POLIFONIAS FEMININAS DAS POLIGAMIAS. CONCERTO OU DESCONSERTO? RIWAN OU LE CHEMIN DE SABLE DE KEN BUGUL (SENEGAL) E NIKETCHE. UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA DE PAULINA CHIZIANE (MOÇAMBIQUE

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ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura ISSN: 2178-4744

POLIFONIAS FEMININAS DAS POLIGAMIAS. CONCERTO OU DESCONSERTO? RIWAN OU LE CHEMIN DE SABLE DE KEN BUGUL (SENEGAL) E NIKETCHE. UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA DE PAULINA CHIZIANE (MOÇAMBIQUE)

Catarina Martins (Universidade de coimbra)1 RESUMO Este artigo apresenta uma leitura feminista de dois romances escritos por mulheres africanas sobre o tema da poligamia. Outros romances serão incluídos na discussão, de modo a demonstrar como a polifonia como estratégia estética corresponde à intenção política de dar voz ao maior número de mulheres possível. Uma interpretação simplista da poligamia como sendo apenas uma forma de opressão para as mulheres, por oposição à monogamia como norma desejável, é contrariada pelo acento em constelações de poder complexas, que não podem ser definidas exclusivamente através do parâmetro do género, e por perspetivas interseccionais que descobrem formas de agência e semânticas de liberdade e empoderamento que os quadros conceptuais feministas, até ao momento, ainda não foram capazes de explicar. Palavras-chave: Poligamia, Ken Bugul, Paulina Chiziane, Literatura africana de mulheres ABSTRACT This article intends to offer a feminist reading of two novels written by African women on the subject of polygyny. Other novels will be drawn into the discussion, in order to demonstrate how polyphony as an aesthetical strategy corresponds to a political intention of making as many voices of women as possible heard on the subject. A simplistic reading of polygyny as always merely oppressive to women, as opposed to monogamy as a desirable norm, is contradicted by an accent on complex power constellations, not to be defined through the parameter of gender alone, and by intersectional regards that discover invisible forms of agency and semantics of freedom and empowerment that feminist conceptual frameworks cannot account for so far. Palavras-chave: Polygamy, Ken Bugul, Paulina Chiziane, African literature women

A polifonia é a estratégia principal das obras literárias escritas por mulheres africanas que pretendem debater o tema da poligamia. Estes romances encenam intencionalmente o diálogo e o contraste entre muitas vozes e histórias de mulheres que de alguma forma estiveram ligadas a várias formas de poligamia. O resultado, geralmente, não é um concerto harmonioso, mas múltiplas dissonâncias que nos desconcertam com muitas questões sem resposta e muitas perspetivas contraditórias. Para além disso, se o/a leitor/a estiver à procura de uma condenação pura e simples desta forma de união conjugal, ficará certamente desiludido/a. As escritoras africanas preferem oferecer-nos complexidade a conformar-se a uma representação redutora, colonial ou neocolonial das mulheres nas sociedades africanas: uma perceção que as aprisiona no papel passivo de vítimas da sua própria cultura patriarcal, ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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da tradição, da ignorância, da pobreza, independentemente da diversidade de localizações, de posições de sujeito, de intersecções e de percursos de vida que ocorrem em cenários políticos, sociais, culturais e territoriais extremamente heterogéneos. A ideia da “eterna vítima” aplicada às mulheres do chamado Terceiro Mundo tem 60

vindo a ser denunciada há muito tempo por muitas críticas feministas de diversas geografias não-ocidentais como um aprisionamento pelo olhar ocidental, incluindo o feminista (Mohanty, 1988; Oyewùmi, 1997). A poligamia é um dos tropos que compõe esta ideia e que produz ativamente invisibilidades e silêncios, impedindo assim uma compreensão plena da complexidade do tema e das respetivas implicações, tanto para o ativismo relativo às mulheres africanas como para a teoria e as solidariedades feministas. De facto, as mulheres africanas ficam encerradas numa moldura de perceção eurocêntrica que associa direta e exclusivamente a monogamia com emancipação. Quando a monogamia é fixada como norma, desenha-se uma linha abissal (Santos, 2007) que tem consequências sobre a própria possibilidade do saber. Assim, tornamo-nos incapazes de compreender que há tantas formas de poligamia quanto os sujeitos envolvidos e que este tipo de casamento não está inevitavelmente ligado à submissão das mulheres, podendo inclusivamente ser uma escolha consciente destas no âmbito de noções diferentes de liberdade, de bem-viver e de realização pessoal, quando as uniões conjugais possuem valores sociais diversos em outros contextos socioeconómicos e culturais. O pensamento normativo segundo linhas abissais eurocêntricas também nos cega para a agência das mulheres africanas dentro ou em relação com uniões polígamas, bem como para a inteligência e criatividade que revelam nos modos de lidar com a tensão e o conflito, de resistir à dominação e de abrir espaços de poder e de liberdade que podem ser mais compensadores para elas do que a união monogâmica. Este artigo não pretende fazer a defesa da poligamia, muito menos de uma aplicação ética e politicamente perigosa de um relativismo cultural. Porém, irei usar a ficção literária produzida por escritoras africanas para recolher uma série de perspetivas diferentes sobre o tema da poligamia que têm consequências sobre o modo como esta prática social é percebida. A bibliografia sobre a poligamia na África subsaariana é de tal forma extensa e divergente que não permite entender a dimensão, as razões ou os contornos desta forma de conjugalidade em diferentes partes do continente. Para além das fontes antropológicas e sociológicas, o tema é abordado em textos das áreas do direito, da economia, da medicina, dos estudos sobre o desenvolvimento, da psicologia, da religião, da moral, da filosofia, da História, da política, entre muitos outros. Este interesse demonstra, acima de tudo, que a ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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poligamia constitui um terreno de fortíssima disputa política entre poderes de variadíssimas ordens, na qual se verifica a construção simbólica de identidades culturais subjacentes a interesses de dominação diversos. Nestes interesses são axiais a continuidade do exercício de um poder colonial ou neocolonial e, no polo oposto, a afirmação das culturas africanas, num combate persistente contra os colonialismos e neocolonialismos e as suas diferentes expressões. Na disputa discursiva sobre a poligamia, o silêncio sobre o que esta prática representa para as mulheres em termos de poder, de direitos, de voz, de realização das subjetividades, é notório e significativo. De facto, estamos perante uma contenda colonial / anticolonial sexuada, que decorre do caráter igualmente sexuado da construção e localização hierárquica de identidades e diferenças, mas uma contenda que se desenrola entre patriarcados, com evidente instrumentalização das mulheres. Não é novidade o modo como o discurso colonial ocidental constrói a identidade do africano e da africana, situando ambos num estado de natureza e de primitivismo, caraterizado pela incapacidade de controlo do instinto sexual, numa escala normativa que vai da poligamia à monogamia, segundo as teorias do evolucionismo social. A estas cola-se a doutrina e a moral cristãs, que incluem a erradicação da poligamia e a promoção da monogamia no “white man’s burden” da missão civilizadora, obviamente de modos diversos e com negociações distintas, conforme os contextos e as potências coloniais. Uma diferença maior estabelece-se entre os países islâmicos e os não islâmicos. Ou seja, no discurso colonial, a poligamia aparece como traço de superioridade civilizacional do ocidental em relação ao africano. Não surpreende, pois, que a poligamia ressurja, reformulada, nos discursos anticoloniais. Nestes foi decisiva uma construção oposta da cultura africana, uma procura da ancestralidade pré-colonial que figurasse como uma essência pan-africana sobre a qual se construiriam os projetos de independência de cada um dos países. Muito embora as mulheres tivessem participado nas lutas anticoloniais, a conceção destes projetos de independência e as ideias de Nação correspondentes revelam um cariz patriarcal patente nos papéis atribuídos ao homem e à mulher (Boehmer, 2005). A poligamia, assumida como tradição basilar de uma organização social ancestral é instrumental em ambos os objetivos. As manobras discursivas de reação ao discurso colonial salientam, por exemplo, a poligamia como parte de estratégias políticas complexas dos grandes chefes de Estado africanos (Lam, 2007). Se é certo que o casamento polígamo foi uma estratégia para a construção de fortes impérios em África, assegurando a união entre chefes e salvaguardando ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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alianças políticas, esta história da poligamia é, no mínimo, omissa quanto ao papel das mulheres, as quais, provenientes de linhagens importantes e com estatuto social elevado, terão igualmente desempenhado papéis políticos de relevo, no quadro das referidas alianças. É o patriarcado que detém a palavra em todas as modalidades de descrição da 62

poligamia: esta aparece como modo de aumentar o rendimento em unidades de produção rural lideradas por um homem, mas cuja mão-de-obra é feminina; como necessidade de assegurar a sucessão familiar (quando a primeira mulher é infértil) ou a sucessão masculina; como forma de proteção das viúvas e de órfãos, através do levirato. Surge também como uma forma de conter a sexualidade masculina, e de estabelecer normas que garantem igual distribuição de meios de subsistência a cada uma das mulheres e respetivos filhos e filhas. Por fim, a discussão atual sobre o HIV/SIDA mostra claramente como persistem os discursos colonial e anticolonial e como a poligamia continua a ser instrumental: nos discursos eurocêntricos, é uma das explicações para a maior prevalência do vírus no continente africano; segundo os africanos, permitiria justamente conter as relações extraconjugais que promovem a disseminação da doença (Gausset, 2001). Mais uma vez, o debate parece ser entre homens, e deixar de fora as mulheres. Estas são objetificadas em ambas as construções da “cultura africana”: a do Norte e a do Africanismo patriarcal. Só os movimentos feministas mais progressistas no continente africano parecem protagonizar uma oposição à poligamia. Quando as mulheres tomam a palavra, o eixo do debate desloca-se para os direitos, as liberdades e as subjetividades das envolvidas: denuncia-se a ausência de voz e de poder de decisão das mulheres num núcleo familiar em que só o homem é chefe e pode não cumprir os preceitos de equidade entre as mulheres estipulados pela tradição e pela religião, particularmente quando a poligamia é associada ao casamento forçado; denuncia-se a exploração das mulheres como mão-de-obra escrava na família poligâmica como unidade económica; denuncia-se o empobrecimento a que conduz a multiplicação de casamentos e de descendência; denuncia-se as consequências psíquicas que decorrem ou da violência doméstica acrescida ou do difícil convívio entre as mulheres; denuncia-se o controlo da sexualidade das mulheres; denuncia-se, finalmente e entre outros, a maior facilidade de propagação de doenças sexualmente transmissíveis, dada a multiplicidade de parceiros envolvidos. Também na literatura o tema é recorrente e espelha a disputa colonial e anticolonial, a afirmação nacionalista patriarcal e a reação feminista, inscrevendo as mulheres nas narrativas ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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da cultura africana que lhe reservavam um lugar de subalternidade. Assim, desde os pioneiros das literaturas africanas, como o nigeriano Chinua Achebe, em Things Fall Apart (1958), se constrói uma essência africana pré-colonial assente em comunidades rurais de famílias polígamas, nas quais o homem é autoridade absoluta e a exploração laboral (na produção doméstica, agrícola e na reprodução) e a violência sobre as mulheres é legitimada (Stratton, 1994; Martins, 2011). Ou seja, as identidades masculinas dominadoras e as femininas submissas são linhas fundamentais de narrativas nacionalistas sexuadas, tal como a continuidade do hipertexto da literatura africana de autoria masculina permite concluir: no período pós-independência, em que as elites nacionalistas fracassam no desenvolvimento dos novos países, ressurge a temática da poligamia, com os contornos, por exemplo, de Xala (1973) do senegalês Ousmane Sembene. A Xala (impotência provocada por feitiço) do burguês polígamo, quando se casa com uma terceira mulher, é uma alegoria crítica da corrupção e ambição das classes com poder político e económico que traem os projetos de independência e fracassam na fertilização do corpo da Nação (figurado nas mulheres). A narrativa é contada em função do homem e não há lugar para a voz das mulheres, que aparecem, com pequenas exceções, como pano de fundo parasitário que concorre para o fracasso desta geração de homens. Curiosamente, um retrato não muito diferente aparece na tragédia de inspiração shakespeariana do guineense Abdulai Sila, As Orações de Mansata (2013), na qual a crítica impiedosa dos detentores corruptos do poder político nas ditaduras sanguinárias da África ocidental não inclui uma crítica da poligamia enquanto sistema de opressão das mulheres – esta prática é vista como uma forma de ostentação da riqueza das ambiciosas elites governativas e recusada como tal, não em função do que representa para as mulheres. É da mesma época de Xala o romance pioneiro de mulheres africanas sobre a poligamia, Une Si Longue Lettre (1979), da senegalesa Mariama Bâ, muito embora o tema já tivesse surgido antes, pela pena das nigerianas Flora Nwapa, em Efuru (1966), ou Buchi Emecheta, em Joys of Motherhood (1979), entre outros. Estes três romances de mulheres, tais como os de homens acima referidos, mostram uma evolução reveladora de como as histórias de poligamia refletem os debates políticos mais amplos que aflorei acima. No centro destes romances está a construção de identidades e narrativas africanas e nacionais e o lugar diferente que homens e mulheres nela ocupam. Assim, no romance Efuru de Flora Nwapa, da Nigéria, cuja ação é situada num contexto de colonização ainda fraca, a poligamia aparece como opção consciente das próprias ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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mulheres num quadro em que estas são, para além de agentes económicos e políticos de relevo num espaço público amplamente considerado, livres nas decisões afetivas na conjugalidade: escolhem o parceiro para o casamento, o divórcio, uma vida sem marido, tal como podem preferir a família polígama. Neste caso, são as mulheres que sujeitam o parceiro a casar com outras esposas, escolhidas por elas e pelas mulheres das gerações mais velhas, quando, na perspetiva delas, as coesposas são necessárias para libertar as primeiras para a atividade económica fora do lar ou para fins de reprodução. Não se trata, pois, de uma opção do homem. Pelo contrário, a partir de uma identidade que é sexual, mas na qual se torna determinante a intersecção com fatores económicos, de classe social e de idade, a mulher exerce poder sobre o marido e sobre outras mulheres, mais jovens. Ou seja, a poligamia aparece aqui quer como emancipatória quer como opressora para as mulheres, o que significa que o sexo e a forma de conjugalidade não são suficientes para definirem a relação de poder estabelecida na poligamia. Já Buchi Emecheta em Joys of Motherhood questiona a centralidade do casamento e da maternidade na identidade essencializada da mulher africana, criticando-a como motivo para a submissão e miséria das mulheres, nomeadamente através da sujeição à poligamia. Esta prática é analisada quer no contexto rural tradicional quer face ao colonialismo e à urbanização. Na sua aldeia natal, a protagonista fracassa no seu papel de reprodutora, e é forçada a casar com um empregado doméstico de uma família de colonos, em Lagos. Depois de este adquirir uma das esposas do falecido irmão, a protagonista tem de conviver com esta e as respetivas filhas num pequeno alojamento de colonizados suburbanos nos anos 50. Sem recursos, vive uma existência marcada pela violência e a extrema pobreza, até ser desprezada pelos filhos e morrer na solidão. Ou seja, o romance assume uma posição contra a poligamia e apresenta como alternativas a educação e a independência económica das mulheres, opção protagonizada no romance pela rival da protagonista. É relevante o facto de a atividade económica que permite a ascensão social e a emancipação ser a prostituição. A prostituição não é estigmatizada e significa, neste caso, que a mulher opta por uma outra espécie de poligamia – uma poliandria – claramente assumida como atividade económica, mas centrada na mulher e nas transações que esta gere, decidindo livremente sobre o uso do próprio corpo. Desta forma também se reescreve o sentido do corpo feminino da nação, que em vez de servil, se torna instrumento de um expressivo processo de empoderamento. É importante notar que noções como amor romântico, atração sexual, afinidades intelectuais ou outras não têm lugar de relevo entre os motivos que levam as mulheres dos ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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dois romances ao casamento, o que, desde logo, coloca em primeiro lugar razões de ordem material e pragmática como justificações da união conjugal. Este dado é importante para compreender as relações de poder que se estabelecem na estrutura social em torno da poligamia, bem como as opções das mulheres, para as quais a poligamia pode, num quadro de valores diferente, ser portadora de uma ordem de benefícios diversa da da monogamia ocidental. Por sua vez, o romance de Mariama Bâ apresenta complexidades relacionadas com o debate que se desenrola desde os anos 70 no Senegal, tendo em conta que se trata de um país com 95% de muçulmanos e onde os poderes islâmicos exercem forte domínio na política, sociedade e economia. A protagonista de Une Si Longue Lettre é uma mulher formada, professora, da classe média urbana de Dakar, a qual estivera na vanguarda dos movimentos nacionalistas da década de 1950 que incluíam as mulheres e a reivindicação de igualdade. Ramatoulaye conhecera o marido na juventude e a união de ambos assentara no amor, na atração sexual, mas também em afinidades intelectuais e na construção de um projeto comum de futuro, tanto para o casal como para o país. O mesmo acontecera com Aissatou, a melhor amiga da protagonista, a quem esta escreve as cartas que compõem o romance. Contudo, os maridos de ambas decidem casar-se novamente, ambos com mulheres mais jovens, um facto que surge como traição afetiva e traição da utopia de igualdade que tinha norteado os dois casais na intervenção pública e política. Assim, o romance é uma crítica não apenas da poligamia, que reduz as mulheres à categoria de objetos descartáveis, mas das elites masculinas que tomaram o poder após a independência, mas nunca aboliram as tradições islâmicas. Contudo, não encontramos uma simples oposição de género nesta crítica. Tanto no caso de Ramatoulaye, como no de Aissatou, são mulheres que incentivam ou quase forçam os homens ao casamento poligâmico. As mulheres de uma geração mais velha são retratadas como agentes da opressão das mais novas ao promoverem a poligamia por motivos de ascensão social ou de preservação de uma linhagem. Aparecem como mais poderosas do que os filhos homens, não hesitando em submeter as filhas e as noras à infelicidade no casamento. Por sua vez, as coesposas, raparigas jovens, são vistas pela protagonista como vítimas do sistema, uma vez que ou são educadas para servir os homens ou forçadas a abandonar os estudos para vender a beleza e a juventude para satisfazer o orgulho e o apetite sexual de homens de meia-idade. Muito embora Ramatoulaye não se revolte contra este estado de coisas, a sua infelicidade indica que a inscrição de um sujeito feminino no texto social senegalês é muito difícil se este texto não for substancialmente alterado. Uma tal revolução ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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social implica uma série de transformações profundas: em primeiro lugar, uma reforma do Islão que inclua a anulação de determinadas práticas, como a poligamia; em segundo lugar, a alteração das mentalidades de homens e de mulheres. As atitudes da geração mais jovem, representada pelas filhas e genros da protagonista, aparecem como abertura para um futuro mais igual para as mulheres, tanto na esfera privada com a partilha de responsabilidades domésticas, como na esfera pública, através da educação, do exercício de uma profissão e do ativismo político. Face ao romance de Bâ, Riwan ou le Chemin de Sable (1999) de Ken Bugul, também do Senegal, e publicado 20 anos mais tarde, suscitou forte polémica pelo seu conservadorismo: a autora parece apoiar não somente a poligamia, mas uma tradição fortemente ligada à religião islâmica. Todavia, o romance pede alguma cautela na sua leitura, a mesma que me suscitou uma entrevista que realizei à autora em Fevereiro de 2013. Bugul destaca as subjetividades das envolvidas e a complexidade dos contextos, salientando que noções como liberdade, poder e bem-viver são concebidas por cada sujeito segundo percursos individuais com cruzamentos de múltiplos referentes. O conturbado percurso biográfico de Bugul é disso um exemplo. Numa encruzilhada particularmente difícil da vida de celle dont personne ne veut (é este o significado do pseudónimo da autora na língua wolof), esta procurou a ordem social e mental que o saber e a espiritualidade tradicionais lhe podiam oferecer. Ou seja, o romance, fortemente autobiográfico, relata o processo de busca de um quadro de referências que permitisse não só encontrar paz interior e realização pessoal, como um sentimento de integração no coletivo. O alter-ego da autora na narrativa é uma mulher de 30 anos que, com uma educação ocidental de nível superior e após ter conhecido vários países europeus e vivido relações diversas com homens desses países, regressa à aldeia natal no Senegal, para se tornar 28ª esposa de um chefe religioso islâmico com mais de 70 anos. Esta mulher denuncia a representação colonial do africano como selvagem e brutal como a primeira fratura que a fez desligar-se da cultura de origem. Esta ideia dos homens africanos afastara a protagonista dos sonhos de casamento acalentados pelas mulheres da sua geração, bem como da compreensão das formas de conjugalidade, da relação homem-mulher, do exercício da sexualidade e dos rituais associados a tudo isto na cultura senegalesa. Contudo, as uniões monogâmicas que experimentara no Norte também não haviam correspondido às promessas de emancipação dos discursos do feminismo europeu. O amor romântico do Norte é visto pela protagonista de uma forma redutora que o resume ao sentimento de posse, de controlo e de ciúme, a uma prisão neurótica. A protagonista procura então reingressar na ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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cultura senegalesa, e é nesse sentido que o romance analisa ficcionalmente, por contraste, três percursos de mulheres, todas elas num contexto poligâmico e fortemente patriarcal. Nabou Samb é uma jovem da classe média de Dacar, com formação ocidental de nível secundário, que decide tornar-se quarta esposa de um homem mais velho e rico. A união 67

conjugal é encarada como um contrato, arranjado pelas famílias, que deve trazer benefícios de ordem económica e social, bem-estar físico e psíquico e segurança para as mulheres. É celebrada segundo todos os rituais tradicionais, que implicam o dote (o preço a pagar pela noiva) e a verificação da virgindade. Incluem, porém, também um conjunto de estratégias que entronizam a jovem esposa, incluindo oferendas ricas e um enxoval íntimo que realça a sensualidade. Com a segurança material e o estatuto social obtidos pelo casamento, um saberviver da coexistência com outras esposas, a autonomia de uma casa própria (aqui, a modernidade sobrepõe-se à tradição) e a liberdade que decorre do tempo de ausência do marido, Nabou Samb encontra na poligamia as condições ideais para a felicidade. Também a vivência da poligamia no harém do chefe religioso, apesar da sua diversidade, é vista pela autora como uma situação em que as mulheres encontram bem-estar. É verdade que vivem enclausuradas numa ala específica da casa do Imã e numa relação de submissão, sujeitas sempre à vontade do marido, que sobre elas exerce a dupla autoridade conjugal e religiosa. Porém, apesar desta clara denúncia, o romance descreve a vida coletiva das mulheres do harém como uma harmonia que decorre, segundo a descrição, do estatuto social alcançado pelo casamento, da satisfação das necessidades materiais, de uma autonomia financeira conseguida através da venda de trabalhos manuais, que gera uma pequena economia de acumulação e de autovalorização pelo luxo, e de um convívio inter-geracional no feminino que inclui a vivência da sexualidade entre mulheres. Tal como a Tia Maria, uma personagem de Niketche, também ela 25ª esposa de um rei, estas mulheres são “rainhas” e detêm poder sobre o resto da comunidade, fazendo-se “servir”, a partir de um espaço é entendido como de liberdade, por ser o centro de onde emana esse mesmo poder. Neste quadro, aparece a razão mais polémica da aparente satisfação destas mulheres. Segundo a narradora, esta resulta também de um processo de sublimação espiritual que se deve à personalidade inspiradora do próprio chefe religioso, às suas qualidades como homem (destaca-se a ternura e a satisfação que dá no ato sexual) e à forma natural como apazigua as personalidades mais rebeldes no âmbito do Ndigueul, princípio da doutrina do Mouridismo, a corrente islâmica dominante no Senegal, que promete o paraíso em troca da aceitação da ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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submissão a Alá. A protagonista, apesar de consciente de que o Ndigueul constitui uma forma de alienação pela religião, regista uma aprendizagem interior com as mulheres do harém que lhe permite ultrapassar as rivalidades, aprofundar o sentimento de autonomia e reforçar a autoestima. É verdade que esta preserva casa própria e liberdade de movimentos, pelo que, a partir de uma localização simultaneamente interna e externa à unidade familiar poligâmica, pode fazer escolhas que estão interditas às restantes esposas. É a uma outra mulher, Rama, que cabe a expressão da revolta contra o casamento polígamo. Trata-se de uma jovem adolescente que é entregue ao Imã como oferenda religiosa e vê frustrados todos os seus sonhos relativos às cerimónias do casamento. Neste caso, a ordem tradicional e todo o enquadramento simbólico que, na perspetiva inscrita no romance, permite às mulheres encontrar sentido e conforto na vivência da poligamia são violados e Rama fica sem o teto de referências que lhe permitiria entender o seu lugar no contexto cultural que a rodeia e fazer sentido das suas experiências, nomeadamente da sua sexualidade ou do próprio “ser mulher”. Rama, que não se conforma a uma situação de privação da liberdade e da satisfação dos seus desejos e se mantém à margem da estrutura social e de convivência do harém, protagoniza, assim, o único ato de resistência à poligamia na narrativa, através do adultério. A fuga de Rama do harém e o incêndio subsequente, que vitima toda a sua família, configuram um final trágico para o romance que causa muitas perplexidades. Neste inclui-se a morte do Imã: ao invés de punir exemplarmente a esposa adúltera, o velho chefe religioso deixa de comer e enfraquece até à morte – um ato que foge, também ele, à ordem estabelecida. Se é certo que a autora consegue encontrar adequações na poligamia para determinadas subjetividades, e não a encara, de forma simplista, como um exercício de opressão masculina, rejeita, com o final trágico, a objetificação das mulheres que são entregues aos homens como mercadoria, sem poder de escolha, em particular, mulheres adolescentes. Dentro de certos limites, Bugul parece defender que, como a união monogâmica, a poligamia pode ser, para uma determinada mulher, uma opção consciente por um caminho de realização pessoal, dependendo de posições identitárias marcadas por intersecções diversas. Não se trata, como é evidente, de uma vitória sobre a sociedade patriarcal, mas da criação de um lugar de liberdade e poder para a mulher nos interstícios do poder masculino, que acaba por conduzir a alterações nas estruturas deste último. A morte do Imã parece assinalar o fim anunciado de um sistema que necessariamente sofrerá

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transformações face às múltiplas encruzilhadas em que os sujeitos são colocados no decurso da evolução social. Riwan ou le Chemin de Sable é um romance pleno de contradições, que dificilmente corresponde à crítica à poligamia que as leitoras do Norte esperariam. Pelo contrário, o acento 69

nas subjetividades obriga a uma reflexão que choca contra um feminismo militante, que deseja libertar as mulheres, muitas vezes apesar delas mesmas. Choca ainda com um eurocentrismo, sempre mais disposto a ver as mulheres do Sul como mais determinadas pela cultura do que as mulheres do Norte. Choca com a própria ideia de consciencialização e transformação social, que implica estabelecimento de diferenças e hierarquias, a partir de noções normativas de emancipação e de direitos, e como isto pode ou não pode, deve ou não deve articular-se com um perigoso relativismo cultural. Por isso nos repele, no romance, o modo eufórico como é caracterizado um harém e o seu dono e a disforia provocadora associada às uniões românticas do Norte, sem que possamos descartar o romance como puramente conservador ou reacionário. É verdade que, como afirma a própria autora,2 o Ndigueul não passa de um engodo (semelhante, como sublinha, a outras ilusões que a sociedade, a cultura e a religião apresentam ao indivíduo noutros contextos, mas que satisfazem o sentimento de pertença e sustêm relações sociais). É verdade também, como escreve, que a tradição “estabelece regras restritas que servem de barreiras aos indivíduos e limitam os seus desvios” (limites que a autora sempre ousou ultrapassar). Porém, a ordem tradicional não deixa de apresentar quadros de sentido, espaços de negociação e formas de exercício do poder, dentro de hierarquias que não têm o homem como bitola, para que uma situação de prisão e obediência possa surgir como valorizadora da condição social e propícia à realização das subjetividades das envolvidas. Ou seja, Bugul deixa-nos num desconserto que obriga a olhares e reflexões matizados e problematizadores. Também as polifonias de Niketche. Uma História de Poligamia (2002) suscitam interrogações de difícil resposta. Conforme declarações da própria autora, em entrevista que me concedeu em 2011,3 Paulina Chiziane percorreu os bares de Maputo, ouvindo histórias de mulheres que recolheu no seu romance. De facto, são tantas as vozes de mulheres em Niketche, tantas as suas origens, tantos os seus percursos, concomitantes com a evolução histórica do país, que o romance compõe, de facto, uma narrativa nacional que é feminista, porque retira estas mulheres e as suas histórias do silêncio a que a história oficial as condena. Esta história oficial é uma narrativa teleológica no sentido da entronização do Novo Homem moçambicano, sem filiação étnico-religiosa e, obviamente, masculino. Pelo contrário, ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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Niketche é numa narrativa-trama, mil vezes matizada e complexa, na qual se interrogam as práticas culturais de diferentes geografias do país (uma espécie de etnografia nacional das intimidades), o processo histórico (nomeadamente, as colonizações, bem como as guerras), na perspetiva da sua influência sobre as ordens de poder entre os sexos, a conjugalidade e as sexualidades. Neste sentido, é um desconserto pós-moderno, com múltiplos cruzamentos de perspetivas e interrogações convergindo na protagonista – Ramy -, a qual, para além de se desdobrar no seu próprio reflexo no espelho, se multiplica nas vivências e sentimentos das muitas mulheres que encontra, procurando descobrir um sentido para o que está em causa – o lugar das mulheres nas múltiplas formas de relações amorosas e sexuais com homens. Ramy percorre um processo de aprendizagem e de transformação e promove-o nas restantes personagens femininas, a partir de uma fragilidade que se vai convertendo em força. Confrontada com o “amantismo”, ou seja, uma série de uniões extraconjugais do marido, Tony, Ramy procura conhecer as rivais e as respetivas famílias e descobre que estas se encontram em situação de total desproteção social e de dependência do amante polígamo, que as explora no serviço sexual, doméstico e reprodutor, para regularmente procurar uma mulher mais nova e bonita (curiosamente, sempre de uma etnia diferente), que satisfaça os seus apetites sexuais e os seus desejos de ostentação social. Ramy encontra mulheres sofridas, abandonadas, saídas da miséria, da violação, da prostituição e ajuda-as a tornar-se sujeitos do seu próprio destino, através da independência económica e de uma solidariedade que permite o exercício de poder sobre o marido comum. O caminho até ao final, em que todas encontram uma vida própria, livremente escolhida, é simultaneamente espinhoso e extremamente criativo. Implica a interrogação das múltiplas expressões da poligamia – da tradicional à moderna, urbana – e o confronto com diversas forças sociais, que se posicionam de forma complexa em relação ao fenómeno. Assim, não são todos os homens que defendem a poligamia, nem todas as mulheres que se lhe opõem. Pelo contrário, Ramy e as companheiras defrontam mulheres de outras gerações que defendem a poligamia, seja porque, vítimas da opressão, se tornam agentes da mesma, seja porque, em determinados contextos, a poligamia permite liberdades que a monogamia impossibilita. Da mesma maneira, a violência e a opressão que acontece em contextos poligâmicos também surge em uniões monogâmicas. O romance experimenta, por exemplo, com o casamento polígamo costumeiro. Ou seja, como remédio para a desproteção social e económica das famílias não oficiais do polígamo, Ramy promove uma cerimónia tradicional para “lobolar” todas as esposas, retirando-as da sua invisibilidade e promovendo a responsabilização do marido perante ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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aquelas e os filhos. O recurso à poligamia tradicional também traz consigo, ironicamente, as armas que permitirão ao conjunto das esposas não somente livrar-se, como punir o polígamo. Assim, reunidas em “parlamento conjugal” e lideradas pela mais velha, Ramy, as mulheres estabelecem uma escala de deveres do marido, que este é obrigado a cumprir. A poligamia tradicional aparece, assim, como uma teia complexa, em que o homem é central e deve ser servido, mas as esposas desfrutam também de direitos e podem exigir, nomeadamente, o provento para os filhos, de forma equitativa, e a satisfação sexual. Se o marido não cumpre, o “parlamento conjugal” delibera sobre essa falha e as formas de compensação, como o recurso a “assistentes conjugais”. Porém, para que as mulheres, neste quadro, tenham algum poder, é necessária a concertação entre todas, algo que Ramy vai conseguindo, num equilíbrio precário, através de um processo duplo em que, por um lado, incentiva as coesposas a conseguirem independência financeira e, por outro, joga também com a tradição. É este jogo com a tradição, aliás, que possibilita os momentos mais destacados de exercício do poder sobre o homem (por exemplo, quando as esposas, em conjunto, impõem sobre ele a nudez dos seus corpos e ridicularizam a sua virilidade). No romance, o peso da tradição é ainda demasiado manifesto, o que se torna claro quando acontece a suposta morte de Tony. Ramy, a esposa legítima segundo a lei do código civil (que aqui é inoperante), é vítima das práticas tradicionais extremamente cruéis que sujeitam a viúva e os seus filhos à humilhação e espoliação total. Este tratamento da viúva culmina na cerimónia do kutchinga, em que a mulher, qual objeto, é entregue a um irmão do falecido marido para uma purificação sexual. No romance, com uma reviravolta irónica, Chiziane converte este acontecimento na libertação sexual de Ramy, que se entrega ao prazer com um irmão do marido e acaba por engravidar, sabendo que não era efetivamente viúva. Ao mesmo tempo, as restantes esposas, que já garantiram a sua subsistência e estabeleceram uniões com outros homens, rejeitam o casamento tradicional estabelecido com Tony e abandonam-no, exercendo um poder de opção e decisão que não possuíam no início do romance. É certo que nenhuma delas abandona a ideia do casamento heterossexual, embora motivado por muitas razões, que não exclusivamente o amor romântico. No fundo, Chiziane transporta para o seu romance a situação ambígua e complexa que vivem as mulheres do seu país entre a modernidade urbana e o prolongamento de práticas tradicionais, ambiguidade que a lei e os debates da sociedade civil refletem: quer na libertação de Ramy, quer nas escolhas das restantes esposas, encontramos a sentença que Chiziane dá à poligamia unilateralmente imposta e sem regras – o “amantismo” -, causadora de enormes sofrimentos para as mulheres e respetivos filhos, a qual acaba por ser pior do que a poligamia tradicional, prática patriarcal, mas enquadrada num ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2) / p. 59-74

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conjunto de direitos e deveres de ambas as partes. Esta não é, porém, a opção das protagonistas. Em Niketche, a encenação da transferência da poligamia tradicional para o contexto do Moçambique contemporâneo serve como balão de ensaio para demonstrar como as mulheres moçambicanas de hoje, desde que possuam independência económica, optam por relações monogâmicas, reivindicam a igualdade e o prazer, e descartam, no final de um processo de aprendizagem que se desenvolve na solidariedade entre mulheres, a ideia da necessidade de ter um homem e de o prender com os mais diversos recursos. No compromisso de Ramy por uma educação dos filhos e filhas que marque a igualdade da mulher, encontramos a afirmação da necessidade de transformação das relações sociais. No conjunto dos romances que apresentei, a poligamia é apresentada como extremamente heterogénea e contextual, estando o seu significado estreitamente associado às condições concretas em que é vivida, ao enquadramento socioeconómico, cultural e religioso, e às subjetividades complexas dos e das protagonistas. Esta heterogeneidade, ou desconserto, é o que mais nos interpela. Interpela-nos, em primeiro lugar, enquanto asserção pós-colonial – que se opõe radicalmente a uma representação colonial das conjugalidades polígamas do Sul como manifestação de falta de civilização, nomeadamente no que é considerado uma forma óbvia de opressão das mulheres, e reivindica um olhar diferenciado para identidades sociosexuais diversas, produzidas por interseccionalidades múltiplas no encontro e transformação recíproca de enquadramentos culturais por vezes antagónicos. Interpela-nos, em segundo lugar, enquanto asserção feminista. A procura de compreensão do desconserto da poligamia, a partir das vozes das mulheres, é, em si, um desafio no sentido de tentar entender modos de vida e ambições das mulheres em estruturas sociais não ocidentais, segundo vetores diferentes dos feminismos do Norte. Conceitos como emancipação, empoderamento, liberdades, direitos, parecem-me associados a uma matriz do Norte que condiciona a compreensão das mulheres que encontramos nestas narrativas: poderosas, algumas; perdidas e sofridas, outras, mas criativas, engenhosas, sábias e com recursos de superação de obstáculos. O conjunto destes romances e das inúmeras poligamias neles descritas parece apontar para um entendimento destes conceitos que transcende a mera relação com os homens, um binarismo que os feminismos do Norte transcendem nalgumas propostas teóricas, mas preservam noutras. Ou seja, é preciso um olhar que perceba manifestações de poder das mulheres que não se medem pelo poder dos homens e que se exercem sobre indivíduos de ambos os sexos, a partir de outras posições identitárias que não somente a socio-sexual, bem como

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manifestações de emancipação que, igualmente, não têm necessariamente que ver com os homens, mas com outras formas e lugares de poder presentes na estrutura social. O que, afinal, estas histórias confirmam, é a necessidade de operar com o desconserto quando se analisam poligamias, evitando o conserto que conduz necessariamente a 73

invisibilidades e silenciamentos vários, quer das opressões dentro de relacionamentos poligâmicos, quer das possibilidades de outras vivências possíveis das relações sociais entre homens e mulheres e entre mulheres e mulheres, que não se restringem à conjugalidade, à sexualidade, ou aos afetos. Para as muitas escritoras africanas que continuam a dedicar-se a este tema, o importante é realçar os contextos, as subjetividades e a manutenção do plural, abrindo portas para outros olhares sobre estas realidades.

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Catarina Martins é Professora Auxiliar do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Investigadora do Centro de Estudos Sociais. Foi leitora, durante vários anos, na Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar. É Doutorada em Literatura Alemã pela Universidade de Coimbra (2008). Tem publicado sobre temas de literatura comparada e de literatura de expressão alemã, bem como sobre temas africanos na literatura portuguesa e literaturas africanas anglófonas e francófonas, em particular de mulheres. De entre as suas atuais áreas de investigação destacam-se os estudos pós-coloniais e os estudos feministas, associados a temas e problemáticas das literaturas e culturas de expressão alemã, e de literaturas e culturas africanas anglófonas e francófonas. 2 http://aflit.arts.uwa.edu.au/AMINABugul99.html (acesso 11.02.2015) 3 http://saladeimprensa.ces.uc.pt/index.php?col=canalces&id=4584#.VNsy35hybIU (acesso 11.02.2015)

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