Política e gestão cultural na América Latina: relato de um seminário

July 8, 2017 | Autor: Ilana Goldstein | Categoria: Políticas Públicas, Gestão Cultural, Gestion Cultural, América Latina, Políticas Culturais
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RELATO DO SEMINÁRIO P OLÍTICAS E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI Ana Letícia Fialho Ilana Goldstein

Com o objetivo de incentivar o incipiente intercâmbio latino-americano no campo da gestão e das políticas culturais, o Observatório Itaú Cultural promoveu, nos dias 19 e 20 de março de 2015, um seminário com convidados da Argentina, do Brasil, do Chile, da Colômbia, do México e de Porto Rico1. Ficou evidente que tais áreas, nos países representados, encontram-se em vias de desenvolvimento e pro ssionalização, razão pela qual o diálogo se fez tão pertinente. Este relato recupera, sem pretensão de exaustividade e com base na percepção subjetiva das autoras, algumas das temáticas e discussões do evento.

Exist e u m a iden t id a de lat in o-a m er ica n a?

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a abertura, o curador do seminário, Enrique Saravia, tratou do “latino-americano no século XXI” – tarefa tão necessária quanto controversa, pois a identidade não é um dado empírico e objetivo, mas uma percepção que depende do percebedor e do contexto. Uma identidade social não existe por si só, delineia-se a partir do contraste. Um brasileiro se sente mais brasileiro ao viajar para o exterior. Ao mesmo tempo, quando se identi ca com o conjunto genérico de brasileiros, coloca entre parênteses diferenças internas signi cativas em nome do desejo de pertencer a um coletivo. O antropólogo Claude Lévi- St rauss chegou a sustentar que a identidade não

tem essência xa, ela é “uma espécie de foco virtual ao qual nos é indispensável referir para explicar certo número de coisas, mas sem que tenha jamais uma existência real. [...] Sua existência é puramente teórica: é a existência de um limite ao qual não corresponde, na realidade, nenhuma experiência” (apud PENNA, 1992, p. 14). Em outras palavras, a identidade é uma construção histórica, uma representação parcial que apaga divergências internas no conjunto e supervaloriza certos aspectos em detrimento de outros. É o caso da mestiçagem, tão acionada no Brasil, desde o século XIX, para pensar a identidade nacional – e do “hibridismo cultural”2 latino-americano (CANCLINI, 2006). Como argumenta Néstor Canclini, na América Latina, ocorreram hibridismos

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inusitados de estruturas e práticas dos povos autóctones com estruturas e práticas dos colonizadores. Esse amálgama entre temporalidades e visões de mundo suscitou uma criatividade particular e, simultaneamente, gerou ambiguidades no processo de modernização do Estado e da economia. Alinhado com essa visão, Saravia enfatizou a mestiçagem e o hibridismo como marcas dessa região. Destacou também outras experiências comuns: a colonização de origem ibérica, a di culdade de inserção no panorama global, a fragilidade da democracia, a concentração de renda e a corrupção. A partir dessa caracterização do “latinoamericano”, uma ambivalência perpassou todo o evento: se por um lado a noção de identidade é problemática e questionável, principalmente nessa região tão vasta e diversa, por outro lado

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não podemos nos furtar de buscar elementos recorrentes. Como cará patente ao cabo deste relato, o seminário con rmou que, apesar das diferenças no âmbito da gestão e das políticas culturais, os países latino-americanos efetivamente enfrentam problemas similares. Pena que, como alguns palestrantes ressaltaram, conheçamos mais a Europa e os Estados Unidos do que os países vizinhos. Polít ica e at ivida de cu lt u r a l Na primeira mesa, o mexicano J orge Ruiz Dueñas alertou que diálogos culturais podem ser também guerras culturais. Interações entre povos diferentes sempre carregaram potencial de tensão. Mas nunca antes as fricções acarretaram impactos tão globais – o terrorismo é emblemático disso. Em sua opinião, a coabitação intercultural é

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o grande desa o do século XXI. Ele mencionou o Manifesto Convivialista 3 , divulgado na França entre 2010 e 2012, que propõe formas mais justas e solidárias de se viver. Do ponto de vista das políticas públicas, Ruiz Dueñas acredita que alguns segmentos sociais e regiões do globo necessitam de ações especí cas, relativas, por exemplo, à imigração, ao gap tecnológico e às tradições que lutam para existir em meio às práticas globais. Isso não deve, no entanto, ser traduzido em paternalismo, tutela ou congelamento da dinâmica cultural. Uma vez que a cultura e a identidade são dinâmicas, apesar das forças homogeneizadoras oriundas do Hemisfério Norte, as culturas locais têm capacidade de adaptação e recriação. O difícil, para os gestores culturais, é calibrar os vetores. “Ser moderno não é negar e reprimir o passado, mas tampouco faz sentido a polarização entre tradição e modernidade. A resistência à mudança não deixa de ser uma forma de reacionarismo. Um projeto latino-americano envolve erradicar as petri cações”, disse o palestrante. O único ponto que nos soou contraditório, talvez pela falta de tempo para desenvolvê-lo, foi a declaração de que “o multiculturalismo é minha bandeira”. O pensamento multiculturalista surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1970, para rea rmar identidades étnicas e de gênero. Minorias numéricas ou simbólicas se assumiram como atores políticos, reivindicando o direito à diferença. No multiculturalismo, cada segmento tende a se encerrar em si mesmo (HALL, 2005). Porém, como viera à tona na fala inicial de Enrique Saravia – quando se lembrou da frase proferida por Martí, em 1819, “Nós temos um problema: não somos índios, nem europeus”–, e como outros parti-

cipantes rati cariam ao longo do seminário, o paradigma que tem predominado na América Latina é o da miscigenação e do hibridismo, não o do multiculturalismo. O brasileiro J osé Márcio Barros fez a segunda intervenção, que consistiu em um balanço analítico e panorâmico das políticas culturais no Brasil atual, estruturado em duas linhas paralelas de re exão: uma mais voltada às políticas culturais em si, outra alinhada com questões mais amplas da sociedade brasileira. Na primeira linha, Barros destacou obstáculos crônicos, como o baixo orçamento do Ministério da Cultura (MinC); a fragilidade de nossas instituições; o federalismo demasiadamente vertical; a escassez de informações e indicadores culturais; as falhas na formação dos agentes culturais; a lógica dos projetos pontuais; e a descontinuidade das ações, em razão de mudanças de gestão ou de entraves burocráticos – problemas, aliás, que apareceram na fala de outros convidados. Na segunda linha de re exão, o palestrante ressaltou ser preciso buscar um novo lugar político para a cultura, arena na qual poderiam ser discutidas “questões que nos excedem e antecedem”, como as formas de participação democrática. Propôs alçar a cultura a um espaço de enfrentamento da pobreza e da desigualdade; questionou certa visão da economia criativa que “gentri ca” e higieniza a cidade; a rmou, ainda, não ser possível dissociar a discussão sobre políticas culturais, democratização da mídia e educação. Barros apresentou, por m, sua visão de diversidade cultural como um “conjunto de opostos”, um “projeto” e um “campo de disputas” – em sintonia com a exposição do palestrante que o antecedeu.

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Robério Braga, o terceiro a falar, abordou a vitalidade das políticas culturais no Amazonas em um pronunciamento surpreendente, pois poucos na plateia a conheciam. Entretanto, ele foi bem mais descritivo que analítico, listando os impressionantes feitos de sua gestão na pasta da cultura de seu estado, conduzida por ele há 18 anos. Eis um raro caso de continuidade, em que se alternam as gestões e os partidos, mas permanecem as políticas culturais. A avalia ção n a á r ea cu lt u r a l A segunda mesa do seminário enfocou a avaliação na área cultural. O primeiro convidado, Jaime Ruiz-Gutiérrez, lamentou que “muitos projetos culturais na Colômbia falhem por problemas administrativos”. Brincou, dizendo que “quem sonha demais tem de administrar pesadelos”. Em seguida, sintetizou três momentos do desenvolvimento das políticas culturais colombianas. De 1820 a 1930, a jovem República equiparava cultura e educação, priorizando missões educativas para “civilizar a plebe”. De 1930 a 1991, a cultura foi associada à memória nacional, com ênfase nos museus e no patrimônio. A nova Constituição promulgada em 1991 iniciou a fase atual, na qual a cultura é considerada fundamento da cidadania – impossível, aqui, não lembrar da Constituição de 1988, que normatiza os direitos culturais dos brasileiros. Per ceben do a im por t â n cia desse diagnóstico, o recém-criado Ministério da Cultura colombiano realizou um levant ament o de ações por t odo o país para compreender o que já existia e buscar uma coerência no conjunto de suas políticas. Assim surgiu o Compendio de Políticas

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Culturales, publicado em 20094 . Gutiérrez mencionou também um modelo de medição de impacto para ações culturais, utilizado em Bogotá e Medellín. Infelizmente, ele não detalhou o modelo, apenas explicou que se leva em consideração os seguintes elementos: infraestrutura cultural; públicos; apropriação das atividades culturais pela população; lantropia/mecenato; construção de legitimidade cultural, ou seja, reconhecimento de diferentes formas artísticas; valor agregado trazido por determinados eventos ou projetos culturais; e articulação das políticas culturais com as demais políticas públicas. A segunda intervenção foi de Lia Calabre, que comentou a avaliação do Programa Cultura Viva. Segundo seu relato, o programa teve o mérito de incorporar culturas não hegemônicas e segmentos da população pouco atendidos pelas políticas públicas. Seu escopo nacional e seu teor experimental zeram com que o Cultura Viva fosse alvo de duas avaliações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Calabre sublinhou que a potência do programa, que é a diversidade de Pontos de Cultura autônomos e espontâneos, com pers e atuações distintos, di culta as formas tradicionais de avaliação. Eis alguns trechos emblemáticos do relatório: [...] a heterogeneidade [...] tem re exo imediato na análise do programa, tornando praticamente impossível tecer generalizações durante o processo de avaliação [...]. As ações [...] multiplicaram-se sem que a elas correspondessem aos necessários requisitos institucionais para conduzi-las e mesmo monitorá-las 5 .

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Como desenvolver avaliações exíveis, pontuou a diferença ent re avaliações de que permitam fazer um balanço de progra- gestão, voltadas ao funcionamento organimas como esse? Como aumentar a dimensão zacional ou à implementação de uma nova qualitativa das avaliações de políticas cultu- política; de factibilidade, equivalentes a um rais? Essas foram indagações lançadas pela diagnóstico preliminar; e de impacto, que palestrante, cujas respostas talvez surjam julgam a relevância, a e cácia, a e ciência, das trocas de experiências como as realiza- as implicações de longo prazo e a sustentadas durante o seminário. bilidade de uma iniciativa. Calabre encerrou apontando um paraEm razão das especi cidades de cada doxo. Faltam, no Brasil, indicadores culturais contexto cultural e de cada instituição, é produzidos de forma sistemática. Por outro insu ciente se pautar por indicadores xos lado, nosso Plano Nacional de Cultura (PNC) e generalizáveis. Não obstante, o convidado con t ém 53 m et a s. A chamou a atenção para “ Se por um lado a noção de meta 5 estabelece, por a importância de comidentidade é problemática e exemplo, um: “Sistema parações entre países e questionável [ ...] , por outro lado Nacional de Patrimônio não podemos nos furtar de buscar regiões, o que pode ser Cu lt ural im plan t ado, elementos recorrentes” . facilit ado pelo uso de com 100% das Unidades pa r â m et r os com u n s, da Federação (UF) e 60% dos municípios como os Indicadores Unesco de Cultura para com legislação e política de pat rimônio el Desarrollo (IUCD), com suas sete dimenaprovadas”6 . Ora, se não há indicadores, nem sões: economia (contribuição da cultura ao pesquisas sistemáticas, ca difícil compro- PIB); educação (diversidade linguística/ var quais metas foram atingidas. papel da cultura no sistema escolar); goverO terceiro participante da segunda nança (marcos legais, normas); participação mesa, Hector Schargorodsky, falou sobre social (impacto da cultura no desenvolviavaliação de ações culturais. Ele listou os mento social e mecanismos de participação fatores que nela impactam positivamente: da população); comunicação (liberdade de o apoio político-governamental, a disponi- expressão/acesso a conteúdos culturais); bilidade de recursos e a sua exigência em igualdade de gênero; e patrimônio7. normas, editais e leis. Já os fatores negativos Independentemente do tipo e do esseriam: não a prever no planejamento, o des- copo da avaliação, seus resultados devem conhecimento dos dirigentes – nem sempre ser amplament e difun didos. A prát ica escolhidos por mérito –, bem como a baixa avaliativa se fortalece à medida que mais exigência dos cidadãos em relação à cultura. publicações são promovidas e mais formaO argentino sugeriu o uso combinado ções são ofertadas. Isso deixa claro como a de métodos qualitativos e quantitativos na avaliação contribui para nortear as políticas avaliação cult ural. Para ele, sempre que culturais, para corrigir falhas de projetos e possível, a avaliação deve ser conduzida de programas e até mesmo para aprimorar por pro ssionais externos. Schargorodsky os agentes e instituições culturais.

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Econ om ia cr iat iva : qu est ion a n do a dicot om ia en t r e cu lt u r a e m er cado A economia global atingiu tamanha competitividade que, hoje, os valores intangíveis e os signi cados culturais agregados às mercadorias são tão importantes quanto sua funcionalidade. Os bens e serviços que se destacam por sua singularidade e têm, simultaneamente, valor econômico e simbólico, compõem a chamada economia criativa. Como se trata de uma categoria relativamente nova e há poucas publicações em português sobre o assunto, surgem, inevitavelmente, divergências e ambiguidades. A começar pelos seus contornos empír icos. At ividades r elacion adas apen as indiretamente às artes fazem parte da economia criativa, caso do turismo, da gastronomia e dos games. Segmentos de escala e per l díspares a integram – é só pensar, por exemplo, no artesanato manual e na publicidade. Em outras palavras, não há consenso absoluto sobre o que entra ou não no conjunto da economia criativa. Observa-se também certa confusão conceitual, às vezes notada no seminário. Convém distinguir: 1. a indústria cultural, conceituada – e duramente criticada – pelo sociólogo Theodor Adorno no início do século XX, por tratar lmes, discos e livros como mercadorias quaisquer, destinadas a gerar lucro, e por di cultar o pensamento autônomo dos indivíduos (ADORNO, 1999); 2. as indústrias criativas, pilares das polít icas públicas para a cult ura

lançadas pioneiramente pelo Reino Unido, na década de 1990, com foco no desenvolvimento econômico baseado na criatividade; 3. os mercados de bens culturais, dos mais diversos tipos, não necessariamente ligados às indústrias culturais, capazes de ampliar as oportunidades de atuação e de renda dos pro ssionais criativos. É fato que a teoria e a prática da econ omia cr iat iva ain da est ão em vias de consolidação, e que ela extrapola a arena convencionalmente chamada de cultural. Isso provavelment e ajuda a explicar as dúvidas suscitadas pela fala da mediadora da terceira mesa. Cláudia Leitão introduziu esse tema fazendo uma dura crítica ao mercado cultural, o que causou certo estranhamento na audiência. A ex-responsável pela Secretaria da Economia Criativa do MinC (2011-2013) lament ou que a cult ura esteja cada vez mais ameaçada por um mercado voraz e por um Estado inoperante. Segundo seu relato, “a arte se tornou instrumento de legitimação de marcas capit alistas” e a existência de mais mercado implica “menos arte e menos signi cado”. Viveríamos a era do “capitalismo artístico”, com uma profusão de feiras, bienais, museus e festivais, na qual “maior difusão e acesso não retiram das indústrias o seu caráter concentrador”. De acordo com Leitão, seria necessário “pensar as indústrias criativas ou a economia criativa em oposição ao modelo anglo-saxão”. Mas quais seriam, então, a saída e o modelo alternativos e viáveis?

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As três falas seguintes sugeriram ser necessário um equilíbrio entre as políticas públicas para a cultura não rentável e o estímulo à economia criativa de forma convergente e complementar. Enrique Avogadro foi contundente: “Devemos deixar os preconceitos de lado, é preciso abraçar a mistura entre cultura e mercado!”. O argentino insistiu na diferenciação entre a esfera da cultura e a da economia criativa, a primeira a ser tratada no âmbito cultural (do Ministério da Cultura, quando for o caso) e a segunda, no âmbito da economia e do desenvolvimento. Ele lembrou que as políticas públicas se fazem ainda mais necessárias nas esferas atualmente fora do mercado. Avogadro é subsecretário de economia criativa da cidade de Buenos Aires, departamento vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, atuante em quatro frentes: Distritos Criativos, projeto que busca a melhoria de bairros menos desenvolvidos por meio das indústrias criativas; formação dos pro ssionais que trabalham nessas indústrias; desenvolvimento do empreendedorismo; e estímulo à inovação. Isso demanda um permanente diálogo entre educação, transporte, meio ambiente e economia criativa. Avogadro nalizou sua participação desa ando os poderes públicos: “Os governantes precisam repensar a forma pela qual oferecem os serviços públicos para os cidadãos”. J avier Hernandez Acosta, por sua vez, relatou quão recente é o campo da gestão cultural em Porto Rico: o primeiro curso data de 2008; o primeiro estudo sobre indústrias criativas foi publicado em 2013; uma legislação específica foi aprovada, mas ainda não ent rou em vigor. Acosta

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coordenou um diagnóst ico das políticas públicas nesse país, a partir do qual foram de nidas linhas estratégicas para o Estado, entre elas, a elaboração de normativas que permitem a criação de instituições híbridas e linhas especiais de nanciamento e o estímulo ao consumo da produção cultural local e regional. Além disso, foram criados uma conta satélite para a cultura e um observatório de políticas culturais para ajudar as empresas e ancorar as políticas públicas, simultaneamente. O chileno Bernabé Carrasco reiterou que o papel do Estado é “entreatuar ”, ou seja, atuar como mediador entre a cultura e o m ercado, e, para t anto, deve ent en der e estimular a economia criativa e seu potencial de transformação para além da dimensão econômica. As autoras deste texto compartilham da visão dos três convidados da mesa. Em países onde existe um campo cultural consolidado, coexistem, via de regra, políticas culturais efet ivas e indústrias culturais fortes. Em sistemas menos consolidados, como parece ser o caso da América Latina, pode haver um descompasso entre as diferentes instâncias de produção, legitimação, circulação e comercialização, com situações em que o mercado, frente à fragilidade das demais inst ân cias, assume um a função preponderante. No polo contrário, quando o mercado é incipiente e há uma intrínseca dependência do Estado, poucos criativos logram viver de seu trabalho, dependendo do subsídio público em tudo. Um m er cado din â m ico per m it e a um m aior número de criativos viver de seu t rabalho. Por outr o lado, n em t oda

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produção cultural tem vocação comercial. É fundamental a presença do Est ado no desenvolvimento de políticas de fomento à produção e circulação de bens culturais, bem como, ao mesmo tempo, a regulamentação e a criação de um ambiente saudável para o crescimento do mercado, que não deve assumir, à defaut, a responsabilidade unilateral pelo estímulo à produção artística, sua legitimação e comercialização. Tecn ologia e açã o cu lt u r a l Em virtude das novas tecnologias, o século XXI é o século das “sociedades em rede”, usando uma expressão de Manuel Castells, para quem redes são estruturas abertas capazes de se expandir de forma ilimit ada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dent ro da rede [...]. Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico, suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio (CASTELLS, 1999, p. 499).

Na introdução à mesa Tecnologia e Ação Cultural, o mediador Albino Rubim destacou a singularidade deste momento histórico, em que se alterou completamente nossa relação com o tempo, o espaço e as outras pessoas. Trata-se de uma “nova sociabilidade, vivemos planetariamente em tempo real, e isso nunca aconteceu na história da humanidade”, a rmou. Tais transformações impactam, evidentemente, na forma como produzimos, fruímos e consumimos cultura, abrindo um leque de possibilidades em termos de colaboração, autonomia criativa,

experimentação e remix, temas revisitados, em maior ou menor grau, pelos demais participantes da última mesa. Sérgio Amadeu enfatizou a interferência dos processos tecnológicos na criação e disseminação da cultura contemporânea. Segundo seu relato, as tecnologias digitais colocam em xeque os modelos de intermediação convencionais no mundo industrial – novas formas de gravação e divulgação, por exemplo, revolucionaram o campo da música. Importante também o seu questionamento sobre a estrutura da legislação vigente acerca da propriedade intelectual, ultrapassada frente às creative commons. Segundo o convidado brasileiro, a proteção da propriedade intelectual é “ideológica” e difícil de sustentar na contemporaneidade. No lugar da restrição de acesso – aliás, cada vez mais impraticável –, é a circulação ampla e democrática das obras culturais que assegurará sua divulgação e continuidade. Amadeu só não entrou na seara espinhosa da remuneração dos criadores, uma vez que, nesse modelo, o pagamento de direitos autorais tende a se extinguir. As duas intervenções seguintes adotaram outra perspectiva e trouxeram exemplos de como as novas tecnologias podem ser utilizadas para a formação de gestores culturais. J ohanna Mahut Tafur, da Colômbia, relatou experiências de formação em gestão cultural, entre 2009 e 2011, com o uso de diferentes tecnologias, do rádio ao vídeo, passando por textos digitais e interações on-line, que permitiram oferecer (re)cursos mesmo nos lugares mais distantes de seu país e atender grupos de diferentes etnias e com diversos repertórios culturais.

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Roberto Pimenta apresentou o trabalho igualmente importantes são as competêndesenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas cias necessárias para manejá-los, o grau de (FGV) para o MinC, também de formação a familiaridade com esse universo e o repertódistância para agentes culturais, destacan- rio digital do cidadão. Além do acesso físico, do as di culdades de se realizar um trabalho não se pode negligenciar a importância da como esse quando o ensino a distância ainda apropriação da tecnologia para o desenvolestava em seus primórdios, e em um contexto vimento da vida cultural dos sujeitos. tão heterogêneo como o brasileiro. Embora iniciativas de formação a dis- Con sider ações n a is t ância de gestores culturais por meio de Não poderíamos deixar de destacar o plataformas digitais sejam interessantes, ineditismo do seminário em termos de sua conforme destacado pelos dois convidados abrangência regional, bem como a compoda mesa, o potencial das novas tecnologias sição das mesas, que conjugou perspectivas para as artes e a cultura de pesquisadores acadêé muit o m ais amplo e “ É fundamental a presença do m icos, de pr ofessor es complexo. Infelizmente, Estado no desenvolvimento de form adores de gestores parece que as políticas políticas de fomento à produção cu lt u r a is, de ges t or es cu lt u r a is n a Am ér ica e circulação de bens culturais, públicos voltados à culbem como, ao mesmo tempo, a Lat in a ain da n ão t irat ura e de pr ofission ais regulamentação e a criação de que transitam entre pesram todas as possíveis um ambiente saudável para o quisa aplicada e políticas consequências da nova crescimento do mercado.” públicas. Consideramos realidade. Seria preciso, por exemplo, potencializar a digitalização igualm ent e louvável a preocupação do de acervos e incentivar de novas maneiras Observatório Itaú Cultural em registrar as plataformas para criações colaborativas. seus eventos e disponibilizar os conteúdos Além disso, como obser vado pelo produzidos dentro de seu espaço, por meio público durante o debate, é necessário con- do acesso a vídeos e relatos críticos. O cuisiderar os diferentes graus de familiaridade dado com a memória institucional e com o das pessoas com relação à tecnologia e à acesso ao conhecimento constituem pontos interatividade, bem como a importância de nevrálgicos da gestão cultural. não apenas disponibilizar conteúdos, mas Uma das maiores dificuldades ao se também de capacitá-las para o manejo autô- organizar um seminário é reunir as internomo e criativo das plataformas digitais e venções nas mesas em torno de uma questão dos aparatos tecnológicos. Normalmente, comum, que conecte e permita cotejar as quando se discute inclusão digital – aliada falas dos participantes. No Seminário Políincontornável da democracia cultural –, ticas e Gestão Cultural na América Latina no enfat iza-se som ente a possibilidade de século XXI, nem sempre encontramos um o utilizar um computador, tablet ou celu- condutor para as falas de cada mesa, como lar em conexão com câmeras etc. Porém, deve transparecer no relato. Por outro lado,

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o tempo generoso deixado ao debate com o público após as intervenções – normalmente suprimido ou restrito em eventos similares – foi muito bem-vindo. Levando em conta a audiência maciça do público nos dois dias do evento e considerando o número de perguntas e observações feitas pela plateia ao cabo das mesas, cou claro existir uma demanda por esse t ipo de arena de intercâmbio regional. Ao nal deste relato, temos certeza de que o seminário merece desdobramentos futuros. Talvez eles possam ser encabeçados pelo próprio Observatório Itaú Cultural em parceria com as instituições representadas no encontro e com out ras tantas, provavelmente ávidas por trocar experiências com os vizinhos do Cone Sul. Aproveitamos o presente relato para fazer duas sugestões. A primeira diz respeito à eventual construção de um banco de pesquisas e indicadores sobre cultura. Diversos convidados apontaram a raridade e a inacessibilidade desse tipo de material8. Ainda que, nos últimos anos, tenham surgido pesquisas sobre hábitos culturais e setores especí cos da cultura, muitas não são publicadas ou encontram-se dispersas nos sites das instituições responsáveis. Há, inclusive, risco de redundância, pois alguns estudos tocam em questões similares, sem, no entanto, dialogar. Acreditamos que o Itaú Cultural, juntamente com outros parceiros, poderia constituir uma plataforma de fácil acesso, com organização e compilação das pesquisas existentes, em todos os níveis, setores e cadeias, assim como de exemplos de estudos e de indicadores de outros países, de forma a sanar essa lacuna e estimular o

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compartilhamento de experiências e conhecimentos já existentes. A segunda sugestão possível se refere à experimentação de novos formatos de encontro. Ao menos n o Brasil, multiplicaram-se ult imamente as discussões e a bibliogra a sobre gestão cultural, mas não necessariamente as oportunidades de pensar e construir juntos. Talvez fosse o caso de pensar em novos formatos, mais próximos de um workshop, com exposições mais longas e verticalizadas, mais tempo para o debate e possibilidade de atividades práticas colaborativas, focadas em alguns dos desa os comuns apontados nesse seminário. Uma pessoa na plateia chegou a mencionar que participa de uma bem-sucedida plataforma colaborativa de formação em gestão cultural, com abrangência internacional, na qual equipes com pessoas de diferentes países realizam atividades conjuntamente9. O seminário con rmou a relevância de compartilhar metodologias e a pertinência da eventual criação de categorias e indicadores comuns na América Latina. Mostrou que precisamos continuar a levantar necessidades regionais, estudar prioridades nacionais e avaliar os impactos das ações já implementadas. Tudo isso de forma contínua e articulada, construindo séries históricas que permit am comparações. Esperamos que o encontro promovido pelo Itaú Cultural tenha sido o primeiro de muitos outros passos nessa direção.

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A na Let ícia Fialho Advogada, gestora cultural, doutora em ciências da arte e da linguagem pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris (EHESS), consultora em gestão e inteligência comercial do Programa Cinema do Brasil e pesquisadora associada ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/ USP). É ainda coautora do livro O Valor da Obra de Arte.

Ilana Go ld st ein Especialista em direção de projetos culturais pela Universidade Paris 3 e doutora em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi coordenadora do MBA em Bens Culturais na Fundação Getulio Vargas de 2008 a 2014 e, atualmente, é professora de antropologia na Universidade Federal de São Paulo. É autora de vários artigos sobre arte e cultura e dos livros O Brasil Best-Seller de Jorge Amado: Literatura e Identidade Nacional e Responsabilidade Social: das Grandes Corporações ao Terceiro Setor. Também atua há mais de 15 anos como consultora nas áreas social e cultural.

Referências b ib lio g rá cas ADORNO, Theodor. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999. BARBOSA DA SILVA, Frederico; ARAÚJO, Herton Ellery (Org.). Cultura viva: avaliação do programa Arte, Educação e Cidadania. Brasília: Ipea, 2010. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2006. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. PENNA, Maura. O que faz ser nordestino. São Paulo: Cortez, 1992. REIS, Ana Carla Fonseca (Org.) Economia criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural: Garimpo de Soluções, 2008.

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A programação detalhada do seminário está disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2015.

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Néstor García Canclini prefere o termo hibridismo em vez de mestiçagem porque hibridismo “abrange diversas mesclas interculturais – não apenas raciais, às quais costuma limitar-se o termo ‘mestiçagem’ – e porque permite incluir as formas modernas de hibridação” (CANCLINI, 2006, p. 19).

3

O Manifesto Convivialista, organizado por Alain Caillé, foi traduzido para várias línguas. No Brasil, foi publicado pela editora Annablume.

4

O compêndio colombiano de políticas culturais está disponível na íntegra no endereço: . Acesso em: 9 abr. 2015.

5

Uma das avaliações do Ipea sobre o Cultura Viva foi publicada em forma de livro, organizado por Barbosa da Silva e Araújo (2010).

6

As metas do Plano Nacional de Cultura estão no link: . Acesso em: 9 abr. 2015.

7

Para saber mais sobre os Indicadores Unesco de Cultura para el Desarrollo (IUCD), consulte: . Acesso em: 10 abr. 2015.

8

As autoras do presente relato também já se debruçaram sobre o tema em texto publicado pela Revista Observatório Itaú Cultural, n. 13. Como escrevemos na ocasião, acreditamos que diagnósticos e avaliações garantem maiores chances de êxito às políticas, aos programas e aos projetos culturais e representam oportunidades ímpares de aprendizagem e re exão para as equipes envolvidas.

9

Embora não tenha sido citado nominalmente, acreditamos que se trate do curso MOOC: Managing the Arts, Marketing for Cultural Organizations, proposto pelo Goethe Institut e pela Leuphana Digital School. Mais informações sobre o formato e o conteúdo encontram-se na plataforma: .

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