POETAS E DEUSES NA REPÚBLICA DE PLATÃO 1

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POETAS E DEUSES NA REPÚBLICA DE PLATÃO1 Júlio César Tavares Dias(*) Anastácio Araújo Borges Júnior(**)

RESUMO É de muito conhecida a questão da relação de Platão com os poetas. Os poetas cantaram mal os deuses, atribuindo-lhes coisas que não poderiam lhes ser atribuídas. Seguindo no erro da antropomorfia, eles atribuíram aos deuses erros próprios e comuns dos homens. A poesia, para Platão, deveria ser educativa. Para entendermos bem essa questão, relembramos a importância dos deuses para as cidades na Antiguidade. Nosso principal questionamento é sobre a possibilidade de tecer um canto condizente aos deuses e do papel da religião para construção do cidadão com Areté. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e religião. Poesia. Expulsão dos poetas.

POETS AND GODS IN THE REPUBLIC OF PLATO ABSTRACT The question about Platão and his relation with poets is much known. Poets sang gods badly, attributing to them impossible things to attribute. Following anthropomorphizing’s mistake, poets did attribute to gods mistakes that are common to humans. Poetry, for Plato, should be educative. For we understand well this question, we remembered gods’ importance for cities in Antiguity. Our main asking is about possibility to do a suitable song to gods and about religion’s role to construct a citizen with Arete. KEY WORDS: Literature and religion. Poetry. Banishment of poets.

É de muito conhecida a questão da relação de Platão com os poetas, em que aquele quis expulsar estes da sua República. No diálogo entre Sócrates e Glauco (Rep., livro X), Platão expõe

seu pensamento segundo o qual

todas as obras miméticas podem destruir a

inteligência dos ouvintes que não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira                                                                                                                         1

Trabalho destinado à disciplina Seminário Filosófico 10: Textos e obras de Ética, ministrado pelo prof. Dr. Anastácio Borges, no curso de graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Email: abaraujojr²uol.com.br.   (*) Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Licenciado em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE). Professor da Rede Pública de Pernambuco. Email: [email protected]     (**) Doutor em Filosofia. Professor do curso de Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).     Revista  Poros  •  v.  4  /  n.  7  (2012)  •  ISSN  2175-­‐1455  •  catolicaonline.com.br/poros   13  

natureza. E estabelece a doutrina de não aceitar a poesia de caráter mimético na República, o que leva à conclusão de que os poetas não poderão mais fazer parte dela. A poesia só poderá ser aceita se for de louvor aos deuses ou aos homens honestos, pois outra forma de poesia, a mimética, levaria a cidade a viver guiada pelo prazer, em vez de seguir a lei e os princípios que levem a Arete. Platão considera ter sido Homero até o momento o educador dos gregos. Jaeger ( s/d. p. 57) observa a respeito: Impõem-se aqui algumas observações sobre a ação educadora da poesia grega em geral e da de Homero, em particular. A poesia só pode exercer uma ta lação se fizer valer todas as forças estéticas e éticas do homem. Porém a relação entre os aspectos ético e estético não consiste só em o ético nos ser dado como “matéria” acidental, alheia ao desígnio essencial propriamente artístico, mas sim em o conteúdo normativo e a forma artística da obra de arte estarem em ação recíproca e terem até na sua parte mais íntima uma raiz comum.

A questão que aparece nos livros que citamos é que esses poetas cantaram mal os deuses, atribuindo-lhes coisas que não se lhes poderia atribuir. Seguindo no erro da antropomorfia, eles atribuíram aos deuses erros próprios e comuns dos homens. Xenofonte foi o primeiro a nos alertar de que cada povo imagina seu deus conforme seus próprios traços, sendo que se os cavalos tivessem deuses, seus deuses também seriam cavalos. Esse erro dos poetas incorreria num grave problema para a cidade que se planeja criar, uma vez que seria um incentivo para que os homens seguissem essas atitudes vis que os poetas atribuíam aos deuses. Também nas Leis podemos ler semelhantemente: Todas estas, meus amigos, são opiniões que os jovens absorvem dos sábios, tanto escritores de prosa quanto poetas, que sustentam que o justo por excelência é aquele que impõe a força vitoriosa. E disso resulta que os jovens estão tomados por urna epidemiade irnpiedade, convencidos de que os deuses não são em absoluto deuses como os que as leis nos orientam a concebê-los.

Na verdade, muitas das interpretações equivocadas sobre a posição platônica em relação à poesia e aos poetas deve-se ao fato de se voltar os olhos quase que exclusivamente para o livro X da República, esquecendo-se dos primeiros livros. Acreditamos que o problema em questão (a “expulsão dos poetas”) estava “resolvido” desde o livro II, quando Platão nos dá a chave para responder a essa pergunta. Em primeiro lugar, Platão não expulsa a poesia nem o poeta da sua República. O que ali se considera é que algumas expressões da poesia deveriam ser suprimidas em nome da educação e do exemplo. Revista  Poros  •  v.  4  /  n.  7  (2012)  •  ISSN  2175-­‐1455  •  catolicaonline.com.br/poros  

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Representar deuses e heróis em atitudes degradantes seria um mau exemplo para o tipo de homem que ele julga ser o melhor para a cidade. Tomem-se como exemplo o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, onde é relatado que Zeus tomou a forma humana para ter relações com a jovem Íon, e Hera vingou-se da jovem, transformando-a num centauro, ou a cena da Ilíada (chamada “o dolo de Zeus”) quando Zeus e Hera amam-se no chão, numa atitude desmedida e luxuriosa de ambos os deuses. Ou a cena de Aquiles, que os cabelos arrancou com as unhas em luto por Pátroclo, o que, para Platão, foi uma atitude não condizente a um homem nobre e virtuoso, que deveria, antes, exemplificar lucidez e temperança. Aquiles também aparece na Ilíada sacrificando doze jovens troianos na pira funerária, matando-os com espada de bronze, no ritual fúnebre que promove em honra da morte de Pátroclo. É em nome dessas descrições que Platão teria expulsado os poetas, ou melhor, certo tipo de poeta e de poesia (precisamente aquelas que se exprimem dessa maneira, de modo indigno, referindo-se a deuses e heróis). A poesia, para Platão, deveria ser educativa. “Mas só pode ser propriamente educativa uma poesia cujas raízes mergulhem nas camadas mais profundas do ser humano e na qual viva um ethos, um anseio espiritual, uma imagem do humano capaz de se tornar numa obrigação e num dever [...] A arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual.” (JAEGER, s/d, p. 57-58). É necessário para entendermos o contexto dessa discussão observarmos a importância que os deuses tinham para as cidades na Antiguidade. Fustel de Coulanges investigou essa questão na obra A Cidade Antiga. Segundo ele: Não nos devemos esquecer de que, nos tempos antigos, o que constituía o vínculo de toda sociedade era o culto. Assim, como o altar doméstico mantinha unidos a seu redor os membros de uma família, assim o culto de uma cidade era a reunião daqueles que tinham os mesmos deuses protetores, e que celebravam os atos religiosos no mesmo altar (...) Não havia nada mais sagrado em uma cidade do que esse altar (...) o lar público era o santuário da cidade, que a fizera nascer e que a conservava. (COULANGES, 1961, p. 224-225, 226).

As palavras de Fustel de Coulanges nos apontam para aquilo que foi bem posto na sociologia de Durkheim: a religião é fator de coesão social. E nesse sentido podemos entender que não eram os deuses que Platão estava defendendo (se são deuses não carecem ser defendidos), mas o seu ideal de cidade. Ou seja, a questão colocada por Platão é, sobretudo, de aspecto pedagógico, e não de devoção religiosa. Da mesma forma no livro X das Leis, o

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ateísmo é visto como um problema. O que parece está aqui apontado é que certa poesia e certa visão dos deuses pode contribuir para a educação moral do homem. Na verdade, é interessante notar que o diálogo inicia-se num tempo religioso, após as festividades da deusa Ártemis. E o anfitrião, que bendiz a idade a que chegou, parece limitar suas falas a citar versos de poetas. Ora, num ambiente onde a tradição oral é de muita importância, a poesia tende a ser também valorizada. Nesse sentido é coerente afirmar que os poetas são os educadores da Grécia: “A palavra dos poetas tinha então tudo a ver com a paideía, isto é, com a educação em sentido lato e, portanto, com a formação do êthos” (VILLELA-PETIT, 2003, p. 54). O que parece está em jogo desde esse primeiro quadro do diálogo é a qualidade dessa educação: ela não parece basear-se na reflexão, mas num mero exercício de memorização. Mas essa referência aos deuses logo no início do diálogo não nos faz lembrar da religião como um componente importante de se compreender para fazer a gênese da filosofia? Reale (1990, p. 16) nos lembra que quando falamos em religião grega devemos distinguir entre a religião pública e a órfica. Considera ele (REALE, 1990, p. 17) que, embora ambas sejam importantes para explicar a origem da filosofia, a segunda é mais, mas começa a discutir pela primeira: Comecemos por ilustrar alguns traços essenciais da primeira. Para Homero e para Hesíodo, que constituem o ponto de referência das crenças próprias da religião pública, pode-se dizer que tudo é divino, porque tudo o que ocorre é explicado em função da intervenção dos deuses (...). Mas também a vida social dos homens, a sorte das cidades, das guerras e da paz são imaginadas como vinculadas aos deuses de modo não acidental e, por vezes, até mesmo de modo essencial (REALE, 1990, p.17).

Esses deuses representariam formas da natureza ou aspectos da natureza dos homens sublimados e hipostasiados. Por isso o pedido da religião não era a mudança de natureza, como na metanóia cristã, mas a conformação do homem com a sua própria natureza. Devido a esse aspecto da religião que a filosofia surge na Grécia preocupada, sobretudo, com a natureza. Mas vemos a influência do orfismo na filosofia de Platão, quando no final do livro X ele introduz o mito de Er, onde defende a metempsicose e a imortalidade da alma. Reale (1990, p. 18,19) considera que: Órficos derivam seu nome do poeta trácio Orfeu, seu fundador presumido (...). O orfismo é particularmente importante porque, como os estudiosos modernos reconheceram, introduz um novo esquema de crenças e uma nova interpretação da existência humana. Efetivamente, Revista  Poros  •  v.  4  /  n.  7  (2012)  •  ISSN  2175-­‐1455  •  catolicaonline.com.br/poros  

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enquanto a concepção grega tradicional, a partir de Homero, considerava o homem como mortal, colocando na morte o fim total de sua existência, o orfismo proclama a imortalidade da alma e concebe o homem segundo um esquema dualistas que contrapõe o corpo à alma. (...) Uma coisa deve-se ter presente: sem orfismo não se explicaria (...) uma parte essencial de Platão.

Platão não é o iniciador da “velha divergência” entre filósofos e poetas, como fala no livro X. É o que nos mostra Maria Villela-Petit (2003), arrolando citações de Xenófanes. Segundo Diógenes Laércio (apud VILLELA-PETIT, 2003, p. 53), Xenófanes "escreveu versos épicos, elegias e jambos contra Hesíodo e Homero e se Fez censor de suas afirmações sobre os deuses" (IX, 18). Timão compôs alguns versos sobre Xenófanes, esses versos foram preservados por Sexto Empírico (apud VILLELA-PETIT, 2003, p. 55): “De Deus ele compôs uma imagem mais pura que nada deve ao homem : um Deus em toda parte igual , de um só bloco e dotado de um intelecto bem mais inteligente que todo pensamento” (Hyp. Pirrh. I 225).

Assim, em Platão a crítica aos poetas não era nenhuma novidade. Como sabemos, a questão central do diálogo é a justiça, e não devemos pensar apenas na justiça da polis, mas na justiça no âmbito pessoal/individual, onde há harmonia entre todas as partes (a cabeça, o peito e o ventre). O dizer dos poetas sobre os deuses não contribuiria para essa justiça, poderíamos, então, nessa crítica de Platão aos poetas entrever um outro discurso acerca dos deuses, e, portanto, parece que para Platão, há, ao mesmo tempo que uma religião que não contribui para dixe, uma que contribui. Semelhante é o pensamento de Claude Geffré, na obra Crer e Interpretar, segundo o qual é importante ver nas religiões o que possa contribuir para a construção do “homem humano”. Essa seria a resposta, condizente, parece-nos, às considerações de Platão, ao problema do pluralismo religioso com o qual convivemos.

REFERÊNCIAS COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Digitalização do livro em papel. São Paulo: Edameris, 1961. Disponível em: www.ebooksbrasil.org Acesso em: 22/11/2011.

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JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. São Paulo: Editora Herder, s/data. PLATÃO. A República. Tradução de Pietro Nasseti. 12ª reimp. São Paulo: Martin Claret, 2000. ______. Diálogos de Platão. Leis e Epínomis. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1980. V. XII-XIII. (Série Farias Brito) REALE, Giovane. História da Filosofia. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Filosofia). Versão digitalizada em pdf. Disponível em: www.4shared.com TEIXEIRA, Faustino. Resenha de “Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la théologie, por Claude Geffré”. Revista   REB, v. 64, n. 254, abril de 2004, pp. 473-481.   Disponível em: http://fteixeira-dialogos.blogspot.com/2010/04/crer-e-interpretar-claudegeffre.html Acesso em: 27/11/2011. VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Platão e a Poesia na República. Kriterion, Belo Horizonte, n. 109, jun/2003, p. 51-71. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2003000100005&script=sci_arttext Acesso em: 26/11/2011.

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