Política, religião e violência: uma breve análise da situação dos cristãos no Egito

May 30, 2017 | Autor: Márcia Fernandes | Categoria: Egypt, Muslim-Christian Relation, Egyptian Coptic Christians
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POLÍTICA, RELIGIÃO E VIOLÊNCIA: uma breve análise da situação dos cristãos no Egito

Márcia de Paiva Fernandes

Dentre os meses de junho a agosto, notícias sobre episódios de violência contra os cristãos no Egito aumentaram nos jornais egípcios e internacionais. Ataques a igrejas, a propriedades de cristãos e até mesmo contra indivíduos ocorreram em um número relativamente maior em comparação com outros meses. A explicação para esse fato é complexa: muito mais do que de clivagens religiosas, os episódios de violência sectária no Egito parecem resultar de uma complexa relação entre o Estado e as suas comunidades religiosas que envolve distintos posicionamentos políticos. Esse artigo, portanto, não se baseia em argumentos equivocados que buscam atribuir ao Islã a razão da perseguição aos cristãos, mas busca analisar o histórico da relação entre estes e os muçulmanos e deles com o Estado egípcio a fim de encontrar aí uma possível resposta para a ocorrência de ataques sectários no país. Para tanto, será realizada uma breve apresentação do histórico da relação entre as comunidades cristã e muçulmana do Egito, enfatizando o contexto dos protestos de 2011, o governo de Morsi e a chegada de Sisi ao poder.

CRISTÃOS E MUÇULMANOS NO EGITO: o histórico de uma relação milenar

Um aspecto importante da composição social do Egito refere-se às comunidades religiosas que existem no país. Embora o censo oficial do governo não seja muito confiável, estima-se que noventa por cento dos egípcios são adeptos do Islã, enquanto os outros dez por centro são compostos por diferentes grupos cristãos. Dentre eles, o que mais se destaca é o dos seguidores da Igreja Ortodoxa Copta que representam a maior comunidade cristã do Oriente Médio (SCOTT, 2010).
Os cristãos ortodoxos coptas do Egito atribuem a origem de sua Igreja à pregação do apóstolo Marcos e se diferenciam dos católicos apostólicos romanos por uma crença diferente a respeito da natureza de Jesus Cristo: enquanto os últimos acreditam que os aspectos humano e divino de Jesus formam duas naturezas, a Igreja Ortodoxa Copta afirma a crença na união desses dois aspectos em uma única natureza que, por definição, divina. Perseguidos pelo Império Bizantino devido à essa crença monofisista quando o Egito era uma de suas províncias, os coptas apoiaram a conquista do país pelos árabes muçulmanos por volta do ano de 640 devido à maior liberdade religiosa que passariam a ter sob seu governo (HOURANI, 2006).
Conforme o Islã se tornou a religião majoritária no Egito, ocorreram mudanças no relacionamento entre cristãos e muçulmanos. Os primeiros passaram a ser considerados dhimmis, ou seja, pessoas que deveriam ser protegidas pelos muçulmanos por serem consideradas como um dos Povos do Livro, não cabendo a elas certas obrigações e proibições. Por outro lado, elas eram privados de um tratamento igualitário perante os muçulmanos e, embora esse tipo de relação entre eles tenha permitido a manutenção da fé cristã pelos seus seguidores, ela não era caracterizada pela igualdade (SCOTT, 2010).
Ao longo do tempo, a relação entre cristãos e muçulmanos no Egito variou bastante, sendo marcada por momentos de estabilidade e por outros de tensão. Durante a colonização britânica no país, muitos coptas foram favorecidos pelos invasores que os empregavam nos serviços burocráticos do Estado e isso fez com que os cristãos fossem identificados com os colonizadores, gerando uma tensão no seu relacionamento com os muçulmanos, embora esse também tenha sido um período de formação de uma importante elite copta. Apesar disso, muçulmanos e cristãos se opuseram à presença britânica no país e, embora não se possa desconsiderar as diferentes aspirações dos dois grupos que não cessaram de existir, esse período demonstrou uma união em prol do objetivo de ver o Egito livre da presença estrangeira (SCOTT, 2010).
Esse ideal se concretizou no ano de 1922 quando a Grã-Bretanha reconheceu a independência do Estado egípcio que passou a ser governado por um regime monárquico e que teve a sua primeira Constituição promulgada em 1923. Sob a monarquia, a relação entre cristãos e muçulmanos não se alterou em comparação com o período colonial, mesmo porque os britânicos só seriam expulsos definitivamente do país com a Revolução dos Oficiais Livres trinta anos depois. Por outro lado, o primeiro texto constitucional do Egito trouxe em seu Artigo 149 a afirmação de que o Islã passaria a ser a religião do Estado (SCOTT, 2010; EGITO, 1923).
A presença do Islã como religião oficial do Egito, embora gere algum descontentamento por parte dos coptas, deve ser entendida a partir do histórico da formação do Estado egípcio no qual a religião islâmica desempenhou um papel fundamental. Isso porque foi a concepção de uma sociedade majoritariamente muçulmana que moldou essa formação, sob forte influência europeia, e que manteve o vínculo entre política e religião no Egito moderno. Nesse processo, a comunidade copta não esteve inerte ou submissa e, se antes da formação do Estado egípcio moderno, as relações entre cristãos e muçulmanos eram pautadas principalmente pelos preceitos do Islã, o fato dele ser considerado como a religião do Estado oficializou uma prática que já acontecia há muitos anos e, ademais, as garantias aos Povos do Livro foram mantidas e até melhoradas. Portanto, é preciso analisar a presença do Islã na Constituição como parte de um acordo de convivência entre as várias comunidades religiosas do país e não como uma imposição religiosa sobre elas (FERNANDES, 2015).
Mesmo durante o governo socialista de Nasser, o Islã continuou sendo a religião oficial do Egito, o que se acentuou ainda mais com seu sucessor, Anwar al-Sadat. Com o intuito de enfraquecer a oposição que os nasseristas faziam à abertura econômica promovida por seu governo, Sadat libertou os adeptos de movimentos islamistas que foram perseguidos por Nasser e lhes concedeu maior liberdade de atuação política. Um dos resultados disso foi a adoção do Artigo 2 na Constituição de 1971 que reafirmou o Islã como a religião de Estado e estabeleceu a jurisprudência islâmica como uma das principais fontes de legislação, o que foi alterado em 1980 para declarar os princípios dessa jurisprudência como a principal fonte (MARSOT, 2007; EGITO, 1971).
A próxima mudança do aspecto religioso na Constituição egípcia ocorreria apenas com o texto constitucional de 2012, adotado pelo governo de Mohammed Morsi. A inovação foi a adoção do Artigo 3 que garantia o direito de cristãos e judeus solucionarem os seus problemas religiosos e de status pessoal com base nos princípios de seus respectivos cânones. Essa prática já era muito antiga no Egito, no entanto, esse direito passou a ser assegurado pela Constituição que, ademais, proibiu o insulto contra mensageiros e profetas – o que inclui Jesus Cristo – e afirmou seu comprometimento com o revigoramento da religião no país (EGITO, 2012).
A presença do Artigo 3 pode ser interpretada como uma evidência do jogo político travado por atores religiosos no Egito a partir da destituição de Mubarak. Desde o início dos protestos em 2011, o Patriarca Shenouda III manifestou sua rejeição a eles e pediu que os coptas não participassem de manifestações que visavam a destituição de um presidente favorável aos interesses cristãos. O já falecido Patriarca deve ter temido a ascensão de um muçulmano mais radical ou pouco inclinado aos interesses da Igreja e que reproduziria o cenário desfavorável aos coptas que ocorreu durante o governo de Sadat, marcado pela repressão política aos cristãos e pelo exílio de Shenouda III. Entretanto, muitos cristãos egípcios participaram ativamente, ao lado dos muçulmanos, das manifestações de 2011 (SCOTT, 2010; KALIN, 2015).
Nesse sentido, o Artigo 3 pode ser entendido como uma garantia fornecida por um presidente membro de um grupo islamista à comunidade cristã local de que, mesmo que seu Patriarca tenha sido contra a sua eleição, ele não governaria apenas para os muçulmanos, mas para todos os egípcios, observando as suas singularidades. Morsi, entretanto, evidenciou em alguns momentos uma falta de atenção para com os coptas – o ex-presidente chegou a marcar a data das eleições parlamentares para o domingo da páscoa copta, o que teve que mudar posteriormente – e não promoveu um esforço de aumentar a sua participação política, o que gerou dúvidas a respeito de sua atenção para com as necessidades da comunidade cristã (SEDRA, 2013).
Nesse cenário de preocupações, foi possível observar uma rejeição de muitos coptas ao governo de Morsi e, quando o General Sisi anunciou a sua destituição, o atual Patriarca Tawadros II estava ao seu lado, juntamente com o Grande Imã de Al-Azhar, autoridades e militares. O preço pago pelos coptas devido à presença de seu Patriarca ao lado de Sisi foi alto: eles passaram a ser identificados como apoiadores de um golpe de estado, como aliados dos interesses estrangeiros que desejavam controlar o Egito para obter ganhos econômicos e estratégicos, e até mesmo de planejarem criar um Estado cristão dentro do país. As acusações se transformaram em episódios de violência com ataques a igrejas, a propriedades de cristãos e agressões físicas, especialmente nas províncias de Minya e Assiut onde a presença copta na população é maior (MAHER, 2013).
No dia quatorze de agosto de 2013, houve uma manifestação dos apoiadores de Morsi nas praças Rabaa al-Adawiya e al-Nahda e que foi violentamente reprimida pelo aparato de segurança do Estado, custando a vida de cerca de mil pessoas. Esse episódio marcou o início da repressão à Irmandade Muçulmana desencadeada pelo governo de Sisi e, novamente, repercutiu sobre os coptas: muitas igrejas foram atacadas no país, no que pode ser interpretado como um reconhecimento por parte de alguns seguidores de Morsi de que os cristãos apoiaram a sua destituição e a ascensão do atual presidente que era o responsável pelo massacre (IKHWANWEB, 2015; KINGSLEY, 2014).
É nessa lógica, portanto, que os atuais ataques contra os cristãos podem ser analisados. É importante deixar claro que os episódios de violência contra eles não devem ser justificados por argumentos que buscam culpar o Islã como uma religião propagadora da intolerância. Argumentos como esse demonstram a falta de conhecimento sobre essa religião que, assim como a cristã, faz um apelo aos seus seguidores para que busquem viver em paz com os demais. Além disso, em todos esses casos de ataques contra cristãos, também foi possível observar muitos muçulmanos sendo solidários com eles.
Os episódios de violência sectária contra os cristãos no Egito não são necessariamente levados a cabo pelo fato desses indivíduos serem cristãos, mesmo porque é possível observar muitas semelhanças nas crenças do Islã e do Cristianismo. A principal razão desses ataques é de natureza política, seja pelas posições assumidas pela Igreja durante momentos tensos na política egípcia ou pela opinião individual de cristãos que eram contra Morsi e que são favoráveis a Sisi. Assumir uma posição política não deveria ser motivo para episódios de violência – e nem mesmo o fato de a Igreja Copta adotar uma postura política deveria, por si só, ser criticado, já que no Egito a relação entre Estado e instituições religiosas é de longa data –, mas é preciso entender que os ataques sectários no país são o resultado de uma relação complexa entre atores políticos e religiosos, o que permite analisá-los como uma resposta dada por alguns indivíduos ao que é entendido como o posicionamento político de uma comunidade religiosa. As datas em que os ataques se acentuam atualmente no Egito são aquelas em que se cumprem mais um ano da destituição de Mubarak e, em especial, de Morsi: de janeiro a agosto desse ano, quarenta episódios de violência sectária contra os cristãos foram registrados no Egito, sendo que dezoito deles – quarenta e cinco por cento do total – ocorreram entre os meses de junho e agosto que correspondem aos meses em que, no ano de 2013, iniciaram-se as manifestações contra Morsi que seria deposto em julho e cujos apoiadores seriam massacrados no mês seguinte (ESHHAD, 2016).
Cristãos e muçulmanos sofrem com o atual cenário da política egípcia onde direitos humanos são desrespeitados e as liberdades civis e políticas são ignoradas pelo atual governo. Apesar disso, é possível encontrar dentro da comunidade cristã apoiadores de Sisi devido ao fato de seus seguidores temerem a ascensão de um presidente pouco inclinado às suas necessidades, assim como é possível encontrar muçulmanos que o apoiam devido ao receio de que uma nova transição política aumentaria ainda mais a instabilidade do país. Mesmo assim, episódios de violência sectária contra os coptas ocorrem e é preciso entender que nem todos eles são motivados por clivagens religiosas, mas também por posições políticas que foram assumidas por membros das diferentes comunidades religiosas do país nos últimos anos.
É na intrincada relação entre Estado e comunidades religiosas, portanto, que deve ser buscada uma solução para a violência sectária no Egito tal como ela se manifesta hoje. Essa busca deve ser pautada, em primeiro lugar, pelo respeito às diferentes religiões que existem no país, e também pelo entendimento do histórico daquela relação. Além das próprias instituições religiosas – cristãs e muçulmanas – que devem desempenhar um importante papel de autocrítica e de educação de seus seguidores nesse processo, cabe também ao Estado egípcio reconhecer sua parcela de responsabilidade e promover um debate sobre os problemas enfrentados por suas comunidades religiosas, e não tentar escondê-los como tem feito. Embora o cenário atual faça essa proposta parecer uma utopia devido à dura repressão do governo de Sisi, ela não é impossível de se concretizar: a religião é um elemento muito forte na história egípcia e um país que se orgulha de ter sido importante para as três religiões monoteístas cedo ou tarde perceberá a importância de abordar esse tema.


REFERÊNCIAS

EGITO. Constituição (1923). Royal Decree Nº 42 of 1923: Building a Constitutional System for the Egyptian State. Disponível em: .

_____. Constituição (1971). Constitution of the Arab Republic of Egypt 1971. Constitution Net. Disponível em: .

_____. Constituição (2012). The Constitution of the Arab Republic of Egypt. Disponível em: .

ESHHAD. ESHHAD QUARTERLY REPORT: Januray-March 2016. Disponível em: .

FERNANDES, Márcia de Paiva. Entre a tradição e a transformação: os dilemas da política
egípcia analisados à luz da teoria de Robert Dahl. 2º Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas. Campinas, 2015. Disponível em: .

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

IKHWANWEB. Anti-Coup Coalition Calls for Protests to Commemorate 2nd Anniversary of Rabaa Massacre, 2015. Disponível em: .

KALIN, Stephen. Egypt's Copts praise Sisi but await more tangible support. Reuters, 21 mai. 2015. Disponível em: .

KINGSLEY, Patrick. Egypt's Rabaa massacre: one year on, 2014. Disponível em: .

MAHER, Ahmed. Egypt's Coptic Christians pay price of political turmoil. BBC, 17 jul. 2013. Disponível em: .

MARSOT, Afaf Lutfi Al-Sayyid. A History of Egypt: From the Arab Conquest to the Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2ª ed., 2007.

SCOTT, Rachel M. The Challenge of Political Islam: Non-muslims and the Egyptian State. Stanford: Stanford University Press, 2010.

SEDRA, Paul. The Copts Under Morsi: Leave Them to the Church. Middle East Institute, mai. 2013. Disponível em: .


Bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas e Mestranda em Ciência Política na UNICAMP. Email: [email protected]
Visando a praticidade da leitura do artigo, o uso das palavras cristão e copta será empregado para se referir aos seguidores da Igreja Ortodoxa Copta. Entretanto, deve-se destacar que nem todo cristão egípcio é ortodoxo ou copta, já que existem no país católicos, protestantes, anglicanos, cristãos armênios e maronitas.
O sistema dhimmi se aplicava aos Povos do Livro, ou seja, aos cristãos e aos judeus, por eles terem colaborado com a expansão do Islã. As afirmações sobre ele nesse artigo não devem ser entendidas como provas de uma política de segregação defendida pelo Islã, mas sim como uma evidência do modo como as autoridades da época optaram por lidar com as comunidades religiosas, muitas vezes mobilizando princípios religiosos para justificar o sistema sem considerar o contexto no qual foram adotados. Esse uso, portanto, não deve ser entendido como a regra geral para a sua aplicação.

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