POLÍCIA, EMPRESA E EDUCAÇÃO: PROBLEMATIZANDO O MODELO “TROPA DE ELITE”

May 30, 2017 | Autor: Anderson Duarte | Categoria: Educação, Segurança Pública, Neoliberalismo
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POLÍCIA, EMPRESA E EDUCAÇÃO: PROBLEMATIZANDO O MODELO “TROPA DE ELITE” DUARTE, Anderson. Polícia, empresa e educação: problematizando o modelo “tropa de elite”. In: Discursos sediciosos nº 21/22. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

1. O cartaz e o problema

Há alguns dias chegou às minhas mãos um cartaz1 anunciando uma palestra de um ex-oficial do Batalhão de Operações Policiais Especiais do estado do Rio de Janeiro (BOPERJ). Voltada para o público empresarial e com cunho motivacional, tal como várias outras do gênero que se (re)produzem em quantidade exponencial, a palestra, cujo título é “Construindo uma Tropa de Elite”, utiliza como estratégia de marketing o aproveitamento da fama do BOPE, que serviu de mote para a produção dos dois episódios do filme “Tropa de Elite”, maior sucesso do cinema brasileiro em termos de lucros e de público espectador 2. Observando o conteúdo da palestra, a propósito, conferida pessoalmente por mim, vejo aí uma oportunidade de exercer uma crítica de cunho analítico, detalhando e pensando de outros modos as questões levantadas pelo palestrante, fazendo aparecer também outras questões não problematizadas. Assim, pretendo tecer algumas considerações partindo dos escritos do próprio cartaz do evento e, em seguida, apontar para as condições de possibilidade de emergência de um discurso de modernização da administração das corporações policiais que, 1

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Primeiramente, é importante fazer uma descrição densa do cartaz do evento, tendo em vista a recorrência que é feita aos seus termos durante a análise a que se propõe o artigo. À primeira vista, chama a atenção o fundo negro do cartaz (semelhante à farda), e o símbolo do BOPE-RJ, à esquerda, bem como os escritos conforme se vêem: Palestra: Construindo uma tropa de elite com (nome do palestrante) subcomandante do BOPE que inspirou o Capitão Nascimento (Data e local do evento). Sob a inspiração do filme “Tropa de Elite”, a palestra se propõe estabelecer a relação entre a realidade do BOPE e das empresas e atividades do mundo corporativo. Tópicos abordados: - o que está além dos processos; - o compromisso com a marca (empresa); - o foco no resultado; o trabalho em equipe; - a superação de limites – metas; - a liderança mútua; - a autorealização no cumprimento da missão – tarefa. “Missão dada é missão cumprida” (em destaque). Descubra como é feito o treinamento de uma equipe de alta performance que alcança resultados excepcionais mesmo em ambientes difíceis e condições desfavoráveis. (fone de contato e logomarca da empresa realizadora do evento). Ver: "TROPA de Elite 2" torna-se o filme mais visto do cinema nacional. Ultimo segundo. São Paulo, 08 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 13 ago.2011.

aliado ao atual modelo de formação e treinamento de seus agentes, chega ao ponto de dar ensejo a uma proposta de aplicação dessas estratégias e seu uso no mundo das grandes corporações empresariais. Posteriormente, discuto como as relações entre a polícia e as táticas empresariais tem se estabelecido, tendo como ponto de contato as estratégias e políticas de subjetivação, notadamente o marketing. Para isso utilizo como objeto de análise material sobre o BOPE-RJ, veiculado nos meios de comunicação (reportagens de jornal, revistas e programas televisivos) e mesmo, depoimentos de integrantes do próprio batalhão, retirados dessas publicações. “Construindo uma tropa de elite”, axiomatiza como slogan o cartaz, seguindo o jargão do midiático filme. Tal frase, aparentemente sem ligação com o que se procura enunciar, mostra o que anima não só o espírito da referida palestra, mas também a atual forma de gestão das polícias. O ex-capitão, que também foi subcomandante daquela unidade policial, procura mostrar, como explica o cartaz, “a relação entre a realidade do BOPE e das empresas e atividades do mundo corporativo”. Assim, intenta-se estabelecer pontos de contato entre o mundo empresarial, com toda a sua dinâmica concorrencial e orientação para o mercado, ao mundo do BOPE, esse conjunto de homens da Polícia Militar do Rio de Janeiro que, sendo agentes de segurança pública, alegam atuar em uma “guerra urbana”, na qual policiais e bandidos se enfrentam, não sem muitas mortes de ambos os lados 3, sem contar os efeitos devastadores aos moradores das comunidades que servem de campo de batalha; baixas de um combate realizado por um batalhão que, nas palavras dos autores do livro 4 que inspirou o filme, “foi treinado para matar” (SOARES et al., 2006, p. 08). Inspirado nessa guerra e no ethos de seus combatentes, desenvolvidos durante a formação, o palestrante anuncia a revelação dos métodos de treinamento utilizados naquela corporação, compreendidos aqui como táticas de subjetivação, para obter “uma equipe de alta performance e que alcança resultados excepcionais mesmo em ambientes difíceis e em condições desfavoráveis”, conforme resume o anúncio. Poderíamos aqui analisar o fascismo que permeia o filme, encarnado na figura do Capitão Nascimento, que, alçado pela grande mídia ao posto de herói nacional, utiliza uma série de meio ilegais e “santifica a violência como remédio para os vícios do mundo” (NEGRI, 2006, p.85) em seu suposto papel de mantenedor da “lei e da ordem”, sendo este 3

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Para se ter uma idéia das mortes, apenas o BOPE no ano de 2007, durante suas mais de 2.220 horas de operações, matou 40 supostos “marginais”. (STORANI, 2008, p.162) SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

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filme um interessante objeto de estudo, especialmente por ser identificado por muitos que o assistem como um “retrato da realidade”, com uma série de implicações na produção de subjetividades, como bem trabalha Aline Ribeiro Nascimento (NASCIMENTO, 2008). Aqui, no entanto, pretendo me deter apenas nos “eficientes” métodos alegados pelos defensores dessa nova doutrina de gestão, que vão sendo utilizados como política de segurança pública em vários estados brasileiros, servindo então de exemplo de “sucesso” digno de um benchmarking5 pelas empresas privadas, como propõe o palestrante do evento. Passo então a formular algumas questões que surgiram ao problematizar o conteúdo da palestra, partindo dos escritos do cartaz: seria possível uma inversão da proposta do palestrante? Ou seja, estariam também as corporações policiais, em suas diversas práticas cotidianas e de gestão realizando esse benchmarking em relação às grandes empresas? Que valores e concepções estão implicados nesse tipo de treinamento dedicado a constituir uma “tropa de elite” nas diversas polícias brasileiras, bem como que tipo de subjetividade se busca produzir com esses discursos oriundos dos treinamentos e práticas cotidianas e do marketing utilizado estrategicamente pelas corporações, tendo como modelo o BOPE? São essas questões que animam esta discussão.

2. Ferramentas para a crítica

Ora, sabendo que, como nos diz Machado (2005, p. XXI), “não há saber neutro, todo saber é político”, para realizar esse exercício de crítica me sirvo do arsenal legado pelo filósofo francês Michel Foucault ou, como ele próprio gostava de designar, da sua “caixa de ferramentas”. Uma das ferramentas que utilizo aqui é a arqueologia, (FOUCAULT, 2008); através dela, inicio considerando o referido cartaz como um monumento que exprime uma série de aspectos e relações com outros valores que externalizam um certo regime de verdade, que permitiria enfim a enunciação do próprio discurso praticado. Sobre essas formas de circulação dos discursos de verdade, explica Foucault (2005, p. 14): “A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ de verdade”. Esse regime de verdade ressoa com o

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Benchmarking: “Técnica de fazer comparações e imitar organizações – concorrentes ou não, do mesmo ramo de negócios ou de outros, que realizem determinadas atividades com excelência e sejam reconhecidas como líderes.” (LACOMBE 2004, apud Dagnino, 2009, p. 56).

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que os sociólogos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009, p. 71), ao analisarem as fases do nascimento de um novo espírito do capitalismo, denominaram de um “esquema de interpretação geral dos novos dispositivos”. Ou seja, para que se possa fazer determinadas proposições, tais como as que vemos no cartaz analisado, é necessário que as regras do jogo tenham sido estabelecidas anteriormente, possibilitando definir o que é tomado como verdadeiro, mas também o que é falso dentro de um mesmo sistema. Assim, não interessa neste trabalho, como em qualquer outro que parta das idéias de Foucault, a busca de uma verdade universal que tenha sido obscurecida ou turvada por uma ideologia; aqui nos interessa apenas quais as formas de produção de verdades, através dos diversos dispositivos de saber/poder. Outra ferramenta foucaultiana fundamental para compreender as questões tratadas neste artigo é o conceito de governamentalidade. Encontramos uma definição desse conceito em uma de suas aulas no Collège de France, em 1º de fevereiro de 1978: O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. A tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. O resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2005, p. 291)

Essa governamentalidade, aqui referida, diz respeito a uma “arte de governar” contemporânea, com origem no neoliberalismo norte-americano, e que se (re)produz aplicando conceitos e valores econômicos a vários outros campos da vida social, tendo como lugar de produção de verdade, esse espaço complexo chamado mercado, conforme nos mostra Gadelha (2009, p. 139). Boltanski e Chiapello (2009, p 53), dizem que “para manter seu poder de mobilização, o capitalismo, portanto, deve obter recursos fora de si mesmo”. Produz-se, então, um amálgama entre o capitalismo, com seus valores econômicos, e outros campos da vida social e da moral, para fins de justificação da acumulação e do lucro. Entre esses campos da vida social temos, por exemplo, a educação e a segurança pública, atividades essenciais típicas dos modelos de Estado vigentes no século XX, especialmente do Estado de Bem-Estar Social, que estão profundamente, mas de maneira sutil, sendo modificadas, tal como explica Veiga-Neto (2000, p.12): “ou se privatizam as atividades estatais (lucrativas), ou se submetem as atividades (não-lucrativas) à logica empresarial”. Ressalte-se aqui que Estado não é 4

entendido como um ente portador de uma essência ou como uma fonte de poder, mas conforme o trata Foucault, como um “efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas” (2008, p. 106). Ou seja, o Estado, que é “ao mesmo tempo o que existe e o que ainda não existe suficientemente” (FOUCAULT, 2008, p. 06), vai se modificando conforme essa nova racionalidade governamental, apresentando-se em sua forma moderna, o que lhe permite seu fortalecimento, e mesmo, sua subsistência: Desde o século XVIII, vivemos na era da governamentalidade. Governamentalização do Estado, que é um fenômeno particularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política, a governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu o Estado sobreviver. (FOUCAULT, 2005, p. 292, grifo meu).

Assim, vemos que os escritos do cartaz, ao anunciarem a construção de uma “tropa de elite”, nos dão pistas de um processo que parece estar em franco desenvolvimento no que tange às mutações desse Estado, bem como dos agenciamentos cada vez mais frequentes entre a polícia e essa utilização de valores econômicos e empresariais na sociedade, tendo como mediadora desse processo a educação. Tais características são sintomas desse novo capitalismo, que se move em uma hipervelocidade, articulando novas formas de se apresentar e novos campos de inserção, e cada vez mais se multifacetando, inclusive, como nos falam Boltanski e Chiapello (2009, p. 63), através da captura e incorporação de parte dos valores que lhes são contrários e de parte das forças que o criticam, e tornando-se, nesse movimento, cada vez mais difícil de ser decifrado. Gadelha (2009), em suas análises no campo da educação, nos fala em como essa nova configuração da governamentalidade neoliberal, embora se refira principalmente ao governo das populações, através de uma biopolítica, tem também graves implicações individuais porquanto agencia novas subjetivações, ou seja, novas formas dos indivíduos se situarem diante de si e dos outros, através de uma série de dispositivos, produzindo o que o autor chama de indivíduos-microempresas. Esses sujeitos são permanentemente faltosos de investimento em seu próprio “capital humano”, daí porque necessitam estar em uma “formação permanente” ou “treinamento constante”, como é o caso do BOPE, a fim de desenvolverem uma série de

habilidades

e competências úteis a

essa

mesma

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governamentalidade – “corpos dóceis6” - mas que agora também devem ser empreendedores em suas escolhas, inclusive na questão do consumo, já que também é subjetivado como um indivíduo livre; e, finalmente, estabelecendo entre si relações de concorrência, com efeitos em todas as instituições (família, quartel, escola, trabalho), culminando no que o autor designa como uma cultura do empreendedorismo. Entende-se que os investimentos feitos para produzir um indivíduo útil a essa governamentalidade são também realizados através do que Foucault chamou de disciplinas, que são “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2008b, p. 118). Sobre a importância da disciplina para conduzir as condutas dos homens, em uma arte de governar, o próprio filósofo afirma que “nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do momento em que se procurou gerir a população” (FOUCAULT, 2005, p. 291). Portanto não devemos considerar que a “era da governamentalidade” prescindiu dos dispositivos disciplinares; antes, entendemos que a nossa época , designada aqui de contemporaneidade, se apresenta em forma de um amálgama, ou melhor, como um colóide7, onde a “arte de governar” apresenta-se como meio dispersante e predominante, mas que apresenta em sua fase dispersa várias partículas ou moléculas de diferentes naturezas, entendidas aqui como características das sociedades de soberania e disciplinar. Sobre essa questão, o próprio Foucault nos dá uma imagem de como se operam essas mudanças na sociedade: A idéia de um novo governo da população torna ainda mais agudo o problema do fundamento da soberania e ainda mais aguda a necessidade de desenvolver a disciplina. Devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta para uma sociedade de governo. Trata-se de um triângulo: soberania-disciplina-gestão governamental, que tem na população o seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais. (FOUCAULT, 2005, p. 291)

Essa disciplina, cujo principal vetor é a educação, aparece em sua forma atualizada induzida por novas tecnologias de subjetivação, tal como o marketing, e toda uma série de mecanismos voltados para uma eficiência e eficácia que levariam ao “sucesso” e a 6

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A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo. (FOUCAULT, 2008b, p.119). Conceito da química de difícil definição introduzido por Thomas Graham (1805-1869) em 1861. É uma forma de apresentação da matéria de forma fronteiriça entre as chamadas soluções verdadeiras e as misturas heterogêneas, no qual estão dispersas em um meio dispersante, grandes partículas, tal como em uma densa fumaça ou uma bruma. Resguardadas as especificidades, apresento tal conceito aplicado aqui a fim proporcionar uma imagem da maneira como se apresenta a sociedade contemporânea.

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uma “alta performance” (como diz o cartaz da palestra), compreendidos como o alcance dos resultados e metas estabelecidas. Assim, essa cultura do empreendedorismo teria seus efeitos no âmbito individual, mas também é visível nas práticas das instituições, especialmente na polícia, onde essa biopolítica se manifesta de maneira patente, como veremos a seguir na forma de atuação do BOPE, a exemplo do que ocorre em outras políticas de segurança pública, aqui identificadas como partes dos “dispositivos de segurança” de que falou Foucault (2005, p. 293), como mecanismo dessa governamentalidade neoliberal.

3. O BOPE como paradigma de “eficiência”

“O BOPE é pop”8. Esta chamada jornalística, publicada durante as ações ocorridas nas operações de “retomada” (como foram designadas pela grande mídia tais ações) das favelas e morros cariocas pela polícia no ano de 2010, para ilustrar o clima de “sucesso” e aprovação popular que havia se instalado com o efeito “Tropa de Elite” e reproduzida quando se queria discorrer sobre a fama desse batalhão que parece ter ganhado ares de celebridade nacional. Assim, elenca-se outros fatos que retratam o seu modelo de atuação, tanto no que tange à formação de seus quadros, como também no cotidiano de suas midáticas operações e demais ações externas, fazendo jus a esta publicitária frase de efeito, relacionando este modus operandi como parte de um modelo de gestão empresarial que se dissemina por todas as polícias brasileiras, com pretexto de dotá-las de maior eficiência. Analise-se então a realidade do BOPE. Trata-se de uma Unidade de “Operações Especiais”, idéia adaptada da doutrina bélica do exército, criada em 1991 a partir do Núcleo de Companhia de Operações Especiais da PMRJ, existente desde 1978. (MELO, 2009, p. 54). Portanto, vemos que apesar de tratar-se de uma tropa de policiais militares, não são policiais “convencionais”, antes, são voltados para o cumprimento de uma missão específica, e, como diz o jargão, repetido à exaustão durante a palestra, “missão dada é missão cumprida”. Então, pergunta-se, que missão é essa? Obtemos uma resposta através do prefácio do livro “Elite da Tropa”, onde os autores se referem aos reais objetivos do Batalhão: 8

SETTI, Ricardo. O BOPE é Pop. Veja.com. Rio de Janeiro. 08 dez 2010. Disponível em: . Acesso em 28 set 2011.

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O BOPE não foi preparado para enfrentar os desafios da segurança pública. Foi concebido e adestrado para ser máquina de guerra. Não foi treinado para lidar com cidadãos e controlar infratores, mas para invadir territórios inimigos. Tropas similares servem-se de profissionais maduros. O BOPE acelerava meninos de 20 e poucos anos até a velocidade de cruzeiro do combate bélico. (SOARES et al., 2006, p. 08, grifos meus).

Percebemos então que a “missão especial” a que o palestrante e os demais defensores desse modelo se referem, é a de “invadir territórios inimigos” e, em um estado de exceção produzido pela própria razão de Estado, “ser máquina de guerra”; a propósito, missão bem explicitada em uma das canções entoadas durante o treinamento físico cotidiano: “homem de preto qual é tua missão? É invadir favela e deixar corpo no chão.” (SOARES et al., 2006, p. 08). Tal mister, que é desempenhado com pretensões de eficiência e eficácia, conta com um modelo de educação peculiar, um treinamento militar voltado para “acelerar meninos” ou produzir “corpos dóceis”, que são também indivíduos-microempresas. Eles realizam o Curso de Operações Policiais Especiais (COEsP), e quando o concluem são designados “caveiras”, símbolo que passam a ostentar em seu uniforme. “Assim, ser um caveira significava passar a ver, sentir e agir de uma forma diferenciada” (STORANI, 2008, p. 128), “sendo encarado pelos convertidos como um sinal de responsabilidade e compromisso com a ‘marca’” (Id. p. 134), onde fica clara a semelhança com os discursos empresariais de compromisso, de “vestir a camisa” da empresa. Pois bem, se o modelo de educação do BOPE pode ser aplicado ao mundo corporativo, continuamos a reunir mais elementos que nos auxiliem em nossa busca por mais características que motivem ainda mais tal proposta. Nesse ponto, já sabemos que a educação, na contemporaneidade, não se restringe mais apenas ao espaço da escola ou, em nosso caso, ao quartel, aqui entendido como as escolas de formação policial. Antes, como nos diz Gadelha: Vivemos numa sociedade em que os meios de comunicação, o marketing, a publicidade, a internet, as mais diversas organizações comerciais, particularmente os grandes conglomerados empresariais e financeiros, investem, em qualquer hora e lugar, na prestação de serviços educacionais. (2007, p.11, grifos meus)

Veem-se então outros elementos que entram no jogo dos processos de subjetivação relacionados a esse corpo de policiais que se quer produzir e a essa política de segurança pública que se exercita sobre a população e que se tornou exemplar em todo o Brasil9. Entre eles podemos citar um dos elementos pontuados por Gadelha, o marketing, que

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Sabemos que, depois do estado do Rio de Janeiro, vários outros estados do Brasil criaram seus “BOPEs” ou grupos similares com denominação distinta, mas seguindo o mesmo modelo. Como exemplo, citamos um

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incide sobre e pelas ações do BOPE, articulado aos grandes meios de comunicação e pela própria gestão do batalhão, com efeitos objetivos nessa política de produção de subjetividades. Recentemente, em novembro de 2010, quando foram iniciadas as operações de “pacificação” das favelas do Rio de Janeiro, realizadas por forças como o BOPE e outras unidades, incluindo a marinha e o exército, para as instalações das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP) – uma “polícia comunitária” instalada após a guerra, com ares de outra polícia, mas sendo apenas outro braço da mesma instituição, partilhando dos mesmos valores – percebeu-se como grandes jornais e revistas de circulação nacional deram total apoio às ações, noticiando os feitos dos policiais e dando visibilidade às vozes dos representantes das forças estatais que bradavam frases de efeito tais como “nós vencemos, trouxemos a paz para a Comunidade do Alemão” e “a população do Rio já pode comemorar”10. Tudo isso ratificado e elogiado em tempo real por “comentaristas de segurança pública”, de grandes redes de televisão. Até réplicas dos “Caveirões”, nome dado aos carros blindados utilizados por esta tropa, cuja forma de uso nas favelas é duramente criticada pela Anistia Internacional (MELO, 2009), foram produzidos em forma de brinquedos e transformados em objeto de consumo para as crianças. Uma pesquisa feita por Storani (2008) contou cerca de 360.000 pessoas em comunidades virtuais dedicadas ao BOPE na internet. O próprio comandante do BOPE reconhece os efeitos dessas novas táticas, tal como vemos em sua fala para uma revista: O Bope [Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro] virou pop star no Rio. A gente tem um apoio muito grande da população. Viramos comentários até na boca de crianças11

Essas estratégias de marketing voltadas para a população, juntamente com a educação dispensada aos policiais em forma de treinamento, vistas no BOPE, agem, não escamoteando ou turvando a verdade, conforme já vimos em Foucault, mas de fato, essas táticas vão fabricando novas verdades através desses dispositivos de saber/poder e modulando

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artigo chamado “Bem vindo ao GATE - Tropa de elite da Polícia Militar do Ceará”, (CAVALCANTE, 2008), referindo-se ao grupo criado em 1993, nos mesmos moldes da tropa carioca. Para reportagens do tipo descrito por nós, ver por exemplo: COSTA , Ana Claudia; BRUNET , Daniel; MAGALHÃES , Luiz Ernesto; e MENDES, Taís. Polícia invade Complexo do Alemão. O Globo, Rio de Janeiro, 28 nov. 2010. Disponível em: . Acesso em 04 set. 2011. SETTI, Ricardo. BOPE Pop Star. Veja.com. Rio de Janeiro. 10 nov 2010. Disponível em: . Acesso em 28 set 2011

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novas subjetividades, resultando então nesse suposto “apoio popular” alardeado nos meios de comunicação de massa. Assim, em todo o país é construída uma imagem positiva desse tipo de política de repressão policial, com todos os seus procedimentos e estratégias que, como bem descreve Loïc Wacquant (2001) em sua obra Prisões da Miséria, contribuem para a penalização da miséria sendo esta compreendida como uma das características do neoliberalismo desenvolvido principalmente nos Estados Unidos e que envolve uma série de práticas, instituições e discursos voltados à política de repressão criminal, dentre as quais a violência é apenas mais um fenômeno. Tal teórico, ainda em 2001, em nota aos leitores brasileiros, analisando a situação do país, fez uma crítica às demandas por maior aparato policial, em detrimento da problematização e o abrandamento das desigualdades sociais do país como ponto crucial para uma possível diminuição da criminalidade, já que, segundo o autor “[...] a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem” (WACQUANT, 2001, p. 09).

4. Considerações Finais

Finalmente, para além da suposta unanimidade proclamada e no intuito de uma “destruição das evidências e das universalidades”, como sonhava Foucault (2005, p. 242), concluímos que as analogias bélicas do tipo “guerra ao tráfico”, “forças de pacificação” e outras figuras retóricas amplamente divulgadas por ocasião das ações do BOPE em 2010, análogas ao que Rolim (2006, p. 73) chama de “populismo penal”, longe de solucionar algum problema, apenas trazem soluções superficiais, produzindo ainda vários efeitos de subjetivação para o estabelecimento de uma sociedade de controle, em um jogo entre liberdade e segurança mediado pela lógica da comunicação, ao mesmo tempo em que despreza as reais causas dos problemas das comunidades “pacificadas”. Da mesma forma, a palestra que nos instigou a escrever este artigo, cujas concepções propositalmente simplistas, maniqueístas e universalistas, funcionam mais como estratégias de marketing de uma suposta eficiência desse modelo tropa de elite, cuja raiz é uma concepção de Estado penalista neoliberal, que busca sua legitimidade em

suas próprias práticas de exceção.

Coincidentemente ou não, essa mesma palestra foi realizada no encerramento do maior evento acadêmico de uma grande faculdade privada do estado do Ceará, demonstrando então a 10

gravidade das questões aqui tratadas, bem como sua íntima ligação com a educação contemporânea.

5. Referências Bibliográficas

BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CAVALCANTE, Antonio Gonçalves. Bem vindo ao GATE - Tropa de elite da Polícia Militar do Ceará. Revista Alvorada. Fortaleza: Polícia Militar do Ceará, dez. 2008. COSTA , Ana Claudia; BRUNET , Daniel; MAGALHÃES , Luiz Ernesto; e MENDES, Taís. Polícia invade Complexo do Alemão. O Globo, Rio de Janeiro, 28 nov. 2010. Disponível em: . Acesso em 04 set. 2011. DAGNINO, Renato Peixoto. Planejamento estratégico governamental. Florianópolis. Departamento de Ciências da Administração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 21ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005. ______. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ______. Vigiar e punir. 6ª ed. Petrópolis : Vozes, 2008b. GADELHA Costa, Sylvio. S. “Educação, políticas de subjetivação e sociedades de controle”. IN: Marcondes, Adriana; Fernandes, Ângela; Rocha, Marisa D. (orgs.) Novos possíveis no encontro da psicologia com a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p.15-36. GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. MELO, Thiago de Souza. Policiamento Comunitário no Rio de Janeiro: uma estratégia de ampliação do controle social no contexto do neoliberalismo. 2008. 155 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2009. NASCIMENTO, Aline Ribeiro. De Auschwitz a Tropa de Elite: modulações do estado de exceção?. Mnemosine, Rio de Janeiro, Vol.4, nº2, p. 115-150. 2008. NEGRI, Antonio. De Volta. Abecedário biopolítico, Rio de Janeiro: Record, 2006.

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ROLIM, Marcos, A Síndrome da rainha vermelha: Policiamento e Segurança Pública no Século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006. SETTI, Ricardo. BOPE Pop Star. Veja.com. Rio de Janeiro. 10 nov. 2010. Disponível em: . Acesso em 28 set 2011. SETTI, Ricardo. O BOPE é Pop. Veja.com. Rio de Janeiro. 08 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em 28 set 2011. SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. STORANI, Paulo. Vitória sobre a morte: a glória prometida. O “rito de passagem” na construção da identidade dos Operações Especiais. 2008. 162 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2008. TROPA de Elite 2 torna-se o filme mais visto do cinema nacional. Ultimo segundo. São Paulo, 08 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 13 ago.2011. VEIGA-NETO, Alfredo. Educação e governamentalidade neoliberal: novos dispositivos, novas subjetividades. In: PORTOCARRERO, Vera & CASTELO BRANCO, Guilherme (org.). Retratos de Foucault. Rio de Janeiro: NAU, 2000. p. 179-217. WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução, André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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