epifânico da arte, a inspiração que orienta a criatividade poética, repercute naquilo que, na experiência religiosa, chama-se inspiração e revelação de sentido incondicional (TILLICH, 1971, p. 207).

A POESIA DE ADÉLIA PRADO QUARTO DE COSTURA

Um óvulo imaginado, Espesso, fosco, amarelo, Pólen e penugem que a mais potente das máquinas ainda não inventada abriria em universos. O que parece indivíduo é vários. 2

Nascida em 13 de dezembro de 1935, na cidade de Divinópolis/MG, formada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, Adélia Prado publicou seu primeiro livro de poesia, intitulado Bagagem, em 1976. Desde então, publicou várias obras em prosa e poesia, e sua última reunião de poemas ganhou o título Miserere, publicado em 2013. 3

Em entrevista, Adélia Prado afirma que “poesia é a revelação do real. Experimentar a poesia é experimentar o real, o que de fato é. Ela é desveladora da realidade, ela permite a você a desmistificação da vida. [...] o poeta é como o filósofo,é aquele que está centrado no real. Por isso ela é tão importante no processo de humanização das pessoas. [...] o discurso poético é uma epifania, revelação constante. Revelação dirigida à sensibilidade, que não conta com a inteligência, que envolve” (PRADO apud MOREIRA, 2010).

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Fosse boa cristã Entregava a Deus o que não entendo e arrematava o bordado esquecido no cesto. Tenho labirintite. Amei Aristóteles com fervor. E por um longo tempo deixei-o por Platão. Enfadei-me , saudosa de carne e ossos, acidez de sangue e suor. O que deveras existe nos poupa perturbações, Sou um vestal sem mágoas. Terei o que desejo, carregando minha cruz e morrendo nela (PRADO, 2014, p. 21). Nesse poema, encontramos os elementos simbólicos que remetem à sensibilidade religiosa imbricada na poética adeliana. A figura feminina na imagem de um óvulo que contém a potência de um universo; a indagação duvidosa quanto a entregar-se a Deus frente a dúvidas, apegando-se ao afazer cotidiano de um bordado esquecido; uma referencialidade bíblica e filosófica que não resiste ao apelo do corpo como lugar e condição de uma realização última do ser humano, que acontece na simplicidade do devaneio poético em um Quarto de Costura. Em Adélia Prado, a relação entre literatura e religiosidade é precisa e peculiar porque uma e outra são intrínsecas. O eu lírico é permeada de crenças e dúvidas

confessas,

e

ao

mesmo

tempo,

grávida

daquilo

que

lhe

toca

incondicionalmente: uma vida criativa e com sentido. A poesia de Adélia Prado pode suportar esse encontro paradoxal entre a condicionalidade da existência e incondicionalidade de sentido mediante sua constituição simbólica: ela comunica um encontro com o mundo em que este, na medida em que é radicalmente concreto, ao mesmo tempo, ora transparece em lúcida revelação, ora irrompe e jorra de si aquilo que o fundamenta e transcende. A LINGUAGEM SIMBÓLICA EM PAUL RICOEUR Paul Ricoeur nos oferece categorias em sua teoria do símbolo desde as quais a relação analógica entre poesia e “símbolos da fé” pode ser desenvolvida. Sua tese fundamental é: o símbolo é que dá o sentido, e o doa nos fazendo pensar a respeito do que ele indica. Ricoeur propõe uma hermenêutica do sentido e tal sentido é desvelado pelo símbolo, seja mítico, poético ou religioso. Para a nossa empreitada, utilizaremos a sua hermenêutica do símbolo como base teórica para a análise e

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interpretação da arte adeliana da palavra. A poetisa se vale da palavra para poetizar o cotidiano, a vida simples do interior mineiro. É no, com e partir do cotidiano que a sua experiência do sagrado é expressa em palavras. Isso corresponde a noção ricoeuriana de que é no mundo que o ser humano lê e experimenta a construção de sentido através de uma linguagem simbólica. O símbolo narrado, dito e poetizado remete às manifestações do sagrado4 revelado numa parte do mundo, isto é, às hierofanias que transcendem os limites de uma parte do mundo, ressignificando este e a quem pelo símbolo é tocado – nas palavras de Ricoeur: É, antes de mais, no mundo, nos elementos ou nas características do mundo, no céu, no sol e na lua, nas águas e na vegetação que o homem lê o sagrado; o simbolismo falado remete desde modo para as manifestações do sagrado, para as hierofanias, nas quais o sagrado é revelado num fragmento do cosmos que, por sua vez, perde os seus limites concretos, se reveste de inúmeras significações (...) (RICOUER, 2013, p. 27). Quando se trata de manifestação simbólica, as coisas fazem uso da palavra como matriz de significações simbólicas. No símbolo, Ricoeur destaca dois aspectos: o símbolo dá, dá sentido nele. O símbolo carrega em seu seio o sentido que irá interpelar a partir da doação; o símbolo dá a pensar, do que pensar. O filósofo empreende a tarefa da interpretação doadora de sentido, fiel ao símbolo que dá a pensar e a compreender. Nele temos um enigma que deve ser decifrado; daí começar tudo na dimensão do pensar (RICOUER, 2013, p. 336). É desse esforço do pensamento no âmbito do símbolo que sua hermenêutica é constituída: como o símbolo é um enigma, estamos inseridos no campo da linguagem. Faz-se necessária uma interpretação que seja fiel ao símbolo, deixando-o, ele mesmo, promover o sentido. Pensar o símbolo é pensar em sua linguagem. A hermenêutica deve procurar uma revivificação filosófica a partir da reflexão sobre os símbolos que se apresentam à consciência. Pensar filosoficamente é dar “ao pensamento a autonomia suficiente para ele pensar o valor de verdade de cada símbolo” (RICOUER, 2013,

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Ricouer define, como se pode ver na citação que segue, sagrado como aquilo nos precede e nos ultrapassa; que constitui e dá sentido à nossa existência, enquanto referência transcendente em que a vida humana está fixada, como doadora de sentido. Nesses termos, a noção de sagrado é central para uma compreensão do símbolo e da dinâmica de sentido a que ele corresponde para o ser humano, permitindo uma interlocução significativa com a teoria de Paul Tillich, que depreende dessa dinâmica de sentido uma filosofia da cultura e da religião em correlação.

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p.329). É em Simbólica do mal que Ricoeur defende o valor da interpretação, pois é interpretando que entendemos. Na hermenêutica há uma ligação entre doação de sentido pelo símbolo e a tomada de atitude para a decifração. É preciso que tal modo de pensar seja dinâmico, capaz de apostar na riqueza do símbolo e sua capacidade de elucidar a realidade humana. Quando os símbolos revelam a situação do ser humano no ser do mundo, eles acabam proporcionando a elucidação de conceitos existenciais que estruturam a realidade e a condição humana. O símbolo tem uma função ontológica, e dessa forma sempre falará da condição humana no mundo e de como o ser humano se relaciona com o sagrado – categoria que aproximamos a Incondicional, conceito constitutivo da noção de fé em Paul Tillich. Em suma, o pensamento ricoeuriano nos oferece critérios para uma interpretação simbólica a partir do próprio símbolo. Em nosso caso, são critérios que permitem tomar a poética de Adélia como símbolo que expressa a sua experiência de sentido no trivial da vida, reconhecendo nele uma intensa – porque criativa e transfiguradora – relação da poetisa e seu cotidiano. Isso se cristaliza em sua arte. Uma experiência do sagrado que, por se “esconder” em poesia, na medida em que esta é acolhida e decifrada, dá sentido e dá o que pensar quanto ao trivial da existência prenhe de sentido último. A DINÂMICA DA FÉ E DO SÍMBOLO EM PAUL TILLICH Dois conceitos são norteadores aqui: a compreensão da dinâmica da fé a partir da noção de “preocupação última” e a noção de revelação associada ao ato de recepção e expressão criativa de sentido. Ambos estão articulados ao conceito de incondicional, a partir do qual Paul Tillich desenvolve tanto sua filosofia da religião, quanto a teologia da cultura e da arte. O conceito de incondicional está associado à fenomenologia da consciência de sentido com que Tillich define cultura e religião correlativamente como funções da consciência de sentido5:

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Tillich também as define como “funções do espírito” ou, como mais tarde irá definir, na Teologia Sistemática, “funções da vida na dimensão do espírito” (2005, p. 517-528).

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Se a consciência se dirige às formas particulares de sentido e sua unidade, nós temos de lidar com cultura; se ela se dirige ao sentido incondicional, à importância [import] do sentido, nós temos religião. Religião é a direcionalidade da consciência ao Incondicional, e cultura é a direcionalidade da consciência às formas condicionadas e sua unidade (TILLICH, 1973, p. 59).6 Cultura e religião são, portanto, relativas ao constante exercício humano de correlacionar suas ações, através de pensamento e linguagem, a um mundo e uma vida com sentido.7 Este último não está definido e dado enquanto não for um acontecimento na consciência, que ocorre no encontro com a realidade. Segundo Tillich, isto se dá a partir de duas atitudes distintas, mas correlatas: de um lado, uma atitude dirigida às condições materiais concretas em que a existência faz sentido – isto é, às formas do ambiente e ao arranjo das coisas e dos eventos numa unidade que torna o ambiente em um “mundo”, um “universo de sentido”, um habitat humano; de outro lado, uma atitude mobilizada e dirigida pela esperança, e mesmo angústia, de que, no encontro aleatório e contingente com a realidade, se realize incondicionalmente um mundo e uma vida com sentido. Assim, relativo à cultura, temos as formas e os conteúdos concretos8 de sentidos particulares, cuja eficácia (o potencial de sentido) depende da unidade interrelativa entre eles, mediante a qual proveem um sentido de mundo capaz de significar todo e qualquer encontro da consciência com a realidade, por mais aleatórios e contingentes sejam esses encontros. Daí que, no interior da própria cultura, atua um princípio/exigência de incondicionalidade do sentido: toda ação humana, por ser uma 6

If consciousness is directed toward the particular forms of meaning and their unity, we have to do with culture; if it is directed toward the unconditioned meaning, toward the import of meaning, we have religion. Religion is directedness toward the Unconditional, and culture is directedness toward the conditioned forms and their unity [Tradução para o português nossa, apoiada no texto original em alemão, cf. TILLICH, 1987, p. 134]. 7

Anthony Giddens define essa atividade como “monitoração reflexiva da ação”, pela qual “os seres humanos rotineiramente ‘se mantêm em contato’ com as bases do que fazem como parte integrante do fazer”. Ele destaca com essa definição “o caráter crônico dos processos envolvidos” nessa dinâmica de referenciação espaço-temporal constante. Segundo o autor, é em torno da reflexividade, do modo pela qual ela opera, que a modernidade contrasta inerentemente com a tradição (Giddens, 1991, p. 37-38). 8

No alemão, Tillich definiu “Form”, “Inhalt” e “Gehalt” o que, respectivamente, no inglês, ele traduziu por “form”, “content” e “import”. Em português, se tem usado respectivamente “forma”, “conteúdo” e “substância”. A tradução desta última, embora etimologicamente correto, nos parece inadequado. Gehalt/Import define a potência de sentido presente na unidade de sentido que, por sua vez, define cultura. Aqui traduzimos como “importância do sentido”, mantendo elo com a solução em língua inglesa e, ao mesmo tempo, sugerindo a noção daquilo que, fazendo parte do sentido, não se materializa e, ao mesmo tempo, lhe confere eficácia ou significabilidade.

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ação cultural, embora condicionada espacial e temporalmente a seu encontro com a realidade, se pretende mais que apenas um ato mecânico e localizado, pois essa ação implica necessariamente em um mundo e uma vida com sentido. E aquelas ações nas quais o ser humano mais investe sua esperança por uma vida e um mundo com sentido, ações estas que tendem a corresponder menos com a realidade e mais com o que se espera da realidade, são as que mais expõem a angústia humana quanto ao fato de o sentido efetivamente permanecer algo provisório e relativo, a despeito de toda atenção estar dirigida a uma incondicional realização de sentido. Para Tillich, essa esperança/angústia é religião, que atua no interior da dinâmica cultural enquanto direcionalidade da consciência ao que, em meio às condições concretas e materiais da existência, a transcende, ao mesmo tempo, como possibilidade e exigência incondicional de um mundo e uma vida com sentido. Cultura é a totalidade dos atos espirituais direcionados à realização de formas particulares de sentido e sua unidade. Religião é a totalidade dos atos espirituais direcionados à apreensão da importância incondicional de sentido através da realização de unidade de sentido (TILLICH, 1973, p. 60).9 Em Dinâmica da fé, escrito três décadas após Tillich ter delineado esses conceitos basilares, encontramos a definição de fé como “estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente” (2001, p. 5). É uma noção de fé que não se pauta por seu conteúdo, e sim por sua dinâmica, descrevendo o modo como a fé acontece. Conforme o que vimos acima, nesses termos, fé é o evento da consciência tomada por sentido incondicional e, assim, dirigida pela esperança/angústia da apreensão de um mundo e vida com sentido. Ela se expressa como “preocupação suprema” por aquilo que é “imprescindível para a vida de um indivíduo bem como de toda uma comunidade” e que, por sua vez, “não se esgota na simples exigência de sujeição incondicional; ela contém igualmente a promessa de realização suprema, que é esperada num ato de fé” (2001, p. 6).

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Culture is the sum total of all spiritual acts directed toward the fulfillment of particular forms of meaning and their unity. Religion is the sum total of all spiritual acts directed toward grasping the unconditioned import of meaning through the fulfillment of the unity of meaning [Tradução para o português nossa, apoiada no texto original em alemão, cf. TILLICH, 1987, p. 135].

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Por se tratar de uma promessa de realização incondicional de sentido, Tillich enfatiza que “aquilo que nos toca incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos, porque apenas a linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” (2001, p. 30). Isso porque a linguagem como tal é um condicionamento de sentido, e a fé, apesar de se expressar nesses termos, quer comunicar o que transcende a própria linguagem, isto é, a incondicionalidade de sentido. O símbolo permite fazê-lo porque ele indica algo fora dele mesmo, como todo sinal ou convenção de linguagem, mas, diferente destes, ao mesmo tempo, “faz parte daquilo que ele indica” (2001, p. 31). Nesse sentido, Tillich e Ricoeur convergem no argumento ontológico e existencial da teoria do símbolo. Este, ao participar da realidade a qual indica, revela outros níveis de realidade que, por meio dele, se nos tornam acessíveis, e, por conseguinte, “abre dimensões e estruturas da alma que correspondem às dimensões e estruturas da realidade” (TILLICH, 2001, p. 31).10 Decorre disso que “símbolos não podem ser inventados arbitrariamente. Eles provêm do inconsciente individual ou coletivo e só tomam vida ao se radicarem no inconsciente do nosso próprio ser. (...) Eles surgem e desaparecem como seres vivos” (TILLICH, 2001, p. 31-32). Até aqui, podemos então considerar o seguinte: é através destes “símbolosseres vivos” que religião enquanto direcionalidade ao sentido incondicional atua no interior da cultura enquanto direcionalidade às condições de sentido, como linguagem capaz de revelar dimensões da realidade enquanto possibilidade/exigência de um mundo e vida com sentido. Isso, contudo, não coincide com religião em sentido estrito – uma comunidade, instituição, tradição concreta – , que melhor seria definida como “cultura religiosa”. Religião como direcionalidade ao incondicional atua em todos os âmbitos da cultura, pois, como vimos, está implicada em toda ação humana, enquanto direcionalidade da ação na esperança/angústia de um mundo e vida com sentido. “Cultura como cultura é, por isso, substancialmente, mas não intencionalmente religiosa” (TILLICH, 1973, p. 59). 10

Não se trata aqui da ontologização de uma realidade metafísica aristotélico-tomista, que pressupõe uma supranatureza que, então, o símbolo revelaria e por meio do qual a cultura se renderia ao primado da religião sobre a cultura. Tillich rompe radicalmente com esse esquema; para ele, o símbolo revela dimensões e abre níveis da realidade instaurada em linguagem, o que, segundo Tillich, se dá em meio às ambiguidades da vida nas condições da existência – condições que justamente mobilizam o desejo por uma vida sem ambiguidade (Cf. TILLICH, 2005, p. 475-476).

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A fé é a dinâmica pela qual isso se efetiva em atitude e ação de esperança na promessa de realização de sentido e, ao mesmo tempo, atitude e ação de angústia frente a exigência de realização incondicional de sentido, a despeito daquilo que a ação cultural promete mas não consegue realizar incondicionalmente. Embora Tillich faça uma distinção entre sua definição geral de símbolo e a definição de símbolo religioso (2001, p. 32-35), é preciso compreender que ao fazê-lo, sua preocupação é distinguir a dinâmica simbólica da idolátrica, e não reduzir a fé como “preocupação última” à esfera cultural-religiosa. Quanto ao símbolo, importa destacar que ele expressa genuinamente fé enquanto corresponder ao paradoxo do incondicional, instituindo sua própria crítica: Seja lá como designamos nossa preocupação suprema, se a chamamos de Deus ou não, as nossas afirmações sempre têm significado simbólico; e os símbolos então usados mostram para além de si mesmos e têm participação naquilo que eles designam (TILLICH, 2001, p. 33). Adélia Prado sintetiza essa ideia em seu poema Antes do Nome (1991, p. 22): Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás", o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror. O paradoxo de a “palavra” – como criatura comunicativa que é – ter sido “inventada para ser calada”, paradoxo este que perpassa as criações simbólicas da cultura – isto é, criações que participam da incondicionalidade de sentido (pelo que tanto prometem ter algo a dizer) e, ao mesmo tempo, expressam crítica e criativamente seu caráter provisório e condicionado (pelo que se calam) – , é um dos critérios para desenvolver uma teologia da cultura compreendida como “hermenêutica teológica da cultura” (SANTOS, 2005, p. 137). Evidentemente, a essa perspectiva interessam

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aquelas criações simbólicas que assumem em si essa tensão de dizer calando-se – do contrário, instaura-se o ídolo, que ao participar do incondicional, identifica-se com este demonicamente.11 Tillich depreende dessa tensão nas criações culturais entre efetivamente participar da possibilidade/exigência incondicional de sentido e instituir sua própria crítica, o conceito de estilo. Na arte, o estilo é “o elemento transcendente” que se une ao “elemento livre”, que é a escolha de objeto pelo artista, e o “elemento determinado”, que é a forma estética (TILLICH, 1971, p. 209). O estilo atua, portanto, como “direcionalidade” sob a qual a subjetividade criativa do artista produz suas escolhas e sua técnica. É no estilo que está implicado o princípio de incondicionalidade, com o qual Tillich

define religião e fé. Numa palavra, “o estilo artístico de cada época é um

documento da existência religiosa dessa época” (TILLICH, 1971, p. 209); por sua vez, o estilo de um artista, por conseguinte, testemunha algo de sua “preocupação última”. Em vista do escopo dessa comunicação de pesquisa, cujo objetivo é realizar uma hermenêutica da poética de Adélia Prado, o quadro conceitual que Tillich nos oferece convida a aproximar e estabelecer uma relação entre o conceito de estilo e uma tipologia da fé. Essa aproximação teórica, em detalhe, exigiria um espaço próprio de discussão. Aqui, contudo, apontamos conclusivamente alguns aspectos para considerar – como segue: Primeiro, destacar que há uma variedade de tipos de fé, cuja diversidade se dá “tanto para o ato de crer como para conteúdo da fé” (TILLICH, 2001, p. 39), e também de acordo com o estado subjetivo de cada indivíduo ou grupo. Em toda expressão religiosa está contido um tipo de fé específico, a partir de como o sagrado é experimentado: na santidade do ser – o tipo ontológico de fé; ou na santidade do dever - o tipo ético de fé. Importa, para Tillich, destacar dois elementos sempre presentes mas em correlações diferentes, do que surge a variedade tipológica que ele propõe: por um lado, a experiência de “presença do sagrado” que é fundante e afirmativa de sentido, e,

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O demônico, para Tillich, define as formas religiosas em que o paradoxo do incondicional se rompe, ou se procura supera-lo; isto é, reivindica-se incondicionalidade a uma realidade finita, instaurando o ídolo. O demônico, nesse sentido, é uma categoria que permite compreender fenômenos em diferentes âmbitos da cultura, relacionado aos efeitos de-formativos de reinvidicações absolutas e incondicionais a uma realidade provisória e condicionada (Cf. TILLICH, 1973, p. 85-88).

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por outro lado, a experiência de “ausência do sagrado” em que a incondicionalidade de sentido é um “poder de exigir aquilo que deveríamos ser” (TILLICH, 2001, p. 40). Em segundo lugar, parece-nos que os tipos ontológicos de fé (que são três, como segue) oferecem elementos importantes para a abordagem da poética de Adélia Prado enquanto símbolo de fé. Neste tipo, “o sagrado é experimentado como estando presente” (TILLICH, 2001, p. 41), sacramentando a realidade – a fé sacramental; tornando-se presente na alma, e nela unindo finito e infinito – o tipo místico de fé; e o tipo humanístico da fé – em “que é verdadeiramente humano o critério e alvo da vida do espírito” (TILLICH,1985, p. 44). De modo geral, elementos já apontados na poesia de Adélia Prado, nos fazem pensar que o tipo ontológico de fé direciona seu estilo de criação. Deveremos explorar essa hipótese de trabalho, considerando, contudo, que sua poesia carrega um forte traço de irreverência e apelo erótico que nos indicam aquilo que acima definimos como dimensão crítica do símbolo em relação a si mesmo, e alude a face ausente do sagrado. Ou seja, o modo com que Adélia Prado transgride e subverte o conteúdo simbólico de formas consagradas, provocando especialmente um contraste conciliatório entre sacro e profano, define seu estilo, em cuja direcionalidade de sentido – assim esperamos sustentar ao longo dessa pesquisa – atua uma criatividade teológica que cristaliza



remetendo

ao

poema

supracitado



“momentos

de

graça,

infrequentíssimos”, quando a palavra, esse “disfarce de uma coisa mais grave”, pode ser apanhada: “um peixe vivo com a mão – puro susto e terror”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, Paul Ricoeur nos interpela a pensar que não podemos dar, arbitrariamente, o sentido ao símbolo, pois ele dá a si mesmo o sentido. A tarefa hermenêutica, então, se efetiva na revivificação do pensar, a saber, em pensar a significação que está no próprio símbolo - mítico, poético e religioso – como enigma que nos interpela para o sentido do/no mundo, através do exercício do pensar acerca da linguagem simbólica, e da capacidade elucidativa do símbolo acerca da realidade constitutiva do mundo.

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Em Tillich, encontramos uma noção de fé como “preocupação última” que mobiliza a “expressão criativa de sentido” por meio da linguagem simbólica. Cultura e religião são funções correlativas na realização e expressão de sentido, de modo que, por princípio, toda e qualquer parte do mundo, uma vez que é mediado em cultura, torna-se apto para expressar “preocupação última”. O critério hermenêutico-teológico, nesse caso, é o incondicional, como princípio em torno do qual cultura e religião estão articulados. A poesia é a linguagem simbólica a qual Adélia recorre para expressar a sua experiência de encontro com o mundo. Um mundo encontrado sob o tempo, espaço, corpo, desejo e falta; e justamente por isso, passível de sentido incondicional. Ainda que “símbolos não possam ser inventados arbitrariamente”, a poesia efetua uma inventividade hermenêutica pela qual as diferentes modalidades simbólicas e as realidades para quais apontam e das quais participam, se contagiam, se ressignificam e se comunicam entre si. Na trivialidade da existência é onde acontece a experiência de sentido incondicional, mediado pelas formas simples do cotidiano. Nos termos de Tillich, quando define o tipo ontológico de fé, na poesia de Adélia Prado, “o sagrado é experimentado como estando presente” – como em seu poema Bendito, em que a memória de infância da horta iluminada pelo luar traduz a incondicional gratidão pela vida em meio à lúcida percepção do que torna a vida ingrata: Louvado seja Deus, meu senhor Por que meu coração está cortado a lâmina Mas sorrio no espelho ao que À revelia de tudo se promete; Por que sou desgraçado como um homem tangido para a forca, Mas me lembro de uma noite na roça O luar nos legumes e um grilo Minha sombra na parede. Louvado sejas por que eu quero pecar contra o afinal sítio aprazível dos mortos, Violar as tumbas com o arranhão das unhas, Mas vejo a tua cabeça pendida e escuto o galo cantar Três vezes em meu socorro. Louvado sejas, porque a vida é horrível Porque mais é o tempo que eu passo Recolhendo os despojos - velho ao fim de uma guerra como uma cabra -

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Mas limpo os olhos e o muco de meu nariz Por um canteiro de grama. Louvado sejas por que eu quero morrer, mas tenho medo E insisto em esperar o prometido Uma vez quando eu era menino Abri a porta de noite A horta estava branca de luar E acreditei, sem nenhum sofrimento: LOUVADO SEJAS!!!! ( PRADO, 1991, p. 62)

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