Pólis et Bono Vox: Uma Reflexão (sobre) Política com os Gregos e o U2

June 2, 2017 | Autor: Cesar Rios | Categoria: Teología Pública, Teologia Luterana
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Pólis et Bono Vox: uma reflexão (sobre) política com os gregos e o U21 Cesar Motta Rios2 RESUMO: A oficina promoverá uma reflexão a respeito de possíveis formas de se colocar no mundo a partir de três termos chave importantes na Grécia Antiga, berço da democracia: idiótes, oíkos e pólis. Além disso, uma mínima parte da obra e da história da banda irlandesa U2 será trazida para o diálogo, de modo a ilustrar essas três formas de se colocar no mundo. Em suma, o que se demonstra é que a poética inconformada e corajosa do U2 é resultado de uma colocação radical de si mesmo em um âmbito que transcende a sua individualidade (ídios) e até mesmo a própria casa (oíkos), para realizar uma intervenção na comunidade mais ampla (pólis).

Vamos começar pelo começo. Pelo começo da democracia. Vamos começar pela Grécia Antiga. Mas não vamos até a Atenas clássica logo de início. Vamos voltar mais no tempo e alcançar um período mais antigo, que parece ter deixado reflexos nas obras poéticas mais antigas entre os gregos. Escolho um poema específico, a Odisseia. Fico pensando se os adolescentes de hoje, que conhecem O Senhor dos Anéis, Harry Potter e Percy Jackson, conhecem a história de Odisseu. Ele é um herói que lutou a guerra de Troia ao lado de Aquiles na Ilíada. Na Odisseia, ele tenta voltar para casa, mas tem uma série de contratempos, que inclui um confronto com o Ciclope e outros monstros. O importante para nossa reflexão é entender que Odisseu volta para Penélope, sua esposa, para Telêmaco, seu filho, mas volta para algo mais: seu oíkos. Geralmente, traduzimos esse termo grego por “casa”. Mas, originalmente, o oíkos é mais que uma casa ou um lar, como entendemos isso hoje. Oíkos é algo que inclui a família, o espaço, os criados, os animais, as riquezas, tudo que consome e produz para seu dono. Um oíkos sobrevive por si mesmo. Ele tem relação com outros oíkoi, mas é gerido como bem entende seu dono. O seu dono ou 1

Oficina desenvolvida com adolescentes e jovens durante evento promovido em maio de 2016 pelo Diretório Acadêmico Martinho Lutero do Seminário Concórdia (São Leopoldo). Perceba que o texto foi escrito com esse público alvo em vista. 2 Doutor em Literaturas Clássicas e Medievais (UFMG) com pós-doutorado em Filosofia Antiga (UFMG). Há anos, desenvolve pesquisas na área de Bíblia e Judaísmo do Segundo Templo, e, há poucos meses, descobriu que gosta muito de escutar U2 e degustar suas letras. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/6927316529300669

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um morador de determinado oíkos pode preocupar-se fundamentalmente com as coisas do próprio oíkos somente ao longo de toda a vida. Mas, em algumas ocasiões, quando surgia um problema maior, que requeresse o envolvimento de mais de um oíkos, era preciso reunir os donos de diferentes oíkoi para decidirem o que fazer em comum. Poderia ser, por exemplo, um grande inimigo externo que ameaçasse a todos, ou a um específico que tivesse boas relações com os demais. Com o passar dos séculos, as relações foram se tornando mais complexas. A importância das cidades cresceu e a dependência das pessoas, inclusive as mais ricas, para com o grupamento maior se intensificou. Estamos no tempo da pólis, que podemos entender como “cidade”. Agora, na Grécia, temos uma inovação. Em vez de haver um só soberano que decidisse tudo, temos assembleias que reúnem todos os moradores livres (e homens somente) para discutirem assuntos relativos à vida da pólis. Cada morador não podia se preocupar só com o seu lugar de habitação e as pessoas que estavam a seu redor. Tudo está tão intrincado que a estabilidade da pólis é fundamental para a existência de paz em meu âmbito mais restrito. Até os mais ricos passam a tomar atitudes em favor da pólis, como a doação de verbas para a construção de barcos para defesa. A pessoa vive para si, mas atua na pólis o tempo todo. É aqui que vemos o surgimento da política propriamente dita. Agir politicamente é atuar não só para seu benefício em seu espaço restrito, mas envolver-se com as questões da comunidade mais ampla. Mas isso não quer dizer que todo mundo estivesse disposto a se envolver dessa forma com a pólis. Alguns preferiam olhar somente para si mesmos, para suas coisas, seus planos, independente do âmbito comunitário. Uma pessoa assim seria reconhecida como idiótes. Sim, é daí que vem nosso termo “idiota”. Para simplificar, vou dizer simplesmente “idiota”. O idiota se esquece dos outros e do todo, para ficar focado só no próprio umbigo.

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De certa forma, podemos aproveitar esses três termos gregos (idiótes, oíkos e pólis) para pensarmos em três formas de se colocar no mundo. Você pode ser um idiótes, e ignorar os assuntos de outras pessoas. Você pode escolher um âmbito mais restrito, um oíkos, para se envolver só com as coisas relativas a ele. Esse oíkos em que estou pensando poderia seu uma família restrita, uma família um pouco mais ampla (incluindo tios e primos, por exemplo) ou uma igreja, por exemplo. Já a pólis poderia ser pensada como a cidade, ou, ainda, como algo mais amplo: o país ou até mesmo o mundo, a humanidade como um todo.3 Agora, trazemos o U2 para a conversa. A banda surgiu na cidade de Dublin na Irlanda. Os componentes, em sua maioria, eram cristãos de uma comunidade chamada Shalom. Eles começaram a fazer algum sucesso no final da década de 1970 e, no começo dos anos 1980, já davam claros sinais de que se tornariam uma das maiores bandas de rock do mundo. Nesse cenário, Bono Vox e seus colegas tinham diante de si as três opções em que estamos pensando aqui. Eles poderiam se tornar idiotas. Sim, poderiam ser simplesmente mais uma banda famosa, que cuidasse dos próprios interesses, que desfrutasse do “culto” oferecido a ela pelos fãs, e usufruísse do fruto desse “culto”, as riquezas, como se isso fosse o motivo último da vida. Eles poderiam, também, escolher um oíkos e dedicar-se a ele somente. Poderiam cantar só sobre a Irlanda. Poderiam cantar só para sua igreja, ou, mesmo cantando para fora, concentrar seu interesse nos temas de interesse de sua igreja. Logo no começo da carreira, contudo, o U2 tomou um rumo diferente. Eles sabiam que podiam ser extremamente conhecidos em âmbito mundial. E começaram a ocupar-se também de questões que iam além do seu contexto 3

Estritamente falando, a oposição deveria ser somente entre polítes e idiótes. O idiótes obviamente teria que considerar seu oíkos para guardar os próprios interesses. Mas a tripartição é importante para minha reflexão. É uma distinção possível didaticamente.

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imediato. O U2 fazia uma escolha, e escolhia ser relevante para a pólis global. Por quê? Por que sair do âmbito seguro da igreja local? Por que sair desse âmbito e não focar no dinheiro? Talvez, porque a Palavra ouvida na igreja local os tenha movido a algo mais, a um olhar diferente. Sem a preocupação de estabelecer explicações prolongadas, vamos ler somente dois textos bíblicos que me parecem interessantes nesse sentido: Gálatas 6.2 e 1 João 3.16-18 Como ser um idiota se essa Palavra ecoa no coração? É aqui que vamos atentar para umas poucas músicas da banda como forma de ilustração. Começamos por In the name of love (Pride), uma das mais conhecidas. A letra tem um coro fácil, que fica gravado na mente do ouvinte, mas, muitas vezes, não se entende o conteúdo. Muitos podem pensar que o “amor” na letra seja relativo a uma relação romântica. É muito mais que isso. Fala de um homem que vem em nome do amor. Um homem que vem para justificar. Em meio a versos um tanto incompreensíveis na primeira parte da canção, lemos que esse homem foi traído com um beijo. Ora, ele fala de Jesus, então! Parece que sim. Mas, na segunda parte da música, vem a referência a um barulho de tiro no céu de Memphis em um 4 de abril. Jesus em Memphis? Você pode ir ao Google e descobrir o que aconteceu nesse dia naquele lugar! Martin Luther King foi assassinado. Mas, e então, a música é sobre Jesus ou o pastor ativista norte americano? Estávamos errados ao pensarmos que era sobre Jesus? Não. Parece que a música é sobre os dois e ao mesmo tempo. U2 canta uma homenagem a Luther King reconhecendo nele alguém que se confunde de alguma forma com o próprio Jesus. Heresia? Calma. É poesia. E, claro, é uma leitura (da Bíblia e do mundo) também. Eles veem a atitude corajosa de Luther King em prol dos outros, sua disposição de arriscar a vida para que pessoas negras norte-americanos fossem tratadas com justiça e sua morte motivada por uma convicção inabalável como marcas de um seguidor de Jesus em pleno século XX. Jesus, pelos olhos de

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Bono e sua banda, está unido a Luther King. Luther King é Igreja de Cristo, Corpo de Cristo, e, por isso, se vê unido a Cristo de alguma maneira. A poesia traz essa realidade espiritual e teológica complexa para os versos, para a música. Mas, o que é que uma banda irlandesa de jovens (eles eram jovens na época) faz cantando sobre a causa dos norte-americanos afrodescendentes? Eles estão, como vimos, deixando de lado a “idiotice”, saindo do oíkos e intervindo na pólis global. Eles se importam. Eles se inspiram em outro cristão que se importa. Eles percebem que Deus se importa. Deus se importa, mas, mesmo assim, o mundo não é perfeito. Por isso, temos salmos até mesmo na Bíblia lamentando o mundo sombrio, esse vale de lágrimas (palavras de Lutero). O salmista da Bíblia pode, diante do sofrimento, perguntar a Deus: “Até quando?” O salmista de Dublin também pode. “Até quando? Até quando cantarei essa canção?” Trata-se de uma canção amarga que fala de um atentado terrorista ocorrido na Irlanda do Norte no final dos anos 1990. Alguém poderia pensar que o U2 demonstra impaciência diante da dor. Não soa impaciente o canto do Salmo 13? A impaciência diante da dor não é algo anormal. O espanto impaciente diante da injustiça é até nobre. Colocar esse incômodo diante do Criador é tudo que se pode fazer por vezes. Sunday, Bloody Sunday [Domingo, Domingo Sangrento] é a canção de que estamos falando. O atentado terrorista a que se refere foi implementado por uma facção do IRA, grupo nacionalista católico que queria uma Irlanda do Norte desconectada do Reino Unido e da Igreja Anglicana. Assusta essa ligação da fé cristã com o conflito. Não é à toa que um verso marcante na música diz justamente: “A batalha verdadeira apenas começou / Declarar a vitória que Jesus ganhou”. Ele sabe que a batalha não é vencida pelas forças dos homens, sejam eles religiosos ou roqueiros. Ele sabe que Jesus é que venceu por nós. Ele sabe que, no final, quem enxuga as

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lágrimas e extingue a dor das mortes é Ele (Ap 21.4). Por isso, repete insistentemente “Eu enxugarei suas lágrimas”. Mas, enquanto esse desfecho apocalíptico não se dá, o roqueiro insiste que nós podemos ser um. Com os olhos voltados para a Palavra, de fato, podemos ser um, ainda que sejamos esse um que indaga e aguarda, como o salmista. Novamente, ele insiste por se importar, por ver que o que acontece não é agradável a Deus. Ele não se conforma à ordem das coisas num mundo que se despedaça em desunião. Ele ataca o absurdo da pólis. Ele quer mudá-la, ao menos um pouco. Neste mundo, não há extinção total da dor, da morte, do sofrimento. Ainda não. Mas há a expectativa de que todos tenham uma vida digna, que todos possam experimentar não só o sofrimento, mas também os momentos bons, a normalidade da vida. Há tempo para tudo. E isso é o que falta para quem se vê cercado pela guerra. É disso que sentimos falta quando o mal não parece terminar, quando a noite não parece dar lugar ao dia. Em Miss Sarajevo, o U2 cantará essa necessidade de paz, de vida normal, com dor, mas também momentos de felicidade, justamente para mostrar aos jovens europeus a realidade vivida pelos habitantes de Sarajevo durante o mais absurdo cerco feito a uma grande cidade nos tempos modernos. A guerra na Bósnia revelava o mais tosco desentendimento humano. Pessoas eram mortas aos montes somente por serem de um grupo diferente. O U2 insiste que, ao contrário do que acontecia, esses grupos poderiam coexistir positivamente. Não é por acaso que a música é cantada com Luciano Pavaroti. Um roqueiro e um cantor de ópera participam de uma obra harmônica, como que para demonstrar que o aparentemente incompatível pode surpreender quando se dá uma chance ao encontro. A pólis insana precisa de uma demonstração como essas para que perceba sua loucura. Depois da apreciação dessas pouquíssimas músicas somente, já podemos perceber claramente duas características peculiares do U2: eles se envolvem com os problemas dos outros, e fazem isso sem se desligarem da

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fé, da Palavra. A bem da verdade, embora de forma não muito tradicional (o que seria incompatível com uma banda de rock), o U2 parte da e se volta para a Palavra em sua inserção na pólis global. O U2 luta por algo que sabe ser impossível, mas luta sem se cansar. Tem dúvidas, vacila, se questiona, porque ainda não encontrou o que está procurando (I still haven’t found what I’m looking for), como eles mesmos cantam, “ainda não”. Mas eles creem. Nessa lida, o U2 não se acovarda. Não tem medo do que vão pensar na pólis. Ele quer é mudar os pensamentos dela o mais que puder. Por fim, é bom lembrarmos da noção de vocação. Os ofícios comuns que exercemos no dia a dia (pai, mãe, padeiro, engenheiro, professor, médico etc.) são também vocações, e devem ser exercidos como forma de serviço ao próximo. Os componentes do U2 têm a vocação de serem músicos. Eles exercem essa vocação com qualidade, para o bem da pólis. Não precisam ser pastores ou religiosos para isso. Eles sabem que podem servir a Deus e ao próximo em sua própria vocação. Nós também podemos. É claro que não temos o alcance e o potencial que eles têm, mas, em nossas vidas comuns, nas nossas vocações mais ou menos humildes, podemos fazer diferença na pólis, podemos deixar a idiotice de lado. Pois bem, também não podemos concluir uma oficina destas sem uma oração. Eu trago alguns versos da música Yahwe e os leio como nossa oração de encerramento. Fiquemos de pé e oremos, lembrando desse mundo cheio de tristezas, mas colocando nossa esperança em Deus: Yahwe, Yahwe Sempre há dor antes de uma criança nascer Yahwe, Yahwe Ainda estou esperando pelo amanhecer Yahwe, Yahwe Sempre há dor antes de uma criança nascer Yahwe, Yahwe Por que a escuridão antes do amanhecer? Pegue esta pólis Uma pólis deve brilhar numa colina Pegue esta pólis Se for sua vontade

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Aquilo que nenhum homem pode ter, que nenhum homem pode pegar Pegue este coração Pegue este coração Pegue este coração E quebre-o. [Em nome de Jesus. Amém.]

links para os vídeos utilizados

IN THE NAME OF LOVE (PRIDE) https://www.youtube.com/watch?v=8JThmXPJV00

SUNDAY, BLOODY SUNDAY https://www.youtube.com/watch?v=pTEyZ_yOHDU

MISS SARAJEVO https://www.youtube.com/watch?v=UhjYJjgq4NI I STILL HAVEN’T FOUND WHAT I’M LOOKING FOR https://www.youtube.com/watch?v=HHZrXTY8oS4

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