Política de unidades de conservação no Brasil à luz do desenvolvimento territorial: considerações iniciais

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POLÍTICAS DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO BRASIL À LUZ DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL: CONSIDERAÇÕES INICIAIS Helena Ribeiro Drummond Bacharel, Mestre e Doutoranda em Geografia (UFRJ) [email protected] Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGG/UFRJ RESUMO O artigo tem por objetivo relacionar o campo de conhecimento do desenvolvimento territorial (tal como elaborado por autores da geografia econômica) às Unidades de Conservação – UCs, posto que este é um objeto de estudo amplamente investigado por diversas disciplinas, mas que foi pouco analisado sob este prisma. Discute-se a possibilidade de se aplicar os conceitos e teorias do desenvolvimento territorial na análise de objetos e processos cujo caráter produtivo é secundário ou mesmo inexistente. Para isso, as unidades de conservação são concebidas como superfícies de regulação; as questões de proteção da natureza e da participação social são discutidas e comparadas nas diferentes categorias de UCs brasileiras, e a noção de gestão ambiental do território é utilizada em consonância com as formulações dos teóricos do desenvolvimento territorial. Conclui-se que as UCs, por si só, não são capazes de engendrar processos de desenvolvimento territorial ou de desenvolvimento participativo, e que elas são limitadas em tamanho físico, setor e escopo de atuação no que tange o entendimento de processos de mobilização e ativação de recursos territoriais específicos. Palavras-chave: desenvolvimento territorial; unidades de conservação; superfície de regulação; gestão do território.

ABSTRACT The article aims to relate territorial development (as elaborated by authors in economic geography) and Conservation Units, since this is an object widely investigated in many disciplines, but not so much from this point of view. The possibility of using concepts and theories from territorial Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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development is addressed in order to analyze objects and processes in which productive aspects are secondary or non-existent. Conservation units are conceived as regulation surfaces; issues of nature protection and civil participation are discussed and compared in the different categories of the Brazilian system of conservation units. Finally, the idea of territorial environmental management is used in dialogue with territorial development. Conclusions lead to the consideration of conservation units as incapable of, by themselves, generating processes of territorial or participative development. Conservation units are limited both in physical size and in scope of action in order to be able to lead to processes of mobilization and activation of specific territorial resources. Key words: management.

territorial

development;

conservation

units;

regulation

surfaces;

territorial

INTRODUÇÃO Por vezes, ao se deparar com temas que já são alvo de investigação extensa e aprofundada na agenda da ciência geográfica, é possível que o pesquisador se questione: mas o que há de novo para ser dito sobre isso? O que ainda não foi dito? Este foi o dilema com o qual a autora deste artigo teve que lidar ao iniciar seus estudos de doutoramento que tomavam como objeto, a princípio, as Unidades de Conservação UCs. Trata-se de tema caro não apenas à ciência geográfica e outras áreas de conhecimento, como também inserido na agenda política e social, fortemente vinculado à preservação da natureza e ao que se denomina, genericamente, como “questão ambiental”. Em consonância com a ainda breve trajetória percorrida até o início do curso de doutorado, o aspecto institucional das políticas ambientais é colocado em primeiro plano na construção do objeto de pesquisa. Inicialmente, os autores da geografia econômica que incluíram a abordagem institucional no estudo das trajetórias locais/regionais de desenvolvimento (AMIN & THRIFT, 1995; AMIN, 1999; MARTIN, 1996), foram utilizados na investigação da política de águas brasileira (DRUMMOND, 2010; DRUMMOND, 2011). O presente artigo pretende continuar e aprofundar este caminho teórico ao incorporar a perspectiva do desenvolvimento territorial, da maneira como foi elaborada por autores da geografia econômica1. O foco temático se expande para outro setor de política ambiental no Brasil contemporâneo - o de UCs. 1

A primeira versão deste artigo foi desenvolvida no âmbito da disciplina “Estudos Avançados em Geografia Humana – Recursos territoriais, ambiente e território: os desafios do desenvolvimento”, ministrada no âmbito do PPGG/UFRJ no 2º semestre de 2011 pelos professores Frédéric Monié e Paulo Pereira Gusmão. Agradeço a estes últimos pela literatura apresentada ao longo do curso e pelos comentários e críticas que Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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Este artigo tem por objetivo desenvolver uma discussão inicial, apoiada fundamentalmente no levantamento bibliográfico, da maneira como a atual política brasileira de unidades de conservação pode ou não ser entendida a partir da perspectiva do desenvolvimento territorial. É possível aplicar este campo de conhecimento no estudo de

políticas

ambientais,

de

maneira

geral,

e

de

unidades

de

conservação,

particularmente? Esta é a pergunta-guia deste trabalho, salientado-se de antemão que ela não será plenamente respondida devido ao estágio ainda embrionário da pesquisa que a gerou. Tratam-se portanto de pontos ainda esparsos, pouco concatenados, que remetem ao processo de construção do objeto de estudo que, espera-se, será desenvolvido pela autora deste artigo em sua tese de doutorado. Nos últimos 30 anos, muito da renovação do que se entende por desenvolvimento e o que se quer dizer com o termo, envolve a inclusão de aspectos não-produtivos na análise proposta por diferentes campos de conhecimento. Dentre estes aspectos destacam-se aqui a promoção de liberdades (SEN, 2000), a sustentabilidade (SACHS, 2004;

VEIGA,

2006),

e

a

criação

e

implementação

de

projetos

cívicos/comunitários/produtivos nos quais o território aparece como agente da mobilização de recursos específicos – o desenvolvimento territorial (PECQUEUR, 2005). Ao entenderse o desenvolvimento em sentidos mais amplos do que simplesmente o crescimento econômico, é possível supor que a capacidade de uma comunidade de participar ativamente da tomada de decisão em relação a um recorte espacial, recurso ou ativo pode ser um dos indicativos da existência e/ou da dinâmica deste desenvolvimento. É importante frisar, entretanto, que as citadas concepções de desenvolvimento sempre incluem aspectos produtivos em suas análises. Aplicá-las ao estudo de políticas ambientais em geral, e das unidades de conservação em particular, pode requerer a construção de pontes teórico-espistemológicas que permitam a aplicação dos conceitos a objetos que não possuem aspectos produtivos mais evidentes. É este o desafio que se procura delinear aqui. O restante do trabalho está dividido em 4 partes. Inicia-se com a caracterização das UCs como superfícies de regulação que obedecem à lógica de proteção da biodiversidade enriqueceram a discussão e ajudaram a elaborar este resultado final, cuja responsabilidade recai apenas sobre a autora. Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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e de habitats. Em seguida, este caráter de proteção da natureza é relacionado à promoção da participação social como uma das pontes possíveis para o entendimento da política de UCs através da perspectiva do desenvolvimento territorial, este último apresentado e definido na seção seguinte. Ao se constatar que analisar apenas as UCs pode se mostrar restrito para os fenômenos sob investigação, a terceira parte do trabalho propõe a articulação entre a perspectiva do desenvolvimento territorial e a da gestão ambiental do território. A última parte do trabalho traz algumas considerações e questões que, longe de constituírem conclusão, se mostram como os próximos passos do encaminhamento da pesquisa de doutoramento.

UNIDADES DE CONSERVAÇÃO COMO SUPERFÍCIES DE REGULAÇÃO E SUAS LÓGICAS No Brasil, as UCs são um dos tipos de áreas protegidas para fins de conservação ambiental2. Diferentes regulamentações regem a existência e o funcionamento destas áreas. No Ministério do Meio Ambiente, o Departamento de Áreas Protegidas lista3 como seus instrumentos legais o Código Florestal - CF (cuja forma atual foi dada em 1965 e está sendo modificada no legislativo), a Lei da Mata Atlântica - LMA (1996), e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, cuja lei foi promulgada em 2000 e teve alguns de seus artigos regulamentados em 2002. Estas são, é claro, regulamentações em escala federal que podem ser complementadas por iniciativas estaduais e municipais. O CF e a LMA são regulamentções gerais para o uso e a ocupação do solo e para a preservação da cobertura vegetal nativa e/ou em regenaração. O objetivo do CF é preservar áreas consideradas ambientalmente sensíveis, como margens de rios, encostas, topos de morros etc., além de estabelecer áreas mínimas de preservação da cobertura nativa que variam de acordo com o bioma. Já a LMA especifica regras e punições referentes ao bioma Mata Atlântica, com definições precisas quanto ao corte e supressão da cobertura vegetal, seja primária ou em diferentes estágios de regeneração. 2

Neste trabalho, as palavras conservação e proteção (ambientais) serão usadas como sinônimos, muito embora possam se referir a correntes de pensamento diferentes no bojo da questão ambiental. 3 www.mma.gov.br (acesso em 26/11/2011) Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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O SNUC, entretanto, possui aspecto espacial distinto, pois cada UC se refere a uma demarcação bem delimitada, estebelecida por decreto, com suas regras dadas tanto pela categoria de UC na qual se encontram quanto nos Planos de Uso e Manejo que devem ser elaborados quando da criação deste tipo de área protegida. É importante entender as UCs pelo seu obetivo principal: a conservação da diversidade biológica, de habitats e de paisagens. Este aspecto está presente desde a criação dos parques nacionais estadunidenses no final do século XIX, cujo modelo é considerado fonte de inspiração para diversos sistemas de áreas de conservação ambiental no mundo, inclusive no Brasil (DRUMMOND, 1997). Mesmo que a regulamentação mais recente tenha trazido a criação de categorias de UCs que incorporam populações com modos de vida ditos tradicionais (ver seção abaixo, “Proteção e Participação”), o objetivo primário de conservação biológica não foi abandonado. Este ponto está bem esclarecido no texto da lei que criou o SNUC, afirmando em seu Artigo 5º, Inciso I, que o sistema será regido por diretrizes que “assegurem que no conjunto das unidades

de

conservação

estejam

representadas

amostras

significativas

e

ecologicamente viáveis das populações, habitats e ecossistemas do território nacional e das águas jurisdicionais, salvaguardando o patrimônio biológico existente” (BRASIL, 2003). A conservação da diversidade biológica, de habitats, ecossitemas, paisagens e mesmo de modos de vida tradicionais, entretanto, não é um valor em si mesmo, ao contrário do que dá a entender a maior parte da literatura que toma UCs como objeto de estudo. Nesse sentido, destacam-se aqui alguns trechos do trabalho de Coelho et. al. (2009) em função do esforço dos autores pela problematização, “des-naturalização” e “des-romantização” das UCs: A constituição de unidades de conservação [...] implica a sobreposição de múltiplas territorialidades. São diferentes os projetos, os interesses, as práticas e as representações dos diversos atores sociais envolvidos/afetados na/pela delimitação de áreas destinadas à preservação dos recursos naturais. [...] As unidades de conservação acham-se cunhadas por idéias ambientalistas e territoriais. (p. 68) [...] toda constituição de uma nova unidade de conservação implica alteraçãoes nas relações entre grupos sociais e desses grupos com o meio ambiente, num processo de mão dupla, em que a proteção ambiental é Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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socialmente construída ao mesmo tempo que influencia as populações locais e suas relações com a sociedade abrangente. (p. 69) O debate que tem dominado a discussão sobre estratégias de conservação da biodiversidade ou do patrimônio ambiental do país não tem dado conta das complexas relações entre a constituição de territórios de proteção dos recursos (as mais diversas modalidades de unidades de conservação), a construção de identidades territoriais e a definição de práticas, modos de vida, necessidades e valores das populações localizadas no interior ou no entorno desses territórios, seja considerado tradicional ou não. (p. 70) As unidades de conservação são tanto fatos concretos quanto paradigmas (conjunto de idéias sobre as formas apropriadas de conservar/preservar a natureza), lócus de práticas sociais e de exercício do poder (relações de poder e controle territorial); e também instituições que buscam regular comportamentos e organizar as relações sociais. (p.73)

Estabelecido portanto que UCs são recortes espaciais com função de preservação biológica e que sua criação e gestão não são processos naturais ou mesmo necessários, mas antes construídos por determinados agentes e ativamente disputados, é possível fazer o encaminhamento teórico para compreendê-las. Coelho et. al. (op. cit.) propõem a utilização da ecologia política, porém opta-se aqui, em função da busca da articulação com a literatura do desenvolvimento territorial, pela concepção das UCs como superfícies de regulação. O conceito de superfície de regulação foi inicialmente desenvolvido por Pires do Rio e Peixoto (2001) para dar conta da nova função a ser exercida pelas bacias hidrográficas, em sua relação com as redes de infra-estrutura e a malha político-administrativa, após a promulgação da Lei das Águas. Inspirando-se largamente nas escolas estadunidense e francesa da teoria da regulação, as autoras ressaltam, nesta primeira aproximação, que a criação de superfícies de regulação “[...] busca o enquadramento de conflitos entre atores num campo previamente estabelecido. Ao definir uma unidade espacial para a ação e práticas de negociação opera-se [...] uma ruptura que afeta as articulações territoriais tradicionais” (p. 62). Esta passagem se assemelha sobremaneira às considerações trazidas acima sobre UCs. Mais recentemente, Pires do Rio (2009) coloca o conceito de superfície de regulação como instrumento para entender a relação território-instituições. Lembrando que a Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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regulação engloba regulamentações, leis, contratos, e práticas e ações que governam as relações informais, a autora entende que as superfícies podem fazer referência a objetos geográficos concretos ou limites artificiais; em qualquer caso tratam-se de linhas geométricas que impõem limites, redefinem horizontes e criam territórios, definindo para os atores/agentes as condições de acesso aos recursos (e ativos, acrescentaríamos). As superfícies de regulação configuram uma escala de gestão e pressionam pela adoção de compromissos negociados entre agentes. Além da citada bacia hidrográfica, a autora traz mais alguns exemplos de aplicação desta categoria: os blocos de concessão de exploração de petróleo offshore, as linhas paralelas e ortoganais utilizadas para fins de cálculo de recebimento de royalties do petróleo por estados e municípios costeiros, e as áreas de concessão de empresas de saneamento e energia. Entender a superfície de regulação a partir da relação território-instituições [...] implica considerá-la como unidade de manifestação de convenções e regras que coordenam a ação dos agentes econômicos, bem como de tensões e conflitos provocados por condições diferenciadas de conxexão às redes nacionais e regionais. Essas superfícies emergem na formação e consolidação de um marco regulador para atividades econômicas cuja estrutura pressupõe a existência de redes técnicas e de infraestrutura (eletricidade, telefonia, água e esgoto, petróleo e gás, ferrovias, rodovias e infovias), como também para atividades que, ao demandarem um contrato de concessão ou partilha, implicam novas territorialidades (PIRES DO RIO, 2009, p. 28-29, grifos nossos).

É nesta última acepção, relacionada à fundação de novas territorialidades, que podemos encaixar as UCs enquanto superfície de regulação, salientando-se que esta aplicação do conceito não é feita por Pires do Rio. A “configuração particular em termos de escala de gestão” das UCs é dada em dois níveis: o nacional e o local. No nacional se deu a criação do SNUC e se estabeleceram as regras gerais que regem cada tipo de UC. A negociação, aqui, se deu fundamentalmente no momento da elaboração da lei que criou o SNUC4, mas não deixa de ser um processo contínuo, como atestam algumas iniciativas

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Este é um momento interessante de qualquer política pública: a transformação de uma dada questão em um problema a ser resolvido, e sua inserção na agenda política, culminando no desenho de leis, sistemas, programas e projetos. O caráter inicial desta pesquisa ainda não permite entender como seu deu este processo para as UCs. Cardoso (2003) fez interessante panorama da formulação e dos debates em torno da criação da Lei das Águas, e dos agentes e suas visões no processo. Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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de mudanças no sistema por parte de parlamentares5. Na escala local, cada UC é regulada pelo seu próprio Plano de Uso ou Manejo. Quando a categoria da UC prevê mecanismos de participação social na elaboração destes planos, e na gestão de UC de forma mais ampla, eles só serão efetivamente criados e implementados a partir de um processo de negociação entre os atores interessados no processo – dentre eles as populações tradicionais ou não que vivem no entorno ou no interior da UC, os órgãos de administração e fiscalização, os representantes de diferentes categorias do tecido econômico, político e social. E mesmo as categorias de UCs que não preveem mecanismos participativos estão, afinal, inscritas em um território e passam a fazer parte da dinâmica dele de alguma maneira. A regulação, como se vê, não se dá simplesmente quando da criação legal da UC (este é o momento da regulamentação e normatização), mas acontece como processo que pode apresentar avanços e retrocessos, conflitos e contradições. Estes aspectos aludidos nesta seção - a lógica de proteção da biodiversidade e ao mesmo tempo da participação social- mostram-se como constituintes das UCs como objetos de estudo, e serão analisados a seguir.

PROTEÇÃO E PARTICIPAÇÃO Como já mencionado, a criação do que se consideram atualmente como áreas protegidas, ou seja, a origem do modelo das UCs, se situa no movimento preservacionista nos Estados Unidos no final do século XIX. A motivação subjacente à criação dos primeiros parques nacionais norte-americanos era a preservação de paisagens de grande beleza cênica, tendo seu uso restrito à função recreativa para as populações urbanas (VALLEJO,

2005).

Tratava-se

de

preservar

locais

“intocados”

do

avanço

do

desenvolvimento urbano e industrial (DIEGUES, 1996). Ao longo do século XX, critérios ecológicos ou mais “científicos” passaram a ter maior peso na seleção das áreas a serem protegidas, e, a partir da década de 1970, a questão da incorporação das populações passou a fazer parte do rol de preocupações da União Internacional para a Conservação 5

Recentemente foi aprovada na Comissão de Minas e Energia do Congresso Nacional uma proposta que facilita a alteração dos limites de uma unidade de conservação – fato que atualmente só se dá por força de lei. O projeto ainda não foi votado no plenário. Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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da Natureza – UICN (a primeira organização internacional ambientalista, fundada em 1948). Ainda que seja possível identificar, na história mais recente, os esforços de valorizar populações locais quando do estabelecimento de áreas protegidas e de reconhecer o papel de povos de práticas tradicionais na conservação ambiental, a política de UCs expressa nitidamente a concepção de separação sociedade-natureza que, de acordo com Latour (1994), permeia o pensamento ocidental desde o Iluminismo. Na modernidade, práticas que Latour denomina de “purificação” levaram à criação de duas zonas ontológicas distintas: a dos humanos e a dos não humanos. Se, por um lado, esta separação criou as condições de distanciamento para que a natureza fosse “conquistada” e “dominada” pelo progresso humano, por outro ela não consegue dar conta de explicar fenômenos cujo caráter híbrido, sócio-natural, é cada vez mais evidente6. Esta questão leva a considerações interessantes sobre a divisão do trabalho científico, que não cabem nesta análise, sendo necessário enfatizar apenas que a política brasileira de UCs deriva de, expressa, e induz a, concepções de separação sociedade-natureza. Smith (2008) aponta como o ambientalismo sempre reforçou esta separação, ao conceber a natureza como algo distante, que deveria ser preservado longe da ação dos humanos e permanecer intacto. Novamente em referência ao trabalho de Coelho et. al. (op. cit.), em relação às UCs enquanto objeto de estudo, temos que As unidades de conservação quase sempre são vistas como objetos dados, áreas naturais, e não como objetos criados (concebidos, inventados, disputados). Como objeto de investigação em construção, elas requerem que sejam reveladas as relações entre grupos sociais (tradicionais ou não) e recursos, bem como processos de mudanças sociais, ambientais e territoriais. (p. 76)

Dentre os processos de mudanças sociais pouco problematizados na literatura sobre o tema está a participação social nos processos de decisão. Muitos setores de políticas públicas no Brasil preveem mecanismos participativos para sua implementação, inclusive algumas políticas ambientais. Os primeiros mecanismos começaram a ser criados e 6

Latour cita o aquecimento global e o buraco na camada de ozônio como fenômenos que são ao mesmo tempo fruto de dinâmicas humanas e não-humanas. Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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implementados ainda na década de 1980, e relacionam-se com o momento de redemocratização do Brasil. Passou a ser obrigatória a realização de audiências públicas quando empreendidas obras de grande impacto ambiental, e esta idéia da participação de todos os envolvidos, interessados ou afetados está atualmente expressa no SNUC, na Lei das Águas e em diversos setores de políticas públicas que impõem a criação de conselhos de diferentes tipos. Este movimento em direção à participação é uma tendência observável não apenas no Brasil mas, desde meados da década de 1990, se tornou ortodoxia nas agências internacionais de desenvolvimento. Mohan (2007) diferencia a “participação” propostas por essas agências do “desenvolvimento participativo”. A primeira “[...] é geralmente associada a projetos bem definidos nos quais os objetivos da intervenção de desenvolvimento são amplamente acordados de antemão, mas o que se precisa são melhorias nas instituições para se atingir esses objetivos” (p. 781, grifo e tradução nossos). Já processos de desenvolvimento participativo ocorrem quando a participação adquire caráter transformador. Mohan entende que estes processos se dão nas seguintes condições: i) a participação é promovida como parte de um projeto mais amplo que é ao mesmo tempo político e radical; ii) procura-se a conexão com projetos de desenvolvimento basilares ao invés de se permanecer restrito ao enquadramento de intervenções específicas; e iii) deve haver foco explícito na participação como cidadania. É diferente, portanto, entender a participação social como parte da lei e situá-la como processo político, social e espacial. Como objeto de estudo, as UCs incorporam a função de preservação ambiental e expressam a difusão de modelos participativos em diferentes setores das políticas públicas no Brasil. Na Figura 1, as 11 categorias de UCs presentes no SNUC (4 de “proteção integral” e 7 de “uso sustentável”) são comparadas quanto ao seu grau de proteção, usos permitidos e participação. Em consonância com a visão exposta acima sobre a separação sociedade-natureza, considerou-se que quantos mais usos são permitidos, menos se preserva. O primeiro ponto a ser notado é que as categorias mais “permissivas” são também as mais participativas. Assim, as Reservas Biológicas e Estações Ecológicas de destacam tanto por serem as de uso mais restrito (apenas pesquisa científica e visitação educacional) quanto pelo fato de que não requerem Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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consulta pública para sua criação (ao contrário de todas as outras categorias). No outro extremo estão as Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável e Áreas de Proteção Ambiental, que preveem a criação de conselhos consultivos ou deliberativos. As duas primeiras são modelos propostos pelas populações de práticas ditas tradicionais na Amazônia e incorporados ao SNUC, ao passo que a APA pode até mesmo incluir áreas urbanizadas e grande diversidade de situações. Fica evidente, portanto, que a proteção à natureza e a participação social não caminham juntas no SNUC. Retomadas as definições de Mohan, constata-se que o desenho do sistema não configura um processo de desenvolvimento participativo, afinal trata-se (cada UC) de projeto com alcance restrito e objetivos previamente definidos – a proteção da diversidade biológica. Por outro lado é possível imaginar uma situação na qual o processo de desenvolvimento participativo leva à criação de uma UC de uso restrito, entendida naquele contexto como necessária e importante pelos agentes políticos e sociais. A matriz abaixo, portanto, revela alguns aspectos importantes, porém não dá conta da diversidade possível de situações. De volta à idéia de UCs comos superfícies de regulação, é possível indagar se esta unidade espacial para a ação e a prática da negociação poderia, em tese, se articular com outras unidades e negociações nas políticas ambientais (e mesmo outras setores de políticas) de forma a constituir processo de desenvolvimento participativo que representasse inovação na elaboração e implementação de políticas públicas no Brasil – em outras palavras, que fizesse referência à mudança institucional. Esta indagação permite a ponte com as idéias oriundas do desenvolvimento territorial, empreendida na próxima seção.

Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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Figura 1. Matriz proteção/participação na política brasileira de UCs. Fonte: elaboração própria.

DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E GESTÃO AMBIENTAL DO TERRITÓRIO Desde as décadas de 1970/80, as transformações da economia mundial levaram estudiosos de diferentes áreas a questionarem as bases teóricas da investigação dos padrões espaciais do desenvolvimento e da competitividade. Pode-se dizer mesmo que o próprio entendimento do que é economia vem se modificando desde então. Este fato é atestado, por exemplo, pelo ressurgimento do institucionalismo, afinal este é um campo de conhecimento que, desde suas origens no início do século XX, procurou ampliar as fronteiras da ciência econômica em direção à sociologia e à antropologia (FORD, 2011). Observa-se que a economia passa ser entendida como processo de construção de recursos por estratégias humanas, em oposição à velha concepção da economia como alocação de recursos. Após a crise e concomitante reestruturação da produção, a “velha” economia espacial vem sendo paulatinamente contestada por visões que, ao invés de um espaço abstrato (entendido apenas como constragimento em termos de custos de distância e de Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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otimização de localizações), colocam o território (construído pelos atores) como o pilar de processos produtivos e de desenvolvimento nos locais e regiões com trajetória bem sucedida nesta modificação econômica. A literatura da geografia econômica é profícua em estudos destes casos bem sucedidos - os distritos industriais na Itália, as aglomerações de empresas de tecnologia na Califórnia, os tecnopólos, meios inovadores, etc. De uma maneira geral valorizam-se, nestes estudos, as especificidades locais dos processos de crescimento econômico e de criação de condições para o desenvolvimento – i.e. “[...] o êxito e o crescimento das regiões industriais dever-se-iam essencialmente à sua dinâmica interna” (BENKO e LIPIETZ, 1994, p. 10). A perspectiva do “alargamento” do que se entende por economia, e do “enraizamento” dos processos de desenvolvimento pode ser encontrada na obra de Pecqueur (2005) que, adicionalmente, aplica estas concepções às economias do Sul, ao contrário da maioria dos autores da geografia econômica. O autor pretende “ [...] mostrar como, nas economias em desenvolvimento, podem se concretizar os elementos de um modelo (flexível e adaptável) de desenvolvimento territorial cujas raízes se encontram nas coordenações entre atores pré-capitalistas [...]”, apoiando-se “[...] numa concepção cultural da produção (que é ligada às características culturais e aos modos de organizações de seus atores) [...]” (PECQUEUR, 2005, p. 11). Pecqueur propõe a seguinte definição para desenvolvimento territorial, que “[...] designa todo processo de mobilização dos atores que leva à elaboração de uma estratégia de adaptação aos limites externos, na base de uma identificação coletiva com uma cultura e um território”. (p. 12). Ainda de acordo com o autor, três afirmações estão contidas nesta definição: i) o desenvolvimento territorial não pode ser implementado por decreto; ii) o desenvolvimento territorial é uma construção dos atores, ainda que políticas públicas possam estimular e mobilizar esses atores; e iii) esta construção é dinâmica e inserida no tempo. Trata-se, portanto, da criação de uma entidade produtiva enraizada num espaço geográfico. Para Pecqueur, o primeiro ponto a ser notado se refere ao discurso sobre o território, no qual muitas vezes se confunde o território dado (a porção do espaço que está sob observação; é pré-existente; é o “envolvente” – analisa-se o que ali acontece e não sua Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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gênese; o território institucional7 – a região, o distrito, a província) com o território construído pelos atores (que não é postulado, é constatado a posteriori, não existe em todo lugar, e é resultado do processo de elaboração de um conteúdo). O autor ressalta, porém, que o território precisa ser entendido a partir destas duas concepções, pois é ao mesmo tempo um “envolvente” e o seu conteúdo. Aplicando este raciocício às consideração feitas anteriormente sobre superfícies de regulação temos que as UCs (ou municípios, ou bacias hidrográficas a partir da Lei das Águas) são territórios dados, estatais, formais, e, nesse sentido, não são a princípio superfícies de regulação, mas de regulamentação. Já o território construído pelos atores, ou seja, as superfícies de regulação enquanto tal, não podem ter seu tamanho, forma ou tipologia definidos a priori. Nesse sentido, cabe perguntar se territórios podem ser construídos a partir de territórios dados, e, em caso positivo, em que momento e sob que circuntâncias se dá a passagem da regulamentação à regulação. À formulação de Pecqueur do desenvolvimento territorial como a constituição de uma entidade produtiva enraizada no território, poder-se-ia acrescentar que esta entidade faria referência, também, à promoção da cidadania – e aqui se constrói uma ponte para utilizar esta literatura para pensar políticas ambientais. Afinal, se as análises contemporâneas da economia preocupam-se justamente com a inclusão de aspectos não-produtivos ou não-mercantis em suas elaborações teóricas e metodológicas, por que não aplicar este conhecimento a esferas não-produtivas e não-mercantis da sociedade? Ou, dito de outra maneira, estes campos de estudo trazem conceitos e categorias que podem ser usados para entender aspectos como a cidadania, a participação social, o exercício da “governança”, a elaboração de “capital social” etc. Dentre estas categorias, a idéia de recursos e ativos, genéricos e específicos8, se mostra bastante útil na compreensão da construção de territórios. O desenvolvimento

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É possível dizer que trata-se do território institucional formal, ou estatal, se olharmos as colocações de Pecqueur à luz do institucionalismo. 8 Recursos são fatores a explorar, organizar e revelar; são reservas; possuem potencial latente ou virtual, e quando efetivamente utilizados se transformam em ativos. Recursos e ativos genéricos possuem valor de mercado e são total ou parcialmente transferíveis, ou seja, “(...) independem do ‘gênio do local’ onde são produzidos” (PECQUEUR, 2005, p. 13). Por exemplo, a mão de obra não utilizada é um recurso genérico, enquanto a mão de obra utilizada porém não especializada é um ativo genérico. Esta mão de obra, quando Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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territorial é um processo de ativação e especificação de recursos, e, mais detalhadamente, um processo de mobilização de recursos específicos. Estes recursos aparecem no momento das combinações das estratégias dos atores para resolver um problema inédito, ou mesmo para se definir uma dada questão como um problema. Eles são resultado de uma longa história, do acúmulo de memória de aprendizagem cognitiva coletiva, de ensaios sucessivos, tentativa e erro. A produção dos recursos específicos resulta de normas, costumes e cultura que são elaborados em um contexto de proximidade geográfica e institucional, a partir de relações de reciprocidade, levando ao estabelecimento de normas (geralmente tácitas) com função de orientar ou guiar comportamentos, oferecendo aos atores espaços de inteligibilidade e ação. Para fins de entendimento da mudança institucional nas políticas públicas, problemática que se revela como fundamental nos questionamentos deste trabalho, estes “espaços de inteligibilidade e ação” que surgem a partir da mobilização de recursos específicos podem ser entendidos de duas maneiras (que não são mutuamente excludentes): i) espaços metafóricos, ou arenas de resolução de problemas – e aqui entra a questão da participação; e ii) espaços concretos que passam a fazer parte da lógica dos agentes. Em relação a este último, a formulação de Cox (1998) de espaços de dependência e espaços de engajamento se mostra útil. Espaços de dependência se referem às condições imediatas de sobrevivência de pessoas ou organizações (ex: as áreas de extrativismo de uma comunidade, a área de concessão de uma empresa de abastecimento urbano). Quando estes agentes vivenciam algum problema neste espaço de dependência e constroem uma rede de associações de forma a atingir mitigação, dáse a construção de um espaço de engajamento. A questão subjacente ao raciocínio de Cox é, de um lado, a elaboração social e política da escala e, de outro, de como se constroem as redes de associação nos espaços de engajamento. Novamente na tentativa de construir pontes entre autores e temáticas distintas, propõe-se aqui que as redes de associações são construídas a partir da mobilização de recursos específicos que, no caso da questão ambiental, podem fazer referência ao sentimento de pertencimento a um lugar ou região. Este sentimento é um efetivamente utilizada, qualificada e treinada, torna-se um ativo específico, pois seu valor é ligado a um uso em particular. Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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dos exemplos dados por Pecqueur como recurso específico. O espaço de engajamento é, em essência, um território construído, cujo tamanho e forma não pode ser dado a priori e cuja direção dos conflitos e negociações não pode ser prevista, podendo vir a constituir, em algumas situações, superfícies de regulação. Mais uma vez, fica bastante claro a limitação das UCs, tanto em seus tamanhos físicos quanto em seus escopos de ação, para refletir sobre desenvolvimento territorial. Recorre-se assim à formulação de Gusmão (2009) sobre gestão ambiental do território como:

[...] um processo de caráter contínuo e colegiado, conduzido por agentes públicos, contando com a participação de agentes produtivos e sociais que, presentes ou interessados num determinado território e no estoque de recursos ou processos ambientais (físicos, bióticos e antrópicos) que ele comporta, buscam de forma conjunta conhecê-lo, diagnosticá-lo, identificando suas potencialidades, fragilidades e tendências; [...] processo decisório interinstitucional e multidisciplinar que envolveria a negociação e instrumentalização de pactos a propósito de prioridades, políticas, regulações e intervenções necessárias à realização do cenário selecionado. [...] esse processo deveria privilegiar não só a criação de mecanismos de controle e incentivo do uso que se faça da base de recursos disponível, mas também de instrumentos de acompanhamentomonitoramento a avaliação de resultados visando à realimentação do processo e a correção de rumos. (p. 13)

A gestão ambiental do território, na definição acima, constitui mudança e mesmo inovação da formulação e implementação das políticas públicas em geral, e ambientais em particular. Este processo decisório contínuo, colegiado, participativo, que tem como objetivo final a promoção da melhoria das condições e da qualidade de vida, requer a mobilização de recursos específicos para que os diferentes espaços de dependência se concatenem em um espaço de engajamento, resultando na criação de uma esfera pública. Se o desenvolvimento territorial é fruto de uma história longa e é também amplo em seus alcances, é possível supor que seus resultados se evidenciem em diferentes setores, incluisive as políticas públicas de cunho ambiental. Adentra-se aqui em alguns pontos ainda não bem resolvidos sobre a relação entre desenvolvimento territorial e gestão ambiental. Será que o primeiro antecede o segundo? Será que a gestão ambiental pode estimular processos de desenvolvimento territorial? Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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Existe, nas situações nas quais é possível identificar a gestão ambiental, a mobilização de recursos específicos, o projeto coletivo de território, a aprendizagem coletiva e a dependência mútua que são característicos do desenvolvimento territorial? E, voltando a uma questão já formulada acima, é possível construir territórios a partir de territórios dados da gestão ambiental (UCs, mosaicos de UCs, bacias hidrográficas, municípios...)? Acredita-se que a resposta para as duas últimas perguntas seja “sim”, ainda que uma análise mais elaborada esteja aquém do trabalho desenvolvido até o momento. Propõe-se como hipótese para a continuidade da pesquisa que o território construído das políticas ambientais (quando ele existe) se dá a partir do estabelecimento de uma malha de gestão, ou seja, de diferentes superfícies de regulamentação e regulação, cuja concatenação (que cria espaços de engajamento) é o resultado da mobilização de recursos específicos, notadamente de sentimentos de identificação em relação a um lugar ou região. Se isto pode ser chamado desenvolvimento territorial é a questão que permanecerá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As Unidades de Conservação, da maneira como definidas pelo sistema legal vigente, cumprem a importante função de regulamentar acessos e usos a determinadas porções do espaço consideradas relevantes em termos de sua ecologia, paisagem, recursos e ativos, e mesmo modos de vida e práticas de populações ditas tradicionais. Porém as UCs são pequenas em tamanho físico e limitadas em escopo de ação para que possam ser diretamente relacionadas a processos de desenvolvimento participativo ou desenvolvimento territorial. A ponte que se quer fazer entre a perspectiva do desenvolvimento territorial e as UCs necessita que estas últimas sejam inseridas em estruturas mais amplas para além de sua função de conservação. A categoria de superfície de regulação evidencia como a criação de limites de acessos e usos é um fato mais complexo e multi-facetado do que pode parecer ao observador incauto. As análises das UCs (dentro e fora da ciência geográfica) consideram, em geral, apenas o aspecto da regulamentação – o tipo de UC, o Plano de Uso ou Manejo, e em que medida estas normas estão sendo cumpridas ou não -, mas Revista Discente Expressões Geográficas, nº 08, ano VIII, p. 93 - 112. Florianópolis, agosto de 2012. www.geograficas.cfh.ufsc.br

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deixam de lado a regulação. A criação de qualquer UC representa a ruptura, o marco, que dá início a uma série de processos (disputas, conflitos, acordos, alianças, projetos) entre agentes públicos, civis e privados, configurando a regulação- neste caso exercida sobre recorte espacial bastante preciso. A criação de uma UC não é, portanto, o produto final de práticas preservacionistas, mas antes o início da possibilidade de concretizar estas práticas. Ademais, superfícies de regulamentaçao e de regulação co-existem e sobrepõem-se nas políticas ambientais, servem a diferentes propósitos e podem estar – mas não necessária ou comumente estão – articuladas em malhas de gestão ambiental do território. O sistema brasileiro de UCs configura um cenário no qual preservação e participação estão dissociadas. Isto levanta questionamentos quanto ao real teor participativo do sistema, e faz premente lembrar que não se deve esperar de uma UC mais do que ela foi originalmente pensada para oferecer. Podemos supor, entretetanto, que estes espaços destinados à preservação ambiental podem fazer parte de estruturas mais amplas de participação social, promoção da cidadania, e articulação entre agentes. Isto se torna mais visível quando a UC é inserida no território, continente e conteúdo dos processos sociais. Se, como afimam Pires et. al (2006, p. 444), o território “local” [...] pode compreender um determinado espaço institucional, social e cognitivo – um bairro, município, rede de municípios, arranjos produtivos, clusters, bacias hidrográficas, vales – que atenda aos seguintes condicionantes: (i) possua sinais de identidade coletiva (sociais, culturais, econômicos, políticos, ambientais, históricos, etc); (ii) mantenha ou tenha a capacidade de promover uma convergência em termos de expectativas de desenvolvimento; e (iii) promova, ou seja passível de, uma integração econômica e social, no âmbito local

cabe perguntar quais são as categorias de análise que se mostram úteis na investigação do “desenvolvimento territorial de políticas ambientais”. Cita-se aqui, sem afirmação de que seriam as únicas possíveis ou as melhores, as categorias de instituições, organizações, agentes, atores, capital social e densidade institucional. Há de se perguntar também como medir e qualificar de algumas destas categorias, como aprendizagem cognitiva coletiva, inovação política, densidade e proximidade

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institucional e organizacional. Esta questão é premente, pois tratam-se de aspectos intangíveis em relação aos quais não há guias metodológicos claros na literatura. Por fim, e como questão mais ampla para se pensar a relação entre desenvolvimento, territórios e recursos, pergunta-se se o Estado, através de políticas direcionadas, é capaz de promover a mobilização de recursos em um território. Sempre há recursos que possam ser mobilizados? Se não houver, é possível criá-los, deliberadamente? Se for possível, como isso pode ser feito? Se não for possível, o que fazer dos locais e regiões sem recursos específicos a serem mobilizados?

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