Poética dos Mares V.pdf

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Mar, êxtase e sagração

«Primeiro dia», «clareza», «primeiro amor», «inteireza», «praia extasiada e nua», são algumas das expressões que nos abrem para uma textualidade indicadora de um sujeito poético que ouviu, viu e foi transportado numa praia atlântica e sagrada, num aqui e agora maravilhoso, num tempo e liberdade apaixonantes, de lúcidez exuberante:

Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade. Sophia de Mello Breyner Andresen (Assírio & Alvim, 2013-1958)

A noção de perfeição acontece através contemplação marítima, emergindo uma transformação da qualidade temporal, dispondo um sujeito que transcende a

temporalidade vulgar, cujo início são as musicalidades do mar:

(...) Musa ensina-me o canto Onde o mar respira Coberto de brilhos (...) Sophia de Mello Breyner Andresen (Morais, 1962)

A alteração qualitativa, no modo de sentir e ver, acontece pelo subir da musicalidade do mar na consciência que se extasia, manifestando um acontecimento que vai descobrindo-se em espaço separado da agitação trepidante, discordante e dissonante. É o êxtase poético... que abre o sagrado e novo espaço, então oculto, porém pela poesia recriado, renovador e identitário. Um terceiro momento desta iniciação ao mistério que o mar proporciona acontece numa recorrente e perene intuição em vários poetas: a subida do mar ao céu, criando a fusão do mar com o céu, onde este se espelha e se poderia identificar, na confusão entre o mar em baixo e o céu de em cima. Na metafórica subida do mar ao céu, é evocada a transmutação do estado subjetivo, do consabido para o lírico, onde a visão passa a conhecer cada momento como novo. É exemplar para uma demonstração este excerto:

….... O mar sobe ao céu (...)

Hoje é o dia o momento a hora inadiável. Cada dia é o derradeiro sopro da flauta da Criação.(...) José Fanha (Campo das Letras, 2002)

Eis o mundo de novo desocultado, revelado junto ao mar e separado do buliçoso mundo. Instaura-se uma densidade temporal alternativa, que atestada por experiência e memória únicas, revela o inefável a partir do marítimo:

(...) Ah, quem pudesse ouvi-lo sem mais versos! Assim puro, Assim azul, Assim salgado... Milagre horizontal Universal, Numa palavra só realizado. Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1968)

E nesta transmutação até ao inefável, o verbo poético propicia perante a exaltação e imensidão do mar, a perspetiva de um vaso humano pequeno e recipiente, apenas como uma

(...) Estreita taça A transbordar da anunciação Que às vezes nas coisas passa. Sophia de Mello Breyner Andresen (Assírio & Alvim, 2013-1938)

O imenso e o inefável é já caminho do poeta, desde a orla da praia, por um jardim à beira-mar, num trajeto que vai além de um antes já conhecido e que, depois, súbita e abruptamente se encontra num plano de referenciação novo. Nesta passagem por passos distintos e sequenciais alça-se o poeta à experiência de um ser purificado, como num puro amor primeiro, num claro viver e saber, numa tão clara impressão que nenhuma outra semelhante lhe veio à vida. A força, a originalidade e ineditismo, a surpresa e o arroubo de tal experiência marítima e poética se constituirá em lembrança permanente, e nunca mais poderá ser obliterada da história pessoal:

(…) Ó claras Ninfas! Se o sentido em puro amor tivestes, e inda agora

da memória o não tendes esquecido; (…) lembranças, que me acompanhavam pola tranquilidade da bonança, nem na tormenta grave me deixavam. Luís de Camões, in Lírica (1595)

Os carateres do mar, as suas distinções entre as realidades, sua índole, seus sinais e símbolos, os aspetos de seu existir, sua beleza diversa e medonhas faces, torna-o em espaço privilegiado de entrada a um diferenciado acontecer subjetivo. Desde a orla do mar, onde se convolou a perceção do ordinário dia ao espetáculo do novo, o caminho verte-se então para o centro na subjetividade criadora, à semelhança da arte antiga e erudita, como outrora Delphos o fora para a Hélade:

Desde a orla do mar Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim Desde a orla do mar Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas

E nadei de olhos abertos na transparência das águas Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa Para fundar no sal e na pedra o eixo recto Da construção possível Desde a sombra do bosque Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla Desde a sombra do bosque desde a orla do mar Caminhei para Delphos Porque acreditei que o mundo era sagrado E tinha um centro Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado (...) Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2011-1972)

Esse centro permanecerá em símbolos como vértice interior à vivência poética e humana. Um grito, como o relâmpago puro que fere, rompe e estremece a existência, revela a humanidade em sua nudez, onde apenas é querendo, perseguindo e indagando a selvagem exaltação das ondas:

De todos os cantos do mundo

Amo com um amor mais forte e mais profundo Aquela praia extasiada e nua, Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. Cheiro a terra as árvores e o vento Que a Primavera enche de perfumes Mas neles só quero e só procuro A selvagem exalação das ondas Subindo para os astros como um grito puro. Sophia de Mello Breyner Andresen (Companhia das Letras, 2004-1944)

A partir desse grito, emitido noturnamente na praia extasiada e nua, depois de nos embrenharmos pela audição do antigo cântico do mar, se fez ouvir então um cântico, quiçá com lágrimas, o

(...) cântico da longa vasta praia Atlântica e sagrada Onde para sempre minha alma foi criada Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2004-1997)

Esta música marítima pode abrir a consciência fora dos limites da ordem do dia. A vida humana perpassa, ainda que breve, por acontecimentos inolvidáveis, e se o horizonte puro, sagrado, é aberto ao sujeito poético junto ao mar e propicia o êxtase:

Onda de sol, verso de ouro, perífrase vã. Extasiar-me, antes, por esta fusão, mistura de brilhos. Ou, ainda mais íntima, a consciência extensa como o céu, o corpo de tudo, semelhança absoluta. Respirar na quebra da onda. Na água, uma braçada lenta até ao limite de mim. Fiama Hasse Pais Brandão (Assírio & Alvim, 1989)

A partir deste espaço poético, desde a orla do mar e de suas musicalidades, onde o êxtase é possível na consciência tocada pelo inefável, começa uma consciência extensa como o céu, onde tudo começou intacto como num primeiro dia, e onde outro nasceu de tudo quanto viu (Sophia de Mello Breyner

Andresen, Caminho, 2010-1972), aí

Tudo era claro: céu, lábios, areias, O mar estava perto, fremente de espumas, Corpos ou ondas: iam, vinham, iam, dóceis, leves – só ritmo e brancura. Felizes, cantam; serenos, dormem; despertos, amam, exaltam o silêncio. Tudo era claro, jovem, alado. O mar estava perto. Puríssimo. Doirado. Eugénio de Andrade (Assírio & Alvim, 2013-1961)

Contudo, não podemos aceder a esta experiência sem passar no jardim marítimo. Junto ao mar há um jardim, milagrosamente debruçado sobre a imensidão de mar que o limita, um jardim suspenso sobre o mar, e contra este jardim à beira-mar vem toda a cavalgada marítima:

Vi um jardim que se desenrolava Ao longo de uma encosta suspenso Milagrosamente sobre o mar Que do largo contra ele cavalgava Desconhecido e imenso.(...) Sophia de Mello Breyner Andresen (Assírio & Alvim, 2013-1938)

É um jardim inóspito, metáfora da vivência humana perante o mar, lugar apenas onde perduramos, perante a convivência com a enormidade da grandeza e das suas

potências dramáticas, líricas e trágicas. As flores desse jardim são

selvagens e duras, têm cactos torcidos, tem areia branca e rochas escuras, pinheiros magros, ali passa o vento áspero e salgado. A devastação é operante e sinaliza a indomável violência do mar. É um jardim passagem obrigatória à proximidade do mar. É um lugar semidesértico, inabitável, próximo da morte, tanto pelos duros elementos como por um obscuro tormento, pela exaustão onde termina o aconchego humano, e paradoxal, onde morre a fala pelos mil

esplendores de que o mar se reveste em cada hora (Sophia de Mello Breyner Andresen, Assírio & Alvim, 2013-1938). A partir deste quadro existencial, com o mar imenso e musical em frente, se pode reconhecer melhor a profundidade e a pujança das forças anímicas que o mar liberta e proporciona simbolicamente à nossa disposição humana. A este respeito atente-se neste excerto da prosa de Herculano: «(…) [O] vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da Terra quando ainda ela se chamava caos. (…). Que tinham eles [os homens], de feito, com essas [suas] existências, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro?» (Alexandre Herculano, Euríco, o Presbítero, Edi9, 2010). A existência de uma desmesurada imensidão em correnteza buliçosa, violenta e sem sentido, é a representação do mar e de uma divindade mais antiga que a criação do homem, numa existência em pureza e inutilidade. A existência do mar está mais perto do divino primordial e sem rosto. O mar, como natureza que antecede o homem, voga sem alguma teleologia que o enforme, e só pode ser vivenciado como uma primordial dinâmica, original ímpeto do caráter poético:

Eu não sou quem fiquei; o meu delito Lá anda atrás de forma mal formada Pelo convés do vento, p´la amurada Do mar interno e franco onde me agito.

Passaporte caduco...As fronteiras que invado São migalhas de sombra e restos de sentido. Tudo é fragmento em verbo diluído Através do convés lentamente embalado.

Eu não sou quem, atado, coincide Com foto de cartão de identidade. Sou memória dum mundo que me invade, Sou espaço que o ar prensa e divide. José Martins Garcia (Salamandra, 1996)

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