POLÍTICA E ESPIRITUALISMO NUM SERTÃO EM TRAVESSIA

May 28, 2017 | Autor: R. Bittencourt | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Literature, João Guimarães Rosa, Corpo de Baile
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POLÍTICA E ESPIRITUALISMO NUM SERTÃO EM TRAVESSIA Rodrigo do Prado Bittencourt1 RESUMO: Este artigo visa o estudo dos aspectos políticos, históricos e sociais trabalhados por João Guimarães Rosa em seu romance A estória de Lélio e Lina. Para isso, se analisará como as palavras e ações de Lina servem para resgatar a ordem de um mundo em transformação. Ao se ver em pleno encontro do moderno com o tradicional na zona rural de Minas Gerais no final do século XIX e início do XX, Lélio precisa de Lina para se situar em meio ao dinamismo da História e poder formular/reformular seu papel enquanto agente e sujeito de sua vida. As referências que o texto faz aos processos de transformação histórica são o objeto da pesquisa. O que insere este trabalho na linha de análise dos componentes históricos e sociais presentes na obra de Rosa e, sem desprezar os outros enfoques analíticos, busca analisar tal obra em meio à cultura e à época em que ela se desenvolveu e ver o que ela tem a dizer a respeito de seu mundo.

Breve análise da fortuna crítica sobre o tema

Num primeiro momento da crítica a Rosa, temos contribuições de autores como Rónai, Lins, Proença e Candido, dentre outros. Nessas análises, de um modo geral, busca-se entender como opera a oposição entre universal e regional na obra do autor. Também começa aí o estudo da singular linguagem rosiana e se aponta o uso que ele fez de elementos dos livros de cavalaria do período medieval. Num segundo momento, a crítica reavaliou a obra do autor e os estudos sobre ela, em sintonia com as novas contribuições das ciências humanas e com as pesquisas sobre a vida e as declarações de Rosa. Destacam-se estudiosos como M. L. Daniel, Bolle, Roncari, Walnice Galvão, Utéza, Starling, Arrigucci, entre outros. Bolle, por exemplo, critica a afirmação de Álvaro Lins de que encontramos no autor “a temática nacional numa expressão universal”: diz ele que é difícil precisar conceitualmente o que seria uma “temática nacional”, pois essa pressupõe um consenso em torno do que é caro a toda a nação. Todavia, Bolle reconhece a “‘universalidade de expressão’ do ficcionista”; sem deixar de apontar para o fato de que a crítica, muitas vezes, se perdeu em elogios e se esqueceu de analisar a obra.

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Texto publicado em: LOBO, Luiza (ed.) Revue Censive: revue internationale d’études lusophones. N. 6, ISSN 1952-6512, Départment de Portugais, CIL- UFR de Langues – Université de Nantes, 2001.

As tendências estruturalistas de Bolle, longe de monopolizarem o cenário crítico, se apresentam como uma dentre as inúmeras possibilidades de análise que surgiram sobre o diplomata escritor. Utéza, por exemplo, analisará os aspectos místicos e esotéricos de Grande Sertão: Veredas; Starling estudará os aspectos políticos do mesmo livro, a luz de Maquiavel, Hannah Arendt, Hobbes e outros autores da Filosofia e da Ciência Política; Arriguci

se focará na relação entre a obra rosiana e os demais

produtos da Literatura Brasileira; Daniel será uma dos que se preocuparão com os elementos intratextuais e as inovações lingüísticas do autor; Galvão se focará na crítica genética, tentando entender o modo como o autor escrevia seus textos e o que interferia nessa produção e Roncari estará entre os que buscam analisar as relações entre essa obra e seu contexto histórico-político-social e até mitológico. Nesta nossa breve exposição, infelizmente, não poderemos avaliar todos de um modo satisfatório, por isso nos concentraremos no que for mais importante para a proposta em questão. Starling foi a primeira a eficazmente chamar a atenção sobre os aspectos políticos dos textos de Rosa. Seu livro sobre o Grande Sertão: Veredas abre uma nova perspectiva de pesquisa sobre toda a obra rosiana, mostrando que nessa obra existe uma discussão sobre que país somos e o que queremos ser. Roncari afirma que os livros de Rosa dizem muito sobre o Brasil da República Velha, momento de transição entre dois governos ditatoriais e paternalistas: Dom Pedro II e Vargas. Passagem, insegura e recalcitrante, para a modernidade; transição em que as sensações de desamparo, desorientação e desespero preponderam. Esse crítico associa Rosa aos estudiosos que tentaram entender o Brasil e sua história, como Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Mário de Andrade, entre outros. É preciso, portanto, ter cuidado para estudarmos o “espiritualismo” que o autor quis produzir sem dissociarmos a obra do contexto em que foi produzida. O estudo de um desses dois esteios da obra rosiana (o espiritualismo e o social) não exclui o outro, mas apenas o complementa, corrige e valoriza. Ambos não estão presentes por acaso nos livros de Rosa, mas fazem parte de nossa tradição literária, como afirma Walnice Galvão; o que veremos mais detalhadamente um pouco mais a frente. Por "espiritualismo", entendo uma das vertentes de nossa literatura do século XX. Foi com esse termo que Alceu Amoroso Lima denominou os romances voltados para a intimidade, o espírito e a psiquê, como nos conta Galvão. Essa característica

intimista esteve presente até em obras de autores marcadamente regionalistas, como José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Portanto, se Rosa busca fazer o que Goethe disse ser a função e o objetivo da verdadeira arte: “exprimir o inexprimível”, é de um substrato regional que não pode ser desprezado que ele vai se utilizar para tanto. Este, pois, é parte de sua obra e deve ser estudado como tal. O social não é coadjuvante do protagonista espiritualista, como alertam Starling, Bolle, Galvão e Roncari. Entender esse elemento regional com seus caracteres sociais, políticos e históricos é essencial para se entender o elemento espiritualista da obra; assim como este permite a compreensão daquele: os dois têm a mesma importância. Para trabalhar essa relação entre o espiritualismo e o social, Rosa utiliza inúmeras técnicas. Dentre elas, está o uso de digressões. Estas fazem com que o enredo principal pareça inserido num contexto maior, que abrange mais que a simples história principal e a corrobora, lhe conferindo um sentido mais amplo e intenso. Além disso, muitas das falas das personagens rosianas imitam a forma de provérbios. Estas falas também provocam o efeito de ampliação da dimensão narrativa. Em Rosa, o espiritualismo é usado para se entender a dinâmica social local, pois aquele perpassa esta o tempo todo. Assim, um elemento não opera sem o outro, mas é seu conjunto que cria a obra. O autor, de forma alguma exclui a política de sua obra, apenas se recusa a colocá-la a serviço de uma bandeira partidário-ideológica ou de qualquer politicagem baixa. Ele quer falar do Homem de modo amplo e complexo, pois é assim que o vê, e por isso sua linguagem é tão hermética, truncada e carregada de simbolismo. Assim, sua obra colhe o que há de bom na temática regionalista e nas inovações lingüísticas modernistas e o mistura ao espiritualismo de melhor qualidade. Pelo menos, é o que podemos inferir da análise de Walnice N. Galvão. Ela nos diz que o panorama literário brasileiro da época em que Rosa publicou seu primeiro livro, Sagarana em 1946, se dividia em duas vertentes: o regionalismo e a opção espiritualista e que ele conseguiu uni-las em sua obra, seguindo assim uma tradição antiga (a do Naturalismo) de uma forma nova, com o agregar de outros elementos. Walnice vê “o naturalismo como principal programa estético-literário entre nós”, associando a obra rosiana à história de nossa literatura, sem, entretanto, reduzi-la à reprodução do que já foi feito. Se o Regionalismo está presente em Rosa, percebe-se também a presença de um certo espiritualismo: a profundidade psicológica de suas personagens, as questões

existenciais, a interiorização dos sabores e experiências do dia-dia... Todavia se podemos comparar a obra de Rosa com outras anteriores, é preciso lembrar que ela é única e revolucionária em muitos aspectos. Se sua linguagem é hermética, como a de Os Sertões, ainda que por motivo diferente e de modo completamente distinto, sua temática e narrativa se aproximam mais das obras de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, no que se refere à visão de decadência do cenário político e social do sertão e ao ponto de vista do sertanejo como narrador. E, se afasta sua perspectiva da visão idealizada, romântica e até determinista de O Sertanejo, de José de Alencar, a obra rosiana, entretanto, se aproxima, em alguns pontos, às referências simbólicas à cultura e ao folclore brasileiros feitas por Mário de Andrade em Macunaíma. Isso para citar apenas alguns exemplos, pois a obra em questão é rica em intertextualidade e referências literárias, podendo nos remeter aos mais diversos textos da literatura mundial. Intertextualidade que nos leva ao estudo da Filosofia. Roncari vai ressaltar a influência de Aristóteles, e sua doutrina do domínio da razão sobre o corpo, nas obras de Rosa. As epígrafes escolhidas pelo autor mostram a influência do Neoplatonismo e a Metafísica que o autor tanto ressaltou em sua entrevista a Lorenz também nos lembra Platão. Quando o vemos falar de Homem, podemos associar seu modo de pensar também ao Iluminismo e sua busca pela natureza humana, por aquilo que é universalmente válido. O contraste entre essa filosofia generalizante e metafísica e o regionalismo particular revela um dilema: a desagregação do contexto histórico-social do país gera a impossibilidade da manifestação do espiritualismo no dia-dia e produz uma crise social. Se o regional, nas obras do autor, é espaço de manifestação espiritualista do Homem e da Linguagem, preocupações fundamentais de Rosa, a desarticulação desse cenário pela crise de autoridade da República Velha causa uma tal situação que o sertanejo passa a questionar os valores vigentes e a se sentir perdido. É de se esperar que tal crise prejudique, e muito, o indivíduo, deixando-o com a desorientação e o desamparo da orfandade. É assim que percebemos Lélio em “A estória de Lélio e Lina”: órfão de pai, que vivo se foi para longe deixando-o com a mãe, ele se vê sozinho no mundo a vagar para o norte; em busca do local em que seu pai se fixara após abandoná-lo.

A análise do texto em si

Essa busca pelo pai, pela origem e pela proteção é bem emblemática. Para Freud, o arquétipo do pai simboliza a lei, a regra, as imposições da sociedade. Lélio busca a lei, a orientação, a regra... isso numa sociedade em plena crise de autoridade, em meio a um governo fraco e questionado. Outro símbolo dessa busca, como aponta Roncari, é o rumo de sua viagem: o norte. Lélio está à procura de um norte. De um norte e das lembranças de seu pai: de um rumo a seguir, um sentido para o caminhar da vida e de uma regra que ordene e discipline esse caminhar. Essa busca o leva ao Pinhém, que Roncari compara a uma ilha, por se bastar a si mesmo e se isolar do resto do mundo. Tal isolamento lembra o por que passavam os fazendeiros na época do império, isolamento constatado por estudiosos como Oliveira Vianna, Nestor Duarte e Costa Pinto e que os habitantes do lugar pareciam querer prolongar. Assim o Pinhém se apresenta como um lugar que resgata a tranquilidade e a segurança do passado, graças a seu isolamento e aparente auto-suficiência. O vaqueiro, ao deixar sua morada e seguir viagem rumo ao norte, acaba por arrumar um emprego temporário: ajudar na viagem de uma família rica da cidade de Paracatu. Ele se interessa por uma moça que fazia parte dessa família, mas ela não repara nele. Lélio conservará a lembrança desse amor irreal e irrealizado. Esse contato com o urbano e abastado nos remete ao encontro do sertão com a modernidade. Esta se apresenta cheia de encantos desconhecidos, mas inacessíveis, irreais. Sua visão provoca encanto, mas é estéril, uma vez que não admite os traços do sertão e a eles não se adapta. Assim, ela exige uma verdadeira negação do que ele é e não permite uma união igualitária e espontânea, mas provoca a imposição de seu caráter mediante a negação do caráter do outro. Foi essa a modernidade "imposta de cima" que a República Velha conheceu. Época que tomou para si a tarefa de civilizar o Brasil à força; seja nas frias paragens do Contestado, em Canudos ou nos subúrbios insalubres da capital federal. Diante dessa inacessibilidade de quem se impõe menosprezando o outro, Lélio abandona a viagem quando ela se afasta do norte e segue seu caminho, não sem saudades da mocinha, eterna ilusão do que é fino e urbano.

O Pinhém é terra de natureza pródiga, “quase tão rica quanto as do Urubuquaquá e do Peixe-Manso”, de muito trabalho e de muito amor. Lélio, como Roncari ressalta, é alguém sempre em busca do amor, alguém que se deixa levar pelo coração. Nisso, ele se assemelha aos homens da velha ordem, ou ao menos da imagem que tentou se construir a respeito dos tempos do império: de um período em que a honra, o respeito às tradições e o amor ao país falavam mais alto que as relações comerciais. Esse modo de ver o país deveria passar necessariamente por uma imagem de progresso (pois o Brasil deveria cumprir seu destino e se tornar uma grande potência) aliada ao respeito pela tradição, uma vez que o progresso não deveria significar ruptura política e transformações sociais significativas e igualitárias. A imagem que se tenta construir está intimamente atrelada aos desejos de quem está no poder, é a imagem que agrada ao poder. Como mostra Lilia Schwarcz, essa construção da imagem do Brasil passa pela afirmação de valores básicos, como a ordem, o trabalho, o progresso científico e econômico, a manutenção da moral e dos bons costumes e o respeito pelas tradicionais instituições políticas do país e pelos que as controlam. O Romantismo serviu de esteio a essa propaganda política de um Brasil perfeito, sobretudo por meio da obra de José de Alencar. A idealização dos diversos tipos regionais do país (o sertanejo nordestino, o gaúcho...) e a valorização do índio são partes dessa construção da imagem de um país que tem suas especificidades e se diferencia não só de Portugal, antiga metrópole, como de todos os outros, e se projeta para o futuro como promessa de formação de uma grande, nova e vigorosa civilização. Todavia, a semelhança de Lélio com os homens da antiga ordem se limita ao valor dado às relações afetuosas (como o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda). Ele sabe que a terra pródiga de nada serve se o homem não souber trabalhar com ela e, embora lamente que Seo Séncler tenha de ir embora, considera-o culpado por sua própria desgraça, aceita e até corrobora sua queda: alguém sem alegria não pode ser patrão. Ele realiza seu trabalho como quem cumpre uma obrigação e, embora dele goste, não é como alguém que nasceu para aquele tipo de trabalho e que o faz quase que brincando, “naturalmente”, como o Arnaldo de O Sertanejo, de José de Alencar. Ele vê seu trabalho como árduo e tem consciência da condição social subalterna que este lhe confere. Quando Tomé viaja e ele passa a se encontrar com Jiní durante a noite, realiza o trabalho sem atenção, ansioso para que o tempo passe e possa vê-la novamente. Além

disso, seus amores passam pela idealização romântica, sobretudo no caso da Sinhá Linda, mas essa é cotejada com a realidade e ele se vê obrigado a não crer totalmente na imagem criada por sua imaginação sentimental. Além do que, seu caso com a mulher do amigo mostra as debilidades de seu caráter. Lélio se vê, antes de tudo, perdido e em busca de um rumo; à semelhança do país, que não consegue mais crer nas ilusões românticas do império, mas tem consciência de que há um vazio, uma carência a ser suprida, na república que se criou. O vaqueiro ainda está atrelado aos valores da antiga ordem: o respeito ufanista pela natureza privilegiada do país, a moral voltada para o trabalho (que dita, ao menos para os pobres, “que homem bom é homem trabalhador” ) e as relações cordiais e afetuosas colocadas acima de qualquer outra coisa, de modo que a procura por um casamento e a relação entre trabalhador e empregado passam igualmente pelo crivo da emoção. Sua ligação a esses valores, porém, não se faz de modo acrítico, uma vez que, como foi dito, a transição política por que passava o país foi acompanhada de mudanças sociais que provocaram a crise de um antigo modelo de vida, sem substituí-lo por um novo que suprisse as necessidades históricas. Ou seja, o sertão já não é o mesmo e essa crise não abre caminho para uma nova ordem que seja melhor. Ele está em transição para algo que não se conhece (como será o Pinhém com Seo Amafra e Dobradino?) e para que não se está preparado; ele está em desagregação (as partidas de Seo Senclér, Dona Rute, Tomé, Jiní, a morte de Ustavo a loucura de J’sé-Jórjo) e isso provoca uma desorientação: não se sabe para onde ir e não há como voltar. Que há uma certa desorientação e um certo vazio a afligir os moradores do Pinhém isso nos mostra a conversa entre Delmiro e Lélio, ao saírem da casa de Tomázia e Conceição. Eles estão descontentes e nem sabem com o quê, sentem um vazio e não sabem por quê: “‘Principío uma vontade, um desespero de sair do mole do diário, arranjar meu jeito, mudar de vida. Aí, queria trabalhar, ou andar, num rompante, tirar em mim um esforço grande, mesmo como nunca eu fiz...’Lélio não respondia. Mas, por dentro dele lavorava que nem um susto, um arrocho maior. Tudo o que o Delmiro dera de falar, era, igual por igual, o que ele mesmo vinha em remorso pensando.” Ora, nota-se bem que há o desejo de mudança do modo de viver e que este não é fruto de uma individualidade específica, mas coletivo. Lélio se espanta por Delmiro definir o que ele estava sentindo, pois acreditava que essa sensação era fruto de sua

subjetividade e não pertencia a mais ninguém, não percebe ele o aspecto social de tal sentimento. A busca por uma mudança na vida, por sair do “mole do diário”, por algo que faça tal esforço valer a pena reflete a busca por sua identidade e, no plano coletivo, a busca pela identidade de um país em transição que não sabe bem quem é, pois rompeu com o passado sem ter firme convicção do futuro que deseja ter. Em meio ao militarismo de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto e as revoltas e violentas repressões desencadeadas nos outros governos, sobretudo no de Arthur Bernardes, vemos que o rompimento com o passado não foi total. Assim, o autoritarismo do passado é substituído por um novo autoritarismo, não tão centralizado, mas nem por isso menos cruel e excludente socialmente, e a elite do império é substituída por uma nova elite, não menos egoísta e dominadora. A chamada "política dos governadores" toma o lugar do poder de D. Pedro II, mas as disputas internas entre essas elites locais não garantem a estabilidade social e política necessária para a realização das promessas republicanas e, se os males da época imperial continuam, sua segurança e organização se esvaíram, com o advento da nova forma de governo. Euclides da Cunha e Lima Barreto se mostram desiludidos com a tão almejada República. O primeiro denuncia a brutalidade e a crueldade daquilo que chamou de “crime”, a repressão militar a Canudos; seu apoio irrestrito à República e à modernidade se transforma, ao longo de Os Sertões, em uma hesitante revolta contra o Exército e o Governo brasileiros e sua repulsa contra o sertanejo acaba por mostrar seu valor e valentia: “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Barreto mostra a indignação com o modo como é conduzida a administração pública no Brasil. Assim, ele vê que a impessoalidade e a imparcialidade prometidas pela República não passam de mentiras, que o funcionalismo público está na mão de incompetentes bem apadrinhados e que a busca pela identidade nacional e o amor à pátria continuam a ser deixados de lado em favor de interesses pessoais egoístas. Essa desagregação da ordem social vigente no Império e a desilusão perante as realizações da República não se limitam, porém a esses autores. Rosa será um dos que testemunharão as transformações ocorridas nas sociedades sertanejas na virada do século XIX para o XX. Antes dele, porém, já havia um movimento nesse sentido dentro da Literatura Brasileira. O Regionalismo se caracterizou por realizar o papel de narrador dessa decadência das antigas sociedades e de espectador de sua substituição por uma

modernidade que prometia ser mais justa e mais feliz e que não cumpre todas as suas promessas. Podemos perceber isso nas obras de Graciliano Ramos, de José Lins do Rego, de João Cabral de Melo Neto, entre outros. Rego, por exemplo, mostra a decadência do senhor de engenho nordestino frente o advento das usinas de açúcar e álcool, capitalistas e mecanizadas. Basta ver as desgraças do coronel Lula de Holanda, senhor de engenho que gostava de preservar seus símbolos de fidalguia mesmo diante das dificuldades econômicas, e as de Carlos, bacharel em direito, herdeiro de um engenho tradicional e membro de uma família poderosa, mas sem jeito para os negócios. Ambos sofrem com o avanço de fazendeiros com mentalidade capitalista e de usinas modernas e potentes e a situação de seus empregados pouco muda. Os migrantes, como o Severino de Morte e Vida Severina e o Fabiano de Vidas Secas, não deixarão de existir com as mudanças trazidas por essa nova ordem. Alguns dos principais problemas do sertão persistirão: a seca, a injustiça, a desigualdade social, a baixa expectativa de vida, a mortalidade infantil, a violência, as dificuldades da agricultura de subsistência... Outros ainda serão acrescentados: a devastação da natureza em ritmo alucinante, a exploração capitalista, a impessoalidade e o individualismo, a insegurança decorrente da desestruturação da velha ordem social... Embora o sertão de Rosa seja o do centro-norte de Minas Gerais, ele tem características comuns com o sertão nordestino: ambos são regiões de concentração de terras e renda, com forte cultura popular e pouca ligação com a modernidade cosmopolita e sua intelectualidade; regiões mais ou menos auto-suficientes, em que tudo gira em torno da teia de relações pessoais e dos jogos de poder locais; com forte domínio patriarcal e valorização do privado frente ao público; com patriarcalismo exacerbado e modos de vida e de produção de cunho tradicional, pré-capitalista. A preocupação de Rosa, porém, não está apenas na região e nas pessoas que ele descreve. Como já dissemos, ele se interessa pelo espiritualismo expresso nessa realidade local e pelo modo como ele nela se imbrica. O problema é que, no momento em que se dá o início da narrativa, não conseguimos perceber essa relação entre o particular e o geral por causa da crise social instaurada no cenário do sertão e do Brasil da época. Esta crise, que se traduz literariamente pelo “desespero” sentido por Lélio e Delmiro, é fruto da desestruturação da antiga ordem e da conseqüente derrocada dos valores e costumes tradicionais. O mal-

estar dessas personagens pode ser vista como uma alegoria de como eram recebidas no sertão as mudanças por que passava o país; uma análise que retrata o momento histórico da passagem do Império para a República Velha e as crises por que esta passou até findar, com a ascensão de Vargas ao poder. A desorientação resultante da crise de autoridade por que passou o país nesse período fragilizou seus cidadãos e Rosa percebe nisso um momento de ruptura na História do Brasil, um corte no fio do tempo. Com a crise, perde-se o norte e a confusão reina não apenas no exterior, mas é interiorizada pelos homens que a vivem – daí Lélio e Delmiro sentirem o mesmo desamparo. Assim, a internalização da desordem social, que havia sido tão intensa a ponto de Lélio pensá-la como uma particularidade sua, relaciona a realidade histórica e social ao espiritualismo da vida íntima das personagens. Eles não conseguem saber qual é seu papel na nova ordem e não sabem o que fazer. Lina tem uma enorme importância nesse contexto: ela fará o resgate da antiga segurança e dará um norte a Lélio. Mostrará a ele que seus problemas não são tão graves assim, pois são, apesar de íntimos, frutos de realidades históricas mutáveis e, por isso, solucionáveis. Mostrará que não se limitam a ele, mas são comuns a outros os homens e que, em tempos de incerteza, nada melhor que se apegar ao âmago da tradição a eles legada. Ou, como ela mesmo dizia: "Ara, fala meu Mocinho. Mas fala sem punir. O que existe na gente, existe nos outros..." Lélio precisa de Lina para resgatar o porquê das coisas e enfrentar as dificuldades da transição social e política de uma região que se depara com o fim de uma velha ordem e o advento de uma modernidade imposta de cima. A Velha traz da velha ordem o que é essencial, deixando de lado o que é acidente, e acalmando Lélio, que vê o mundo se desintegrar. Ela se apresenta como uma verdadeira personificação dos valores dessa antiga ordem e a constante alusão à sua idade parece mostrar a autoridade da tradição por ela encarnada. Tradição que está morrendo e ela o sabe, pois reconhece a passagem do seu tempo, mas que tem em si o poder de servir de base ao futuro inseguro e hesitante prestes a surgir. Assim, quando Lina percebe Lélio preocupado com seu desejo de se unir a uma mulher "imoral" para os padrões do lugar e da época, como Manuela, que já não era mais virgem, tenta fazer com que ele veja as coisas de outro modo. Lélio argumenta que a irmã de Manuela, Maria Júlia, também não tem comportamento irrepreensível e Lina o afasta de seu falso moralismo, resgatando aquilo que era essencial na tradição social

da época, a valorização daquilo que traz felicidade a cada um, em detrimento do severo julgamento das fraquezas humanas. Lélio, então, se sente seguro; em meio à instabilidade de seus sentimentos e ao conflito entre o querer a moça e o julgar sua conduta, percebe um norte a seguir: uma ética particular que remete ao melhor da tradição; seu desamparo findou. Finalizando, resta tão somente levar em consideração as advertências de Antônio Cândido sobre o erro de se apoiar em radicalismos metodológicos que abordem os textos literários sob uma única perspectiva. Para ele, é importante ver que o aspecto social abordado por uma obra literária, muitas vezes, é transcrito em efeito estético, já não cabendo aí a análise da Sociologia, mas sim da Crítica. O social e o estético se entrelaçam e se interagem na formação de uma obra literária e nenhum deles pode ser desprezado na sua análise.

Foi isso que se tentou fazer brevemente nesse artigo,

analisando como os recursos estéticos usados por Rosa traduzem a realidade social presente em “A estória de Lélio e Lina”.

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