Poéticas Políticas: a transformação de notícias em poemas-minuto

May 25, 2017 | Autor: Lucas Alvarenga | Categoria: Noticias, Transcriação, Intertextualidade, Poema-minuto
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Poéticas Políticas: a transformação de notícias em poemas-minuto1

Lucas Fernandes ALVARENGA Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC PUC Minas), Belo Horizonte, MG

RESUMO

Matéria-prima da notícia, os acontecimentos são o princípio da significação e os pilares do livro “60: Poéticas Políticas”. A obra pretende promover o encontro entre o jornalismo e a literatura moderna, renovada pela contemporaneidade, por meio de alguns preceitos do poema-minuto. Deste encontro surgiram 60 poesias curtas com base em notícias publicadas no site Congresso em Foco, entre os meses de outubro e novembro de 2013. Essas notícias servem à transcriação e fazem da obra um intertexto contínuo sobre a política nacional.

Palavras-chave: intertextualidade, notícia, poema-minuto.

1. Do acontecimento à notícia

Sustentáculo da notícia, o acontecimento, além de um elemento da realidade, é a matériaprima do jornalismo. ‘Ponto zero de significação’ para Rodrigues (1999), os acontecimentos fazem parte do cotidiano dos jornalistas, que percebem e selecionam estes fragmentos diariamente, transformando-os em notícia. Por isso, conforme o pesquisador, quanto menor a previsibilidade da ocorrência, maior a possibilidade dela se tornar notícia. Neste sentido, o autor apresenta os registros de notabilidade do acontecimento, situações que rompem com a previsibilidade, a regularidade e a monotonia.

O massacre de uma população exemplifica o funcionamento anormal dos fatos, o excesso, um dos registros de notabilidade apontados por Rodrigues (1999). Os acidentes de trânsito e o fim de um casamento ilustram outro registro, a falha, situação de insuficiência no funcionamento das coisas. O autor cita um terceiro registro de notabilidade, a inversão, ocorrência em que o fato se volta contra o sujeito emissor. Neste caso, cabe a frase que consagrou o jornalista Artigo produzido com base no livro ‘60: Poéticas Políticas’, feito pelo próprio autor, como trabalho parcial de conclusão de curso da pós-graduação em ‘Processos Criativos em Palavra e Imagem’, do IEC PUC Minas. 1

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estadunidense Charles Anderson Dana: “se um homem morder um cão, isto é notícia”. Os meta-acontecimentos completam a ideia de notabilidade exposta por Rodrigues ao mostrarem que um detalhe captado em um todo pode render um novo acontecimento.

Assim como os registros de notabilidade, o ato ilocutório também deve seguir os parâmetros necessários à noticiabilidade. Este ato cujo locutor introduz uma intenção na fala depende de clareza, coerência, coesão, satisfação, sinceridade e credibilidade, como aponta Rodrigues (1999). O relato perlocutório também pode gerar notícia. A declaração da desvalorização de uma moeda assume este papel ao produzir efeitos sobre quem lê, ouve ou assiste à notícia.

Mesmo o relato objetivo e factual abarca a subjetividade do jornalista, que define critérios que vão do registro da notabilidade até a organização dos fatos, encerrando a possibilidade de uma comunicação neutra. Assim como Rodrigues (1999), Traquina (1999) acredita que o jornalista participa ativamente da construção da realidade ao usar o acontecimento para criar a notícia, força-motriz de novos acontecimentos. Por atuar como observador da realidade, ao jornalista mais vale a credibilidade que a tentativa de ser objetivo, ressalta Rodrigues.

O objetividade surgiu em uma sociedade positivista que derrubou o verdadeiro mito, antiga forma de organização dos fatos. Para Traquina (1999) e Rodrigues (1999), o jornalismo informativo e o conceito de objetividade emergiram neste contexto, a fim de frear o impacto das relações públicas e da propaganda no jornalismo durante a Primeira Grande Guerra. Lustosa (1996) lembra que o discurso pela objetividade ainda se aplica à tentativa de conquistar credibilidade por meio da ideia de isenção de opinião.

A notícia é apreendida por Lustosa (1996) como a técnica de relatar um fato, não como o fato em si. Traquina (1999) a entende como um índice do real ofertado pela imprensa de modo relevante e atraente, diante da escassez de espaço e tempo. A atualidade, aliás, é um critério de noticiabilidade, pois assegura a existência pública do fato, conforme Wolf (1995). Por isso, a factualidade surge como valor-notícia, pois dignifica o evento a se tornar produto final.

Os valores-notícia procedem de critérios substantivos como a importância do acontecimento, definida pela hierarquia das pessoas envolvidas, o impacto e o interesse sobre a nação, o número de pessoas atreladas à ocorrência e a força de significado vinculado ao fato. O 2

interesse, como destaca Wolf (1995), relaciona-se às histórias de feitos grandiosos, aos casos de inversão de papéis e de interesse humano, aos homens públicos em embate com vida privada e às pessoas comuns vivendo de modo incomum.

Entre outros critérios elencados por Wolf (1995), há aqueles de segunda ordem, relacionados ao produto, como a disponibilidade de materiais e as especificidades do bem de consumo. A atenção ao espaço reservado à notícia, a frequência das ocorrências, a disposição equilibrada das matérias, a atualidade e a qualidade das histórias são atributos inerentes ao bem de consumo. Essas histórias devem conter ação, ritmo, clareza e pontos de vista variados.

Para entregar o texto a tempo, o jornalista se vale de técnicas literárias para transformar o acontecimento em notícia, como esclarece Traquina (1999). Conforme o autor, esta corrida contra o relógio provoca efeitos penosos, como a discussão frágil dos problemas sociais em virtude de uma agenda de eventos. Além disso, a necessidade da matéria aproxima o repórter de fontes que se destacam por sua posição ou habilidade em lidar com a imprensa, expondo-o a uma rotina propícia aos factoides. Até a disponibilidade espacial da empresa de mídia delimita o campo de matéria-prima do jornalista, segundo Traquina.

Se por um lado a especialização editorial e o tratamento dado a órgãos como a Petrobras e o Congresso Nacional direcionam o repórter, por outro tornam o trabalho rotineiro e setorizam a cobertura e seus atores. Para Traquina (1999), essa repetição de práticas nivela os veículos, que nutrem a esperança de dar o furo e atrair o leitor por meio de valores-notícia voltados ao meio de comunicação. Por isso os investimentos em um material visual capaz de entreter e de informar facilmente, como expõe Wolf (1995). Em virtude dessas questões, Lustosa (1996) propõe que a notícia seja um bem de consumo simbólico a atender às exigências do mercado.

2. O poema-minuto e os flashes do cotidiano

Sob o viés estético, outro produto de consumo simbólico delimitado pelo espaço e pelas percepções cotidianas propõe-se a condensar significados mediante à redução de palavras. Se o jornalista precisa ser claro, isento e direto ao construir a realidade por meio da notícia, o poeta disposto a se enveredar pelos caminhos do ‘poema-minuto’ necessita ser sintético e

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lacunar, como analisa Vale (2012). Nesta aparente dicotomia entre o concentrado e o vazio assentam-se às bases deste subgênero literário.

O poema-síntese, como também ficou conhecido, nasce em solo modernista, em especial, na obra de Oswald de Andrade. O subgênero influenciou gerações de poetas marginais e autores como Paulo Leminski. Em ‘Caprichos e Relaxos’ (1983), Leminski utiliza várias técnicas presentes no poema oswaldiano para construir versos curtos, mas absolutamente ricos em ironia, sátira e criatividade. Alguns desses princípios estéticos se encontram no poemaprograma ‘Manifesto Pau-Brasil’, referência para a definição do poema-minuto. “Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e surpresa” (ANDRADE, 1924).

O poema-minuto traduz uma forma concisa de expressão de ideias, esteticamente arranjada por meio de cortes rápidos e oposições violentas que rompem com a expectativa do leitor. Esta ruptura, conforme Vale (2012) e Silveira (2005), força o fruidor da obra a se tornar um produtor de sentidos, a partir do momento em que complementa as lacunas intencionalmente deixadas pelo autor. Para Agra (1995), as lacunas encontradas nos poemas-pílula condensam uma pluralidade de significados contidos em cada verso.

O limite de caracteres em contraste com os significados que transbordam nas entrelinhas fazem do poema-minuto uma eloquência às avessas, segundo Silveira (2005). O subgênero é fruto da transposição da arte clássica para a moderna, bem como das transformações sociais que ocorreram no início do século XX, como a criação do automóvel e o rápido crescimento das cidades. Contraditório, ele atende à pressa comum da sociedade moderna, enquanto pede maior disponibilidade de tempo para que o fruidor discorra sobre as mensagens nele contidas.

Agra (1995) conecta o poema-pílula à notícia ao descrevê-lo como uma elaboração estética que explora o imediato. Nesta linha, Freitas (2011) considera o poema-minuto como uma forma de ‘fotografia verbal’, capaz de registrar um determinado momento com a objetividade e a frieza própria à câmera fotográfica, fazendo com que a cena e seus detalhes expressem o máximo com ‘o mínimo possível’.

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O imediatismo fez Paulo Prado qualificar o poema-minuto como uma elaboração em que se encontra a “ideia de absorção de flashes do cotidiano”. No prefácio de ‘Pau-Brasil’, o autor2 (1990, citado por AGRA, 1995) reforça a proposta de condensação espaço-temporal que sustenta o subgênero ao comemorar o fato de o Brasil, com aquele tipo de literatura, “obter, em comprimidos, minutos de poesia”. Alguns autores como Freitas (2011) encaram os ‘poemas da colonização’ oswaldianos como verdadeiros poemas-flashes. Para o pesquisador, a forma como o poeta modernista retoma a condição dos negros no Brasil se estrutura por meio de narrativas curtas. Essa característica levou Freitas a encontrar semelhanças entre o poema-minuto e os microcontos.

Na tentativa de alcançar a síntese sem abrir mão da narratividade poética, os autores adeptos ao ‘poema-minuto’ exploram inúmeros recursos estilísticos, assim como os jornalistas ao redigirem suas matérias. Contudo, enquanto o poeta busca a pluralidade de sentidos, comum às artes, o jornalista trabalha na construção da unicidade da mensagem (PONTES, 2008).

Oswald de Andrade fez uso de diversos recursos para dar dinamismo aos seus poemasminuto, como reduções, abreviaturas estilísticas e ausências de pontuação e da ordem direta das frases. De acordo com Pontes (2008) e Freitas (2011), também não faltaram aos versos curtos oswaldianos metáforas e metonímias, expressões coloquiais, aliterações fonéticas e amálgamas, como as junções de morfemas e de palavras truncadas.

A reunião destas técnicas e o curto espaço para a construção poética fazem do poema-minuto uma forma de síntese e surpresa, segundo Vale (2012). Nela, prevalece o despertar crítico por meio da linguagem e na linguagem. O autor observa que os títulos deste subgênero se baseiam em uma estrutura difusa, onde os elementos são dispostos de forma não convencional a fim de acionar a participação do leitor.

Os títulos nos poemas-minuto assumem uma função factual, ao roteirizarem e catalogarem assuntos, especialmente na obra de Oswald de Andrade. Eles ora reiteram imagens relativas ao tema proposto, ora antecipam assuntos, ora oferecem uma contextualização mínima ao leitor. Nesta ordem, os títulos se ligam ao texto de modo anafórico, catafórico e dêitico, 2

PRADO, Paulo. Poesia Pau-Brasil: Prefácio a Oswald de Andrade, Pau-Brasil. São Paulo: Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 59.

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quando estas ligações não são ativadas em conjunto, como salienta Vale (2012). Em virtude desta complexidade, Silveira (2005) acredita que o poema-minuto seja uma forma muito mais engenhosa de poesia do que se pensa.

3. A intertextualidade como recurso textual

A inventividade do poema-minuto tem como um dos pilares à intertextualidade. A escassez vocabular exige que a produção de sentidos se não limite aos títulos, subtítulos e jogos de palavras. Em um cenário de poucos caracteres, a intertextualidade promove o encontro de elementos, como “o antigo e o novo, o passado e o presente, o habitual e o inusitado”, aproximando, mesmo que por contraposição, o texto derivado, chamado de hipertexto, do texto original, o hipotexto (FREITAS, p. 18, 2011).

A literatura intertextual pode estabelecer diferentes relações com o hipotexto, a exemplo da paródia, com seus jogos de ironia e humor. Esse vínculo pode ser mantido de forma explícita, pressuposta ou subentendida. Todavia, a percepção do intertexto exige conhecimento prévio do leitor e cooperação textual para que haja a possibilidade de uma leitura mais ampla e crítica do verso curto (SÉRGIO, 2012). O intertexto é, por consequência, o elo mais forte entre o jornalismo e a literatura, como mostra ‘60: Poéticas Políticas’.

Antes de observar a estrutura desses encontros por meio da transcriação textual, é preciso analisar algumas das formas de intertextualidades existentes, começando pela citação. Esse recurso promove a transcrição de uma parte do texto de origem. A citação pode ser feita de forma direta, com trechos geralmente transcritos entre aspas, ou de forma indireta, por meio da reafirmação, em outras palavras, das ideias contidas no texto original. As duas formas de citação prescindem uma referência explícita ao autor (SÉRGIO, 2012).

Embora similar, a citação se difere da epígrafe, outro recurso de transcrição de fragmentos textuais. A citação não se prende ao tamanho, nem à necessidade de ser inserida no início de um capítulo ou na abertura de um trabalho. Além disso, a epígrafe pode cumprir a função de determinar um tema, um lema ou um conjunto ideológico à obra (SÉRGIO, 2012).

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Semelhante à citação indireta, a paráfrase reproduz as ideias de um autor sem modificar o pensamento contido no texto-base. Neste caso, a interpretação ocorre livremente, permitindo o acréscimo de pequenos trechos do hipotexto e algumas impressões do parafraseador, a fim de reforçar o sentido original da obra (SÉRGIO, 2012). A ‘Canção do Exílio’, do indianista Gonçalves Dias, é um dos melhores exemplos de paráfrases na literatura brasileira.

Forma de referência explícita ou implícita a algum evento, objeto ou coisa, a alusão impele o leitor a associar ideias e acionar seu background cultural para decodificar o texto original coberto pelo hipertexto (SÉRGIO, 2012). A alusão permite a efetivação de inúmeras referências aos fatos políticos cotidianos, base da obra ‘60: Poéticas Políticas’. O contexto que envolve o livro colabora para que o leitor decifre as alusões e amplie o significado do texto.

Na contraposição entre o hipotexto e o hipertexto está a paródia, jogo intertextual marcado pela desconstrução do pensamento do autor. Neste processo, alguns laços formais com o texto original seguem mantidos, como o ritmo e a estrutura. Entretanto, a mensagem transcriada sugere uma sátira, contestação ou até a ridicularização de fatos sociais, históricos, econômicos e políticos cotidianamente expostos (SÉRGIO, 2012).

O pastiche mantém uma fórmula semelhante à paródia. A diferença na imitação explícita do estilo de outros autores está na manutenção do sentido original do texto, sem críticas ou graça feitas a partir da obra. A proposta do pastiche é reiterar significados e reafirmar as principais ideias do texto por meio do cruzamento ou da colagem de diferentes formas enunciadas (SÉRGIO, 2012). O recurso se notabilizou no início do século XX com o movimento dadaísta, fonte de inspiração de Oswald de Andrade.

Em seus processos criativos, o jornalista usa com frequência o recurso da citação, seja ela direta ou indireta. No relato jornalístico, fontes e personagens têm suas ideias explicitadas por meio de aspas ou da reafirmação do que disseram em entrevista. A alusão também figura nas reportagens, especialmente nos casos de suíte, matéria ou série que dá sequência a um fato desdobrado de uma notícia publicada. O poeta, por sua vez, explora todos as formas de intertextualidade possíveis, a fim de ampliar o significado de sua criação literária.

4. A antilírica cabralina 7

Se a intertextualidade permeia o jornalismo e a literatura, a poesia de João Cabral de Melo Neto, assim como o poema-minuto oswaldiano, mostra que ambas as formas de expressão partilham mais atributos do que se imagina. A dureza rítmica e a composição avessa aos exageros de musicalidade, metáforas, subjetividade e sentimentalismo fazem da poesia cabralina a antilírica expressa, sobretudo, pelo formalismo estético de ‘A educação pela pedra’ (RIBEIRO, 2012). A obra-prima de poeta pernambucano engendra um complexo ‘jogo de desarticulação e rearticulação’ de versos entre os textos que a compõem. Na construção dos versos de ‘A educação pela pedra’, João Cabral de Melo Neto valorizou o corte e o encaixe, a série e a simetria, como observou o escritor Eucanaã Ferraz (2008), no prefácio da obra. Nela, a recorrência de certas palavras ao longo dos textos busca reforçar a ideia de estruturação matemática almejada pelo autor. Os pares de poemas de mesma temática e os números rígidos de versos evidenciam que a organização rítmica cabralina não ocorre só por meio da fonética, mas também pela arquitetura e pela sintaxe.

O despojamento dos versos faz a palavra atingir um rigor incomum na poesia cabralina, sendo dessacralizada por meio do tratamento de radicalização denotativa, capaz de estabelecer uma intensa relação da palavra com a realidade (RIBEIRO, 2012). É neste ponto que a literatura de João Cabral de Melo Neto mais diminui a distância para o jornalismo diário, cujo busca pelo sentido literal ocorre a cada frase. O esforço pela clareza e a tentativa de imprimir certa objetividade ao verso aproximam o trabalho de Melo Neto daquele executado pelo jornalista. Os conceitos da obra cabralina servem ao livro ‘60: Poéticas Políticas’ ao evidenciarem as possibilidades de uso da denotação na construção dos poemas-minuto, realçando os efeitos na criação de uma poesia crítica. O recurso, junto à intertextualidade, mostra-se um dos pilares do trabalho de transcriação literária produzido. A intertextualidade, aliás, encontra-se presente em toda a obra, graças à elaboração de 60 poemas com base em 60 ocorrências publicadas pelo ‘Congresso em Foco’ entre outubro e novembro de 2013. O site é referência nacional em jornalismo político e vencedor do Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2009. 5. As poéticas políticas em ‘60’

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Elaboradas entre os meses de dezembro de 2013 e março de 2014, as criações do livro ‘60: Poéticas Políticas’ promovem o encontro do jornalismo com a literatura por meio da matériaprima usada para a confecção dos poemas-minuto: as notícias publicadas no site ‘Congresso em Foco’. Assim como são necessários 60 segundos para a formação de um minuto, ideia contida no nome do subgênero escolhido, 60 fatos noticiosos publicados em 60 dias corridos foram selecionadas para o trabalho de transcriação de 60 poemas-minuto. À exceção coube ao dia 18 de outubro, cuja ausência foi equilibrada pela matéria colhida no dia 31 de outubro. Se o número 60 diz muito sobre o trabalho elaborado, o que dizer sobre a dupla ‘Poéticas Políticas’. A aliteração fonética e a rima aproximam essas palavras, que isoladas do contexto da obra se tornariam duas estranhas. Porém, neste Trabalho de Conclusão de Curso, a política serve à poesia com os acontecimentos, marco zero da significação, segundo Rodrigues (1999), enquanto a poesia serve à política com o tratamento estético de temas habitualmente áridos.

O título cumpre funções catafórica e dêitica ao antecipar assuntos e contextualizar a temática levantada pela obra – fortemente marcada pela intertextualidade. Alguns tipos de intertexto, como a alusão, a paródia, a paráfrase e a citação estão mais do que presentes, aparecem de forma recorrente nos títulos. Merecem destaque construções como ‘Navegar é preciso’, frase do inventor do soneto, o italiano Francesco Petrarca, retomada séculos depois por Fernando Pessoa, assim como ‘E agora, José?’, verso de ‘José’, de Carlos Drummond de Andrade. As páginas de ‘60: Poéticas Políticas’ defrontam a linguagem denotativa com a linguagem conotativa, bem como expressam características próprias ao subgênero poema-minuto. Os atributos mais recorrentes na obra são a capacidade de síntese em choque com a pluralidade de sentidos, a aproximação do poema-minuto com o microconto e o uso de vários recursos estilísticos, como aliterações fonéticas, amálgamas e expressões coloquiais. Os versos de ‘Em comunhão’ evidenciam o uso de dois tipos de intertexto. O primeiro surge na alusão à notícia sobre a filiação da ex-senadora acriana Marina Silva ao partido do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos. O acontecimento selou a união da ex-senadora e do socialista para as eleições gerais de 2014. O segundo intertexto explora a paráfrase de um trecho do rito da consagração da missa católica. O título antecipa e reitera ambos os fatos, cujas funções catafórica e anafórica se sobressaem: 9

Em comunhão Ao abraçar livremente à terceira via, ela se uniu a Campos, deu graças, e se voltou aos seus novos parceiros dizendo: - Abrigai todos e somai. Esta é a minha Rede, que será sustentada por vós. (ALVARENGA, 2014, p. 13)

‘Em comunhão’ carrega a presença da ironia e da breve narratividade, marcas do poemaminuto oswaldiano, além do uso da linguagem denotativa, comum às poesias cabralinas. O trecho do rito da consagração sobrepõe mais camadas de intertextualidade aos versos. Afinal, a peça textual usada nas missas é o desdobramento de uma colagem de pequenos fragmentos contidos nos livros de Marcos 14: 22-24; Mateus 26: 26-28; Lucas 22: 19-20 e I Coríntios 11: 23-25, todos do Novo Testamento. A paráfrase ‘Ela tem sede de quê’ também lança uma pista sobre o texto original, a música ‘Comida’, uma composição dos ‘Titãs’ Sérgio Britto, Marcelo Fromer e Arnaldo Antunes. A canção feita durante o processo de redemocratização do Brasil demonstra a insatisfação do grupo, que desejava à época mais que o provimento das necessidades básicas do brasileiro, queriam “diversão e arte”. A participação de Antunes no texto merece relevo. Afinal, o multiartista se aproxima claramente da literatura concreta em sua obra. Por isso, o hipotexto reforça o uso da linguagem denotativa na construção dos versos, enquanto a transcriação mantém a mensagem de um país que anseia por justiça social:

Ela tem sede de quê? A Dilma não quer só respeito, ela quer direito à privacidade. A Dilma não quer só debate, ela quer combate à espionagem. (ALVARENGA, 2014, p. 43)

Assim como a paráfrase, a paródia se encontra amplamente difundida nos poemas-minuto. Em ‘O Distrito de Arruda’, a paródia visa transformar o reencontro esperado em ‘O Portão’, canção de Erasmo Carlos e Roberto Carlos, em um provável retorno indigesto de José 10

Roberto Arruda ao governo distrital. Arruda foi afastado do cargo de governador do Distrito Federal após ser condenado pelo pagamento de propina aos seus aliados políticos:

O Distrito de Arruda Eu voltei e quero o meu lugar. Porque aqui, aqui posso mandar. Eu comprei o apoio que ganhei. Eu roubei! (ALVARENGA, 2014, p. 14)

A presença de dois tipos de intertexto ao longo do poema aparece em ‘Inequação’. Nesta transcriação, o próprio título sugere uma relação de desigualdade confirmada textualmente pela discrepância entre o número de corruptos algemados e as dívidas contraídas pelo Estado em virtude dos desvios promovidos por esses sujeitos. Enquanto o título alude a inequação matemática, o restante parafraseia a fórmula do Teorema de Bháskara (∆ = b2 – 4ac), usada justamente para a solução de equações e inequações:

Inequação Dirceu & cia ao quadrado menos quatro Donadon's da vida, vezes tantos nem sequer julgados e milhares em situação prescrita, é igual a 722 corruptos algemados e um Estado dilacerado por dívidas. (ALVARENGA, 2014, p. 72)

Há aqueles poemas capazes de aglutinar três alusões em poucos caracteres, como ‘Erro de concordância’. O primeira se refere a tramitação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, da mudança ou não de nome para transexuais. A segunda faz alusão ao filme ‘A pele que habito’, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. O longa-metragem reforça a ideia da transexualidade ao abordar uma situação-limite para a construção sociocultural dos papéis masculino e feminino. O título dêitico, por consequência, contextualiza minimamente a tensão criada pela concordância do gênero com o sexo de origem, a terceira referência:

Erro de concordância A graça rechaça a pele que habita, enquanto tramita no Congresso um projeto que promova

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a concordância de gênero: efêmero estado de ser. (ALVARENGA, 2014, p. 62)

A intertextualidade margeia todos os textos, assim como uma série de atributos do poemaminuto. Na construção poética ‘Superlativos do Senado’, muitos recursos deste subgênero são explorados, como a aliteração fonética, o uso do título como forma de catalogar objetivos, a informalidade e a aproximação com o microconto. O poema alude ao caso dos supersalários no Senado, e promove uma paródia da canção ‘Superbacana’, de Caetano Veloso. Há clara contraposição ao mundo de sonhos e superpoderes, mas sem dinheiro no bolso, cantarolado pelo baiano. No lugar, surge um universo real, imoral e superlativo:

Superlativos do Senado Eu nasci pra ter um supersalário, um supercontracheque, um superemprego, e ser um superbacana, porém! Querem limitar o que eu ganho pelo teto, com um papo reto de cortar e devolver o que a mais recebi. (ALVARENGA, 2014, p. 49)

A informalidade e as metáforas observadas em ‘60: Poéticas Políticas’ ganham contornos mais nítidos em ‘Lobão quer leilão’. O texto alude ao fato de Édison Lobão, então ministro de Minas e Energia, pressionar autoridades para a realização do leilão do Campo de Libra. Essa reserva foi a primeira negociada pelo regime de partilha ao invés das concessões, uma novidade proposta pelo governo federal petista, mas questionada pela oposição como uma forma de privatização do petróleo proveniente de águas profundas:

Lobão quer leilão A matilha ladra contra a partilha do pré-sal. Natural! Se Lobão fosse da oposição, botaria sal no pregão. (ALVARENGA, 2014, p. 27)

Nem só de descontração vive a poesia-minuto. Segundo Oswald de Andrade, outros recursos, como o neologismo, podem garantir criatividade e surpresa ao verso. ‘Infelicianidades’ segue nesta linha. O título composto por aglutinação funde as palavras Feliciano e felicidades com o 12

prefixo de negação ‘in’. E, da junção destes elementos surge a nova palavra. O deputado federal por São Paulo, Marco Feliciano, tornou-se um dos oposicionistas mais ferrenhos do Congresso Nacional à defesa dos direitos das minorias. Logo, presume-se que o neologismo aborda as atitudes infelizes do parlamentar e do seu grupo na Câmara Federal:

Infelicianidades Por assim crer, aprova que... fechar as portas da Céu a quem abriu as portas do armário é exceção à regra, quando os homens na Terra, de própria vontade, fazem emendas em nome de Deus. (ALVARENGA, 2014, p. 26)

O neologismo ressurge em ‘Perrellices’, uma aglutinação do plural da palavra canalhice com o sobrenome ‘adquirido’ pela família de Zezé, Gustavo e Alvimar de Oliveira Costa após a compra de um famoso frigorífico. O poema alude três hipotextos, a começar pela Santíssima Trindade, o Deus único cristão preconizado em três formas (Pai, Filho e Espírito Santo). O segundo intertexto traz à tona as repetições da palavra ‘avesso’ contidas em uma das estrofes de ‘Sampa’, canção de Caetano Veloso. O último texto alude ao caso do helicóptero que transportava cocaína. O veículo foi ligado supostamente à família Perrella, e apreendido no Espírito Santo. A ocorrência ressaltou a ambiguidade entre o nome do estado e o ‘milagre’ que acabou responsabilizando apenas o piloto pelo transporte da carga ilegal:

Perrellices Em nome do Pai e do Filho. Pelo Espírito Santo, tudo vira pó antes que o pó vire tudo pelo avesso do avesso do avesso. (ALVARENGA, 2014, p. 67)

As figuras sintáticas e as figuras de pensamento também adquirem destaque na construção dos poemas-minuto. No título ‘Enquanto os clubes só negam’, há o uso da ironia e da cacofonia, enquanto a aliteração fonética ‘re’ se renova a cada verso do poema-síntese. A cacofonia,

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aliás, alimenta uma ambiguidade verbal entre a ato de negar uma atitude cometida e o ato de sonegar valores de forma fraudulenta para se eximir de impostos:

Enquanto os clubes só negam Rebelo rechaça o perdão, reage contra renegociação, receita punição aos inadimplentes: rebaixamento, se a repactuação requerida pela Confederação render calote, infelizmente. (ALVARENGA, 2014, p. 25)

Assim como no verso cabralino, a construção rítmica dos poemas pode se concretizar a partir de recursos estruturais, como a terminação dos versos em palavras proparoxítonas. Chico Buarque de Hollanda, no samba ‘Construção’ usa exatamente essa técnica, junto à elaboração de versos dodecassílabos. Em ‘Bárbaro fenômeno’ fica clara a inspiração poética no hipotexto produzido pelo compositor carioca. O poema-minuto transcriado detalha o processo de construção de candidaturas aos governos estaduais e às prefeituras das capitais do país:

Bárbaro fenômeno Arrebanhais milhões pra corrida política. Cento e sessenta e quatro só pra funcionários. Converteis cabo em voto contra adversários. Em capitais e estados um desejo único: vencer pra ter controle do erário público, mesmo que ignores a palavra ‘ética’. (ALVARENGA, 2014, p. 21)

Se os poemas exemplificados carregam a insígnia do poema-minuto em alguns atributos, ‘Cogito Genoino’ talvez mais se pareça com as formas radicais de poesia curta e lacunar propostas por Oswald de Andrade. Constituído por apenas cinco palavras, o poema capta um flash do cotidiano, a resistência política de José Genoino, condenado por envolvimento no esquema do mensalão. O petista se considera ‘um preso político’ em tempos de democracia. A alusão à notícia soma-se à indicação ao cogito cartesiano expressa no título: Cogito Genoino Preso, logo resisto! (ALVARENGA, 2014, p. 65)

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6. Conclusão

A variedade de recursos usados no processo de transcriação de poemas-minuto, especialmente a apropriação de intertextos e a linguagem predominantemente denotativa, mostram a viabilidade de se transformar notícias pinçadas do universo da política brasileira em poemas. O uso do humor e da ironia, comuns ao poema oswaldiano, colaboraram para a aproximação do leitor em relação ao assunto abordado. O que, por ora, poderia ser visto como árido, pode receber o tratamento estético e criativo adequado, transformando-se em algo aprazível.

O entendimento das notícias como flashes do cotidiano cumprem exemplarmente o papel de matéria-prima para a criação dos poemas-minuto discorridos em ‘60: Poéticas Políticas’. As informações condensadas forçam o leitor a colaborar com o processo de significação, fazendo-o discutir a política por meio da poética. A consequência do trabalho colaborativo é a difusão da proposta do leitor construtor de sentidos, e não só do fruidor de um trabalho meramente estético. A obra suscita a reflexão, promove o debate e atenta para a relevância da política, tematizada com vastidão pelo jornalismo e pela prosa, embora pouco usual no verso.

REFERÊNCIAS AGRA, Lucio. Oswald de Andrade e Paulo Leminski: um diálogo. In: Limites: Anais do 3º Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), 1992, Niterói, Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp; Niterói: Abralic, 1995. ALVARENGA, Lucas Fernandes. 60: Poéticas Políticas. Belo Horizonte, 2014, 68 p (Livro de artista). ANDRADE, Oswald de. Manifesto Pau-Brasil. Correio da Manhã, São Paulo, 18 mar. 1924. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/profs/sergioalcides/dados/arquivos/ OswaldManifestos.pdf >. Acesso em: 10 fev. 2014. FREITAS, Anderson de Moura. O poema curto na literatura brasileira: um percurso pelo século XX. 2011. 107f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: < http://www.biblioteca. pucminas.br/teses/Letras_FreitasAM_1.pdf >. Acesso em: 25 fev. 2014. LUSTOSA, Elcias. O texto da notícia. Brasília: Editora Universidade de Brasília (UnB), 1996. Os veículos de comunicação de massa, p. 17-60; A linguagem dos veículos de comunicação de massa, 63-105. MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e outros poemas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008, 294 p. 15

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Pós Graduação em Processos Criativos em Palavra e Imagem/IEC PUC Minas Parecer da coordenação sobre o Trabalho de Conclusão de Curso

Título: 60 poemas-minuto

Aluno: Lucas Alvarenga

Orientadora: Elaine Moraes

Buscou-se elaborar poemas-minuto a partir da apropriação de notícias veiculadas no site Congresso em Foco. O desafio era transformar textos de caráter factual e efêmero em produção textual mais perene por meio de recursos estilísticos próprios da linguagem poética e ao mesmo tempo conservar alguns aspectos das narrativas noticiosas como a “velocidade de leitura”. Os 60 poemas-minuto que compõem a obra alcançaram os objetivos da proposta. Podemos perceber o diálogo com as notícias, no entanto, a intertextualidade não se resumiu a essas. Podemos encontrar ainda paráfrases, paródias, alusões com outros textos, inclusive letras de música. A presença de ironia, rimas e dicção ritmada também ajudam a dar plasticidade aos textos. Sugestão de conceito: A

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