Políticas Culturais e Ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

May 23, 2017 | Autor: José Lopes | Categoria: Políticas Culturais
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POLÍTICAS CULTURAIS E AMBIENTAIS NO BRASIL: DA NORMATIVIDADE ÀS AGÊNCIAS COLETIVAS

© LapCAB 2016 Preparação dos originais: CirKula Editora Projeto gráfico: CirKula Editora Diagramação: Mauro Meirelles Capa: Luciana Hoppe CirKula / LapCAB / SobreNaturezas Todos os direitos reservados ao LapCAB. Apoio e Financiamento: CAPES/FAPERGS/UNISINOS/PUCRS/CIRKULA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P769 Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas / José Rogério Lopes, Carlos Alberto Steil, Rodrigo Marques Leistner (Organizadores). – 1.ed. – Porto Alegre: CirKula, 2016. ISBN: 978-85-67442-71-6 Este livro foi organizado com as contribuições de expositores do Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil, realizado na Unisinos, RS, em julho de 2016. 1. Cultura – Brasil. 2. Política cultural. 3. Política ambiental. 4. Meio ambiente – Brasil. I. Lopes, José Rogério. II. Steil, Carlos Alberto. III. Leistner, Rodrigo Marques. CDU: 316.7(81) (Bibliotecária responsável: Jacira Gil Bernardes - CRB 10/463)

A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui-se em violação de direitos autorais nos termos da Lei 9.610/98.

Editora CirKula Rua Ramis Galvão, 133 - Passo d’Areia Porto Alegre - RS - CEP: 91340-270 e-mail: [email protected] Loja Virtual: www.cirkula.com.br

POLÍTICAS CULTURAIS E AMBIENTAIS NO BRASIL: DA NORMATIVIDADE ÀS AGÊNCIAS COLETIVAS

José Rogério Lopes Carlos Alberto Steil Rodrigo Marques Leistner (Organizadores)

Porto Alegre 2016

Conselho editorial César Alessandro Sagrillo Figueiredo José Rogério Lopes Jussara Reis Prá Luciana Hoppe Mauro Meirelles Simone Sperhacke Conselho CientífiCo Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universidade da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade Católica Argentina. André Corten (Canadá) - Doutor em Sciences Politiques et Sociales pela Universidade de Louvain e Professor de Ciência Política da Universidade de Quebec em Montreal (UQAM). André Luiz da Silva (Brasil) - Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté. Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I - PanthéonSorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales e Professor Titular de Sociologia da UFRGS. Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Professor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal. Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Departamento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS. Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne. Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Associada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da Antonio Meneghetti Faculdade (AMF). Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM). José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH- USP e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Ciências Humanas da UFFS. Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Marcelo Tadvald (Brasil) - Doutor em Antropologia Social, Pesquisador do Núcelo de Estudos da Religião (NER/UFRGS) e Bolsista PNPD da UFRGS. Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Professora da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP). Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora pela UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS. Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador ligado ao Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (LAVIECS/UFRGS), PósDoutorando em Ciências da Unisinos e Pesquisador do LapCAB/Unisinos. Simone L. Sperhacke (Brasil) - Doutoranda em Design pela UFRGS. Mestre em Design e Tecnologia e graduada em Desenho Industrial. Silvio Roberto Taffarel (Brasil) - Doutor em Engenharia e professor do Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração do Unilasalle. Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de Paris XNanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre. Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação da UFFS. Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela Universite de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) e em Science Sociale pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e, também, Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do Unilasalle.

sumário 9

ApresentAção

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José Marcio Barros diversidade bioCultural na polítiCa Cultural brasileira: uma aproximação ao snC e pnC

51

Carlos Alberto Máximo Pimenta apontamentos sobre polítiCas Culturais no brasil: proposições iniCiais no Campo da diversidade Cultural

69

Breno Augusto Souto Maior Fontes redes e polítiCas Culturais: o protagonismo dos atores Coletivos na Construção de suas trajetórias identitárias

83

Aloisio Ruscheinsky protagonismo de atores Coletivos e polítiCas ambientais Com a inClusão do outro

107

Rodrigo Marques Leistner atores soCiais e proCessos de mediação no âmbito das polítiCas Culturais e ambientais

125

Gabriela Scotto disCursos globais e produção soCial do loCal: o desenvolvimento sustentável e a mineração responsável Como prátiCa disCursiva e modelo para a ação empresarial

147

André Luiz da Silva José Rogério Lopes Paolo Totaro os figureiros de taubaté (sp): tradição, diferenCiação e inovação na arte popular

167

sobre os Autores

apresentação Este livro foi organizado com as contribuições de expositores do Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil, realizado na Unisinos, RS, em julho de 2016. O Seminário foi organizado e coordenado pelo LaPCAB-Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil: gestão e inovação, sediado no PPG Ciências Sociais Unisinos, em parceria com o Grupo de Pesquisas SobreNaturezas, sediado no PPG Educação da PUC-RS. A perspectiva que orientou as elaborações dos expositores foi definida por um conjunto de investigações em desenvolvimento no projeto “Políticas culturais e ambientais, comunidades e patrimônios no Brasil: algumas questões epistêmicas”, financiado pela FAPERGS, através do Edital PqG-2014. Neste projeto, coordenado desde o Laboratório, uma rede de pesquisadores estabelecidos em diferentes universidades, regiões e estados do país tem realizado investigações sobre as trajetórias e práticas de coletividades e comunidades de atores produtores de bens identitários, ou de marcação social (artesãos, extrativistas, pescadores, entre outros) que se reconhecem em um contexto ambiental determinado e utilizam, nas suas atividades, tecnologias patrimoniais que integram as percepções locais de cultura e ambiente. As diversas análises que vimos elaborando sobre tais trajetórias e práticas têm indicado que uma análise geral dos casos pesquisados (33 casos na primeira fase; 10 na segunda e atual) deveria ser complementada por alguns perspectivismos situacionais, nos quais as trajetórias homólogas de algumas dessas comunidades e coletividades são orientadas por projetos institucionais ou formais, como associações, cooperativas e outras formações coletivas e institucionais de trabalho colaborativo. Desde suas origens, esses projetos foram marcados por uma experiência e uma consciência sensível de interação dos atores com seus contextos ambientais, extraindo as matérias-primas com as quais produzem seus bens identitários. Na produção desses bens, ou artefatos culturais, os atores estabeleceram técnicas e saberes acerca Apresentação | 9

da sustentabilidade ambiental, que harmonizam com a própria percepção de si, como indivíduos, comunidades ou coletividades que habitam paisagens.singulares. Ocorre que nas trajetórias de tais projetos foram identificados agenciamentos exógenos que deslocam a percepção de si que as comunidades produzem em relação com a natureza (seja na coexistência entre elas, seja na elaboração de produtos, bens e artefatos, seja na processualidade de tecnologias patrimoniais), gerando arranjos que expandem o reconhecimento, pelos outros, da qualidade primordial de sua identidade, em relação com a natureza. Os agenciamentos exógenos que se operam sobre a qualidade primordial da identidade dessas comunidades imprimem uma tensão nas perspectivas de sua consciência sensível, formada na interação com a natureza, ao ofertarem uma consciência intelectual que atravessa a relação das mesmas com os objetos ou coisas que compõem o mundo. Na maioria dos projetos que investigamos, esses deslocamentos foram se produzindo pela asssociação de suas tradições às concepções intelectuais ou institucionais de cultura (e suas diversas classificações, como a de cultura popular) e, mais recentemente, pela associação às concepções de cultura como recurso, no enquadramento desses projetos às esferas econômica, de desenvolvimento ou modernização. Premidos por tais agenciamentos, tensões e deslocamentos, os projetos dessas comunidades e coletividades passam por processos de reflexividade variados, segundo sejam afetados mais ou menos intensamente pela normatividade institucional que os condiciona, seja ela advinda das interações das comunidades com o mercado ou com as políticas públicas. Nesse sentido, passamos a problematizar o alcance desses condicionamentos normativos nas agências coletivas reconhecidas nos projetos dessas comunidades, como um primeiro perspectivismo situacional da análise geral. Esta é a orientação que percorre o presente livro, em suas distintas elaborações. Aqui, optamos por enfatizar tal orientação desde o título do livro, de forma que a exposição dos seus capítulos também a sigam, abrindo caminhos de interpretação e análise que vão desvelando as tensões decorrentes da problematização proposta. Desde já, agradecemos aos autores as contribuições que deram ao Seminário e esperamos que esta coletânea de estudos permita indagações e novas interlocuções acerca das problemáticas que se propôs discutir. 10 | Apresentação

Por fim, reforçamos que essa rede de pesquisas e a realização do Seminário só se tornaram viáveis pelos financiamentos que o LaPCAB obteve, através da CAPES e da FAPERGS, instituições às quais agradecemos. Agradecemos também ao apoio do PPG Ciências Sociais-Unisinos, à parceria do Grupo de Pesquisa SobreNaturezas, aos pesquisadores da rede do LaPCAB e, finalmente, à CirKula Editora, pela parceria na produção e publicação desta coletânea. São Leopoldo, 14 de dezembro de 2016. Os Organizadores

Apresentação | 11

diversidade bioCultural na polítiCa Cultural brasileira: uma aproximação ao snC e pnC José MArcio bArros

[...] a finalidade última das Ciências Humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo... reintegrar a cultura na natureza e a vida no conjunto de suas condições físico-químicas. ( Claude Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, p. 282)

I – Diversidade biocultural: do que estamos falando O termo diversidade biocultural ainda é muito pouco utilizado no Brasil, tanto por acadêmicos e militantes, tanto no campo da defesa e promoção da diversidade cultural quanto da biodiversidade. Essa pouca utilização de um conceito síntese, parece revelar que, a despeito da aparente existência de um consenso sobre as relações de imbricamento entre cultura e natureza, ainda separamos, hierarquizamos e alimentamos oposições entre uma e outra. Tal situação, paradoxalmente, ocorre mesmo em um contexto discursivo onde as chamadas posturas politicamente corretas imperam e com a existência de um aparato legal favorável. Idealmente, na atualidade teríamos elementos legais e discursivos para ter superado definitivamente essa cisão. Entretanto, a realidade parece ser outra, a despeito do que afirma o sociólogo ambientalista mexicano Enrique Leff (2006), quando analisa que, se a Modernidade, entendida como modelo de organização política, econômica e cultural singular, afastou a natureza da cultura, a crise ambiental a partir da segunda metade do século XX parece ter reaproximado ambas, produzindo um novo regime de visibilidade e posicionamento estratégico, alimentando uma complexa Agenda Ambiental. A utilização cindida da diversidade cultural e da biodiversidade, mais do que limitar a efetividade das políticas públicas, é, ela própria Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 13

a negação da própria diversidade. O legado da Modernidade – que de certa forma se estrutura na perspectiva antropocêntrica de superioridade da cultura sobre a natureza – e as apropriações e usos distorcidos e oportunistas do modelo de desenvolvimento sustentável como alternativa à crise ambiental que década a década recrudesce, parecem ser os responsáveis por essa sutil e paradoxal realidade. Discursivamente integramos natureza, cultura e suas diversidades. Mas tal integração parece não transbordar da esfera dos discursos, das idealidades e das formalidades, à exceção de ações na forma de programas e projetos de resistência tanto na área cultural como ambiental que, ora reforçam as tradições ora constroem posturas inovadoras que apontam para uma nova práxis da diversidade biocultural. O socioambientalismo e as ações em torno do Programa Cultura Viva parecem ser, pelo menos no Brasil, as duas expressões mais evidentes das potencialidades e limites desta reafirmação da articulação cultura e natureza1. Mas o que se entende por biodiversidade e diversidade cultural? Utilizaremos aqui as definições contidas em duas Convenções da UNESCO. A referência aos dois documentos da UNESCO se mostra aqui coerente com os objetivos desta reflexão, na medida em que a adesão de um Estado Nacional a estes instrumentos jurídicos internacionais constitui um compromisso formal. Deste modo, uma Convenção adentra no ordenamento jurídico brasileiro ou como Emenda Constitucional, caso a matéria seja relativa aos direitos humanos, ou como lei infra-constitucional nas demais matérias. Logo, União, Estados, Distrito Federal e os Municípios devem estabelecer e implementar políticas públicas para a diversidade biocultural, tendo por base os princípios do regime jurídico internacional (MENDONÇA, 2014: 4)2. Por biodiversidade entende-se aqui, como explicita a Convenção 1 Algumas experiências internacionais foram publicadas neste livro organizado pela UNESCO, Links between biological and cultural diversity-concepts, methods and experiences, Report of an International Workshop, UNESCO, Paris 2008, disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001592/159255E.pdf. Vale destacar a importância das pesquisas desenvolvidas no âmbito do Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil: gestão e inovação (PPG Ciências Sociais da UNISINOS). 2 Em junho de 2010, foi organizada pela UNESCO e pelo Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica a Conferência “Diversidade para o Desenvolvimento, Desenvolvimento para a Diversidade”, em Montreal, Canada, o objetivo de debater as múltiplas relações entre diversidade cultural e diversidade biológica dentro do contexto do desenvolvimento, discutir um Plano de Ação conjunto entre UNESCO e o Secretariado da CDB no campo da diversidade biocultural. Disponível http:// www.cbd.int/meetings/icbcd. 14 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

da Diversidade Biológica da UNESCO, promulgada em 1992, ... a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. (UNESCO, 1992, Art. 2)

Isso significa dizer que biodiversidade é um conjunto tríplice de potencialidades: a diversidade biológica no planeta, a variabilidade genética das espécies e a diversidade de ecossistemas formados por diferentes combinações de espécies. (MENDONÇA, 2014: 31). Decorre desta visão duas características fundamentais: •

a biodiversidade é uma característica da natureza, que se mantém e preserva por si própria, desde que não tenha que enfrentar a ação predatória do homem;



a biodiversidade é um sistema que pressupõe equilíbrio e que possui importância crucial para todos os demais sistemas de uma sociedade (a economia, a saúde, a agricultura, etc.)

Já o conceito de diversidade cultural, como explicitado na Convenção da UNESCO sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais: [...] refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados (UNESCO, 2005, Art. 4).

Depreende-se desta conceituação algumas constatações, especialmente importantes quando nosso propósito é cotejar a diversidade biocultural. Trata-se de: [...] reconhecer certas características básicas que podem auxi-

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liar na superação de posturas românticas e ingênuas, oportunizando a transformação da articulação proposta em um projeto. Isso significa reconhecer que a Diversidade Cultural é diversa, ou seja, não se constitui como um mosaico harmônico, mas um conjunto de opostos, divergentes e contraditórios. A Diversidade Cultural é cultural e não natural, ou seja, resulta das trocas entre sujeitos, grupos sociais e instituições a partir de suas diferenças, mas também de suas desigualdades, tensões e conflitos. A Diversidade Cultural se apresenta, portanto, como uma resposta, uma procura deliberada, e não apenas uma constatação antropológica. É o resultado de uma construção deliberada, e não apenas um pressuposto, um ponto de partida. Um projeto, e não apenas um inventário (BARROS, 2008: 18)

Ou seja, tal como a biodiversidade, existem características peculiares que necessitam ser cuidadosamente retidas na análise: •

A diversidade cultural não se renova naturalmente.



A diversidade cultural é dinâmica precisa ser pensada conjugando proteção e promoção.



A diversidade cultural encerra um conjunto de tensões e não pode ser pensada como um mosaico harmônico de diferenças.

Importante salientar a dimensão relacional e complexa que fundamenta ambos os conceitos. Tanto a biodiversidade quanto a diversidade cultural resultam da capacidade de articulação e integração entre seus componentes. Mais que resultantes de qualidades imanentes, em ambas, é o aspecto interacional de seus componentes que define a presença e a potência da diversidade. Isso nos remete a uma terceira questão, o aspecto dinâmico e mutante da diversidade: em ambas as dimensões, da biodiversidade e da diversidade cultural, a mudança é uma variável sempre presente, contribuindo para a manutenção e para a transformação de suas realidades. Emerge daqui outro ponto importante. Se no campo da biodiversidade, a proteção se apresenta como ação suficiente para a sua preservação e potencialização, no campo da diversidade cultural, a realidade se mostra outra. A diversidade cultural só se potencializa pela ação conjunta e equilibrada entre as ações de proteção e promoção, dado que, ao contrário da biodiversidade, se constitui como um processo de 16 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

aprendizado socialmente conduzido. Já o conceito de diversidade biocultural, no Brasil menos utilizado do que o conceito de sociobiodiversidade, parece ter sido configurado e utilizado pela primeira vez no I Encontro da Sociedade Internacional de Etnobiologia (ISE) realizado em 1988 na cidade de Belém (Pará). No prólogo da Carta de Belém, documento que sinaliza a criação da Sociedade Internacional de Etnobiologia, afirma-se: Con ocasión del Primer Congreso Internacional de Etnobiología, destacados antropólogos, biólogos, químicos, sociólogos, ecólogos, y representantes de varios pueblos indígenas, se reunieron en Belém, Brasil, con el fin de discutir intereses comunes y de fundar la Sociedad Internacional de Etnobiología. Las principales preocupaciones delineadas por los participantes fueron el estudio de los modos como pueblos indígenas y campesinos perciben, utilizan y manejan sus recursos naturales de manera única, y el desarrollo de programas que garanticen la preservación de la vital diversidad biológica y cultural (ISE, disponível em http://www.ethnobiology.net/wp-content/uploads/ Decl.-Bele_m.Spanish.pdf ).

Segundo Mendonça (2014), plantadas as bases, outro marco importante para o novo conceito foi a realização em 1996 na Universidade de Berkeley (Califórnia US) da Conferência “Endangered Languages, Endangered Knowledge, Endangered Environments”, que teve como objetivo explorar as conexões complexas entre a diversidade cultural e a diversidade biológica, as interrelações e as consequências da perda de ambas as formas de diversidade e o papel dos indígenas e línguas minoritárias e de conhecimento tradicional na manutenção da diversidade biocultural e na viabilização do desenvolvimento sustentável. (MAFFI e WOODLEY, 2010, apud MENDONÇA, 2014). Surge aqui a liderança da ONG Terralingua e de sua diretora Luisa Maffi, formada em Linguística, Antropologia e Etnobiologia, e pioneira no conceito de diversidade biocultural, entendida como a diversidade da vida em todas as suas manifestações biológicas, culturais e linguísticas inter-relacionadas em um complexo sistema sócio-ecológico (MAFFI e WOODLEY, 2010 em http://terralingua.org/). Ainda com Mendonça(2014), destaca-se na definição de Luisa Maffi três questões centrais: •

a diversidade de vida não é apenas a diversidade biológica, é Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 17

composta também pela diversidade de culturas e línguas; •

a diversidade biológica, linguística e cultural constitui a expressão de um todo;



a diversidade é fruto de processos cumulativos, adaptações e da natureza co-evolutiva do homem e seu ambiente de vida.

Novamente o caráter complexo e relacional é intrínseco ao conceito: a diversidade biocultural seria o resultado da qualidade das relações entre suas dimensões naturais e culturais, consubstanciadas nos saberes e práticas dos povos tradicionais relativos ao uso e manejo da diversidade genética e da diversidade das espécies, além da diversidade das formas de expressão e nominação linguística. E ainda em uma outra perspectiva complementar, a diversidade biocultural expressa, segundo Pretty (2008) citado por Mendonça (2014) outras três dimensões complementares: •

os sentidos e crenças da relação homem e natureza;



as concepções e práticas de gestão da natureza; e,



os saberes sobre a natureza.

Decorre deste enquadramento posicionamentos que veremos encontrar repercussão nas políticas culturais no Brasil, quais sejam, a prioridade dada aos chamados povos tradicionais como agentes privilegiados de uma postura de preservação da diversidade biocultural, na medida em que integram uma posição conservacionista e produtiva na relação cultura e natureza. Vejamos agora o segundo ponto de nosso problema de análise. II – Políticas Públicas de Cultura e sua atual configuração no Brasil O debate sobre as políticas culturais no Brasil, demanda um esclarecimento prévio sobre a própria concepção do termo, haja visto não haver um consenso sobre a que realidade o termo se refere. Elenco aqui três iniciativas de definição destacando suas potencialidades e limites, 18 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

de forma a encaminhar rapidamente aquilo que nos interessa mais de perto – a atual configuração no território brasileiro. Em 1969, a UNESCO, divulgou um documento intitulado Cultural policy: A preliminary study, onde definia as políticas culturais como “um conjunto de princípios operacionais, práticas administrativas e orçamentárias e procedimentos que fornecem uma base para a ação cultural do Estado” (UNESCO, 1969). Como nos alerta Reis (2011), este conceito decorreu da missão política e institucional da UNESCO, uma agência integrante do Sistema ONU e de seu esforço pós II Guerra Mundial, de construir e difundir uma agenda para o desenvolvimento mundial, ancorado na utopia de um capitalismo civilizado e democrático. Aqui, a Educação, as Ciências, a Cultura, as Artes e a Comunicação e Informação, assumiram centralidade e protagonismo na garantia da paz e do desenvolvimento, de acordo com a visão da aliança política vencedora na guerra. O conceito que decorre desta missão pós-guerra, ancora-se no papel central e eficientista do aparato estatal na formulação e desenvolvimento das políticas culturais. Pois, Este conceito se restringe a atuação estatal, reduzindo-o a uma ferramenta pública que busca atender as necessidades culturais da população através do uso eficiente de recursos humanos e materiais. (REIS, 2011: 1)

Já Nestor García Canclini, consagrou em 1987 e atualizou em 2001, uma outra definição de políticas culturais, introduzindo novos atores sociais para além do Estado e propondo novas funções para as políticas culturais, articulando desenvolvimento simbólico, atendimento a necessidades culturais e consensos de manutenção e transformação da ordem social. Para o autor: Los estudios recientes tienden a incluir bajo este concepto al conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las instituiciones civis y los grupos comunitários a fin de orientar el desarollo simbólico, satifacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social. Pero esta manera de caracterizar el ámbito de las políticas culturales necesita ser ampliada teniendo em cuenta el caráter transnacional de los procesos simbólicos e materiales em la actualidad. (GARCIA CANCLINI, 2001: 65)

Nesta conceituação Canclini amplia a definição dada 14 anos anPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 19

tes, introduzindo algo fundamental na passagem do Século XX ao XXI, o caráter transnacional das trocas Culturais (BRIZUELA e BARROS, 2014). Isso representa o reconhecimento de uma nova configuração das fronteiras e das trocas culturais decorrentes dos fluxos tecno-culturais e dos novos reordenamentos econômicos. Pois, No puede haber políticas sólo nacionales en un tiempo donde las mayores inversiones en cultura y los flujos comunicacionales más influyentes, o sea las industrias culturales, atraviesan fronteras, nos agrupan y conectan en forma globalizada, o al menos por regiones geoculturales o lingüísticas. Esta transnacionalización crece también, año tras año, con las migraciones internacionales que plantean desafíos inéditos a la gestión de la interculturalidad más allá de las fronteras de cada país (GARCIA CANCLINI, 2001: 65).

Por fim, Teixeira Coelho (1997) que, a despeito de se aproximar da definição de Canclini, direciona a definição em outra perspectiva, agregando novos elementos: Constituindo [...] uma ciência da organização das estruturas culturais, a política cultural é entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, distribuição e o uso da cultura, a preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável (COELHO, 1997: 293).

Para o pesquisador cearense Alexandre Barbalho, a definição de Teixeira Coelho possui 3 dimensões que merecem uma atenção crítica. Em primeiro lugar, a equiparação da política cultural à ciência, o que na visão de seu crítico nos faz incorrer em um erro de enquadramento, na medida em que a política cultural se caracteriza mais como um “conjunto de intervenções práticas e discursivas no campo da cultura”, do que um modo de explicar a realidade (BARBALHO, SD: 2). Para Barbalho, os significados e as lógicas sociais que guiam, ou pretendem guiar, uma determinada política cultural podem sim e devem ser objeto de pesquisas e reflexões científicas segundo o local 20 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

de onde se observa (um olhar histórico, ou antropológico, ou sociológico...). Ou na confluência de áreas que, diga-se de passagem, é o olhar privilegiado, para não dizer mais adequado, para esse tipo de estudo, já que o objeto transcende as delimitações acadêmicas tradicionais. Mas, acima de tudo, tal objeto não está inserido em um saber específico, uma ciência exclusiva denominada “política cultural” (BARBALHO, SD: 2).

Dois pontos ainda se apresentam como limitadores na definição de Teixeira Coelho: um acoplamento da concepção de política cultural com a de gestão cultural, na medida em que a relaciona à “organização das estruturas culturais”, confundindo a instância que define princípios, meios e fins norteadores da ação com a instância que organiza e gere os meios para que aqueles aconteçam. E uma perspectiva que prioriza a cultura organizada ou estruturada. O que não “contemplaria o fluxo dos símbolos significantes ou dos sistemas de significações que não se materializassem em programas de iniciativas ou intervenções no campo cultural” (BARBALHO, SD: 3). Como é possível notar, a discussão sobre o conceito de políticas culturais é complexo e revela nuances que merecem atenção. Entretanto, para a análise que se realiza aqui – as presenças e ausências da questão da diversidade biocultural nas políticas culturais - as mesmas serão tratadas como a expressão, para além da ação organizativa da instituição estatal, do conjunto de concepções, proposições e ações marcados pela sistematicidade, continuidade, amplitude e abrangência territorial e setorial, além de resultar da ação de diversos operadores sociais em interação. A imagem a seguir busca sintetizar a definição, enfatizando as articulações entre continuidade, participação social e a abrangência territorial e setorial.

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Ainda nesta perspectiva, uma política cultural, aqui pensada em sua dimensão pública, para além de sua sistematicidade e abrangência, deve expressar um conjunto articulado de áreas de atuação de modo a garantir sua complementariedade e capilaridade. A imagem a seguir busca sintetizar esse conjunto de vetores nos quais uma política cultural deve se desdobrar e integrar:

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Esclarecida a concepção com a qual trabalhamos, passamos à realidade brasileira. Já, quando direcionamos nosso olhar para a atual realidade brasileira, encontramos um quadro singular. Já se tornou uma referência quase que obrigatória nos estudos sobre as políticas culturais brasileiras, o enquadramento histórico e conceitual realizado por Rubim (2007) onde, no esforço de síntese e objetividade, afirma ser a trajetória de tais políticas em nosso território caracterizadas por três tristes tradições: a ausência, o autoritarismo e a descontinuidade. Da Colônia ao Governo Lula, o autor mapeia como nos diferentes períodos da conformação político institucional do Brasil – períodos autoritários, democráticos, neoliberais – uma política pública de cultura se fez ou não presente, e como se configurou política e ideologicamente. Mas o que nos guia neste texto, é o momento atual inaugurado em 2003 com a eleição de Lula para a Presidência e a nomeação de Gilberto Gil como Ministro da Cultura. E neste sentido, é possível destacar alguns marcos e configurações. Em especial, a ressignificação do conceito de cultura com o qual o Ministério da Cultura passa a operar. Tomado por forte influência antropológica, este conceito afirma a importância e a indissociabilidade das dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura, conforme o esquema abaixo:

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Por consequência, o enquadramento da política cultural passa a ser o conjunto de ações que garantam os direitos culturais, a proteção e promoção da diversidade cultural e do pleno exercício da cidadania. Quadro 1: Tipologia histórica das políticas culturais Modalidade Conceito de Objetivo da poInstrumentos de inde política cultura lítica tervenção Políticas de primeira geração: consolidação da identidade e preservação do patrimônio Políticas de Cultura como Consolidar a iden- Museus históricos naidentidade na- identidade natidade nacional e cionais, monumentos cional cional preservar o patri- cívicos, missões folclómônio ricas de resgate da cultura nacional Políticas de re- Cultura como Reconhecer a Museus étnicos, patriconhecimento diversidade iden- diversidade das mônio imaterial da diversidade titária comunidades que integram o Estado nacional Políticas de segunda geração: intervenção e regulação econômica do setor cultural Políticas de Cultura como Diminuir o imCotas cinematográfiproteção à inconjunto de bens pacto (cultural/ cas, estímulo fiscal à dústria cultural simbólicos que econômico) da produção de conteúdo nacional podem ser repro- indústria cultural nacional duzidos serialestrangeira e formente talecer a indústria nacional Políticas de Cultura como Fomentar o setor Incentivo aos setores economia cria- setor de atividade econômico criacriativos, formação de tiva econômica tivo clusters, cidades criativas Políticas de terceira geração: difusão e produção cultural Políticas de Cultura como Ampliar o acesso Centros culturais democratização belas artes à cultura consaorientados à difusão, orda cultura grada questras públicas com entradas subsidiadas Políticas de Cultura como Apoiar a produção Fomento à cultura podemocracia modo de vida simbólica dos di- pular e comunitária cultural versos segmentos sociais Fonte: Lima, Ortellado e Souza (2013: 8)

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Neste sentido, e seguindo as orientações de Lima, Ortellado e Souza (2013: 8) pode-se afirmar que a política cultural na atualidade é marcada por rupturas, no sentido de produzir emancipações em três sentidos: a) das Políticas de identidade nacional para Políticas de reconhecimento da diversidade; b) das Políticas de proteção à indústria cultural nacional para Políticas de economia criativa; e, c) das Políticas de democratização da cultura para a configuração de Políticas de democracia cultural. •

Decorre destas perspectivas a concepção, colocada em prática, de que uma política cultural deve ter seu escopo ampliado, passando a abarcar todos os cidadãos brasileiros, e não somente os produtores de bens e serviços culturais artísticos;



Ainda no esforço de remodelação das práticas autoritárias e populistas do passado, opera-se a substituição das chamadas “práticas de balcão” por uma política de editais;



E por fim, o enfrentamento da questão da baixa ou quase nula institucionalidade por meio da organização sistêmica do campo das políticas públicas de cultura.

Neste sentido, pode-se dizer que a Política Cultural hoje no Brasil é marcada por enfrentamentos e tensões entre perspectivas e práticas que se filiam a um ou outro modelo político e ideológico, estabelecendo relações de convivência, hibridização e tensionamento. Há quase 10 anos procura-se instituir e colocar em prática um modelo de gestão compartilhada e participativa de políticas públicas de cultura, de modo a estabelecer padrões e práticas de articulação e complementariedade entre os 3 entes federados e a participação direta da sociedade civil por meio de conferências e conselhos. Inspirado nos sistemas nacionais já existentes no país, o objetivo deste modelo sistêmico é construir e consolidar políticas públicas de cultura por meio da ação complementar do Estado no nível federal, estadual e municipal, de forma dinâmica e democrática. Isso significa a criação de um modelo que articula e vincula os três níveis de governança com a participação social, com objetivo de formular e implantar políticas democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade civil, promovendo o desenPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 25

volvimento - humano, social e econômico - com pleno exercício dos direitos culturais e acesso aos bens e serviços culturais. Colocado em prática a partir de 2012 por meio da Emenda Constitucional n. 71, que acrescenta o art. 216-A à Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Cultura, que se estrutura da seguinte forma: um núcleo estático instituído pela legislação e uma dimensão dinâmica, formada por pactuações entre as instâncias de negociação, com período de tempo determinado, decorrentes das necessidades impostas pela organização e implementação das políticas culturais, nos entes federados, por meio de um acordo de cooperação federativa e de planos de trabalho. Emenda Constitucional n.71 “Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: I - diversidade das expressões culturais; II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; IV - cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; VI - complementaridade nos papéis dos agentes culturais; VII - transversalidade das políticas culturais; VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; IX - transparência e compartilhamento das informações; X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social; XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura. 26 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

§ 2º Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação: I - órgãos gestores da cultura; II - conselhos de política cultural; III - conferências de cultura; IV - comissões intergestores; V - planos de cultura; VI - sistemas de financiamento à cultura; VII - sistemas de informações e indicadores culturais; VIII - programas de formação na área da cultura; e IX - sistemas setoriais de cultura. § 3º Lei federal disporá sobre a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo. § 4º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias.» Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, em 29 de novembro de 2012.

O quadro a seguir apresenta os elementos constitutivos do SNC:

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Curiosamente, a Lei n°12.343 de 2010 já havia instituído o Plano Nacional de Cultura - PNC, e o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC que, em uma leitura mais rigorosa, são instrumentos do Sistema, mas que passaram a existir antes mesmo deste se instituir como modelo de organização. Na atualidade encontramos 100% das unidades da federação com a adesão ao Sistema Nacional de Cultura oficializado e apenas 39,8% dos municípios com Acordo de Cooperação Federativa publicado no Diário Oficial da União. Quanto ao Plano Nacional de Cultura, o mesmo é um conjunto de princípios, objetivos e diretrizes, que se desdobram em 36 estratégias, 275 ações e 53 metas que buscam, em um prazo de 10 anos, orientar o desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil. (MINC, 2010). O processo de construção do PNC estendeu-se desde 2005 a partir de fóruns, consultas públicas e conferências, com a participação da sociedade civil e do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). De acordo com a legislação, o PNC deve ser revisado periodicamente para que suas diretrizes e metas possam ser aperfeiçoadas. Desde 2014 foi aberto um processo de revisão das metas que encontra-se inconcluso e descontinuado pelo MINC e que obteve uma inexpressiva participação popular no processo realizado pela internet. Aliás, descontinuidade parece ser uma das marcas da atual política nacional de cultura na medida em que a regulamentação do SNC, prevista na lei que o criou, continua inexistente. Da mesma maneira, dois outros instrumentos fundamentais deste novo modelo de políticas culturais, continuam paralisados no legislativo federal: a PEC 150/2003 que estabelece um piso mínimo de 2% do orçamento federal; 1,5% do orçamento estadual e 1% do orçamento municipal para a cultura; e o Procultura - projeto de atualização da Lei Rouanet que pretende corrigir as distorções na lei atual. Traçado este quadro, passamos à análise dos documentos que norteiam a atual política cultural no Brasil, a Emenda Constitucional 71/2012 que cria o Sistema Nacional de Cultura, a Lei nº 12.343/2010 que institui o Plano Nacional de Cultura e o seu Plano de Metas, na busca da compreensão de como se dá a articulação entre diversidade cultural e biodiversidade nas formulações das políticas culturais no Brasil. Construídas as bases conceituais e a análise da realidade, é possível passar à tarefa central deste texto. 28 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

IIII – A Diversidade biocultural nas políticas culturais brasileiras Nesta seção faremos uma exploração dos conteúdos que explicitam e normatizam a atual política nacional de cultura – a Emenda Constitucional 71/2012 que cria o Sistema Nacional de Cultura, a Lei nº 12.343/2010 que institui o Plano Nacional de Cultura e seu respectivo Plano de Metas, na busca das evidências que nos permitirão compreender como a questão da diversidade biocultural é tratada nas políticas culturais. A Emenda Constitucional 71/2012 deu origem ao artigo do 216-A da Constituição Brasileira, promulgada em novembro de 2012, inserindo o Sistema Nacional de Cultura (SNC) na Constituição Brasileira. Em seu texto, o artigo define o SNC como um modelo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, de forma a lhes garantir a condição de democráticas e permanentes. Para tanto tal modelo pressupõe um regime de colaboração, descentralização, participação e pactuação entre os entes da Federação e a sociedade. Do ponto de vista vinculante, o SNC se ancora nas diretrizes da Política Nacional de Cultura estabelecidas no Plano Nacional de Cultura. Seu objetivo é “promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.” O SNC foi estruturado a partir de 12 princípios, igualmente presentes no PNC. São eles: I - diversidade das expressões culturais; II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; IV - cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; VI complementaridade nos papéis dos agentes culturais; VII- transversalidade das políticas culturais; VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; IX - transparência e compartilhamento das informações; X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social; XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 29

Como é possível verificar, não há nos princípios do SNC qualquer referência explícita à questão da biodiversidade e muito menos à sua articulação e síntese na perspectiva da diversidade biocultural. A despeito de se reconhecer a necessidade de tratamento da questão da diversidade, como mostra o trecho abaixo, que integra as recomendações do MINC em seu Guia de Orientações para os Municípios Sistema Nacional de Cultura - Perguntas e Respostas publicado em dezembro de 2012, nota-se que, a questão da diversidade cultural é aqui tratada em sua acepção mais restritiva, ou seja, por meio de suas expressões, o que denota o vínculo da proposição aos bens e serviços, e não aos saberes, sujeitos e processos de produção da diversidade. Pois, Em geral, os governantes costumam apreciar mais os eventos, que trazem popularidade, e menosprezar as atividades permanentes, que, no fundo, são as mais importantes, pois fortalecem a identidade e a diversidade cultural local, e atuam na formação contínua dos cidadãos (cidadania cultural). Daí a importância da elaboração do Plano de Cultura e sua aprovação como Lei Municipal, pois ele explicitará as prioridades da cultura e quais programas, projetos e ações devem ter recursos assegurados na Lei Orçamentária Anual (LOA) (MINC, 2012: 39).

Em um dos princípios, fala-se da transversalidade das políticas culturais, a questão da diversidade biocultural poderia receber abrigo, mas como veremos, isso não se concretiza, sugerindo mais um modismo discursivo de se fazer referência à transversalidade do que propriamente uma proposição lógica e operativa. Como marco regulatório, o SNC ainda permanece sem regulamentação, o que representa fragilidade e descontinuidade na implementação da política. Já o Plano Nacional de Cultura, analisaremos por meio de três documentos básicos. O texto da Lei nº 12.343/2010 que o institui, seus anexos que apresentam suas diretrizes, estratégias e ações, e o conjunto de metas em vigor até 2020. A Lei do PNC está organizada em 15 artigos e possui os mesmos 12 princípios do SNC, o que nos dispensa da necessidade de comentá-los. Dentre seus 16 objetivos, três dialogam diretamente com o que estamos aqui investigando. São eles:

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I - reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira; VIII - estimular a sustentabilidade socioambiental; e X - reconhecer os saberes, conhecimentos e expressões tradicionais e os direitos de seus detentores;

Como é possível perceber, a despeito da referência explícita à questão da sustentabilidade socioambiental, os três objetivos apontam para dimensões importantes da diversidade biocultural, sem contudo estabelecer efetividades operacionais entre diversidade cultural e diversidade biológica. Reproduz-se aqui uma postura mais de princípios do que de fins, priorizando a relação aqui já comentada de vinculação da diversidade biocultural aos conhecimentos e práticas tradicionais. Quando nos adentramos ao capítulo referente às atribuições do poder público, encontramos três referências que estabelecem os vínculos que aqui pesquisamos. IV - proteger e promover a diversidade cultural, a criação artística e suas manifestações e as expressões culturais, individuais ou coletivas, de todos os grupos étnicos e suas derivações sociais, reconhecendo a abrangência da noção de cultura em todo o território nacional e garantindo a multiplicidade de seus valores e formações; VI - garantir a preservação do patrimônio cultural brasileiro, resguardando os bens de natureza material e imaterial, os documentos históricos, acervos e coleções, as formações urbanas e rurais, as línguas e cosmologias indígenas, os sítios arqueológicos pré-históricos e as obras de arte, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência aos valores, identidades, ações e memórias dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira; VII - articular as políticas públicas de cultura e promover a organização de redes e consórcios para a sua implantação, de forma integrada com as políticas públicas de educação, comunicação, ciência e tecnologia, direitos humanos, meio ambiente, turismo, planejamento urbano e cidades, desenvolvimento econômico e social, indústria e comércio, relações exteriores, dentre outras;

A primeira refere-se à obrigação de proteger e promover a diversidade cultural, com explícito destaque para suas manifestações e atribuições, sejam individuais ou coletivas. Em duas outras atribuições encontramos referências mais pragmáticas. A preservação do patrimônio Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 31

cultural brasileiro, com explícita citação aos bens materiais e imateriais e destaque às línguas e cosmogonias indígenas. E a atribuição de articular e promover consórcios para a implementação de políticas públicas integrando-as com as políticas de meio ambiente, dentre outras. Novamente as articulações nos parecem parciais e frágeis, na medida em que não enfrentam do ponto de vista macro e micro-estrutural as relações fundantes e inseparáveis da diversidade cultural e diversidade biológica. Nos demais capítulos referentes aos sistemas de financiamento, sistema de acompanhamento e financiamento e nas disposições gerais, nenhuma referência à relação cultura e questão ambiental é encontrada, o que explica, por exemplo, o porquê da composição do Comitê Executivo do Plano Nacional de Cultura, responsável pela construção, acompanhamento e revisão das metas, ser de exclusiva participação de técnicos do MINC. Ainda constituem o PNC, um conjunto de 36 estratégias e 275 ações do PNC. A análise realizada nos autoriza a prosseguir com a hipótese de que a questão da diversidade biocultural se mostra ausente ou quando muito, parcialmente presente neste instrumento normativo tão importante e atual. Em seu preâmbulo, afirma-se que o Plano trabalha com uma concepção ampliada de cultura, porém essa concepção a define como fenômeno social e humano de múltiplos sentidos, com extensão antropológica, social, produtiva, econômica, simbólica e estética. Ou seja, nenhuma proximidade com a biodiversidade, entendida por nós como condição para a diversidade cultural, caso esta não seja reduzida à dimensão das expressões e manifestações, mas também aos processos e sujeitos. No que se refere à explicitação das competências do Poder Público na efetivação do PNC, novamente encontramos uma ausência de referências à articulação cultura e natureza e consequentemente uma ausência de políticas culturais articuladas às políticas relacionadas à biodiversidade. É sintomático que, portanto, aquilo que o PNC advoga como essencial para a consecução do papel do Estado, em momento algum proponha a aproximação aqui pesquisada. Afirma o documento (MINC, 2012: 10): São fundamentais para o exercício da função do Estado: • o compartilhamento de responsabilidades e a cooperação entre os entes federativos; 32 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

• a instituição e atualização de marcos legais; • a criação de instâncias de participação da sociedade civil; • a cooperação com os agentes privados e as instituições culturais; • a relação com instituições universitárias e de pesquisa; • a disponibilização de informações e dados qualificados; • a territorialização e a regionalização das políticas culturais; • a atualização dos mecanismos de fomento, incentivo e financiamento à atividade cultural; • a construção de estratégias culturais de internacionalização e de integração em blocos geopolíticos e mercados globais.

Mais uma vez, uma absoluta ausência de vínculos e integração entre políticas culturais e outras políticas afeitas ao campo da biodiversidade. O objetivo do Capítulo 1 intitulado o Estado, é o de elencar estratégias e ações para fortalecer a função do estado na institucionalização das políticas culturais; intensificar o planejamento de programas e ações voltadas ao campo cultural e consolidar a execução de políticas públicas para cultura. Nele 11 estratégias e 91 ações são elencadas e a questão da diversidade é citada em apenas três das ações propostas. Uma citação (1.4.8) está relacionada à ampliação das linhas de financiamento e fomento à produção independente de conteúdos para rádio, televisão, internet e outras mídias, com vistas na democratização dos meios de comunicação e na valorização da diversidade cultural; outra (1.5.4) propõe a criação no Fundo Nacional de Cultura de um programa específico para a diversidade cultural; e a referência (1.11.2) à promoção da diversidade cultural brasileira no exterior. Já no capítulo II intitulado da Diversidade, são elencadas 7 estratégias e 60 ações com o objetivo de reconhecer e valorizar a diversidade e proteger e promover as artes e expressões culturais. Em seu texto introdutório, novamente nenhuma referência explicita e doutrinária em relação à relação com a biodiversidade: A formação sociocultural do Brasil é marcada por encontros étnicos, sincretismos e mestiçagens. É dominante, na experiência histórica, a negociação entre suas diversas formações humanas e matrizes culturais no jogo entre identidade e alteridade, resultando no reconhecimento progressivo dos valores simbólicos presentes em nosso território. Não se pode ignorar, no entanto, as tensões, dominações e discriminações que permearam e permeiam a trajetória do País, registradas inclusive nas diferentes Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 33

interpretações desses fenômenos e nos termos adotados para expressar as identidades. A diversidade cultural no Brasil se atualiza – de maneira criativa e ininterrupta – por meio da expressão de seus artistas e de suas múltiplas identidades, a partir da preservação de sua memória, da reflexão e da crítica. As políticas públicas de cultura devem adotar medidas, programas e ações para reconhecer, valorizar, proteger e promover essa diversidade. Esse planejamento oferece uma oportunidade histórica para a adequação da legislação e da institucionalidade da cultura brasileira de modo a atender à Convenção da Diversidade Cultural da Unesco, firmando a diversidade no centro das políticas de Estado e como elo de articulação entre segmentos populacionais e comunidades nacionais e internacionais (MINC, 2012, p. 17).

No que se refere as estratégias e ações, 2 das primeiras e 8 ações se destacam, apesar de se mostrarem minoritárias frente ao conjunto e a exclusividade do capítulo ao tema da diversidade cultural. A estratégia 2 refere-se à realização de programas de reconhecimento, preservação, fomento e difusão do patrimônio e da expressão cultural para os grupos que compõem a sociedade brasileira, especialmente aqueles sujeitos à discriminação e marginalização, definidos como os: indígenas, os afro-brasileiros, os quilombolas, outros povos e comunidades tradicionais e moradores de zonas rurais e áreas urbanas periféricas ou degradadas; aqueles que se encontram ameaçados devido a processos migratórios, modificações do ecossistema, transformações na dinâmica social, territorial, econômica, comunicacional e tecnológica; e aqueles discriminados por questões étnicas, etárias, religiosas, de gênero, orientação sexual, deficiência física ou intelectual e pessoas em sofrimento mental.

Seis ações se aproximam da articulação aqui estudada. A ação 2.1.1 propõe que se estabeleçam abordagens intersetoriais e transdisciplinares para a execução de políticas dedicadas às culturas populares, incluindo seus detentores na formulação de programas, projetos e ações. A ação 2.1.2 refere-se à criação de políticas de transmissão dos saberes e fazeres das culturas populares e tradicionais. A ação 2.1.4 está voltada realização de campanhas nacionais de valorização das culturas tradicionais; a 2.1.5 propõe a realização de capacitação de professores para o ensino da história, arte e cultura de comunidades não hegemônicas; e a 2.1.7 e 2.1.8 que referem-se à realização de inventários e mapeamentos. 34 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Já a estratégia 2.6 referente ao Mapear, registrar, salvaguardar e difundir as diversas expressões da diversidade brasileira, sobretudo aquelas correspondentes ao patrimônio imaterial, às paisagens tradicionais e aos lugares de importância histórica e simbólica para a nação brasileira, apresenta duas ações que revelam proximidade indireta: a 2.6.1 que propõe instituir a paisagem cultural como ferramenta de reconhecimento da diversidade cultural brasileira, ampliando a noção de patrimônio para o contexto territorial e abarcando as manifestações materiais e imateriais das áreas; e a 2.6.3 voltada à realização de programas de promoção e proteção das línguas indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais e estimular a produção e a tradução de documentos nesses idiomas. Apesar do acerto das ações propostas no tratamento da questão da diversidade, chama a atenção a seu caráter minoritário em relação às demais estratégias e ações, e a falta de diálogo explícito com o campo da biodiversidade. As ações sugeridas, apesar de corretas, restringem-se à questão da valorização, mapeamento, difusão dos saberes tradicionais, o que representa um acercamento indireto da questão. O capítulo III intitulado Acesso e referente aos objetivos de universalizar o acesso dos brasileiros à arte e à cultura; qualificar ambientes e equipamentos culturais para a formação e fruição do público; permitir aos criadores o acesso às condições e meios de produção cultural, não há qualquer entrelaçamento mais orgânico que nos remeta à questão da diversidade em seu plano cultural e biológico. Já o capítulo IV, refere-se à questão do desenvolvimento sustentável e tem como objetivo ampliar a participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico; promover as condições necessárias para a consolidação da economia da cultura e induzir estratégias de sustentabilidade nos processos culturais. Curiosamente seu texto introdutório trata exclusivamente da questão da inovação e geração de riquezas, tornando claro, como reduz a questão da sustentatibilidade a esses fatores. A cultura faz parte da dinâmica de inovação social, econômica e tecnológica. Da complexidade do campo cultural derivam distintos modelos de produção e circulação de bens, serviços e conteúdos, que devem ser identificados e estimulados, com vistas na geração de riqueza, trabalho, renda e oportunidades de empreendimento, desenvolvimento local e responsabilidade social. Nessa perspectiva, a cultura é vetor essencial para a construção e qualificação de um modelo de desenvolvimento sustentável. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 35

Quanto às estratégias em número de 7 as ações somam 62. Rigorosamente, apenas uma estratégia e 8 ações podem ser consideradas de articulação próxima à questão da diversidade biocultural. Trata-se da estratégia 4.1 que refere-se à incentivar modelos de desenvolvimento sustentável que reduzam a desigualdade regional sem prejuízo da diversidade, por meio da exploração comercial de bens, serviços e conteúdos culturais. Para tanto as ações propostas somam 11 e dentre elas pelo menos 8 dialogam com a questão aqui estudada, conformando a dimensão do PNC que mais se aproxima com a questão da biodiversidade. As 8 ações são as seguintes: 4.1.1 - Realizar programas de desenvolvimento sustentável que respeitem as características, necessidades e interesses das populações locais, garantindo a preservação da diversidade e do patrimônio cultural e natural, a difusão da memória sociocultural e o fortalecimento da economia solidária. 4.1.2 - Identificar e reconhecer contextos de vida de povos e comunidades tradicionais, valorizando a diversidade das formas de sobrevivência e sustentabilidade socioambiental, especialmente aquelas traduzidas pelas paisagens culturais brasileiras. 4.1.5 - Estimular estudos para a adoção de mecanismos de compensação ambiental para as atividades culturais. 4.1.6 - Fomentar a capacitação e o apoio técnico para a produção, distribuição, comercialização e utilização sustentáveis de matérias-primas e produtos relacionados às atividades artísticas e culturais. 4.1.7 - Identificar e catalogar matérias-primas que servem de base para os produtos culturais e criar selo de reconhecimento dos produtos culturais que associem valores sociais, econômicos e ecológicos. 4.1.8 - Estimular o reaproveitamento e reciclagem de resíduos de origem natural e industrial, dinamizando e promovendo o empreendedorismo e a cultura do ecodesign. 4.1.9 - Inserir as atividades culturais itinerantes nos programas públicos de desenvolvimento regional sustentável. 4.1.10 - Promover o turismo cultural sustentável, aliando estratégias de preservação patrimonial e ambiental com ações de dinamização econômica e fomento às cadeias produtivas da cultura. 36 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Entretanto, mais uma vez evidencia-se como a questão da sustentabilidade resulta de um vínculo entre arranjo econômico e preservação ambiental. Introduz-se aqui o conceito de paisagem cultural, sem contudo a devida explicitação de seu significado e impacto na questão do desenvolvimento sustentável. Por fim o capítulo V – Da Participação Social, expressa os objetivos de estimular a organização de instâncias consultivas; construir mecanismos de participação da sociedade civil e ampliar o diálogo com os agentes culturais e criadores. Seu texto de abertura não esboça qualquer interrelação entre a diversidade cultural e biológica. O desenho e a implementação de políticas públicas de cultura pressupõem a constante relação entre Estado e sociedade de forma abrangente, levando em conta a complexidade do campo social e suas vinculações com a cultura. Além de apresentar aos poderes públicos suas necessidades e demandas, os cidadãos, criadores, produtores e empreendedores culturais devem assumir corresponsabilidades na implementação e na avaliação das diretrizes e metas, participando de programas, projetos e ações que visem ao cumprimento do PNC. Retoma-se, assim, a ideia da cultura como um direito dos cidadãos e um processo social de conquista de autonomia, ao mesmo tempo em que se ampliam as possibilidades de participação dos setores culturais na gestão das políticas culturais. Nessa perspectiva, diferentes modalidades de consulta, participação e diálogo são necessárias e fundamentais para a construção e aperfeiçoamento das políticas públicas. Reafirma-se, com isso, a importância de sistemas de compartilhamento social de responsabilidades, de transparência nas deliberações e de aprimoramento das representações sociais buscando o envolvimento direto da sociedade civil e do meio artístico e cultural. Este processo vai se completando na estruturação de redes, na organização social dos agentes culturais, na ampliação de mecanismos de acesso, no acompanhamento público dos processos de realização das políticas culturais. Esta forma colaborativa de gestão e avaliação também deve ser subsidiada pela publicação de indicadores e informações do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC.

Dentre suas 5 estratégias e 16 ações apenas uma se aproxima de nosso problema. Trata-se da ação 5.1.5 com o objetivo de criar mecanismos de participação e representação das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas na elaboração, implementação, acompanhaPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 37

mento, avaliação e revisão de políticas de proteção e promoção das próprias culturas. De modo geral, a leitura do Plano Nacional de Cultura nos encaminha a afirmar que o tratamento dado à questão da diversidade biocultural é bastante reduzido, tímido quando não ausente. Sua timidez e redução parecem estar relacionadas à instrumentalização econômica da cultura e a redução da questão da biodiversidade à dimensão ambiental. Passemos agora à análise das metas do PNC. O processo de elaboração das Metas do PNC buscou traduzir o universo de estratégias e ações em um conjunto de resultados a que se pretende chegar com as políticas culturais entre os anos de 2010 e 2020. Neste sentido foram construídas metas com as seguintes características e qualidades: 1) Ser mensuráveis (ter fonte, situação em 2010 e método de aferição); 2) Ser prioritariamente de resultado e impacto; 3) Ser abrangentes e relevantes para agenda política; 4) Permitir clara adesão de entes federados; e, 5) Corresponder às ações do PNC. Numa primeira versão, o MinC elaborou um conjunto de 48 metas, construídas sobre as 275 ações do PNC. As 48 metas foram disponibilizadas para o debate por meio de consultas presenciais e virtuais em 2011. Em novembro de 2011 uma oficina de trabalho composta por gestores do MINC, integrantes dos colegiados setoriais do Conselho Nacional de Políticas Culturais trabalharam sobre o conjunto de sugestões, resultando em um total de 53 metas. Analisando as metas, é possível verificar que apenas 3 referem-se de forma direta a aspectos que podem ser correlacionados com a questão da diversidade cultural e biodiversidade. São elas: •

Meta 3) Cartografia da diversidade das expressões culturais em todo o território brasileiro realizada.



Meta 4) Política nacional de proteção e valorização dos conhecimentos e expressões das culturas populares e tradicionais implantada.



Meta 6) 50% dos povos e comunidades tradicionais e grupos de culturas populares que estiverem cadastrados no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), atendidos por ações de promoção da diversidade cultural.

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Depreende-se que em 3 a questão da biodiversidade aparece de forma indireta na medida em que se referem à promoção e fomento dos grupos, comunidades e seus saberes tradicionais, por meio de mapeamentos, valorização e promoção. Outra meta, a de número 9 apesar de fazer uso explícito do termo sustentabilidade e desenvolvimento local, reduz o conceito e o universo de atuação à dimensão econômica da sustentabilidade. Não há contudo, uma explícita proposta de articulação da diversidade biocultural. Considerações finais O que parece unir diversidade cultural e biodiversidade está focado, nas proposições dos documentos analisados, ao reconhecimento do papel das comunidades tradicionais em ambientes rurais e de seus conhecimentos considerados centrais na conservação ambiental. Mesmo com a criação em 2010 pelo Secretariado da Convenção da Diversidade Biológica e a UNESCO do “Programa de Trabalho Conjunto sobre Diversidade Biológica e Cultural”, com o objetivo de construir pontes entre a diversidade biocultural nas agendas política e científica em diferentes níveis, muito pouca coisa foi efetivamente realizada e não repercute nos instrumentos objetivos que delineiam as políticas culturais no Brasil (MENDONÇA, 2014). Segundo Reis (2006: 2), do ponto de vista conceitual, Mais do que uma correspondência de intenções, porém, a diversidade cultural e a biodiversidade relacionam-se de modo sinérgico e interdependente, constituindo fatores fundamentais e complementares para a promoção do desenvolvimento sustentável, definido em 1987 pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Comissão Brundtland) como sendo o Desenvolvimento que atende às necessidades do presente, sem comprometer as habilidades das futuras gerações em atender às suas próprias necessidades.

O reconhecimento de uma correlação positiva entre biodiversidade, diversidade linguística e comunidades e saberes tradicionais, parece ser evidente em algumas conjunturas e contextos: •

Quando se trata de comunidades e sujeitos rurais e tradicionais; Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 39



Quando nos referimos à questão dos direitos autorais e patentes relacionados aos conhecimentos tradicionais;



E por fim, na recente tentativa de desenvolvimento da noção de economia criativa, onde a diversidade biocultural parece assumir uma centralidade discursiva.

Ainda com Reis (2006: 7), no Brasil as iniciativas de articulação são poucas e pontuais, e parecem viver sob o signo da ameaça de extinção. Pois, Já no setor público, os progressos condutores à visão da diversidade biocultural têm se mostrado mais teóricos do que práticos. A julgar pelos dados divulgados pelo Ministério da Cultura e pela ausência de dados disponibilizados no site do Ministério do Meio Ambiente, o maior projeto de conscientização da interdependência entre as diversidades cultural e biológica e de atuação conjunta entre as duas pastas refere-se à criação, em março de 2005, de uma Comissão Integrada para discutir ações bilaterais. Apesar da propalada e extensa pauta de boas intenções e louváveis idéias de iniciativas comuns, envolvendo desde ações relativas ao patrimônio ambiental até os atuais conflitos de terra na Serra da Capivara, a maior ação efetivamente divulgada como fruto desse trabalho foi a integração de algumas unidades do programa Ponto de Cultura (Ministério da Cultura) com o programa Sala Verde (Ministério do Meio Ambiente).

Vale ressaltar que, a despeito da existência de 4 Convenções da UNESCO, nas quais o Brasil figura em todas como signatário - Convenção da Diversidade Biológica de 1992, a Convenção do Patrimônio Natural e Cultural de 1972, a Convenção do Patrimônio Imaterial de 2003 e a Convenção da Diversidade Cultural de 2005, as relações entre as políticas públicas voltadas à biodiversidade e à diversidade cultural, parecem não ter vencido ainda o patamar de um potente experimentalismo, localizado prioritariamente em dois pontos. Na perspectiva da biodiversidade, a prioridade dada na proteção e promoção dos agentes e saberes das comunidades tradicionais. Na perspectiva das políticas para a diversidade cultural, além do mesmo reforço às identidades e saberes tradicionais, há, uma reafirmação do importante papel que a cultura possui para o desenvolvimento sustentável. Mesmo assim, os riscos são contínuos, como afirma Emperaire (2011: 135), é preciso resistir à perspectiva utilitarista associada à proteção dos saberes tradicionais. Pois, 40 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

As relações entre diversidade cultural e diversidade biológica não se limitam à compreensão de formas de uso do meio ambiente por uma sociedade, ... as relações remetem a significados, formas de pensar e categorizações do que chamamos biodiversidade.

Novamente estamos de frente a um paradoxo. Concordamos com Rodrigo Manoel Dias da Silva (2014) quando em sua análise sobre as transformações das políticas culturais no Brasil, ressalta 3 avanços importantes deste processo: a reinserção da cultura na pauta política da nação, a interiorização destas iniciativas e a pluralização identitária. Mas, os motivos do otimismo convivem de perto com pessimismos estruturais. Dois exemplos recentes. O primeiro, refere-se à extinção da Secretaria da Economia Criativa em 2015 e o consequente distanciamento progressivo do Plano da Secretaria da Economia Criativa, lançado em 2011, onde se propunha uma superação do modelo das indústrias criativas e a adoção de um paradigma próprio, de articulação entre inovação, sustentabilidade, inclusão social e diversidade cultural. Outro exemplo refere-se à continua regressão do Orçamento do Ministério da Cultura nos últimos 2 anos, que se soma ao fato de que entre 2001 e 2015, apenas 54% dos valores liberados foram efetivamente utilizados nas iniciativas culturais, conforme informa o site contasabertas.com.br. Outro indicador desta frágil presença efetiva da articulação da diversidade biocultural. A despeito de toda a campanha internacionalmente realizada, a cultura se manteve ausente dos 17 objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Apesar de duas referências à importância da diversidade cultural no preâmbulo do texto, a cultura ali comparece não como fim, mas secundariamente como meio para a consecução de 4 objetivos: •

o Objetivo 4 - Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos, onde aparece como resultado esperado em termos de construção de uma cultura da paz e da valorização da diversidade cultural;



o Objetivo 8 de Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos, onde sua valorização comparece como decorrência de ações voltadas ao turismo; Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 41



o Objetivo 11 de Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis, onde a proteção e salvaguarda do patrimônio cultural é citada como ação a ser desenvolvida; e por fim,



o Objetivo 12 de Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis, onde novamente surge como decorrência do turismo em bases sustentáveis.

Não seria injusto dizer que temos na atualidade uma articulação lógica e discursiva sobre a relação diversidade cultural e biodiversidade muito bem desenvolvida, porém com limitações internas e externas ao campo cultural. Para finalizar, algumas considerações podem ser feitas. A primeira, como apontado no início deste texto, refere-se mesmo à concepção das relações entre cultura e natureza. Se o pensamento moderno sobre a condição humana precisou operar rupturas com perspectivas teocêntricas e a influência darwiniana, de forma a colocar o homem no centro de suas explicações, o custo epistêmico foi a consolidação de uma postura antropocêntrica, que opõe cultura à natureza, e o que é mais grave, pressupõe a superioridade da primeira sobre a segunda. Falar de diversidade biocultural deve significar o reconhecimento da riqueza de ecossistemas, entendidos como comunidades e ambientes naturais articulados, mas também da diversidade e dinâmica interacional nos vetores natureza/natureza, cultura/cultura e cultura/ natureza. O que nos levaria a pensar políticas culturais necessariamente sobre o prisma da territorialidade, aqui traduzida não apenas como espacialidade identitária, mas como sistemas bioculturais regionais no contexto de uma biosfera potencialmente plural. Ao contrário de uma visão que romantiza a natureza, trata-se aqui de reconhecer a existência tanto de possibilidades de convivência entre os diferentes e por vezes divergentes nichos bioculturais, quanto de hierarquias, disputas, tensões que instauram competições e exclusões. A efetiva consideração da diversidade como valor ético e antropológico requisita um pensamento interconectado com a biodiversidade, de modo a superar a adesão no limite da condenação moral e das ameaças jurídicas. Não basta ser tolerante e politicamente correto com 42 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

as diferenças e com a biodiversidade, respectivamente, trata-se de se reconectar o que a história desconectou. Lèvi-Strauss em 1952 já apontava para essa dimensão conceitual quando asseverava que: A necessidade de preservar a diversidade das culturas num mundo ameaçado pela monotonia e pela uniformidade não escapou certamente às instituições internacionais. Elas compreendem também que não será suficiente, para atingir esse fim, amimar as tradições locais e conceder uma trégua aos tempos passados. É a diversidade que deve ser salva, não o conteúdo histórico que cada época lhe deu e que nenhuma poderia perpetuar para além de si mesma. É necessário, pois, encorajar as potencialidades secretas, despertar todas as vocações para a vida em comum que a história tem de reserva; é necessário também estar pronto para encarar sem surpresa, sem repugnância e sem revolta o que estas novas formas sociais de expressão poderão oferecer de desusado. A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras. (LÉVI-STRAUSS, 1952: 24)

Outra dimensão da questão diz respeito aos interesses econômicos e a forma como modulam a relação entre o desenvolvimento, o modelo econômico e suas repercussões sobre a diversidade biocultural. Em estigante estudo sobre a importância dos saberes tradicionais e a diversidade biocultural, Toledo & Barreira-Bassols (2009) tocam no ponto central para a compreensão da convivência entre a riqueza da diversidade biocultural e a ausência de efetivos instrumentos para a sua proteção e promoção. Segundo os pesquisadores, os 10 países como a mais expressiva diversidade biocultural, considerando-se a diversidade biológica, a diversidade linguística, a diversidade agrícola e a presença de populações tradicionais são Nigeria, China, Indonesia, Australia, Nova Guiné, México, Congo, India, Brasil e Perú, conforme mostra o quadro reproduzido a seguir.

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Certamente, o reconhecimento de tais potências redesenha o mapa geopolítico atual que reproduz e atualiza o alinhamento hegemônico de poucos países, o tensionamento das chamadas economias emergentes, e o restante da grande maioria das economias dependentes. A questão é também, e fundamentalmente, econômica. Não é fácil a articulação da diversidade biocultural como bem e recurso, como propõe a UNESCO, se tratamos de forma segmentada a questão, por meio de políticas compartimentadas e visões disciplinares e corporativas. Por fim, é evidente que avanços houveram e foram significativos nas políticas culturais brasileiras. A ampliação das ações de proteção e promoção dos patrimônios culturais no Brasil, as articulações capilares do Programa Cultura Viva (transformado em Política), o Plano Setorial para as Culturas Populares e o Plano Setorial para as Culturas Indígenas, são exemplos destes avanços. Entretanto, tudo isso convive com a descontinuidade entre uma gestão e outra; com uma institu44 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

cionalidade ainda formal e burocrática no âmbito do SNC; com uma incapacidade gerencial dos órgãos públicos da cultura em efetivamente suportarem aquilo que induzem ou desencadeiam; e o mais sutilmente perverso, o campo da cultura parece ter uma capacidade discursiva muito grande mas desproporcional à sua efetiva força política. Não tenho dúvida sobre a importância do fomento, da proteção e da promoção das experiências tradicionais de articulação da diversidade biocultural. Mas, acredito que algumas questões recolocam continuamente os desafios. Arrisco citar alguns: •

A emergência do protagonismo de setores socioculturais antes marginais e a redução da diversidade cultural ao âmbito das reafirmações identitárias, ao movimento multicultural, é tanto protetora e promotora da diversidade biocultural, quanto lhe apresenta riscos em função das tensões de interesses autocentrados (como problematizam Lopes, Totaro; Barros, 2014);



o crescimento dos contextos urbanos como habitat da grande maioria da população mundial e a ausência de perspectivas da diversidade biocultural para as cidades, configura-se como um outro problema político, conceitual e metodológico;



o desenvolvimento exponencial da tecnologia da comunicação na maioria das vezes sob a lógica hegemônica do mercado, cria simulacros de participação social e processos de inclusão periférica. Para que se tenha uma ideia, o processo de revisão das Metas do PNC, mobilizou menos de uma centena de participações para cada uma das 53 metas;



o crônico modelo de financiamento da cultura que, agrega à realidade da produção de projetos ter se tornado uma técnica de vida permanente como afirma (Silva, 2012a), uma cultura do evento e a convivência com a descontinuidade. Na primeira dimensão, corremos o risco de não mais termos os ritos, processos e bens culturais vividos e produzidos no cotidiano da vida do cidadão comum, mas apenas na recriação estetizada por ações culturais patrocinadas ou financiadas pelo Estado. Um exemplo deste processo são as festas do ciclo junino, transformadas em eventos culturais e esvaziadas enquanto Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 45

expressão de cosmologias e ritos. Outro exemplo é a vulgarização do conhecimento e do papel simbólico dos Mestres das Tradições, os Griôs, banalizados por meio de ações rasas e superficiais de formação induzidas por programas institucionais, constitui outro difícil e espinhoso problema que repercute a questão aqui trabalhada. A ludicidade e a estetização assumiram o status de instância legitimadora dos sentidos da tradição. A performance mais certificadora que o conhecimento e o reconhecimento; •

e por fim, a convivência histórica das diferenças com a desigualdade, da criatividade com a miséria e da riqueza biocultural com as ameaças constantes e contínuas de extinção e apropriação pelo capital. No Acre, tratar o Santo Daime como Patrimônio Cultural, não se reduz à organização de inventários, mas ao enfrentamento dos riscos da monocultura da soja e a criminalização do plantio do cipó.

Avanços sim, mas o que me preocupa são os desafios crônicos não enfrentados, e o divórcio entre nossos discursos e nossas práticas.

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apontamentos sobre polítiCas Culturais no brasil: proposições iniCiais no Campo da diversidade Cultural

cArlos Alberto MáxiMo piMentA

Introdução A proposta desta reflexão, de caráter ensaístico, é apresentar apontamentos sobre políticas culturais no Brasil na contemporaneidade, levando em consideração as concepções de cultura e de diversidade cultural apresentadas por José Márcio de Barros1 no Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais, realizado pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais, Unisinos, em 2016. Nota-se que a preocupação do autor é com a efetivação da diversidade biocultural, em que aparece timidamente no campo normativo, mas não o extrapola. Em termos de políticas culturais, reconhece haver na realidade brasileira um divórcio entre os discursos, legais e normativos, e as práticas. Em seus argumentos visualiza avanços, mas não se visualizam os enfrentamos aos desafios crônicos do tratamento das questões centrais no campo da diversidade cultural. Em linhas gerais, Barros (2016) problematiza a percepção, as proposições e as articulações entre diversidade cultural e biodiversidade, com base em determinada lógica de sistematização dos textos normativos do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e do Plano Nacional de Cultura (PNC), para, a posteriori, questionar as ações e as metas da política nacional de cultura. 1 Este texto foi elaborado a partir da conferência de abertura do Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais, por José Marcio Barros, sob o título “Diversidade Biocultural na Política Cultural Brasileira: uma aproximação ao SNC e PNC”, realizado pelo PPG Ciências Sociais da UNISINOS, nos dias 20, 21 e 22 de julho de 2016. As referências sobre Barros (2016), elencadas no texto, tratam-se esta atividade acadêmica promovida pela UNISINOS. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 51

Dessa identificação é que os apontamentos iniciais sobre a temática diversidade cultural serão registrados para, depois, realizar as proposições da relação entre desenvolvimento e cultura, campo de interesse de pesquisas em execução no sul de Minas Gerais, dentro do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (PPG DTecS). I – Dimensões da Diversidade Cultural Lopes (2015: 76), em suas investigações sobre políticas culturais, comunidades e patrimônios no Brasil, indaga: “existe uma relação entre a diversidade cultural e a biodiversidade?”. Complementa: “se existe, qual é a forma, o mecanismo pelo qual ela atua?”. Da perspectiva do autor, as respostas se configuram no universo empírico levantado pelo Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil (LAPCAB)2. Pensar a biodiversidade como promove Lopes (2015), extensivo às preocupações de Barros (2016), impõe explicitar os conceitos de cultura, em sua complexa abrangência na contemporaneidade, e de diversidade cultural, no campo das configurações normativas e suas aplicabilidades, as quais nos organizam enquanto universo legal. De qual aspecto da cultura estamos falando? O que é diversidade cultural nos textos normativos sobre políticas culturais? Da perspectiva da cultura, reverbera-se que no surgimento da sociedade industrial moderna é que se opera a ruptura entre Natureza e Cultura, produzindo consequências à ordem das sociedades, face às severas transformações econômicas, políticas e sociais, estruturais, desencadeadas pelas concepções de ciência, de tecnologia e de propriedade privada. Esse movimento está contido na ideia de progresso e trouxe consigo desigualdades, distanciamentos socioeconômicos e processos socioculturais preocupantes, em razão do conhecimento tecnocientífico ter inviabilizado, naquele contexto histórico, outras experiências, o que Boaventura de Sousa Santos denominou de “desperdício da experiência” (SANTOS, 2000). Em Pimenta (2015: 64), esse processo pode ter sido configurado pelo “embaralhamento do objeto e das preocupações historicamente consignadas nos argumentos filosóficos, antropológicos e sociológicos 2 Para ver as pesquisas do LABCAP acesse a página www.facebook.com/lapcab. 52 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

à identificação de como o homem transforma” (sic). De forma prática, essa transformação provocada pelo homem, enquanto ação social, também permite a reorganização, reelaboração, reconstituição, reconstrução, em que “baliza, sintetiza e edifica suas concepções de mundo e de cultura”. A lógica cartesiana promoveu os distanciamentos entre este (cultura) e a natureza, em que se deu a devida precisão à ciência e às coisas, abrindo espaços para outras configurações fora de marcos vinculatórios natureza–cultura. Na atualidade, pelas reconfigurações desses marcos, vê-se em cena as questões da diversidade cultural e, pela ciência do homem, se observam as tentativas de re–ligação entre natureza e cultura. Como consequência, verificam-se, por meio de enunciados teóricos, agenciamentos conceituais e estratégias práticas, as possibilidades de proteção e de promoção da diversidade cultural. Desse turbilhão de tensões que o tema da diversidade provoca, a cisão natureza-cultura e as consequências entre concepções de cultura erudita e cultura popular estão presentes ou se apresentam. A dinâmica da cultura nos é escape. As ações, as retroações e as trocas são escapes e, presentes, o tempo todo, transcendem o determinante, o determinado, o instituído, o institucional, o significante, o significado. A cultura tem vida própria, mas se faz importante a formação de elementos normativos que a preserve e a permita se reconstituir, metamorfosear. No plano normativo, as questões de diversidade cultural se pautam em princípios e fundamentos da democracia3. A democracia, ainda em consolidação, traz em seus agenciamentos e enunciados a possibilidade instrumental de cidadania e de práticas democráticas, não sem apelo às referências e às pressões locais e externas. Mas, antes de avançarmos para os apontamentos, propositura dessa reflexão, duas questões são postas em evidência: o conceito de diversidade cultural e a concepção de biodiversidade. O conceito de diversidade cultural pode ser pensado, dentro dos apelos e pressões externas, a partir do artigo 4º da convenção da 3 Os conceitos de democracia e cidadania podem ser vagos ou esvaziados de significados se utilizados como meros recursos retóricos. Neste texto, têm a pertinência dos limites e definições estabelecidas no PNC e no SNC. Não cabe fazer uma sobreposição de posições ideológicas, mas de identificar o que os documentos preconizam no campo da diversidade cultural. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 53

UNESCO (2005), sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Ou seja, diversidade cultural trata-se da [...] multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão [...] transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados.

Preservar o patrimônio cultural, a variedade das expressões culturais, impõe inúmeras modalidades e formas, como propõe o artigo 4º mencionado, de “criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados”. Trata-se de [...] reconhecer certas características básicas que podem auxiliar na superação de posturas românticas e ingênuas [...]. A Diversidade Cultural [...] resulta das trocas entre sujeitos, grupos sociais e instituições a partir de suas diferenças, mas também de suas desigualdades, tensões e conflitos [...]. É o resultado de uma construção deliberada, e não apenas um pressuposto, um ponto de partida. Um projeto, e não apenas um inventário (BARROS, 2008: 18).

Essas implicações são múltiplas e, multiplicadas, devem ser projetadas no sentido de que a diversidade cultural possa ser contemplada de modo mais alargado, superando rótulos, oposições e binariedades incrustados na hierarquização ideológica de lugares, pessoas, raças, gênero, valores, éticas, estéticas. Em países como o Brasil, de forte herança autoritária e colonialista, marcam fortemente as relações socioculturais de nossa realidade. No campo da diversidade cultural, Barros (2016) trilha pela busca do entendimento das questões de biodiversidade e seus entraves. Para caracterizá-la, faz uso das definições da UNESCO extraídas da “Convenção da Diversidade Biológica” (1992) e “Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais” (2005). Também não se descola das convenções presentes no ordenamento 54 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

jurídico brasileiro (Constituição Federal e leis infraconstitucionais) e internacional (UNESCO e Direitos Humanos). Barros utiliza a definição do artigo 2º da UNESCO (1992) para expressar o que entende por diversidade biocultural. Por outra via, não deixa de apontar, com base em Mendonça (2014), que os municípios, os estados, o Distrito Federal e a União devem constituir um sistema formal para implementação de políticas públicas que efetivem essa diversidade. Trata-se da [...] variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.

As dimensões do biológico, da genética das espécies e dos ecossistemas adquirem centralidade na preservação biocultural. Barros (2016), ao apontar de qual diversidade biocultural está falando, compõe um quadro de potencialidades para caracterizá-la em escala planetária e elege duas características elementares: [...] natureza, que se mantém e preserva por si própria, desde que não tenha que enfrentar a ação predatória do homem; [...] sistema, que pressupõe equilíbrio e que possui importância crucial para todos os demais sistemas de uma sociedade (a economia, a saúde, a agricultura etc.).

A diversidade biocultural evidencia a necessidade de uma inter-relação entre natureza e cultura, no sentido de que ambos carecem de suas caracterizações para coexistir e complementar, pois são dependentes entre si. Negar, hierarquizar, separar, opor natureza e cultura não parece ser um caminho sensato. Essa perspectiva, complexa e relacional, se inscreve na constituição de um plano de políticas públicas que ultrapasse os discursos e as normativas do politicamente correto sobre as questões das diversidades cultural e biocultural. Também se faz inadiável a proposta de articulação e de integração de um sistema que coloque em marcha o equilíbrio sobre as nossas escolhas do econômico, do social, do desenvolvimento, da sustentabilidade. Se inadiável o equilíbrio, inadiável, ainda, o questionamento sobre a noção de progresso, uma vez que as concepções de desenvolviPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 55

mento econômico, distantes das escolhas de sustentabilidade e da correlação natureza-cultura, trouxeram sérios problemas socioculturais e socioambientais, em escala mundial, quanto mais aos países em processo de desenvolvimento, traduzindo-os em ilusão (ARRIGHI, 1998) ou em mito (FURTADO, 1974). Nas tensões, conflitos e contradições idealizadas nas nossas noções de identidade, nação, progresso, desenvolvimento, tradição é que se propugna, no campo da cultura e da natureza, a valorização da diversidade. Da perspectiva da cultura, a diversidade só se potencializa pela ação conjunta e equilibrada entre as ações de proteção e promoção. Da perspectiva da natureza, a biodiversidade só se estabelece, efetivamente, por meio de processos de aprendizagem socialmente conduzidos. Não se trata de desacreditar na educação formal, enquanto instituição de difusão de saberes selecionados. Trata-se de concretizar, a partir de movimentações políticas, uma agenda nacional que coloque no centro a consolidação de práticas democráticas, as quais permitam acesso a direitos para todos e a preservação das diversidades (bio)culturais, sob pena de apagamentos de patrimônios materiais e imateriais edificados ao longo de nossa história. II – Escolhas teóricas: dimensões da cultura Apresentada s dimensões do tema “diversidade cultural” pelas argumentações de Barros (2016), a partir das propostas, ações e metas do PNC e do SNC, vislumbra-se encaminhar posições mínimas sobre determinado posicionamento-escolha em relação ao conceito de cultura. Em termos concretos, explorar um conceito de cultura de maior permeabilidade, que ultrapasse os rótulos conceituais, não é, pois, tarefa tranquila. Caracterizada pela complexidade das relações presentificadas em nosso tempo, a cultura pode ser entendida como um conceito-armadilha [...] composta por padrões, regras, instituições. [...] é fábrica da ordem, reprodução do instituído. [...] identificada à superestrutura, bifurcada em cultura científica e cultura das humanidades, da cultura erudita e cultura popular. [...] é um circuito que envolve ordem-desordem-interação-organização composto por códigos, padrões, modelo, modalidades de existência, saberes (CARVALHO, 2013: 49).

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Não se está filiando o conceito à teoria da complexidade, ou ao multiculturalismo, ou ao relativismo, ou ao estruturalismo, ou a qualquer rotulação que o valha. A cultura é polifônica e tem múltiplas facetas, as quais ultrapassam os meros registros descritivos ou narrativos. A consolidação da diversidade cultural passa pela constituição de um campo de direitos, efetivos e que se efetivem, que compreendam, harmonicamente, as facetas e as polifonias da cultura. Principalmente em tempos de relações líquidas (BAUMAN, 2008). Dentro da realidade brasileira, não se pode excluir a existência de hierarquizações, por meio de elementos legais, retóricos e discursivos, em que se limita e se nega as diversidades. Reconhecer e respeitar a diversidade biocultural impõe o enfrentamento desses conflitos e uma leitura mais alargada que sobreponham às dimensões funcionais, organizacionais e positivas da cultura. Pela lógica da cultura ordinária (WILLIAMS, 1992), se privilegia a experiência coletiva ao estabelecê-la como sendo um modo de vida. Já no campo das caracterizações do desenvolvimento industrial urbano (FURTADO, 1974; 2008), resulta de um processo latente de constantes transformações de competição e de sobrevivência. Pautado na definição de “poder simbólico” (BOURDIEU, 1998), as relações culturais são inscritas num campo de conflitos que expressam as tensões promovidas pelos mecanismos de competição, concorrência, disputa, individualização, resistência, classificação, reclassificação e desclassificação que esta sociedade promove. Caldeirão em efervescência, as diversas manifestações culturais não podem ser desconsideradas dos movimentos de locais e globais, os quais promovem outras e novas configurações em tendências que evidenciam outros e novos hábitos e práticas, com constância. Em outros termos, “a cultura se debate entre pressões locais e injunções universais” (CARVALHO, 2013: 50). Questiona-se: a cultura local possui mecanismos que lhe permitem fazer frente ao global? A todo instante se vê colocada em xeque a tradição, o local, a memória. Augé (1997: 26) problematiza essa questão sob o viés da homogeneização cultural, uma vez que a “modernidade cria passado imediato, história, de forma desenfreada, assim como cria alteridade, ao mesmo tempo em que pretende estabilizar a História e unificar o mundo”. Da perspectiva das injunções universais, está em andamento o discurso do consenso, promovido na contemporaneidade, caracterizaPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 57

do por uma padronização dada pela aceleração da História e diminuição do planeta. Trata-se de consequências das revoluções tecnológica e informacional que multiplicaram a circulação de informações em um tempo nunca antes visto. Contudo, a diversidade cultural resiste e coexistem4 em modelos homogêneos e hegemônicos (AUGÉ, 1997). Nessa lógica, o homem constrói contradições assumindo elementos destrutivos para a própria vida. Ou seja: “devastamos os ecossistemas de tal maneira que hoje, na primeira década do século 21, vivemos sem garantias futuras de usufruir de águas e terras” (CARVALHO, 2013: 66). Carvalho faz crítica ao modelo de vida degradante que a sociedade moderna propôs sem levar em consideração as gerações futuras. Há um jogo de tensões que permeiam a cultura local e a cultura global em uma interface que determina “um tipo específico de dominação” (ORTIZ, 2006: 186). Essa dominação é percebida pelo autor no início do século XX, onde o Brasil buscava inserir-se na modernidade por meio de elementos como: “as asas do avião, os bondes elétricos, o cinema, o jazz-band, a indústria, eles procuravam por sinais da modernidade” (ORTIZ, 2006: 187). Tais elementos agiam de forma a impor o moderno sobre o tradicional, ou na percepção de Augé (1997), do ‘consenso’ sobre o ‘desencantamento’ no âmbito da cultura. Processo esse fundamentalmente permeado pela utilização da memória seletiva que legitima ou refuta elementos da memória coletiva5. A cultura ganha dimensões mundiais e é deslocada para o campo econômico. O deslocamento é percebido, por exemplo nos Estados Unidos da América, como investimentos no “estilo de vida americano”6, vinculados a comportamentos de consumo. Contudo, segundo Ortiz (2006) eles foram pioneiros em investir no que chamou de “segmentos mundializados de cultura”, representados por filmes e seriados televisivos, massificados de maneira universal. Esses comportamentos, privilegiados pela nossa apropriação de desenvolvimento ou idealização de desenvolvimento, corroboraram, na prática, em limitar possibilidades emancipatórias no campo da diversidade biocultural. As noções de progresso militar-tecnológico e de desenvolvimento econômico contidas no percurso que escolhemos 4 De acordo com Marc Augé (1997), o grande desafio dos antropólogos é o de compreender sobre a coexistência na contemporaneidade, por gerarem uma crise de sentido e uma crise de alteridade. 5 Para saber mais ver Nora (1993). 6 Tradução literal do autor do termo em inglês American way of life. 58 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

devastaram potencialidades e expressões culturais, bem como devastaram o ecossistema. Não os dizimaram. Da perspectiva das pressões locais, ressalta-se que a tradição e as artes, pensadas por Ortiz (2006), trazem mecanismos de legitimação específicos da cultura, que sofrem modificações na medida em que se tornaram produtos industriais em escala mundial. Pode-se destacar o artesanato enquanto modo de saber-fazer, que foge a lógica industrial, em que se permite a originalidade e a especificidade do artefato. No que diz respeito aos hábitos populares, estes também são influenciados por meio dos processos de mundialização da cultura, mesmo em sociedades tradicionais pela introdução de certos alimentos industriais como a sardinha em lata, refrigerantes, molho de tomate, alterando o estilo de vida das pessoas de comunidades tradicionais (ORTIZ, 2006). O autor chega à consideração de que as mudanças e o caráter sazonal de aspectos culturais não fazem desta um movimento passageiro: A modernidade, neste sentido, não é efêmera. Suas mudanças se realizam sobre um solo firme que lhes dá sustentação. Esta solidez lhe confere o estatuto de civilização, cujo padrão cultural se diferencia das tradições passadas (ORTIZ, 2006: 214).

A modernidade reorganizou a sociedade sobre outros valores que nunca antes foram percebidos pelas sociedades pré-industriais. Desde então, o homem passou por processos culturais que permitem perceber a intensificação dessa reorganização. Hall (1997) chama esse movimento de descentramento. Dois exemplos podem ser visualizados. O primeiro é o de que o homem passou a se apoiar em uma dimensão estética, a qual corroborou com a incorporação de desejos e preocupações desnecessárias, como viajar. Para Featherstone (1995: 204) são os novos “prazeres da descoberta, e as novas sensações como um produto da modernidade”. Segundo, o qual tem suas perversidades, é a substituição das relações homem-homem por relações homem-máquina (HARVEY, 1993). Esses dois processos identificados, sobretudo nos países ocidentais, reorganizam a cultura em direção à homogeneização cultural, rompem com a lógica do tempo–espaço, incorporam culturas mundiais e tornam as pessoas cada vez mais parecidas e desejosas de consumir produtos industrializados. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 59

Eis aqui os desafios para os enfrentamentos das questões pertinentes à diversidade cultural e biocultural. III – Outras Entradas pela Cultura: táticas de manutenção A vinculação na modernidade entre diversidade e cultura não se traduz em um movimento fácil. Quanto mais se adicionarmos, aos questionamentos sobre o tema, as articulações outras que os condicionamentos sociais, na atualidade, propõem à cultura e aos agentes culturais. Equivale dizer que as discussões sobre diversidade cultural, as quais não se descolam das dimensões bio–sócio–ambientais sustentáveis, têm seus desdobramentos referentes às táticas de inserções promovidas pelos diversos agentes culturais (TODOROV, 1999; YÚDICE, 2004). As inserções, conscientes ou não, devem privilegiar processos de reelaboração de estruturas cognitivas que incorporem as diferenças, sem colonialismos, autoritarismos, conservadorismos, imposições de modelos ou modelizações, mas permitir novas e outras expressões de vida, já que: [...] as mesmas tendências econômicas e sociais que incessantemente transformam o mundo que nos rodeia, também transformam as vidas interiores dos homens e mulheres que ocupam esse mundo e o fazem caminhar (BERMAN, 2007: 410).

Vê-se, na passagem da sociedade de produtores para a sociedade de consumidores, a exacerbação de individualismos narcísicos, das flexibilizações e frágeis relações de trabalho, da competência em detrimento de experiências comunitárias e coletivas. Esse resultado, não sem tensão e resistências, traz a sobreposição da hegemonia do mercado sobre a vida social e, sobretudo, sobre as tendências identitárias dos sujeitos. Ao corroborar com Todorov (1999), acrescendo a definição de “supermercado cultural” de Hall (1997), Yúdice (2004) lança foco sobre como a cultura, ora utilizada enquanto recurso, ganhou legitimidade diante dos anseios pelo progresso econômico, constituindo em objeto de investimentos e ocupando lugar nas agendas políticas e econômicas. Nestes novos ditames, todos os planos simbólicos de representação são absorvidos pela expansão social do consumo, tal qual descrito em Lipovetsky e Serroy (2015) ao averiguar a estetização da economia 60 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

e chegando a algo muito próximo do que Bourdieu (1998) chamaria de mercado de bens simbólicos. Na dimensão das táticas de manutenção da cultura, autores como Froehlich (2003) e Lopes (2009), têm somado esforços para compreender como os agentes culturais constroem estratégias e tecem táticas diante destes quadros sociais complexos, construindo e reconstruindo suas identidades. O laboratório vem do meio rural, em que apreende as vias pelas quais se constroem e reconstroem as identidades e as tradições. Froehlich (2003) observa nas festividades rurais uma constituição de símbolos tradicionais que buscam, acima de tudo, reconstruir a história e a tradição, evocando um tempo pretérito, para que este sirva como suporte à construção contemporânea da estruturação coletiva de identidade, em resistência aos já citados fluxos culturais globais. Em uma estratégia que visa espetacularizar o tradicional, busca-se agregar valor ao local, amalgamando um discurso identitário e revelando uma complexa estratégia de interesses na espetacularização das tradições rurais, sua transformação em alternativa de produção e venda de simulacros e pastiches do local (FROELICH, 2003). Movimento similar realiza Lopes (2009), relatando que uma cultura nunca se imobiliza a si própria, movimentando-se em dinâmicas ora estratégicas, ora táticas, mesmo diante do deslocamento entre tempo-espaço causado pela globalização. Ao reafirmar a diferença entre espaço e lugar estabelecida por Hall (1997), o autor considera que o “preço da manutenção das diferenças seria a desterritorialização das mesmas, a perda do lugar cultural” (LOPES, 2009: 24). Em outros termos, seria a manutenção da própria cultura, com suas estratégias de resistência, o fator responsável por fazer emergir outros centros e formas de pertencimento, se rearticulando com os fluxos globais de informação (LOPES, 2009). Ao pensar a valorização das experiências do saber–fazer dos artesãos, Pimenta e Mello (2014), identificam um conjunto de mecanismos de negociação que a cultura pode estabelecer dentro de processos de geração de renda, de resistências à imposição da cultura mundial, de valorização da diversidade cultural e, acima de tudo, de reivindicar políticas públicas culturais que evoquem a importância do local e das coisas do local. “Nem tudo são flores, neste proclamado mar de rosas!” (PIMENTA e MELLO, 2014), pois o que pode ser encarado como possibilidade, Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 61

políticas públicas culturais, pode, dentro dessa dinâmica de relações de força, ser traduzido como novos agenciamentos ou imposição de novos e outros condicionamentos culturais (BOURDIEU, 1998). Considerações Finais A discussão sobre a diversidade biocultural não pode ser ingênua, muito menos caracterizada por um único e determinado campo de conhecimento. Do posicionamento de Yúdice (2015: 60), vê-se que a cultura afeta outras áreas e “sua relevância nem sempre é reconhecida”. Dentro desse contexto, a pertinência para a efetivação da diversidade biocultural passa a ser prioridade, e central, para se transmudar o papel do Estado, das concepções de Desenvolvimento e da Sociedade, na constituição de uma outra ordem sociocultural, política, econômica, geográfica, demográfica, estética, ética, moral e, principalmente, simbólica. Na trilha de Yúdice (2015: 61), [...] a definição de cultura que irá orientar a política. [...] deve ser flexibilizado o marco conceitual, não para estabelecer uma definição única ou estética [...] ou antropológica [...], mas para orientar as relações culturais com outros setores: educação, direito, saúde, vivência, fomento produtivo, comércio, esportes, gastronomia, gênero, meio ambiente, segurança, turismo, urbanismo [...], deve-se reconhecer que a cultura não é uma esfera própria [...]; permeia todas as outras esferas da sociedade (sic).

O Estado, subentendido nas dimensões do nacional, estadual e municipal, tem papel preponderante e indispensável na consolidação desse processo. Em outros termos, seguindo as sugestões de Pimenta (2014) fortalecer o papel do Estado, distanciado de perspectivas centralizadoras e totalitárias, mas com propósitos e princípios (os elencados acima) voltados à superação das distâncias, diferenças e desigualdades, se faz necessário para ver outras possibilidades de desenvolvimento no campo das tecnologias, da cultura, da geração de renda, da economia, da política, das diversas dimensões que incorporem o social e a sociedade. Não se trata de depositar no Estado todas as responsabilidades de atuação e intervenção para fazer valer as diversidades, pois todos, mercado, sociedade civil, comunidade, coletivos, somos atores sociais 62 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

e proprietários desse patrimônio, material e imaterial. Trata-se, no campo das relações de forças presentes na sociedade, fazer o Estado assumir a responsabilidade regulatória, regulamentadora, executória, fiscalizadora, para fortalecer espaços de cidadania, de democracia, de respeito às diversidades, as quais superam a mera normatização e a retórica do “mito da diversidade cultural no Brasil”. A cultura se caracteriza como questão central nas políticas públicas e sociais, dentro das agendas local, estadual, nacional e internacional, com o engajamento da sociedade civil. Alguns requisitos são basilares para que esse movimento se efetive e aconteça, quais sejam: 1. Na lógica do coletivo, a participação deve ser permitida e fomentada em todas as instâncias para promover o surgimento de espaços políticos institucionais ou não, instituídos ou não, tendo em vista que sem a participação a diversidade está fadada ao fracasso. Esses espaços trariam as condições de desmascaramento do mito da diversidade cultural brasileiro, no sentido de crítica à ideia de que somos diversos e respeitamos a diversidade ou que não somos racistas, bem como de romper com às lógicas contidas nas concepções de desenvolvimento, progresso, competição, concorrência, individualismos e consumo. 2. Na lógica institucional, o entendimento dos mecanismos legais (PNC, SNC, Constituição, leis infrainstitucionais), no sentido de rompimento com os diversos processos de hierarquização da cultura para decifrar, a partir dos elementos legais, os argumentos retóricos e meramente discursivos que trazem à tona as suas limitações e inconsistências. 3. Na lógica dos atores sociais, a defesa das diferenças culturais e bioculturais resultam de ações, atitudes, movimentos, posições e expressões que vão além das vontades institucionais e estatais. Os enfrentamentos devem permitir formas e modos de gestão compartilhadas entre estado, sociedade civil, movimentos socioculturais, comunidades tradicionais e outros atores, em que se promovam o desenvolvimento sustentável, a superação das distâncias socioeconômicas, a simetria das diferenças, a valorização do outro e estabeleçam o apagamento das marcas autoritárias incrustradas na nossa realidade. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 63

4. Na lógica da continuidade, o fortalecimento de um sistema ou plano nacional de cultura que incorpore todas as demandas, tensões e interesses da diversidade cultural e biocultural, traduzido pela agilidade de efetivações dos interesses da sustentabilidade planetária. Para tanto, o projeto de desenvolvimento, além de incorporar as demandas das comunidades rurais e tradicionais, os saberes e fazeres, as urgências de preservação do ecossistema e das culturas, materiais e imateriais, marginais, não pode sofrer descontinuidades a mercê de interesses mercadológicos, especulativos, higienizadores ou dos “urubus” de plantão. Dentro dessa obrigatoriedade se apresenta a tensão “público versus privado”, em termos de eficiência e não eficiência da gestão. O Estado, não só ele, tem papel preponderante no encaminhamento dessas ações e atitudes. Para Pimenta e Alves (2010: 11), retomar esse papel é emergente, uma vez tratar-se de tendência desse processo político-econômico, impulsionada pelos efeitos dos processos globais (...) a minimização dos espaços de atuação do Estado. Essa minimização coloca, em evidência, a “eficiência”, exclusiva, do setor privado, tendo em vista sua dinâmica e agilidade na “gestão” de seus interesses. No caminho inverso, inscreve-se o Estado no rol do atraso, da lentidão e da ineficiência na condução das intervenções que lhe competem (...). No caso, propõem-se em fazer esse caminho por traçados inversos, vitaliza as dimensões públicas das políticas públicas e sociais. Na realidade, não se trata de uma defesa de estatização das políticas públicas. Trata-se de apontar (...), o caráter público das políticas públicas e sociais, mesmo que elas sejam conduzidas pela esfera do privado.

A questão econômica inverteu a ordem da lógica da concepção de desenvolvimento. Há que se forjar um novo ordenamento, em todas as frentes, principalmente no campo simbólico da cultura, em que se fortaleçam transformações efetivas e concretas que tragam às relações socioculturais manifestações simétricas, estéticas, éticas, não vulneráveis, que encapsule a lógica da concorrência, da competição, da meritocracia e faça emergir, não sem conflitos e tensões, espaços coletivos de cooperação e trocas, valorização da singularidade, movimentos de autonomia, solidariedades, priorização dos interesses coletivos em detrimen64 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

tos dos individuais e práticas de educação política, formais e informais, que devolva os conteúdos sociais aos processos de socialização. Tudo está em aberto. Não há receitas ou caminhos seguros que determinem a constituição de desenvolvimento aceitável ou incorpore a diversidade cultural (biocultural), enquanto a pauta prioritária estiver centrada na relação capital versus trabalho, na meritocracia, no produto tecnológico de consumo banal, no crescimento destrutivo da natureza, no domínio dos fracos pelos fortes. O desafio é o de transcender às crenças no progresso e no crescimento dependente do econômico, forjando um outro Estado não-mínimo, não-duro, não-central e não-totalitário, ao qual compete estar atento às urgências e premências de toda gente e de todo ecossistema.

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redes e polítiCas Culturais: o protagonismo dos atores Coletivos na Construção de suas trajetórias identitárias

breno Augusto souto MAior Fontes

Introdução Pretendo, neste ensaio, construir e desenvolver algumas questões que nos permitam compreender práticas culturais a partir dos campos argumentativos inscritos no discurso da política cultural, meio ambiente, e ator coletivo. São observações pontuais, ilustradas a partir de exemplos dos relatórios de campo da pesquisa “Políticas Culturais e ambientais, comunidades e patrimônios no Brasil: questões epistêmicas”1. Cada uma dessas expressões inscritas no título deste ensaio remete a uma extensa temática; a redução do foco será dada á medida em que construirei uma “ponte” entre estes três grandes temas, centrando-me, de um lado, no protagonismo dos atores locais para a construção de práticas que estruturam a identidade comunitária, e estas práticas como sendo ancoradas em organizações territoriais bastante específicas, o que dá a singularidade, de um lado ao lugar; e, de outro, que confere um recorte ambiental preciso. Assim, por exemplo, se falamos em quebradeiras de coco no maranhão, teremos que pensar em um recorte de uma prática onde o extrativismo organiza um sistema de produção (e desta forma, conformando o ambiente a um uso específico, o da exploração do babaçu) e, de outro, que as sociabilidades construídas por esta comunidade, em especial a partir do universo feminino no mundo do trabalho, e no ambiente doméstico, confere uma identidade específica. Falar em atores coletivos significa penetrar na complexa teia de sociabilidades que organizam o cotidiano de pessoas reunidas em torno de um projeto. Porque, na medida em que são sujeitos, atores, protagonizam práticas estruturadas a partir de um discurso, que recorta a 1 Coordenado pelo Prof. Dr. José Rogério Lopes. PPG Ciências Sociais-UNISINOS. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 69

realidade, construindo-a a partir das trajetórias de experiências das pessoas que fazem parte desta comunidade em questão. E estas trajetórias podem ser reconstruídas a partir dos atores, que organizam seu mundo segundo suas vidas ativas, segundo os campos de experiências vivenciadas em seu labor cotidiano. Cabe aqui precisar as expressões “vida ativa” e “labor”, remetendo-as aos textos de Arendt2. A autora em questão as utiliza na construção da essencialidade humana, muito fortemente orientada para o zoon politikon na descrição das práticas políticas, no fazer política, entendida indissociavelmente do por-se em ação na busca de uma identidade construída a partir de seu lugar no mundo. Porque estar no mundo, estar aí implica necessariamente na ação direta do viver cotidiano, na busca pela reprodução da existência, não somente material, mas incluindo os ingredientes simbólicos que recorrentemente são utilizados para a (re)construção do mundo vivido, instrumento importante para a orientação das práticas cotidianas. Aqui nos afastamos de Arendt para ampliar o significado deste por-se em ação. Apresenta-se-nos agora a necessidade de compreender como as construções simbólicas das pessoas se interconectam fortemente a suas experiências biográficas, como este fazer a vida é um elemento que sempre se acompanha do estar aí, no mundo, que se estrutura a partir do complexo campo de significados. Temos, para este caso, uma exposição brilhante de Schutz, de sua ideia de mundo da vida, que nos permite compreender as cosmovisões em estreita associação com o campo da experiência cotidiana, do estar junto e construir coletivamente discursos. Estar juntos, cabe ressaltar, não significa necessariamente pensar em uma comunidade composta por indivíduos dessingularizados (o que, aliás, destituiria o próprio léxico inscrito na palavra), mas aqueles que compartilham um cotidiano e ao mesmo tempo têm singularidades decorrentes de trajetórias biográficas que lhes inscrevem em uma história caracteristicamente própria. Esta ideia de repertorio de experiência, segundo expressão de Schutz, é bem compreendido a partir do conceito de mundo da vida3: 2 ARENDT, H. The Human Condition [HC]. Chicago, University of Chicago Press, 1958. 3 Expressão utilizada por Schutz, mas tomada emprestada de Husserl (Lebenswelt). Ver HUSSERL, E. Phänomenologie der Lebenswelt. Ausgewählte Texte Band II. Stuttgart 1986. E, também SCHUTZ, A. Strukturen der Lebenswelt. Konstanz, UTB GmbH, 2003. 70 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

O mundo da minha vida diária não é de forma alguma meu mundo privado, mas é, desde o inicio, um mundo intersubjetivo compartilhado com meus semelhantes ... esse mundo não é só meu, mas é também o ambiente de meus semelhantes ... o homem vê como pressuposto a existência material de semelhantes, sua vida consciente, a possibilidade de intercomunicação e a qualidade histórica da organização social e da cultura, da mesma forma que vê como pressuposto o mundo da natureza no qual nasceu ... a referência de apresentação ... o outro é , desde o começo, dado a mim como ambos um objeto material com sua posição no tempo e no espaço, e um sujeito com sua vida psicológica (SCHUTZ,1979:159-160)

O campo simbólico inscrito no mundo da vida, plástico de relativamente diverso consoante com as singularidades individuais, possibilita os membros daquela comunidade a se orientarem na compreensão da realidade, construindo significados que lhe permitem, ao mesmo tempo entenderem-se enquanto pessoas e reconhecerem no outro o que lhe é constitutivamente característico. Vida ativa e rica, construída a partir do cotidiano, significada em experiências particulares a cada inscrição nas complexas teias de sociabilidade das biografias das pessoas. As pessoas orientam suas ações a partir da opões que lhe são disponíveis, e estas se apresentam a partir do que conhecem da realidade. A realidade é lida dentro um quadro de conhecimentos presentes em cada biografia, acumulados durante as experiências do viver cotidiano. Esta ideia, a de repertórios de experiência, a princípio se aplica para a tomada de decisões as mais variadas possíveis, desde aquela trivial de escolher um cardápio em um restaurante (combinam-se neste caso os gostos e recordações dos sabores dos pratos já experimentados, o preço e outras considerações mais específicas, como por exemplo, da adequação de um determinado alimento ao estado de saúde, ou a expectativas sobre a qualidade desta comida sobre suas qualidades nutricionais), até a da escolha de uma prática terapêutica. Buscam-se, desta forma, em acontecimentos passados similares, orientações para a tomada de decisão sobre que providência tomar nos problemas enfrentados cotidianamente. Permita-nos apresentar este conceito, em Schutz (2012: 85-86), como importante recurso para compreender este fenômeno: Dizer que uma situação é biograficamente determinada é afirmar que ela possui uma história; ela é a sedimentação de todas as Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 71

experiências prévias do individuo, organizadas como uma posse que está facilmente disponível em seu estoque de conhecimento e, enquanto uma posse exclusiva, trata-se de algo que é dado a ele e somente a ele. Essa situação biograficamente determinada inclui certas possibilidades de futuras atividades práticas ou teóricas que podem ser chamadas de objetivo à disposição que define quais dentre os vários elementos contidos em uma situação serão relevantes ... o homem em sua vida cotidiana, encontra, a cada momento, um estoque de conhecimento à sua disposição, que lhe serve como um esquema interpretativo de suas experiências passadas e presentes, e também determina sua antecipação das coisas que estão por vir.

Mas a consciência – ainda seguindo o raciocínio de Schutz – não é simples percepção sensorial de um indivíduo. Este mundo que se constrói simbolicamente e que organiza nossa presença, é estruturado a partir da inserção de indivíduos em um campo de sociabilidade, que faz com que seja sempre universo socialmente indexado e compartilhado. Assim, “todo nosso conhecimento do mundo social, mesmo de seus fenômenos mais anônimos e remotos e dos mais diversos tipos de comunidades sociais, baseia-se na possibilidade de vivenciar um alter ego em presença vivida” (SCHUTZ, 1979: 164) Assim, a nossa leitura parte desta declaração inicial de princípios, aproximando-nos do recorte do projeto do Lapcab que norteia as incursões no campo: “investigar as trajetórias e práticas de coletividades e comunidades de atores produtores de bens identitários, ou de marcação social (artesãos, extrativistas, pescadores, entre outros) que se reconhecem em um contexto ambiental determinado e que utilizam, nas suas atividades, tecnologias patrimoniais que integrem as percepções locais de cultura e ambiente”4. Esta marcação social destas coletividades se manifesta a partir de construções laborais, artísticas e discursivas de uma coletividade, inscrita em um campo de pertencimento territorial. Comunidade e território são ingredientes importantes para compreender a dinâmica do pertencimento e de sua expressão a partir das marcações inscritas do estar no mundo. O conceito “comunidade”, originalmente empregado no sentido de pertencimento de uma comunidade de destino, hoje é relativamente 4 Projeto esse intitulado: Políticas culturais e ambientais, comunidades e patrimônios no Brasil: algumas questões epistêmicas, coordenado pelo Prof. Dr. José Rogério Lopes. PPG Ciências Sociais-UNISINOS. 72 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

impreciso, referindo-se a diversos campos de significado5: comunidade referindo-se a pessoas residentes em áreas de baixa renda; comunidade referindo-se a grupos profissionais (p. ex. comunidade de pescadores, comunidade acadêmica), comunidade referindo-se a grupos religiosos, entre outros. O uso sociológico desta expressão foi popularizado a partir de Tönnies, em seu livro “Comunidade e Sociedade”6, que denomina comunidade como uma unidade, congregando indivíduos, que apesar de apresentarem diferentes qualidades, se organizam em torno de princípios reconhecidos como essenciais a todos. Tönnies utiliza esta expressão para distinguir estes agrupamentos dos existentes nas sociedades contemporâneas, em profundas mudanças decorrentes do intenso processo de industrialização. A comunidade de origem, muitas vezes enraizadas em seus “heimaten”, se desestruturam, impactadas profundamente pela desorganização do mundo rural, pelo importante movimento migratório para a cidades, e pelo igualmente importante fluxo de migrantes para o novo mundo (as Américas). O Projeto LabCaB utiliza a expressão “comunidade em transformação” em um sentido preciso: são povos impactados pelas profundas mudanças por que passou o país recentemente, desorganizando seus modos tradicionais de vida e lhes impondo formas de adaptação aos tempos modernos. Desafiados a (re)construir novos modos de vida, rearticulando aqueles vivenciados em memórias ancestrais com os que se lhe são impostos pela modernidade, muitas vezes estas comunidades se desestruturam, perdem suas marcas identitárias originais e as res5 O dicionário online Michaelis define desta forma “comunidade: “ Agremiação de indivíduos que vivem em comum ou têm os mesmos interesses e ideais políticos, religiosos etc.; Lugar onde residem esses indivíduos; Comuna; Totalidade dos cidadãos de um país, o Estado”. http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index. php?lingua=portugues-portugues&palavra=comunidade 6 Que define da seguinte forma: “Die Theorie des Gemeinschaft geht solche Bestimmungen Gemass von der vollkommenen Einheit menschlicher Willen als einem ursprünglichen oder natürlichen Zustande aus, welcher trotz der empirischen Trennung und durch dieselbe hindurch, sich erhalte, je nach der notwendigen und gegebenen Beschaffenheit der Verhältnisse zwischen verschieden bedingten Individuen mannigfach gefaltet”. Em tradução livre “o conceito de comunidade se configura em uma regra originada a partir da determinação da vontade humana enquanto pertencente a uma origem comum, que, entretanto se divide e através desta sobrevive, dependendo do necessário e tendo em conta a natureza das relações entre diferentes indivíduos, condicionadas diversamente em agrupamentos múltiplos”. In: Tönnies, F. Gemeinschaft und gesellschaft. Grundbegriffe der reine Soziologie. Darmstadt, WBG, 1979: 7. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 73

significam em marcações muitas vezes desfavoráveis a sua inserção enquanto cidadãos plenos. Casos típicos desta situação são os indígenas e as comunidade quilombolas. Mas a desorganização provoca efeitos profundos em todos: Tal segmentação, experimentada por algumas coletividades e negada por outras, quebra os vínculos de reciprocidade simétrica que as caracterizam, modificando o sentido de sustentabilidade comunitária que suportava a lógica de suas atividades e de seus bens produzidos. Reagindo a tal influência, vários grupos e várias coletividades reforçam os compromissos recíprocos entre os atores que os compõem, agenciando forças simbólicas de suas próprias tradições, através da utilização dos seus referentes culturais como bens de marcação social ou como bens singularizados em biografias coletivas7.

Os vínculos que estruturam estas comunidades são quase sempre ancorados em laços fortes, característicos de relações de parentesco, compadrio, amizade, muitas vezes também acompanhados de pertencimento territorial. Campos de sociabilidade que se reafirmam, muitas vezes organizando identidades a partir do estar no mundo, na vivência cotidiana do trabalho, e de sua relação com o meio ambiente. Assim, os relatos das visitas de campo dos pesquisadores vinculados ao projeto8 indicam claramente, de um lado, as trajetórias de construção de vínculos fortemente orientados para os laços fortes acima caracterizados, como é o caso, por exemplo, das artesãs de Ponta de Pedras, Pernambuco, mulheres pertencentes à comunidade de pescadores e fortemente estruturada a partir de laços de parentesco, com suas práticas igualmente distribuídas nos campos tradicionais das relações de gênero: Os sujeitos da pesquisa são mulheres artesãs e pescadoras, com faixa etária entre 17 e 70 anos, dedicadas à confecção de objetos, decorativos e utilitários, a partir da fibra da cana-brava (Gynerium sagittatum). O cotidiano e as experiências de vida dessas mulheres estão relacionados tra7 Projeto esse intitulado: Políticas culturais e ambientais, comunidades e patrimônios no Brasil: algumas questões epistêmicas, coordenado pelo Prof. Dr. José Rogério Lopes. PPG Ciências Sociais-UNISINOS. 8 Projeto esse intitulado: Políticas culturais e ambientais, comunidades e patrimônios no Brasil: algumas questões epistêmicas, coordenado pelo Prof. Dr. José Rogério Lopes. PPG Ciências Sociais-UNISINOS. 74 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

dicionalmente ao universo da pesca artesanal e, em época recente, à atividade de artesanato com matéria-prima local. Essas atividades perpassam a esfera doméstica dos grupos familiares envolvidos e permitem construir processos identitários entre a prática da pesca e a produção de artesanato... Como pescadoras, filhas ou esposas de pescadores, artesãs e donas de casa, essas mulheres são protagonistas dos seus fazeres e aprendizados9. Fato idêntico é observado entre as artesãs ocupadas com a renda de bilro, na comunidade de Canãa. Misturando atividades tradicionais, como agricultura, e ocupação na fabricação da renda, estas mulheres, a partir do aprendizado repassado por geração, se ocupam produtivamente com o artesanato, ao mesmo que tempo que também reafirmando suas identidades e solidificando os laços de pertencimento a uma comunidade: Os atores sociais da pesquisa são mulheres, jovens e crianças artesãs vinculadas à renda de bilro, prática cultural em interface direta com o manejo sustentável da matéria-prima usada na confecção das peças.... Vinculadas a relações de parentesco, amizade e vizinhança, as artesãs membros da Associação, e outras que mesmo não fazendo parte da ARTECAN contribuem para a reprodução social dessa prática, atendem a experiências de vida heterogêneas e faixas etárias diferentes10 Além do campo das sociabilidades estruturadas a partir dos laços primários, outro importante ingrediente que estrutura a comunidade é o pertencimento territorial, e isto a partir de dois modos distintos: (a) a construção, a partir de ingredientes discursivos, do lugar enquanto âncora de uma trajetória de destino comum, evocada principalmente a partir do seu contrário, o existir “desde sempre” e o que e afirma a partir do recurso a ancestralidade. Somos o que somos, e assim seremos a partir de nossos descendentes porque pertencemos a um mesmo campo genético, nossos antepassados são os mesmos. Este é um fato destacado nos relatos 9 Extraído do Relatório de visita ao município Goiana – Distrito Ponta de Pedras, Alagoas, entre 16 e 26 de novembro de 2013 feito pela pesquisadora Fanny Longa Romero (PNPD/CAPES/PPGCS/UNISINOS). Em muitos casos, a distribuição das atividades segundo uma divisão de trabalho orientada fortemente por papéis tradicionais de gênero é observada nos relatos dos pesquisadores de visitas de campo. 10 Extraído do Relatório de visita município de Trairí – Distrito Canaan, entre 4 e 11 de agosto de 2013, feito pela pesquisadora Fanny Longa Romero (PNPD/CAPES/PPGCS/UNISINOS). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 75

dos entrevistados. Este campo de pertencimento é assinalado, por exemplo, para o caso dos pescadores de Vila Velha: “As trajetórias pessoais dos pescadores locais, e também dos vendedores de peixes nas bancas próximas ao calçadão da praia, perpassam a própria construção histórica e social do lugar que habitam”11; (b) há também a assinalar a relação importante entre as práticas de reprodução da subsistência e o ambiente. O artesanato, a pesca, a produção extrativista são exemplo importantes de construção do que podemos denominar Tecnologia social. A expressão “tecnologia social” é normalmente utilizada de modo mais freqüente como a instrumentalização de técnicas construídas a partir do saber popular para a solução de problemas do cotidiano. Estas técnicas, de uso e domínio públicos, teriam duas importantes características: (a) seriam mais facilmente assimiladas pelas comunidades; (b) têm custos reduzidos para sua aplicação. O uso, desta forma, destas tecnologias, comparativamente, é bem mais eficiente que os habitualmente utilizados. A definição por nós adotada de tecnologia social tem características semelhantes àquelas descritas acima (ampla difusão pela comunidade e potencial de utilização com custos menores), mas apresenta um ingrediente distinto: o fato de estarmos nos referindo a arranjos organizacionais produzidos a partir da possibilidade de os campos reticulares estruturarem modos de alocação de recursos mais eficientes. Recursos que têm natureza igualmente particular: campos comunicativos mais eficientes, formas de organização para a produção do habitat oriunda da capacidade de mobilização de recursos (habilidades técnicas, capacidade de mobilização para o empreendimento de ações públicas, como mutirões na construção de casas, na organização dos espaços públicos, na organização produtiva, na transmissão de técnicas para o manejo dos recursos disponíveis). Esta tecnologia social é o resultado, da arte de fazer, aprendida ancestralmente, e, de outro, do uso de recursos naturais oferecidos à comunidade. A extração da palha para confecção de cestos, o uso de práticas e de técnicas especiais para a pesca, o uso do barro para a confecção de panelas são exemplos descritos nos relatos dos pesquisadores: O manejo e a preservação da piaçava, assim como a fabricação de artesanato em Porto de Sauípe têm relação direta com a memória histórica e cultural de extintos grupos 11 Extraído do Relatório de visita município de Vila Velha – Espírito Santo, entre 14 e 17 de março de 2013, feito pela pesquisadora Fanny Longa Romero (PNPD/ CAPES/PPGCS/UNISINOS). 76 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

indígenas de origem tupi, tupinambá e maçarandupió que habitaram a região. A artesã Dona Babá relata que o artesanato de piaçava na comunidade local “tem mais de cinco gerações. É o que a gente sabe explicar, nossa bisavó, avó, mãe e passa de mãe para filho”. ... os conhecimentos tradicionais que aprendeu no marco de gerações passadas e no tempo presente: “todas nós, desde pequenas e desde os tempos dos índios, sempre tivemos um pedaço de piaçava na mão. Começava-se com a trança de bico e depois, sem nem perceber, estávamos trançando longas tiras para costurar chápeu ou esteira12 A arte de fazer as panelas de barro é atravessada ainda pela memória história e cultural da região. Ao explicar as técnicas para pintar as peças artesanais, Leticia conta que o tanino, tinta usada para tingir os objetos de barro imediatamente que saem do fogo, foi utilizado “antigamente pelos índios para tingir roupa. Primeiro eles tingiam roupa com isso aqui, com o tanino”13. O que torna este fenômeno mais complexo – a produção artesanal – são as transformações por que passaram recentemente estas comunidades. A modernidade que se instala, deslocando as populações e esgotando seus recursos (é o caso, por exemplo, da pesca artesanal, ameaçada pela especulação imobiliária, poluição e competição predatória da pesca industrial14) produz importantes mudanças e adaptações destas populações. A mais importante é a constante ameaça de seu modo de vida, caracterizada a partir de processos complexos de modernização econômica (é o caso, por exemplo, da invasão de espaços tradicionais de 12 Extraído do Relatório de visita município de Entre Rios – Porto do Sauípe, entre 11 e 16 de junho de 2013, feito pela pesquisadora Fanny Longa Romero (PNPD/ CAPES/PPGCS/UNISINOS). 13 Extraído do Relatório de visita município de Vitória – Espírito Santo, entre 6 e 9 de julho de 2013, feito pela pesquisadora Fanny Longa Romero (PNPD/CAPES/ PPGCS/UNISINOS). 14 É o que afirma, por exemplo Romero, em seu relato de sua visita aos pescadores de Vila Velha: “. É possível afirmar que a “pescaria artesanal” se constitui como uma prática cultural na região, contextualizada por processos sociais e históricos de longa data, mas também permeada por diversos processos de territorialização e políticas “desenvolvimentistas” que fazem do lugar um território construído, apropriado, ressignificado e disputado por agentes diversos e jogos de poder. Se algo caracteriza a vida local em pauta é justamente a relação social que homens, mulheres e grupos domésticos constroem em torno da pescaria e do lugar, enquanto experiência social de vínculos identitários com o mar e os saberes construídos. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 77

cultura extrativista por atividades de agricultura e pecuária), degredação ambiental (recursos naturais antes disponíveis em quantidade hoje escassos ou submetidos à lógica mercantil) e, sobretudo a inclusão dos membros destas comunidades primevas à lógica mercantil e capitalista. O assalariamento, a sujeição à lógica dos processos de trabalho modernos são ingredientes devastadores. Deve-se compreender o modo de vida destas comunidades de maneira holística, incorporado os fazeres, as construções de visões de mundo e as práticas de sociabilidade. O espaço sociotécnico derivado do capitalismo desagrega, desarticula e produz fragmentos de vida espalhados em momentos e práticas muitas vezes desestruturadoras destas identidades construídas secularmente. O artesanato, enquanto campo de produção de sentidos muito mais além do objeto fabricado, é um exemplo absolutamente contrário a essa lógica. Como dissemos em outro lugar, Entender o artesanato de um lugar corresponde a penetrar na alma profunda de seu povo, desvelar suas tradições ancestrais e o modus operandi particular de suas sociabilidades ... Resulta, portanto, de uma série complexa de sociabilidades, onde, de um lado, encontram-se os campos proximidade, do contato profundo e demorado do tempo, típico das relações de parentesco e de vizinhança. O artesão vive a sua comunidade e nela reproduz a sua arte. Por outro, direta ou por representante, o artesanato faz circular a sua obra – fortemente ancorada nas tradições daqueles que a ensinaram – às vezes consubstanciada em um objeto com alguma utilidade (um vaso, um utensilio doméstico) ou simplesmente algo a ser apreciado, uma “lembrança” para aquele que por lá passou e quer a marca do lugar, talvez exótico e distante15 Da mesma forma, práticas extrativistas como pesca artesanal, coleta de borracha ou do babaçu expressam muito mais que uma atividade econômica. É um conjunto complexo e articulado de uma comunidade, organizando-se em um campo de sociabilidades onde o fazer inscreve uma tecnologia que marca um campo de pertencimento a uma comunidade de destino. Não se trata de práticas de sobrevivência de natureza similares a que encontramos em atividades econômicas modernas, o trabalho assalariado, ou o pequeno empreendimento. 15 Ver Portanova e Fontes (2014). 78 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Estas práticas não estão totalmente absorvidas pela lógica mercantil, e o saber fazer está inscrito em um campo reprodutivo que incorpora uma tradição, um sentido de pertencimento profundo. Entender estas comunidades em processo mais amplos de envolvimento no campo da modernização intensa por que passou a sociedade brasileira significa desvelar os impactos destas mudanças na vida cotidiana destas pessoas. Como bem assinala o projeto do Lapcab, a questão fundamental a estudar é “a disseminação, em coletividades e comunidades socialmente marginalizadas, de uma capacidade de relacionamento direto e autônomo com o mercado, que, se acredita, esses grupos e essas coletividades nunca antes experimentaram”. Esta relação não é de forma simétrica, estas comunidades na maior parte das vezes se posicionam subalternamente aos imperativos do mercado. Muitas vezes, a partir de conflitos violentos com atores ocupando seus espaços tradicionais (o espaço da pesca ocupado pela especulação imobiliária, os campos extrativistas pela agricultura intensiva, por exemplo), acontece a dissolução destas comunidades, cujos membros migram ou se integram as novas atividades implantadas no lugar. Buscar formas de relacionamento que ao mesmo tempo preservem estas comunidades e as insiram no mercado é um desafio. Uma das possibilidades aventadas são as atividades artesanais enquanto produtos de consumo diferenciados, incorporando a marca étnica de uma comunidade, e, portanto, se colocando como um produto com valor mercantil, valorizado em uma sociedade multicultural. Objetos que antes eram instrumentos de trabalho ou consumidos cotidianamente por seus produtores, agora são ressignificados, consumidos a partir de seu valor estético e de pertencimento étnico. A uma cesta ou uma panela, por exemplo, incorporam-se os símbolos de uma comunidade quilombola, ou traços de fazer e representar indígena. As marcas de um povo agora são consumidas por uma cultura que incorpora e valoriza a diversidade, ampliada pelos mercados globalizados. Não são, entretanto, momentos pacíficos de mudança. Do fazer para o uso cotidiano e a mercantilização há um processo longo e a incorporação de múltiplos atores; é o caso, por exemplo, dos intermediários que compram o peixe para depois revender aos restaurantes; ou dos que buscam artesanato para as lojas de turistas, ou mesmo para exportação. As associações de artesãos, os cursos profissionalizantes, e as organizações não governamentais buscam capacitar estas comunidades Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 79

para lidaram com este vasto campo de práticas, novas e diversas daquelas que estavam acostumadas; para conseguir preços justos em seus produtos, para projetar a marca de sua arte; para, também, resguardar seus territórios, protegendo-os da especulação e conseqüente perda. Como todo processo de intensa mudança, o desfecho não é previsível. Há a unanimidade que a fragilidade destes povos justifica a intervenção do Estado, a produção de políticas públicas, compensando o desequilíbrio de forças entre os atores e interesses. Mas lidar com a tradição de um fazer, o resguardo da identidade e os desafios que a modernidade impõe a estes povos não é tarefa fácil, as experiências que se apresentam são sempre particulares. Não há uma trajetória única que permita orientar os atores neste campo difícil e tortuoso.

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SCHUTZ, A. Sobre Fenomenologia e Relações Sociais. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2012 SCHUTZ, A. Strukturen der Lebenswelt. Konstanz, UTB GmbH, 2003 SCHUTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979. TÖNNIES, F. Gemeinschaft und gesellschaft. Grundbegriffe der reine Soziologie. Darmstadt, WBG, 1979.

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protagonismo

de atores Coletivos e polítiCas

ambientais Com a inClusão do outro

Aloisio ruscheinsky Introdução O campo da sociologia parece cada vez mais solicitado para abordagens sobre o protagonismo dos atores coletivos em conjunções marcadas por antagonismos e desafios quanto à avaliação de ações ambivalentes em contextos diversificados e críticos, como a questão socioambiental e as desigualdades. No conflito das interpretações temas da crise ambiental são apresentados como esparrela para amplos dilemas, ou manobra para enganar e ludibriar os incautos quanto os ardis de um sistema insustentável. O presente texto tem por objetivo uma abordagem que coteja o protagonismo de atores coletivos num determinado espaço sociogeoespacial e a formulação de políticas socioambientais que leva em consideração a ótica da inclusão do outro. Isto é, quando atores entram em cena, em especial o foco será o coletivo formado a partir do Comitesinos e seus adjacentes, com implicações para a projeção de políticas de mitigação no espaço de duas décadas. No meio dos usos do território e de disputas persistentes pela distribuição dos bens (no caso em especial o território da água) se põem o reconhecimento do outro onde se desvincule o bem-estar das práticas sociais predatórias. A hipótese desenvolvida por esta investigação gira em torno da afirmação de políticas ambientas na área de abrangência da bacia do Rio dos Sinos com a pretensão de contemplar a inclusão do outro tendo como horizonte o empenho de atores coletivos como protagonistas. Com isto se constatará que atores se sustentam e se mantem em seu protagonismo no cenário da ação coletiva, no mais das vezes na forma de compartilhamento de expectativas, sem desqualificar as circunstâncias conflitivas em que situam as práticas sociais. A expressão “inclusão do outro” é tomada de Habermas (2004), porém a sua aplicação Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 83

no presente caso possui desdobramentos que destacaremos ao longo da exposição. A inclusão do outro - pessoa, espaço geográfico ou o rio - significa que o agir possui em suas perspectivas não somente a percepção deste ou o respeito ao estranho, porém o partilhamento ou cumplicidade. É a responsabilização solidária e a compreensão da alteridade na tomada de decisão: quais as implicações para o outro para qualquer atividade na delimitação geográfica da planície de inundação. Inclusão significa aqui abertura diante da sorte do alheio. O compromisso dos atores como protagonistas no caso em estudo se forja para superar a lógica em que culturalmente os resíduos, o saneamento, o esgoto doméstico e a preservação de bens ambientais são considerados um problema do outro. As políticas públicas desenhadas ultrapassam a dimensão da estética, uma vez que importa muito o que é feito diante dos antigos problemas enumerados, pois que não basta a aparência de uma cidade limpa ou uma paisagem onde a degradação não é vista porque não fica à mostra. Do ponto de vista da metodologia na realização da investigação fomos ao encontro dos meios que fornecessem pistas valiosas sobre redes de informação e fronteiras, sobre formas de articulação nas quais se movem atores coletivos, tentando desvendar possíveis novos focos de investigação ou pontes para o conhecimento sobre realidades inexploradas. A metodologia utilizada contempla a observação direta, a coleta de depoimentos por meio de entrevistas, além da pesquisa bibliográfica em documentos, livros e sites de órgãos de divulgação. As ciências sociais percorreram vias de experimentação para alargar o âmbito das reflexões na análise sobre a constituição de relações sociais em uma realidade social em continuo movimento. Entrevistar, observar ou inquirir, entre outros registos, são processos cruciais de abordagem do real em movimento. Numa realidade de multiplicação de informações, ao mesmo tempo com acesso condicionado ou recheado de obstáculos implícitos, o recurso a entrevistas teve como intuito de localizar a mediação de informantes privilegiados. Ao mesmo tempo importa reconhecer que o incentivo a investigações estruturadas por entidades ou órgãos governamentais podem auxiliar na construção de redes, plataformas, identidades partilhadas e para a gestão integrada de conflitos socioambientais. O desafio na delimitação da investigação para uma alargada utilidade social contou com o envolvimento longevo do investigador com 84 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

o objeto de estudo, bem como uma proximidade ou afinidade com os sujeitos como interlocutores da construção do conhecimento. Ao mesmo tempo reconhecendo como refere Bourdieu (2004: 21) “cada protagonista desenvolve uma visão desta história conforme aos interesses ligados à posição que ocupa nesta história, sendo as diferentes narrações históricas reinventadas em função da posição daquele que as faz, não podendo, portanto, aspirar ao estatuto de verdade indiscutível”. Portanto, decorre como efeito das posições, bem como das inserções pelos agentes nessas posições, as percepções e os posicionamentos em face da construção de políticas socioambientais. O cenário de atores no colegiado do Comitesinos1 Na literatura os atores sociais têm ocupado posição privilegiada em abordagens sociológicas, destacando a emergência de novos sujeitos capazes tanto de revitalizar demandas sociais na direção de políticas públicas, quanto de exprimir a inconformidade política de diferentes segmentos da sociedade. Quando novos atores entram ou saem de cena (SADER, 1988; LAVALLE, CASTELLO e BICHIR, 2004) inovando concepções, articulações, práticas sociais e institucionalidades. De acordo com Silva e outros (2006: 157) entre pesquisadores e agentes políticos “a discussão sobre a centralidade e o protagonismo dos atores sociais passa a ocorrer [...] sob os marcos do conceito de “sociedade civil”, ao qual, normativamente, estavam associados diversos significados positivos do ponto de vista da democratização”. O presente estudo situa-se no marco das interfaces entre sociedade civil e instâncias estatais, uma vez que as políticas ambientais possuem no caso esta dupla face. Porém, antes disto o reconhecimento de problemas ambientais urgentes parece fundamental para a articulação de atores visando a definição de ações de políticas públicas de recuperação e/ou preservação. Neste sentido, para Camargo e Henkes (2015: 571) “a identificação destes fenômenos utilizando a unidade territorial da bacia hidrográfica auxilia na compreensão da dinâmica ambiental na qual os atores locais estão diretamente relacionados”. As cheias periódicas são um problema social, ambiental para as famílias atingidas 1 O histórico da região que abrange a bacia do rio dos Sinos e a trajetória do Comitesinos foram objeto de consideração de muitos estudos, razão pela qual não serão abordados aqui. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 85

e uma questão pública devido aos custos financeiros2 do socorro que recaem sobre todos os cidadãos. Ao mesmo tempo, cabe reconhecer que a referência à crise ambiental representa uma espécie de consenso principalmente no que diz respeito a adoção de uma retórica por diferentes atores sociais (CASTELLS, 2010). Em outros termos, podemos identificar um “mercado linguístico”, segundo o qual, de acordo com as relações de poder, o discurso detém um sentido, um valor e um efeito. Segundo (BOURDIEU, 1996: 91) para obter reconhecimento e efeito, o mesmo “deve ser pronunciado pela pessoa autorizada a fazê-lo, numa situação legítima, ou seja, perante receptores legítimos”. Sob a luz da ideia de “mercado linguístico”, referente ao ambientalismo e à formulação de políticas, é importante sabermos quais atores figuram neste campo dentro do âmbito regional em destaque. O tema do meio ambiente é um tema meio que marginal dentro do movimento popular, porque uma das grandes bandeiras de luta é a questão da moradia. Então sempre há essa espécie de atrito do movimento popular e o povo ambientalista. Então no último congresso no estado da Paraíba, a CONAN tirou uma deliberação de que o movimento comunitário começasse a integrar comitês de bacia e que essa pauta do meio ambiente fosse parte das lutas das associações de bairro. Eu estive no Congresso e, por conta disso, a gente busca pleitear a indicação para integrar o Comitêsinos, e eu integro um comitê municipal do saneamento de Campo Bom. (Membro do Comitesinos na categoria associações comunitárias)

Os protagonistas dentro do Comitesinos levam a cabo uma disputa civilizada entre diversas formatos associativos na qual os atores podem reconhecer as razões e as objeções dos demais como parceiros – ou a presença da alteridade - na busca de alternativas às reivindicações. “ [...] a coexistência equitativa dessas formas de vida exige o reconhecimento recíproco das diversas condições [tradições] culturais de concernência ao grupo: também é preciso reconhecer cada pessoa 2 Na palavra de apreciação do presidente do Comitesinos “O custo da última enchente de agosto de 2013 aqui em São Leopoldo, só de óleo diesel, colchões, e cestas básicas, custou 13 milhões. Estima-se que o custo da enchente, está sendo feito até um estudo sobre isso, vá chegar ao redor de 50 milhões. Agora, se nós olharmos, nós tivemos enchente aqui em 2011, 12, 13, 14, 15, dá para fazer o cálculo quanto o município desembolsou ou quanto custou isso pra sociedade como um todo; é um absurdo”. 86 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

como membro de uma comunidade integrada em torno de outra concepção diversa do que seja o bem, segundo cada caso particular. “ (HABERMAS, 2004: 261). Na composição do Comitesinos destaque-se três níveis: a diretoria com presidente e vice3, a secretaria executiva e a plenária. Os membros que compõem o colegiado ou a plenária são eleitos por seus pares ou entidades que fizeram manifestação de interesse, sendo a diretoria eleita a partir da plenária. O edital para a convocação de eleições e a ratificação dos resultados é atribuição do CRH/RS (Conselho Estadual de Recursos Hídricos). As cotas ou vagas foram adotadas a partir de 1999 e a atual distribuição em diferentes grupos foi estabelecida em lei em 1994 e as categorias do quadro foram instituídas pela resolução 004/2004 do CRH/RS. As modificações na forma da composição da plenária atesta as mudanças da configuração dos atores coletivos no território e de seus interesses pelas questões ambientais, aplicando-se o dizer “quando novos atores entram ou saem de cena”, porquanto atestam as continuidades e mudanças políticas (LAVALLE, CASTELLO e BICHIR, 2004). Tabela I - Composição do Colegiado do Comitesinos: distribuição aprovada em 2005 e integrantes do exercício 2015-2017 Grupo I – Usuários da Grupo II – Representantes Grupo III – Represenágua (16 vagas) da população (16 vagas) tantes de governo Categoria: abasteCimen- Categoria: legislativo mu- (oito vagas) to públiCo

- CORSAN - SEMAE) (Suplente 1)

niCipal e estadual

- Vereador Câmara de Taquara - Vereador Câmara de Caraá (Suplente 1) - COMUSA (Serviço de - Vereador Câmara de CamÁgua e Esgoto de Novo po Bom Hamburgo) - Vereador de São Leopoldo - CORSAN) (Suplente 2) (Suplente 2) - SEMAE (Serviço Mu- - Vereador de Canoas nicipal de Água e Esgotos - Vereador de Estância Velha de São L.) (Suplente 3) - COMUSA) (Suplente 3)

- Fundação Zoobotânica (FZB/SEMA) - Idem (Suplente 1) - Sec. Segurança Pública, Comando Ambiental da BM - Idem (Suplente 2) - Vaga não preenchida

3 Além da plenária a direção possui a assessoria da CPA (Comissão Permanente de Assessoria). Atribuições em Silva (2010). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 87

Categoria: esgotamen-

Categoria: assoCiações Co-

to sanitário e resíduos

munitárias

sólidos

- CORSAN - COMUSA) (Suplente 1)

- Prefeitura de Esteio

- União das Associações de - Vaga não preenchida Bairros e Vilas de Campo Bom - Instituto São Leopoldo 2024 (Supl. 1) - Associação Cultural Marce- - Vaga não preenchida lo Breuning - Grupo Escoteiro Peregrino (Supl 2) - Vaga não preenchida

- Prefeitura de Portão (Suplente 3) Categoria: drenagem

Categoria: Clubes de ser-

- SEMAE - CORSAN (Suplente 2)

viços

- Prefeitura de Esteio - Prefeitura de Portão (Suplente 1) Categoria: geração de

- Rotary Club São Leopoldo - Idem (suplente)

- Vaga não preenchida

Categoria: instituições de ensino, pesquisa e extensão - CEEE (Companhia - UNISINOS - Vaga não preenchida Estadual de Energia Elé- - Instituto Senai de Tecnolotrica) gia Couro e Meio Ambiente - CEEE (suplente) (Suplente 1) Categoria: produção energia

rural

- Sindicato dos TR de Santo Antônio da Patrulha - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caraá) (Suplente 1) - Associação Arrozeiros de Santo Antônio da Patrulha - Sindicato Rural de A. S. da Patrulha (Suplente 2) - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Taquara - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rolante (Suplente 3)

- EMATER/RS – ASCAR – - EMATER/RS – ASCAR (Suplente 2)

- Associação para Projeto Pesquisa e Ação Ambiental e Social (ABRASINOS) - UNISINOS) (Suplente 3) - Feevale - Instituto Rio Grandense do Arroz – IRGA (Suplente 4)

88 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Categoria: indústria

Categoria: ongs ambientalistas

- SINPASUL - ACI- NH/CB/EV (Suplente 1)

- Projeto Mira Serra - Movimento Ambientalista da Região das Hortênsias – MARH) (Suplente 1) - Associação das Indús- Associação Trescoroense trias de Curtume do Rio de Proteção ao Ambiente Grande do Sul (AICSul) Natural - SINDIQUIM (Suplente - Grupo Ecológico de Rolan2) te – GER) (Suplente 2) - Cooperativa Agropecuá- - Movimento Roessler Deferia de Jacinto Machado sa Ambiental - CICS/Portão (Suplente - União Protetora do Am3) biente Natural – UPAN) (Suplente 3) Categoria: mineração Categoria: assoCiações profissionais

- Associação dos Extratores Minerais Vale do Rio dos Sinos e Paranhana - Idem (Suplente 1)

Categoria: lazer e tu-

- Associação de Arquitetos e Engenheiros Civis de NH (ASAEC) - ASAEC) (Suplente 1) - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES/RS) - ABES/RS) (Suplente 2) Categoria: organizações

rismo

sindiCais

- Não preenchida

-Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul – SENGE) - Sindicato dos Serv. Públicos de Portão (Suplente 1) Fonte: Comitesinos. http://www.comitesinos.com.br/

Algumas observações sobre o quadro da composição. Sintomáticas são as vagas não preenchidas, no caso em especial, de órgãos do governo estadual, o que remete a conflitualidades expressas ou implícitas e ao grau de apreço por esta instância deliberativa sobre a conformação de políticas públicas. Silva (2010) apresenta um levantamento das presenças ao longo dos anos e não se pode afirmar que se confirma uma participação maciça ou, ao contrário, salienta ocasionais dificuldades Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 89

para o quórum requerido na apreciação deliberativa de matérias. Outra questão destacada pela autora é a presença ordinária de um público interessado no debate ambiental em curso, mesmo sem direito ao voto. Na conformação do colegiado em algumas categorias há disputas entre entidades. A gente tomou conhecimento do Comitê e fez essa articulação. Por exemplo, na primeira vez que fui indicado, se articulou com a União de Novo Hamburgo, e a União de Sapiranga, que são as mais fortes aqui da bacia. Fizemos um debate dentro da Federação Gaúcha de Associações de Moradores. A União de Canoas não demonstrou interesse e avalizou o nome da gente. Daí a gente se candidatou como manda o regimento e disputamos com as outras entidades que lá compareceram na assembleia de formação do Comitê. E claro, a gente se articulou para que as nossas entidades fossem até a plenária para garantir a indicação. Daí a gente tem o compromisso de fazer esse debate junto as entidades, uniões no caso. (Membro do Comitesinos na categoria associações comunitárias)

Ao conjunto de categorias listadas na plenária se ajusta o que afirma Habermas (2004: 301) “... status de pessoas que pertençam, como portadores de direitos subjetivos, a uma associação voluntária e que efetivamente façam valer por meio judiciais suas respectivas reivindicações [...]”. Contudo, destaque-se que se trata de coletivo que soma esforços para traçar uma referência ao outro quando se trata de avalizar qualquer obra estrutural no âmbito da bacia hidrográfica. A capacidade de tradução como exercício da reflexividade O acompanhamento das sessões das plenárias faz jus ao que afirma Abrantes e outros (2014: 10) “face à pluralidade de possibilidades disponíveis, os agentes sociais são cada vez mais chamados a intervir nos mais diversos âmbitos de ação, sendo-lhes exigido um nível de conhecimentos cada vez mais especializado traduzido num conjunto de competências associadas [...]”. Estes conhecimentos alargados estão vinculados à busca de financiamentos para pesquisas envolvendo a elaboração de diagnósticos das águas do rio dos Sinos, quanto na contratação de empresas ou especialistas para a elaboração do Plano de Bacia e da delimitação geográfica da planície de inundação do Rio dos Sinos. Na presente análise 90 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

o texto se atém a estas duas iniciativas recentes, sem menosprezar a relevância das demais. O Plano de Bacia consiste num diagnóstico das circunstâncias e também de um prognóstico4, detalhando um plano de metas para as próximas duas décadas visando a recuperação do rio e de seus afluentes, em especial na confluência com os espaços urbanos, e a preservação da potabilidade na região próxima às nascentes. Um dos detalhes do debate em preparação à aprovação destes documentos como propostas de políticas ambientais para a gestão do território das águas refere-se ao esforço para identificar “as coerções intransponíveis, que descartam certas possibilidades, dos fatores cujo efeito coagente depende do protagonismo dos atores sociais” (GAIGER, 2003: 197). Diga-se de passagem, a meta de recuperação não é tão otimista como se poderia supor ou esperar como um cidadão comum, devido à gravidade das formas de contaminação e da ausência de previsão quanto à investimentos volumosos ou devido a outras prioridades. Importa notar que os ativistas membros do Comitesinos podem se encontrar motivados por dimensões não unívocas ou objetivos amplamente coincidentes quanto aos projetos, meios, táticas, identidades e causas. Desta forma é possível que se reconfigure o nexo entre a investigação científica que fornece as bases para o diagnóstico mediante apropriação de conhecimento e as diversas formas de ação coletiva que desvelem o protagonismo, facultando um espaço para a reflexividade. Aliás, a noção de reflexividade consolida um aspecto fundamental para respaldar políticas ambientais com uma visão que contemple a inclusão do outro. Diante de obstáculos históricos, Abrantes e outros (2014) enfatizam quatro estratégias relevantes para a construção e efetivação de políticas socioambientais: mediação, tradução, participação e avaliação. O Comitesinos consolida a abertura de espaço público para mediação de interesses, de participação e de reflexividade, a diferentes setores da sociedade, mas com percalços para múltiplas dinâmicas em sociedade com relações sociais assimétricas e permeada de conflitos. Todavia quanto ao modelo de gestão proposto: 4 O Plano de Bacia estabelece no respectivo Plano de Ações o Programa de Proteção e Minimização dos Impactos Negativos das Cheias, em especial a Ação que determina o Zoneamento das Áreas Inundáveis, ou planícies de inundação. O Plano de Bacia aprovado possui entre suas diretrizes: Redução de cargas poluidoras, Monitoramento quali-quantitativo, Proteção e controle de cheias, aumento da disponibilidade hídrica, Otimização de demandas de água, Gestão de áreas protegidas, Vazão ecológica, Instrumentos de gestão de recursos hídricos, Educação, mobilização e comunicação e Acompanhamento e implementação. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 91

ao mesmo tempo que é um órgão instituído pelo governo, faz parte do sistema estadual do DRH, sendo uma forma que a administração estadual tem de cumprir suas competências legais com relação à gestão das águas, também oportuniza que se crie um espaço de debate de construção de soluções de conflitos, como uma organização vinculada a uma região. No caso o Vale do Sinos é uma região com vários conflitos pelo acesso à água ou vários usos potencialmente em conflito. O rio é relativamente pequeno e em momentos extremos, não é mais o suficiente para harmonizar os interesses da comunidade humana com a comunidade biótica. Antes da existência do Comitesinos a gente tinha uma situação de conflito entre atores: movimento ecológico xingando a indústria; esta criticando as prefeituras, as prefeituras recriminando a indústria. Não havia um espaço institucional onde se pudesse construir políticas públicas. E isso é, talvez, a grande virtude do Comitesinos, com o tempo foi se consolidando como esse espaço em que os diferentes agentes que tem interesse, ou econômico, ou interesse social, e os agentes públicos que tem tarefas a cumprir com relação à questão das responsabilidades, competências se encontram e constroem soluções de consenso, ou se não de consenso, do interesse da maioria. Às vezes demora um pouco, mas é a forma mais efetiva, porque também, por sua vez, compromete. Não é uma ação unilateral, em que um agente toma a iniciativa e os outros só reagem a ela. Quando se constrói junto uma política, todo mundo passa a ser parceiro da construção daquela política, passa a ser parceiro da execução, responsável pelo sucesso da sua execução. (Membro do Comitesinos, do segmento ONGs).

Para a compreensão das estratégias elencadas, torna-se útil o recurso à noção de tradução (SANTOS, 2004) que consiste em atitude metodológica que coloca em ação comunicativa os saberes e as práticas de diferentes grupos sociais, a fim de estabelecer mediações possíveis entre esses grupos e seu reconhecimento, corroborando as experiências, tornando-as inteligíveis a outros setores ou movimentos sociais. Desta forma, é possível o desenvolvimento de projetos socioambientais com participação e exercício da reflexividade, assentando os segmentos sociais preocupados com a degradação territorial como protagonistas. Na arena política em que se discutem alternativas, objetivos e metas em face da degradação ambiental, quem se defronta são atores coletivos acerca da distribuição conflitiva dos bens coletivos (HABERMAS, 2004). Pode-se entender as decisões de um fórum formado pelo Comitesinos como a tentativa de efetivação de um sistema de políticas 92 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

que configuram a proteção ao ecossistema e às pessoas, especialmente as de maior vulnerabilidade em face da degradação e das cheias. Experts, estudos, diagnósticos e desenho de políticas Aos intelectuais convidados ao Comitesinos e seus estudos compete apresentar um diagnóstico e proposições que possam ser seguidas como aplicação do conhecimento adquirido de forma transversal e reflexiva. Procurando adensar a concretização de políticas socioambientais há que identificar os fatores de risco e os fatores de envolvimento com a proteção ambiental, desenvolvendo estratégias adequadas de intervenção. Isto implica, por exemplo, desenvolver competências pessoais e sociais ao nível da comunicação com diversos segmentos sociais e avaliar como os processos de tomada de decisão serão percebidos socialmente. Intelectuais, investigadores, assessores, que compõem em especial a CPA, e de agências ou grupos de investigação são reconhecidos pela plenária do Comitesinos por que “providos de um arsenal teórico que lhes permite analisar a realidade por comparação com outras realidades análogas. E nas suas investigações podem propor, a partir de um olhar teoricamente informado, estratégias e dinâmicas de ação coletiva: o que fazer e como fazer” (ABRANTES, 2014: 13). Num duplo direcionamento: ultrapassar o limite de sua própria condição ou categoria e a aproximação da ótica da inclusão do outro. Apesar do recurso a especialistas em diversos campos para a elaboração de diagnósticos, condiz com o protagonismo dos atores o espraiamento do conhecimento5 visando arraigar uma concepção so5 A difusão do conhecimento contempla uma dimensão importante, porém na prática outros aspectos também se impõem para a segurança dos cidadãos. Pela declaração do representante de categoria de ONGs ambientalista: “Assim como também tem uma outra questão que talvez a gente tá começando a se dar conta agora que, o próprio sistema de diques de São Leopoldo e Novo Hamburgo, ele também tá chegando naquele ponto que, se ele não tiver uma manutenção e um uso, ele também pode deixar de cumprir suas funções, como aconteceu no ano passado em Porto Alegre, quando o sistema de bombas dos diques de Porto Alegre falhou em alguns pontos e teve pontos da cidade protegidos pelo dique que ficaram inundados, não pela água que veio da enchente, mas pela água da cidade que não foi removida pro lado de fora dos diques, principalmente naquela zona do bairro Humaitá, da FIERGS, também uma parte do bairro Sarandi. E se for ver porque que falhou, é por causa da falta de manutenção do sistema de bombas que faz parte do sistema de proteção dos diques e que, aqui em São Leopoldo, pelo que a gente sabe, também está chegando ou tem esse mesmo tipo de risco de acontecer, eventualmente. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 93

cioambiental. O diálogo com biólogos, geólogos, economistas, cientistas sociais, químicos, engenheiros, educadores, advogados cada qual com contribuições a partir de sua área de investigação parece fundamental para políticas ambientais e em a públicos alargados, bem como para consagrar a proximidade entre as dimensões sociais, culturais e ambientais. a desigualdade social e a degradação ambiental são elementos correntes na sociedade e em seu mal-estar diante de novas formas de insegurança, verificando-se invenções tecnológicas com o intuito de proporcionar tranquilidade a uma sociedade tida como crescentemente aviltante às condições sociais. A construção de uma nova questão social, como um novo contrato socioambiental ou uma nova questão pública e ecológica, implica também uma ambientalização dos conflitos sociais em geral, uma vez que reportam à disputa pelo acesso aos bens naturais. O processo histórico em que se valorizam questões ambientais em concomitância com questões sociais implica, simultaneamente, transformações do espaço público e da vida cotidiana, emergindo uma nova fonte de legitimidade para o debate dos conflitos (RUSCHEINSKY, CALGARO e AUGUSTIN, 2010: 193).

Além dos segmentos que integram o plenário existem outros atores coletivos com protagonismo na abrangência da bacia hidrográfica sob a ótica da questão ambiental: Fepam, Metroplan, Ministério Público, Consórcio Pró-Sinos, entre outros. Por suas competências podem estar contemplados na composição do colegiado, ao mesmo tempo que estas extrapolam este âmbito; assim como podem confluir em interesses e projetos ou entrar em atrito e disputa por competências. A legitimação do conhecimento e expansão das práticas profissionais constitui-se também em espaço de conflito, para além de sua utilidade social. O extravasamento do seu valor heurístico desvia para se converter um agente em campos de batalha da ciência (ABRANTES, 2014), porém em confluência com interesses setoriais ou categorias sociais. É o caso dos conflitos quanto a estudos visando diagnósticos sobre a bacia do rio dos Sinos: quem captura financiamentos? Quem diz o que? Qual o dimensionamento dos impactos? Entre outros questionamentos em busca de explicações. A aposta em políticas ambientais pela mediação do Comitesinos se põe no impasse de ultrapassar ou não uma série de resistências e desconfianças construídas no uso das águas e ocupação territorial de parte a 94 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

parte entre atores sociais. Na palavra de um representante da categoria das instituições de ensino, pesquisa e extensão do Comitesinos: E a terceira, que talvez ela vem em primeiro lugar nos debates mais acalorados, é a restrição de ocupação e urbanização sobre áreas (alagadiças) que tem um custo para o Estado muito grande, de manutenção no futuro. De pessoas que eventualmente vão estar instaladas, como é o caso de alguns bairros dessas regiões que são suscetíveis e são alagados em épocas de enchente e a que estão expostas geralmente pessoas de baixa renda, não tem para onde correr. Então é uma forma também de proteger as pessoas de não serem instaladas dentro de áreas que se sabe que um dia, não se sabe exatamente quando é a recorrência, mas pelo histórico, se sabe que sempre vai ocorrer enchentes e que se não tem uma infraestrutura para proteger essas partes da cidade, lá estarão pessoas suscetíveis a inundação e o poder público gastando. Então, me parece que é uma discussão que se põe e que coloca a pensar todos os gestores públicos.

Uma vez que agentes que representam categorias que na vida privada estão a serviço de empreendimentos do mercado e na representação no Comitê se defrontam com a dimensão coletiva de inclusão do outro das políticas ambientais. Tais ambiguidades podem se manifestar residualmente no discurso e nas práticas de quem assumidamente possui dupla pertença6. O capital social e a capacidade de converter as deliberações em práticas políticas efetivas pode ser uma categoria capaz de expressar o protagonismo dos atores sociais em relação ao desempenho das políticas ambientais no âmbito institucional no vale do rio dos Sinos. A realidade apresenta-se paradoxal para as políticas ambientais, uma vez que a perspectiva parece estar refreada pela simples mitigação: a força do capital tende a converter tudo em mercadoria razão pela qual situa6 Na abordagem de Abrantes et al (2014: 12) está expresso da seguinte forma. “Alguns anos de investigação junto de ativistas e organizações de movimentos sociais levam-nos a problematizar a relação que é estabelecida entre investigadores e ativistas no sentido de desenvolver relações de reciprocidade e envolvimento mútuo que permitem, sustentamos, transformar e enriquecer a construção continuada do processo de investigação e da ação contestatária levada a cabo pelos dois tipos de agentes considerados. Proposta esta que exige ultrapassar uma série de resistências e desconfianças construídas de parte a parte e que tendem a persistir, mesmo que residualmente, no discurso e nas práticas daqueles que, assumidamente têm uma dupla pertença, como investigadores e ativistas” Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 95

-se como o causador de mudanças antropogênicas e de grande parte da destruição dos bens ambientais na bacia do rio dos Sinos. Os discursos usuais dentro do Comitesinos ressaltam a voracidade da devastação e a capacidade de desastres se a “vontade” das águas do rio não forem respeitadas. Jameson (1994) alerta para os embaraços de atentar para a causa dos desastres ambientais e a construção de políticas de prevenção ou de inclusão do outro. Se tudo aparece e desaparece na história, da mesma forma se pretende que ocorra com os dilemas ambientais. Em termos gerais, o diagnóstico alude à degradação dos espaços e da natureza, porém os acordos costurados parecem distantes da derrocada das causas de uma forma radical. O planejamento das políticas socioambientais na bacia hidrográfica No campo da análise se vislumbra estabelecer políticas que decorrem da articulação e do protagonismo dos atores sociais, caracterizando o processo como construção social e ao mesmo tempo tendo como horizonte a consideração do outro, que serve como referência para a sua inclusão nas ponderações, pois que por sua vez não vai ser alcançado negativamente. Na delimitação da bacia de inundação não cabem empreendimentos de política habitacional devido a prejuízos futuros, afetando os “beneficiários” e o setor da defesa civil, conforme depoimento de representante da categoria legislativo municipal. a prefeitura já tinha licenciado o loteamento Olaria, o empresário estava com dificuldade de vender, pois quem mora aqui sabia que dava enchente, então ninguém queria comprar. Veio esse recurso da Caixa e se vendeu os lotes e se fizeram as casas e as pessoas compraram as casas pela Caixa. No primeiro ano deu água acima da janela, uns no meio, depende onde estavam posicionadas. Deu transtorno, um problema muito sério. Falaram em fazer um dique e até hoje não saiu o dique e casas de bomba. E o que a gente vê onde alaga? Falam do dique, depois quando inunda não funcionam as bombas, queimam ou roubaram o motor. Então é muito complexo isso aí. Então a ideia é tentar que não se vá construir habitação nessas áreas inundáveis.

A construção de políticas ambientais que incorporam a dimensão do outro pode ser entendida como o projeto histórico para um determinado território e que afetam os cidadãos a cada geração. Por isto para 96 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Habermas (2004) para políticas ambientais se consolidarem como poder político legitimado requer-se que sejam compreendidas tanto como um processamento institucionalizado dos problemas evidenciados ou socialmente percebidos, quanto um processo de mediação de interesses segundo regras e com efetivação de direitos coletivos. O planejamento de melhoria dessa qualidade da água necessariamente passa pelo tratamento do esgoto, pelos cuidados com mata ciliar, e tudo o mais. Então, ele tem essa função, e ele também faz o enfrentamento atual, que tem gerado uma certa polêmica, que é a discussão das planícies de inundação, que está previsto dentro do plano de bacia, delimitar as áreas aonde algumas atividades, especialmente assentamentos de urbanização, são mais restritos e são olhados com mais cautela, no sentido até da proteção da vida humana, da proteção dos recursos e tudo o mais (Representante da categoria de instituições de ensino, pesquisa e extensão).

Esta ótica de alguma forma também de depreende das constatações de Rawls (1997), na medida em que os bens fundamentais usados individualmente são distribuídos coletivamente: ambiente sadio, água, habitação. Portanto, as políticas ambientais possuem uma dimensão individual e coletiva. Até que ponto é possível efetivar uma política pública e socioambiental capaz de lançar os fundamentos de um bem básico que seja referência para todos7 os cidadãos dentro de um território deleitado, parece uma interrogação fundamental considerando a permanência dos conflitos no cotidiano. Verifica-se que os conflitos ambientais contemporâneos emergem do interior de uma memória do trabalho e de uma memória ambiental, nas quais a fábrica, a ocupação urbana desordenada, o uso da água e dos demais recursos naturais formam um encadeamento de sentido que impede qualquer análise fragmentada que isole um destes aspectos: o econômico, o sociohistórico, o cultural, o político, o ambiental. (NUNES, FIGUEIREDO e ROCHA, 2015: 3). 7 Esta interrogação tem em vista “não só representações divergentes da vida individual, mas cujas concepções morais – portanto aquelas convicções que determinam suas convicções éticas e que, por conseguinte, orientam seu agir – também diferem de tal maneira entre si a ponto de serem irredutíveis e incomensuráveis, embora possam, mesmo assim, ser consideradas racionais. A base para o reconhecimento mútuo ... fazem com que a tentativa de fundar o consenso numa ideia concreta e abrangente de bem, como base para o relacionamento mútuo, pareça não ter muito sentido” (ZIRFAS, 2001: 24). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 97

A política ambiental se faz pública com a consideração pelo outro ou reflete sobre todas as consequências para a alteridade, o reconhecimento da dignidade ou os direitos do outro. Ao mesmo tempo, geram-se consequências para o tratamento dos problemas ambientais o reconhecimento de grupos culturalmente definidos, como coletividades que se distinguem de outras, como ambientalistas, arrozeiros, etc. À medida que a formação política da opinião e da vontade dos cidadãos orienta-se pela ideia da efetivação de direitos e reconhecimento do outro se lançam caminhos para políticas socioambientais. [...] exige-se discussões sobre uma concepção comum do que seja bom e sobre qual a forma de vida desejada e reconhecida como autêntica. Eis que controvérsias nas quais os participantes ganham, p. ex., um maior nível de consciência sobre de que forma pretendem compreender-se como cidadãos de determinada república, habitantes de determinada região, herdeiros de determinada cultura, sobre que tradições pretendem perpetuar ou interromper, sobre a maneira como pretendem lidar com o seu destino histórico, com a natureza, uns com os outros, etc.” (HABERMAS, 2004: 243-254).

A delimitação geográfica da planície de inundação do Rio dos Sinos com inclusão do outro A instauração de mecanismos coletivos de negociação, como a normatização do Comitesinos diante de conflitos dos usos da água dos rios e fontes e de seus espaços ordinário e extraordinário, significa uma vida diversa da judicialização de todo entrevero relativo às questões ambientais. Na ocupação determinada do território ou a delimitação geográfica da planície de inundação do rio dos Sinos põe em debate os limites estabelecidos entre as esferas pública e privada, onde se pretende que a apropriação privada não se sobreponha à dimensão coletiva. Ao mesmo tempo, setores do poder público podem se contrapor entre si no desafio de atender demandas sociais e executar uma política socioambiental, que parece descortinar-se entre parcela do Consórcio pró-Sinos e a iniciativa da delimitação geográfica da planície de inundação. [...] foi bastante conturbado, ele chegou a ter uma aproximação de novo, mas nesse momento nós estamos de novo mais numa rota de colisão do que numa rota de trabalho conjunto, porque 98 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

o Comitesinos tem o seu viés de gerenciamento de água e os municípios têm uma administração pública nem sempre voltada àquilo que a lei preconiza como necessidade. Então, nesse momento, fizemos um trabalho de Planície de Inundação e que fatalmente coloca em xeque a vontade de desenvolvimento usando os banhados e as áreas abaixo do nível que são constantemente inundadas. Então, essa relação está um tanto quanto conflitada nesse momento, mas a Planície de Inundação, à luz da lei, ela é absolutamente regular e a construção, ou a colocação de pessoas nessa área, ela deixa uma brecha muito grande ao poder público que tem a obrigação de fazer a proteção da população. Então, os prefeitos talvez briguem conosco [...].

Com efeito, diante do desastre ambiental proveniente da degradação por dejetos a que está submetido o rio dos Sinos, historicamente ações desagregadas se consumaram, frequentemente, em grupos de ativistas e formatos associativos de tendências distintas. No decurso da investigação, se adquiriu uma visão de conjunto e uma delimitação sociologicamente informada das fronteiras entre atores sociais e os mecanismos que permitem a construção da mediação para uma atuação conjunta ou em rede, a partir de uma origem tendencialmente fragmentada (CASTELLS, 1999). Nas consequências das cheias do rio dos Sinos se exige do Estado que persiga prioritariamente fins coletivos com a garantia do bem-estar e segurança pessoal de seus cidadãos. Razão pela qual estão consolidadas as ações da defesa civil e raramente se questionam os elevados gastos públicos com o socorro à população vulnerabilizada. Teme-se com certa razão, no caso das enchentes do rio dos Sinos, se ampliem as consequências uma vez que estas parecem possuir relação direta com a diminuição dos ambientes reguladores, ou seja os banhados ou as terras úmidas, sendo a urbanização uma das principais razões desta eliminação. No caso das cheias ressalte-se que as inundações causam sério problema aos desabrigados com habitações atingidas, transtornos aos moradores com perdas de patrimônio, pelas dificuldades enfrentadas pelo poder público na assistência às populações atingidas, além dos custos operacionais com recursos públicos. Numa situação de crise fiscal do Estado parece nada mais justo repelir circunstâncias de gastos que poderiam ser evitadas.

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todos olham para o Rio “vamos fazer um dique”. Ah, porque São Leopoldo e Novo Hamburgo tem dique. Só que ninguém considera o custo de manter esse dique. Dique não é uma solução, ele é um paliativo, sim. É caríssimo fazer e caríssimo manter. E a lei também diz que dique é uma responsabilidade pública, então a gente não pode fazer um dique particular. Essa parte de baixo, aí por interesses econômicos, eles querem usar a 448 como um grande dique, onde o investimento público faria realmente um dique dessa estrada, favorecendo interesses econômicos de quem tem a terra da parte interna e quer fazer loteamento. Esse foi um conflito brutal. Então a gente teve pesadas contendas com Canoas e com Esteio por conta disso e que na verdade são interesses econômicos que foram afetados (Presidente do Comitesinos, representante da categoria indústria).

Pelo visto a inclusão do outro com fundamento das políticas ambientais possui a sua complexidade e cuja trajetória pode consistir em avanços e retrocessos. Além dos fatos narrados acima, há que considerar que a ocupação dos banhados em época de cheias é fato natural. Todavia, quando há obstrução para este fato se incrementam as incertezas fabricadas pela atividade humana, uma vez que estas águas ocuparão algum lugar, portanto incrementando os problemas em áreas adjacentes. No caso de um dique a partir da Rodovia 448 seria transferir ou intensificar problemas para o município de Santa Rita, Sapucaia, São Leopoldo entre outros. Por isto, se multiplica a retórica sobre o caso de somar esforços para impedir a urbanização dentro da delimitação geográfica da planície de inundação, uma vez que periodicamente o rio executa uma reintegração de posse, desapossando temporariamente os ocupantes. Todavia, há também implicações para políticas públicas na área habitacional e de saneamento básico, que neste último caso contradiz uma dimensão fundamental do Plano de Bacia. O debate da planície de inundação teve um impacto direto no município de Novo Hamburgo, mais especificamente no que diz respeito à instalação da estação de tratamento de esgoto. Já recebemos do Ministério Público uma recomendação de que nos abstenhamos da aplicação da ETE naquela região, por se tratar de uma área que integra a planície de inundação. Bom, vamos ter que estabelecer um outro debate, considerando que tratamento de esgoto é uma ação prioritária do Plano de Bacia, e que agora, estamos remetendo a um interesse coletivo. Uma estação de tratamento de esgoto com as condições já projetadas de melhor 100 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

ponto de instalação no município, mas que foi designada justamente numa área que integra a planície de inundação (Representante de categoria abastecimento público).

A interpretação das realizações dos interesses dos outros de alguma forma modifica as relações ou o empenho pela delimitação geográfica da planície de inundação e o que se propõe em decorrência. Este debate ambiental causa controvérsia se aos cidadãos é permitido decidir, sob certas circunstâncias, pela precedência dos direitos individuais em relação aos bens comuns (HABERMAS, 2004). Ao mesmo tempo, a complexidade crescente das relações sociais implica nos processos sociais e simultaneamente aumentam as exigências aos agentes sociais para a compreensão do tempo e do espaço decorrentes da intensificação das trocas sociais em rede (CASTELLS, 2010). A criação de plataformas eletrônicas8 de informação e participação, abertas ao público, mas especialmente dirigidas às entidades membros do Comitesinos e Conselhos Municipais de Meio Ambiente, almejam “competências adquiridas são, não apenas cognitivas ou instrumentais, mas também práticas, na medida em que capacitam os indivíduos para a participação nas suas esferas privadas, profissionais ou sociais a partir das representações sociais, pertenças culturais, condições de origem, etc.” (ABRANTES, 2014: 11). A relação entre as redes, plataformas de oferta e coleta de informações e possíveis formas de construção e envolvimento com os projetos para a mudança socioambiental. Efetivamente existe um nexo estreito entre o Plano de Bacia e a deliberação pela delimitação geográfica da planície de inundação, conforme os próprios termos da resolução. Todavia, visando legitimação, evoca autoridade de instância nacional superior9. Considerando que a Agência Nacional de Águas (ANA) produziu o “Atlas de Vulnerabilidade a Inundações” do Brasil para contextualizar trechos de rios suscetíveis a inundações, objetivando fa8 O Comitesinos colocou no ar em 07/03/2016 um mapa interativo da planície de inundação. Pela ferramenta (disponível no site www.comitesinos.com.br/risco) qualquer pessoa pode consultar de maneira simples e rápida quais pontos estão dentro ou fora da área de inundação. A consulta pode ser feita ampliando e arrastando o mapa na tela, como simplesmente digitando, no campo de busca, o endereço a ser conferido. http://www. comitesinos.com.br/2016/03/comitesinos-lanca-plataforma-de-consulta-a-delimitacao-geografica-da-planicie-de-inundacao-do-rio-dos-sinos-em-seu-trecho-inferior/ 9 Resolução disponível em http://www.comitesinos.com.br/risco/docs/062Deli_planinund_out15_FINAL.3doc.pdf Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 101

cilitar o estabelecimento de alternativas e ações que minimizem os efeitos negativos decorrentes das inundações e que o Rio dos Sinos e formadores são apontados com alto grau de vulnerabilidade; Considerando que a abordagem técnica desenvolvida no COMITESINOS produziu o mapeamento da planície de inundação através de critérios estabelecidos pela Agência Nacional de Águas (ANA) classificando a planície de inundação quanto ao grau de vulnerabilidade e apresentando os trechos críticos.

Reconhecimento do espaço ocupado periodicamente pelo rio significa uma disposição de adequar-se ao comportamento e a compenetrar-se amplamente do modo de ser, das práticas e costumes do rio dos Sinos, como uma assimilação dos efeitos gerados por uma alteridade. Posicionamentos que reivindicam exclusividade para uma forma privilegiada de apropriação vital do espaço, ou de que os diques são a solução diante das invasões periódicas por meio das cheias, faltam a “tais concepções a consciência da falibilidade de sua reivindicação de validação e o respeito em face do “ônus da razão” (RAWLS apud HABERMAS, 2004: 261). A polêmica principal da questão dos diques como solução ou emergência de outros maiores possui um conjunto de fatos: a construção de diques em São Leopoldo e Novo Hamburgo para conter as águas das cheias; a inundação em bairros de Porto Alegre e Canoas apresar de diques e bombas para jogar a água para fora da área urbanizada; a demanda por novos diques em Novo Hamburgo e outras cidades a montante; porém em especial, o quase dique formado pelo Rodovia 448 e respectiva especulação imobiliária. Um outro exemplo, de minha casa, minha vida (e de loteamentos) no domínio da apropriação do espaço, em colaboração do conhecimento da engenharia e da arquitetura, sem a inclusão do outro pode levar a sofrer de inundação na primeira cheia subsequente. É o caso ocorrido no Bairro Feitoria, em São Leopoldo, em 2013, onde após um mês de inauguração a água bateu na altura da janela. A inclusão do outro significa um processo de participação conjuntamente com as populações os espaços que construir ou habitar. Isto implica, de acordo com Abrantes (2014) o desenvolvimento de novas formas de diálogo entre os indivíduos, os produtores, as audiências, de novas instituições na esfera pública proporcionando oportunidades de acesso e de participação. [...] proposição fundamental: regulamentações quem podem requerer legitimidade são justamente as que podem contar com a 102 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

concordância de possivelmente todos os envolvidos como participantes em discursos racionais. Se são discursos e negociações o que constitui o espaço em que se pode formar uma vontade política racional, então a suposição de racionalidade que deve embasar o processo democrático tem necessariamente de se apoiar em um arranjo comunicativo muito engenhoso: tudo depende das condições sob as quais se podem institucionalizar juridicamente as formas de comunicação necessárias para a criação legítima do direito (HABERMAS, 2004: 300).

Com os seus saberes, ferramentas e competências os estudos, contratados ou viabilizados pelo Comitesinos, visando a delimitação da planície de inundação, se consolidam como armadura fundamental à coordenação. Estes são ferramentas de mediação num processo compreendendo as várias racionalidades, interesses e linguagens envolvidas, bem como os resultados (por vezes complexos e inesperados) das interações entre eles (ABRANTES, 2014). Considerações finais Pelas negociações em espaços coletivas ocorre a tentativa de encontrar critérios e indicadores que do ponto de vista dos próprios cidadãos permita deliberarem legitimamente as diferentes reivindicações emergentes dentro do seu espaço de atribuições e competências. A discussão dos atores envolvidos no Comitesinos tomou um rumo com viés autocrítico e reflexivo, em que os posicionamentos buscam incorporar, em seus próprios termos, os tempos, temas, espaços e preocupações do outro lado, seja ele o rio, sejam indivíduos ansiosos de cidadania. Trata-se de realizar os ideais de poder político nas entranhas da sociedade civil e na confluência com esferas estatais, a inclusão do outro nas políticas ambientais em sociedade em que o regime democrático está confrontado com as múltiplas formas de degradação dos bens ambientais. São problemas socioambientais que são também pensados e reformulados em um contexto de novas lutas sociais, em que os protagonistas em grande medida se valem da linguagem dos direitos fundamentais para alcançarem seus objetivos. Todavia, torna-se fundamental adequar condições objetivas, projeção histórica e capacidade de ação. “A lógica objetiva das transformações históricas [...] definirá o seu curso à medida que os atores em cena incidam sobre as condições Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 103

que encontram, e na proporção em que essas sustentem, por sua vez, aqueles protagonismos” (GAIGER, 2003: 208). Na abordagem se interligam economia e cultura: por um lado, os conflitos distributivos em torno dos benefícios advindos de bens ambientais preservados como valor universal, mas que se acirram com a lentidão ou crise de empreendimentos de infraestrutura para saneamento básico; por outro, problemas de tolerância e de reconhecimento, pois sob a dimensão cultural as controvérsias das demandas são ponderadas como problemas reais no decorrer de lutas e embates sociais, mas que foram se enraizando na própria auto compreensão cultural, nas práticas sociais e instituições. Ao longo do tempo foi se enraizando em práticas sociais, empresas e instituições políticas uma concepção de tolerância diante do descaso com o saneamento básico: porém com uma dicotomia entre a retórica e as consequências práticas, como a questão de financiamento e de convivência com os incômodos com obras públicas. As razões para a formulação de políticas ambientais, a serem apresentadas para a deliberação política no espaço coletivo e público, passam pelo crivo do debate sobre sua justificação. No caso da delimitação da planície de inundação cabe a ideia da razoabilidade: nada justifica a urbanização em um espaço que periodicamente é ocupado ou retomado pelas águas das cheias. Assim, adotar uma atitude de respeito ao outro possui duplo sentido: ao espaço do rio e à população vulnerável. No caso da urbanização se trata incluir o horizonte da solidariedade: o que não desejamos para nós também não é bom para os outros. Portanto, na planície de inundação não cabem projetos de moradia popular, uma vez que não proporciona bem viver, antes possui consequências que afetam inclusive economicamente a toda a sociedade por meio de ações relacionadas à defesa civil. Existem, logicamente, outros aspectos que conspiram para a emergência de sistemas participativos e que se inserem no contexto de um processo mais amplo de mobilização da sociedade civil, cujo protagonismo é indiscutível na interlocução com o estado brasileiro, particularmente na criação e aperfeiçoamento de políticas públicas.

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atores soCiais e proCessos de mediação no âmbito das polítiCas Culturais e ambientais

rodrigo MArques leistner Notas preliminares Este texto se organiza a partir de dois objetivos. Inicialmente retomarei alguns comentários que teci sobre os trabalhos dos professores Aloísio Ruscheinsky e Breno Fontes por ocasião de minha participação como debatedor da mesa redonda “Políticas Culturais e Ambientais: o protagonismo dos atores coletivos”, realizada como parte do I Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais, sediado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Na sequência, e inspirado pela reflexão dos autores, arriscarei uma interpretação própria e alternativa - ainda que “em construção” - em relação às temáticas centrais que conduziram os debates da mesa. De modo evidente, a tarefa de comentar essas reflexões demanda não apenas um exercício intelectual crítico - através do qual se recuperam percepções sobre aportes teóricos distintos ou sobre a aplicação de tais aportes a realidades empíricas determinadas -, mas também a detecção de objetivos de pesquisa comuns cujas articulações possibilitem ampliar a interlocução acadêmica num determinado campo de conhecimento. Foi com base nessa última perspectiva que procedi à leitura dos trabalhos de Ruscheinsky e Fontes. De fato, tal leitura vai mais ao encontro desses interesses investigativos comuns do que a quaisquer ressalvas teóricas e metodológicas. Compreendo que seja através da consideração desses interesses mais ou menos recorrentes que se torne possível localizar não apenas um eixo de articulação possível entre os dois trabalhos aqui comentados, mas ainda um horizonte de questionamentos instigantes que nos permita adensar a discussão sobre a viabilidade do protagonismo dos atores coletivos no âmbito das políticas culturais e ambientais contemporâneas – perspectiva que procuro desenvolver de forma mais propositiva ao final do texto. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 107

Conforme irei retomar, compreendo que a noção de mediação seja central para este debate, tanto por se configurar como uma espécie de eixo das preocupações de fundo que perpassam as análises de meus interlocutores (assim favorecendo articulações reflexivas de conjunto, o que amplia o potencial das discussões) quanto por se apresentar como conceito fecundo para percepções sobre as condições de emergência da autonomia, da deliberação e da reflexividade por parte dos atores alvo das atuais políticas da cultura ou do meio ambiente. Em síntese, por um lado proponho que os trabalhos de Ruscheinsky e Fontes apresentam um posicionamento conveniente para pensar a problemática das mediações no âmbito das relações que envolvem os atores coletivos e as temáticas culturais e ambientais. Por outro, alargo a discussão apresentando um modelo de análise alternativo para pensar essa problemática, sobretudo a partir do referencial teórico de François Dubet (1994) e suas percepções acerca das diferentes lógicas de ação possíveis em contextos de experiências sociais fragmentadas. No caso de minha reflexão, em específico, recorro a alguns dados de pesquisa fornecidos pelas investigações do Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais do Brasil – LAPCAB1. Recuperando conceitos: atores sociais, projetos e mediações Antes de iniciar meus comentários e propor algum nível de análise autoral convêm tornar mais precisas as categorias que utilizo com maior recorrência. Abordar as possibilidades de protagonismo dos atores coletivos nas políticas culturais e ambientais pressupõe, inicialmente, uma clarificação do que está sendo compreendido por ator coletivo, mas também sobre os outros termos da relação analisada - as políticas, aqui percebidas através do conceito de mediação. Por sua vez, a abordagem da ideia de protagonismo pode ser refletida a partir do conceito de projeto, categoria basilar para a compreensão das diversificadas lógicas de ação possíveis nos processos de gerenciamento da experiência social dos atores (colocados em prática pelos próprios agentes em um horizonte de possibilidades problemáticas - o que envolve mediações). O conceito de ator aparece na sociologia francesa no cerne dos estudos sobre as ações coletivas, sendo compreendido nos termos de uma 1 Sobre os objetivos investigativos e os dados de pesquisa que tem sido produzidos no âmbito do LAPCAB, ver Lopes, Totaro e Barros (2014). 108 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

agência dinâmica que produz as demandas e reivindicações que conferem movimento à sociedade. Como proposto por Alain Touraine (1973), as sociedades “se produzem” com base na atuação dos movimentos sociais, os quais configuram a ação de um ator coletivo que projeta suas lógicas reivindicativas em oposição a determinados adversários. Nessa perspectiva, toda sociedade comporta questões culturais comuns que compõem o que Touraine classifica como sistema de ação histórica. É sobre o controle social desse sistema que se engendram conflitos e mobilizações que põem em marcha o processo de constituição do mundo social, que dessa forma, se produz. Os atores são os principais agentes desses processos, e um movimento social é resultante de uma ação conflitiva travada na luta pela pretensão de controle do sistema de ação histórica. Assim, o que caracteriza de fato um ator coletivo designa a combinação de alguns elementos, com pontos de referência nas noções do ator, seus adversários e os motivos dos conflitos – os objetos significativos que se descortinam como fundo para a ação coletiva2. Ainda em conformidade com Touraine (1973), a possibilidade de compreensão das ações coletivas demanda a observação da transformação do indivíduo em sujeito, bem como deste último em ator. Para Touraine, o indivíduo é uma unidade portadora de direitos civis, a qual se transforma em sujeito à medida que se reconhece como portadora de tais prerrogativas. A partir de então, em processos dialógicos entre pares, se engendram processos de construção identitária, formação e articulação de consensos e, dessa maneira, transporta-se à dimensão do ator coletivo envolvido em ações políticas no campo da cultura e no âmbito das diferentes concepções e visões de mundo. Trata-se de um conjunto de articulações possíveis entre os diferentes projetos individuais que compõem coletividades mais amplas. Dito de outro modo, o ator se constitui na capacidade de articulação de projetos, e os atores coletivos se organizam a partir do somatório e conciliação de diversificadas pautas de ação – diferentes projetos. 2 Na interpretação de Touraine (1973) sobre os atores coletivos, três categorias ainda emergem com centralidade: a identidade, a oposição e a totalidade. A identidade remete a um princípio de oposição, numa perspectiva comparativa definida na projeção de um adversário. O princípio da identidade conduz à definição que o ator constrói sobre si mesmo, e a organização das ações coletivas só é possível segundo a consciência destas definições. Assim, é a situação conflitiva e o estabelecimento de um adversário que constituem o princípio de oposição, fundamental no processo de constituição do ator. Esses elementos relacionam-se na forma de um movimento que envolve o princípio de totalidade, que assenta aquilo que está em jogo e que é dimensionado a partir da soma dos projetos individuais e coletivos. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 109

Importa aqui retomar o conceito de projeto como proposto por Schutz (2003), num viés que enfatiza as subjetividades e direciona a observação para as construções de significado que conferem sentido às ações e práticas sociais. Na abordagem de Schutz, conceitos como projeto visam possibilitar interpretações respectivamente ligadas às formas pelas quais os atores atribuem significação à realidade, aos modos como essas significações orientam suas ações na vida cotidiana, bem como aos consequentes parâmetros através dos quais os sujeitos organizam suas experiências e atuam no mundo social. Sua consideração pressupõe uma análise dos sentidos que os agentes atribuem a suas atividades, visando perceber os parâmetros motivacionais que compõem a elaboração de suas pautas de orientação. Analisar a ação social em termos de projeto significa compreender o modo como os atores organizam suas possibilidades de atuação mediante projeções futuras, considerando-se ainda os condicionamentos oriundos de suas experiências precedentes. Não se trata de compreender a viabilidade dos empreendimentos propostos, mas de observar a constituição dessas aspirações a partir das influências contidas nas trajetórias individuais e coletivas, as quais incidirão sobre os comportamentos presentes. Assim, o conceito de projeto visa arregimentar as perspectivas histórico-biográficas e culturais que incidem sobre as escolhas e propósitos dos sujeitos, com intuito de compreender os comportamentos e ações disponíveis à observação. Em Schutz (2003), o projeto assim entendido refere-se à capacidade humana de imaginar, decidir, deliberar e conceber de modo imaginativo um ato futuro. Ocorre que, como propõe Gilberto Velho (1994), é no encontro de diferentes projetos que se desenvolvem relações conflituosas, gerando-se negociações de realidade tensas que não apenas adquirem um caráter político como desvelam propósitos de mediação institucional. Nesse ponto, nossa discussão se desloca para os outros termos que compõem as relações colocadas sob análise, especialmente no que concerne o campo das políticas culturais e ambientais, aqui compreendidas como programas de intervenção empreendidos pelo Estado ou instituições público-privadas cujos objetivos consistem em mediar as relações tensas que se estabelecem em torno das problemáticas culturais e/ou do meio ambiente3, ou ainda o entrecruzamento entre tais perspecti3 Adoto aqui as definições de política cultural e política ambiental respectivamente formuladas por Teixeira Coelho Neto (1997) e Siqueira (2008). 110 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

vas4. Noutros termos, trata-se de mecanismos que visam favorecer as negociações de realidade articuladas em torno de uma multiplicidade de projetos (e diferentes pautas de orientação e ação), geradas e desenvolvidas nos domínios da cultura e meio ambiente. É justamente nesse ponto que o conceito de mediação emerge com centralidade, podendo ser compreendido não apenas em seu sentido epistemológico mais amplo (como mecanismo de objetivação e subjetivação de uma realidade ontológica, num processo elaborado continuamente a partir da práxis)5, mas em sua perspectiva mais estrita e sociopolítica: como processo, ação, prática, construção, metodologia ou objeto que opere articulando diferentes categorias sociais, especialmente aquelas imbricadas nas temporalidades próprias da dimensão da política6, e no caso de nosso debate, com centralidade para as negociações de realidade tensas que se organizam em torno do campo cultural e/ou ambiental. Nessa perspectiva, discutir a possibilidade de protagonismo dos atores sociais alvo daquelas políticas corresponde a uma avaliação sobre os processos de mediação em curso e seu potencial para gerar práticas autônomas, exercícios de deliberação e condições de reflexividade por parte dos sujeitos. Considere-se aqui que a fecundidade do conceito para pensar essas possibilidades reside no fato de que o olhar direcionado às mediações volta-se muito mais aos processos interacionais e à constituição dos projetos e agenciamentos múltiplos por parte dos atores do que às determinações institucionais contidas nesses processos políticos. E dessa maneira, tal enfoque favorece não apenas avaliações sobre as condições ligadas à constituição dos sujeitos - suas práticas e a configuração de seus projetos, mas ainda sobre a viabilidade do gerenciamento das experiências sociais ancoradas num conjunto de definições de ação possíveis (BAJOIT, 2003). Compreende-se que seja com base na observação das lógicas de ação envolvidas nessas mediações disponíveis (aqui vistas como uma espécie de cenário dos processos interacionais 4 Em acordo com as perspectivas adotadas nas pesquisas do LAPCAB, é devido atentar para as relações indissociáveis entre cultura e ambiente, considerando que as identidades culturais se conectam não apenas a percepções do território e do lugar, mas ainda se organizam a partir de diferentes formas de vinculação com os ambientes e ecossistemas circundantes, seja através de modos de apropriação específica dos recursos naturais, seja através das tecnologias sociais mediante as quais a natureza é constantemente transformada por diferentes coletividades. 5 Sobre esta possibilidade, ver a perspectiva de Henri Lefebvre (1977). 6 Essa visão relacionada ao conceito de mediação é elaborada por Gilberto Velho (2001). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 111

em curso) que se possa analisar e compreender a emergência da ação política, da autonomia, do agir crítico e da deliberação. Duas contribuições para pensar os processos de mediação: alguns comentários É conveniente referir que meus interlocutores de mesa não utilizam o conceito de mediação de maneira direta, tal processo emergindo como tema de fundo que articula suas análises. Ainda assim, insisto que as duas reflexões apresentadas não apenas se aproximam por abordar empiricamente processos que envolvem as práticas de mediação como apresentam um olhar interessante para pensarmos esses mesmos processos no contexto das políticas da cultura (para o caso do Professor Breno Fontes) ou do meio ambiente (para o caso do Professor Aloísio Ruscheinsky). O trabalho de Ruscheinsky nos apresenta uma realidade empírica rica e complexa, relacionada ao “Comitesinos”, um coletivo composto por diversificadas categorias de agentes sociais (técnicos, engenheiros, educadores, químicos, biólogos e população em geral), todos envolvidos com questões relativas ao gerenciamento da bacia hidrográfica do Rio dos Sinos (desenvolvimento sustentável da região, redução de cargas poluidoras, monitoramento das águas, controle e prevenção de cheias, saneamento e assim por diante). Trata-se de mediações que visam congregam atores múltiplos numa conjuntura de deliberação política, nesse caso orientada a definições sobre o uso de recursos naturais num contexto “sociogeoespacial” específico. De fato, ao evidenciar tal contexto Ruscheinsky explora problemáticas próprias e características das políticas ambientais hodiernas, seja em decorrência dos múltiplos interesses em jogo neste campo, seja em função da heterogeneidade de atores e discursos que constituem os coletivos da área. Como exemplo, aqui se torna possível refletir sobre as possibilidades ou debilidades da participação social e popular (bem como a capacidade de empoderamento e protagonismo dos atores) em espaços em que predominam os discursos científicos e tecnicistas (SIQUEIRA, 2008), ou ainda num campo de deliberações sobre bens coletivos (caso da água) cujos benefícios nem sempre justificam os recursos investidos de forma individual para que se efetue a adesão e a participação social (OLSON, 2002). Nesse sentido, a riqueza do contexto empírico assinalado favorece para que o trabalho de Ruscheinsky desenvolva dois tópicos que contribuem de 112 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

maneira efetiva para pensar a questão das mediações e a possibilidade de protagonismo dos atores: trata-se de refletir sobre essas complexidades a partir de categorias tais como “tradução” e “inclusão do outro”. No primeiro caso, a reflexão sobre os problemas da deliberação no Comitesinos é retomada a partir do conceito de tradução, formulado na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, o que amplia as condições de compreensão sobre a viabilidade na constituição de consensos ou de uma participação simétrica entre diferentes categorias sociais em situações que aqui poderíamos classificar como de “mediações complexas”: os processos políticos compostos por heterogeneidade estrutural, tanto nos termos dos discursos constituintes como na composição dos quadros sociais dos coletivos. Cabe retomar a ideia básica de Santos (2002), na qual o trabalho de tradução consiste na criação de espaços de inteligibilidade (teóricos, analíticos, discursivos ou políticos) necessários para a compreensão da diversidade de experiências e práticas humanas disponíveis em diferentes contextos socioculturais. Do ponto de vista teórico e analítico, mas também político e prático perceberíamos os problemas relativos à efetividade de aplicação de uma perspectiva epistêmica como a teoria da tradução em espaços não raramente colonizados pela razão tecnicista e instrumental típica da modernidade capitalista, realidades às quais o campo ambiental não se encontra imune. Aqui reside outra contribuição de Ruscheinsky, que ao retomar a obra de Habermas encontra na ideia de “inclusão do outro” uma categoria privilegiada para pensar a constituição de consensos e a emergência do protagonismo dos atores, especialmente na medida em que permite verificar a existência de lógicas de ação que envolvem a “responsabilização solidária” e a “compreensão da alteridade” junto aos processos deliberativos. Decerto, trata-se de um modelo analítico baseado na concepção de esfera pública habermasiana, na qual consensos intersubjetivos baseados num agir comunicativo podem preceder ações orientadas numa racionalidade meio-fins (HABERMAS, 2003), ainda que em condições discursivas ideais e específicas. A partir desse viés, caberia à análise verificar as condições para a emergência de uma esfera pública endógena e própria aos coletivos ou às políticas ambientais através da qual os consensos e o protagonismo se tornassem efetivos, potencialidades que segundo Ruscheinsky municiam as pretensões das políticas desenvolvidas no Comitesinos. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 113

Por sua vez, o trabalho de Breno Fontes analisa algumas realidades pesquisadas pelo LAPCAB, apoiando-se em dados de campo etnográfico que discorrem sobre as relações estabelecidas entre comunidades de artesãos, extrativistas e de pesca artesanal e as políticas culturais atualmente em voga no país. Avalia o protagonismo dos atores pertencentes a essas comunidades a partir de suas atividades cotidianas, através das quais os próprios agentes estruturam identidades comunitárias e se organizam em práticas ancoradas nas percepções e usos de configurações espaciais, territoriais e ambientais determinadas. Para tal análise, Fontes se vale do referencial fenomenológico visando captar a “teia de sociabilidades” que articula os coletivos em torno de um projeto, assim se conectando práticas e discursos que se constituem ao longo de trajetórias biográficas e experiências sociais mais ou menos específicas. Em primeiro lugar, constata-se que a análise apresenta uma importante contribuição teórica para pensar as mediações e o protagonismo dos atores envolvidos com as políticas culturais, sobretudo a partir do acionamento dos conceitos desenvolvidos por Schutz, que como já referi, ao privilegiar a análise das ações sociais com base na noção de projeto favorece percepções sobre a capacidade de gerenciamento da experiência social por parte dos próprios sujeitos. Desse modo, além da observação da constituição dos projetos individuais e coletivos, categorias teórico-analíticas como “mundo da vida” e “repertórios de experiência” permitem a percepção da atualização simbólica de cosmovisões específicas em conexão direta com a experiência dos atores, em seus cotidianos, em suas apropriações do território e do meio ambiente, em suas práticas laborais. Mas essa apropriação teórica não se demonstra frutífera apenas pelo alto grau de abstração, a partir do qual as diferentes realidades que fazem parte de um amplo conjunto de comunidades atualmente alvo das políticas culturais e ambientais do país podem ser lidas. De modo evidente, tal perspectiva viabiliza um olhar sobre o protagonismo de diversos agentes na constituição de suas lógicas identitárias, bem como nos processos de atualização de suas cosmovisões, práticas e saberes desenvolvidos em conexões diretas com o território, o meio ambiente e os ecossistemas envolventes. Ainda mais que isso, o viés analítico utilizado por Fontes permite avaliar as formas pelas quais essas comunidades se relacionam com a dimensão institucional das políticas a elas direcionadas, especialmente aquelas que visam assegurar 114 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

sua reprodução em contextos tensos de aproximação com as lógicas da modernidade capitalista. Nesse aspecto, as mediações sugeridas se referem às negociações de realidade tensas estabelecidas nos processos de aproximação daqueles coletivos periféricos e “tradicionais” com o mundo urbano, com o mercado e com processos laborais estranhos às suas lógicas de reprodução, não raramente sedimentadas na perspectiva reciprocitária e nos laços de parentesco. E nesses processos, as especificidades culturais daquelas comunidades cada vez mais têm sido acionadas, no âmbito dessas mediações, em seus aspectos recursivos. Como alguns estudos demonstram, o desenvolvimento atual das políticas culturais cada vez mais parte de um cenário no qual a cultura passou a ser percebida como um recurso para investimentos e contestações, atuando como “ferramenta” para uma variedade de propósitos sócio-políticos e econômicos (YÚDICE, 2006). Nesse sentido, se ampliaram as estratégias para o empoderamento dos grupos marginalizados, para os quais a cultura transformou-se não apenas em objeto que estrutura a luta pelo reconhecimento (HONNETH, 2003), mas num rentável capital a ser administrado (BAYARDO, 2007). Segundo Jean e John Comaroff (2009), essa tendência desenvolve-se através de uma conciliação de fatores tais como a emergência das políticas de identidade, a disseminação de uma cultura do empreendedorismo típica do contexto neoliberal e a ampliação das políticas de propriedade intelectual. Assim, a comodificação da cultura dos grupos marginalizados tem substituído a venda de sua mão de obra através de relações nas quais os artefatos culturais são geridos, transformados em propriedade e comercializados nos mercados locais, nacionais e transnacionais. No Brasil, as atuais políticas para o artesanato são exemplares a esse respeito, desenvolvendo-se ações conjuntas entre governos e instituições como o SEBRAE que buscam gerenciar e capitalizar a diversidade cultural em favor do empoderamento econômico dos atores periféricos. Se é correto afirmar que esses agenciamentos propiciam um espaço mais amplo para o acesso a recursos por parte dos grupos e coletivos marginalizados, tal realidade também desperta dúvidas sobre possíveis cooptações políticas ou sobre a desvalorização das práticas e saberes locais das comunidades alvo. Compreendo que aqui reside outra contribuição da reflexão de Fontes, especialmente no que se refere à consideração quanto ao caráter contingente desses processos. Essa perspectiva tem sido assinalada por autores como Jean e John ComaPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 115

roff (2009), que ao buscar evitar os equívocos de análises fundadas nas ideias da descontinuidade cultural (influenciadas pelas teses frankfurtianas sobre os efeitos perniciosos da comodificação das culturas) ressaltaram a necessidade de análises situacionais para uma avaliação mais profícua dos processos em curso neste campo. Conforme propõe Fontes, os desfechos dessas políticas não são previsíveis, não havendo uma trajetória única que oriente os atores que atualmente participam dessas mediações. E de modo recorrente, suponho que é na observação das interações que compõem as mediações políticas referidas, bem como dos projetos em jogo neste cenário que se torne viável refletir sobre os possíveis ganhos ou perdas relativos às comunidades alvo das políticas culturais. Mais uma vez, o aporte fenomenológico se demonstra fundamental para estes debates. Um modelo de análise alternativo: mediações e protagonismo dos atores nas políticas culturais e ambientais De um modo geral, as análises de Ruscheinsky e Fontes chamam a atenção para dois aspectos pertinentes para análises sobre as possibilidades de protagonismo dos atores coletivos nas políticas culturais e ambientais, sendo eles o caráter contingente das mediações envolvidas - nos termos de seu potencial para gerar autonomia, deliberação e reflexividade por parte dos atores - bem como a consequente necessidade de percepções situacionais acerca das interações em curso nas mediações observadas. No que compreende as nuances políticas desse último aspecto, mais presentes no trabalho de Ruscheinsky, caberia às análises uma ponderação sobre as condições de emergência de uma espécie de esfera pública própria e constitutiva das mediações desenvolvidas em cada caso, a partir da qual a lógica da ação comunicativa se articulasse de maneira precedente a um agir teleológico ou normativo baseado nos condicionamentos de uma racionalidade meios-fins - condição para viabilizar a “inclusão do outro” em procedimentos de deliberação. Sem duvidar dessa possibilidade, tomada como pretensão do coletivo Comitesinos, creio ser necessário questionar a viabilidade de relações intersubjetivas baseadas em ações comunicativas para outros contextos, especialmente aqueles em que os processos de mediação se constituem a partir de um marco institucional e burocrático típico das políticas culturais da atualidade, sejam elas empreendidas pela ação estatal ou através de parcerias público-privadas. No contexto brasileiro, como demonstram 116 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

os dados do LAPCAB, em boa parte dos casos os modelos de mediação contidos nas políticas culturais e ambientais não se afastam dos condicionamentos institucionais, sejam estes afetados pela burocracia do Estado ou pelos imperativos do mercado. Diante deste quadro, e ressalvando-se o caráter contingente das mediações que aí se desenvolvem, parece-me produtivo avaliar as condições favoráveis para a emergência de mediações nas quais tais condicionamentos estivessem atenuados. Trata-se de considerar a viabilidade de espaços discursivos em que os processos de subjetivação próprios da constituição dos projetos e pautas de orientação dos sujeitos fossem factíveis7. Aqui seria possível questionar sobre modelos de mediação particulares em que o sentido das experiências sociais dos atores não é mais conferido pelas forças atuantes da estrutura, mas produto de suas próprias atividades, aí se engendrando um quadro favorável para a ação política e o agir crítico (DUBET, 1994). Compreendo que os dados disponibilizados pelo LAPCAB permitem explorar essas relações, explicitando realidades empíricas que ilustram de maneira assertiva diferentes modelos de mediação mais ou menos favoráveis ao desenvolvimento do protagonismo dos atores coletivos. Como casos exemplares, recorro aos dados relativos à trajetória de três coletividades organizadas a partir da atividade artesanal, duas voltadas ao artesanato com o capim dourado, outra vinculada ao artesanato de brinquedos de Miriti, sendo elas: a Associação dos Artesãos do Capim Dourado Pontealtense, do Município de Ponte Alta do Tocantins8; a Associação de Artesãos da Comunidade Quilombo do Mumbuca, no Município de Mateiros, em Tocantins9; e a Associação dos Artesãos de Miriti, da cidade de Abaetetuba, Estado do Pará10. Em todos os casos trata-se de coletividades que são alvo de empreendimentos políticos balizados na ideia de desenvolvimento e em7 Algumas considerações de teor crítico sobre a perspectiva habermasiana devem ser retomadas. Embora Habermas (2003) desenvolva um marco analítico pertinente para percepções sobre as condições da ação comunicativa e seu potencial emancipatório, sua análise é relativamente otimista no que concerne ao potencial dos mecanismos burocráticos do Estado para gerar condições discursivas ideais nos processos de deliberação (JOVCHELOVICH, 2008). Por esta razão, e sem pretensão de desconsiderar as contribuições do autor para as reflexões em pauta, considero produtiva a adoção de uma abordagem mais ampla e abstrata para pensar as condições efetivas de processos deliberativos ancorados na ação política e no agir crítico, o que nos leva a trabalhar numa perspectiva mais fenomenológica e balizada por autores como Schutz e Dubet. 8 Conforme relatório de pesquisa contido em Leistner (2015). 9 Ver relatório de pesquisa em Lopes (2015). 10 De acordo com relatório de pesquisa em Leistner (2016b). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 117

poderamento econômico de agentes periféricos através da valorização e comercialização dos artefatos culturais. Em geral, essas políticas se organizam através de uma conciliação de parcerias público-privadas, nas quais o poder público concede espaços e organiza eventos para comercialização e escoamento das atividades produtivas, ainda vinculando-as à valorização do trabalho cooperativo e ao turismo cultural dos Municípios. Em conjunto com tais iniciativas, entidades como o SEBRAE, geralmente pontos chave na elaboração dos empreendimentos, são responsáveis por viabilizar metodologias de trabalho associativo (a partir da formação de associações) e aplicar projetos pedagógicos de capacitação técnica, estética e gerencial. Tais projetos incluem cursos de design, desenvolvimento de produto, inovação técnica e estética e gerenciamento de práticas administrativas, cujo objetivo básico consiste em habilitar os artesãos a executar rotinas fiscais e explorar meios digitais para a divulgação e comercialização de seus produtos via web. Ainda como parte desses agenciamentos, nos três casos se observam iniciativas de registros das peças produzidas em sistemas de Indicação Geográfica e Indicação de Procedência, os quais visam não apenas a preservação ambiental e cultural das atividades produtivas e de seus vínculos com os ecossistemas circundantes, mas ainda a diferenciação dos produtos artesanais num mercado crescente de comercialização dos artefatos culturais (BELAS e WILKINSON, 2008). Como proponho, ainda num teor exploratório e especulativo, em cada uma dessas coletividades desenvolveu-se um modelo de relação distinto com o campo das políticas empreendidas, através de três modelos de mediação que se configuram como tipologias inerentes às possibilidades de protagonismo por parte dos atores coletivos. Decerto, a configuração dos empreendimentos políticos referidos demonstra-se recorrente, o que facilita a compreensão dos aspectos problemáticos observados em todos os agenciamentos institucionais desenvolvidos, igualmente recorrentes. Assim, no contexto dessas três coletividades se detectam lógicas de fragmentação de uma atividade produtiva outrora baseada no trabalho familiar, bem como a geração de um campo de sociabilidades conflitivas e fragmentadas que decorrem da competição ativada pela lógica do empreendedorismo típica da aproximação com os imperativos do mercado. Tais processos não apenas se demonstram contraproducentes para as iniciativas iniciais de trabalho cooperativo, como têm gerado novas relações de desigualdade entre agentes 118 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

mais ou menos aptos à incorporação da perspectiva gerencial e empreendedora. Do mesmo modo, esses processos de fragmentação do trabalho coletivo e de absorção de uma lógica mercadológica têm promovido profundas rupturas com os laços de reciprocidade simétricos e característicos daquelas comunidades, constatando-se interferências concretas nos modos pelos quais os agentes gerenciam suas práticas, seus saberes e seus modos de fazer. Contudo, em cada uma dessas comunidades observam-se interações distintas entre os atores alvo e aquelas políticas, as quais decorrem das lógicas próprias através das quais esses coletivos se organizam e se reproduzem. No caso das realidades observadas em Ponte Alta do Tocantins, uma comunidade mais próxima do meio urbano e onde as políticas do SEBRAE foram implementadas com relativo êxito, observa-se a conjugação entre a efetividade da lógica do mercado e os problemas de fragmentação assinalados acima. Ao mesmo tempo em que se constata a pujança da atividade artesanal na localidade, a qual pode ser inferida junto ao surgimento de uma complexa cadeia produtiva que envolve diversos artesãos, lojistas e atacadistas que comercializam uma produção voltada para diferentes regiões do Brasil ou mesmo para a Europa (o que de fato viabilizou os projetos de geração de renda no Município)11, detecta-se a completa fragmentação do trabalho cooperativo e a geração de novas relações de força entre os agentes que compõem o circuito de produção artesanal. Assim, geraram-se novas lógicas de trabalho assalariado, bem como a diferenciação entre os agentes mais ou menos adaptados às tarefas gerenciais, comerciais e de vinculação de seus produtos nos meios digitais. Em outra perspectiva, no contexto dos artesãos da comunidade do Mumbuca, grupo quilombola de características rurais e forte vinculação com suas tradições (no que concerne suas expectativas estéticas, laços de parentesco e relações de reciprocidade), a implementação das estratégias do SEBRAE não apenas demonstrou-se infrutífera como se observou uma forte resistência dos atores nos processos de negociação que envolvem a absorção da perspectiva empreendedora e mercadológica. Em que pese os aspectos aparentemente positivos dessa resistência em relação a uma lógica de reprodução social exterior, é devido 11 Segundo a perspectiva êmica, retratada nos relatórios de pesquisa do LAPCAB, num discurso recorrente, cerca de setenta por cento dos habitantes de Ponte alta trabalham com o artesanato do Capim Dourado, seja como atividade laboral exclusiva ou como renda complementar. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 119

considerar aqui a dificuldade que esse coletivo encontra para negociar sua aproximação com os aspectos inexoráveis da modernidade urbana e capitalista que se avizinham através de uma política cultural. Fatores básicos desta complexidade podem ser exemplificados no modo como as iniciativas de registro do artesanato do Capim Dourado em sistemas de Identificação Geográfica estiveram distantes das perspectivas tidas pelo coletivo como importantes, em processos cuja condução esteve geralmente a cargo de gestores públicos, técnicos ou pesquisadores (BELAS e WILKINSON, 2008). Por sua vez, no caso do coletivo dos artesãos de brinquedo de Miriti de Abaetetuba, realidade em que as complexidades ligadas à política do empreendedorismo ancorada no modelo SEBRAE geraram as mesmas lógicas de fragmentação assinaladas acima, constatou-se um modelo de relação diferente entre os membros do coletivo e os aspectos institucionais das políticas empreendidas. Nesse caso, os imperativos técnicos e estéticos formulados nas capacitações pedagógicas do SEBRAE, bem como as assimetrias geradas entre os agentes que compõem o coletivo ocasionaram uma ruptura entre a associação de artesãos e o SEBRAE, os membros do coletivo passando a desenvolver seus próprios projetos de aproximação com o mercado e com as políticas estatais de fomento às atividades artesanais. Nesse caso, em específico, o processo de ruptura esteve acompanhado de um empoderamento por parte dos membros do coletivo, sobretudo na medida em que os agenciamentos verificados partiram de uma conciliação entre suas perspectivas comunitárias e as possibilidades vislumbradas sobre sua inserção no segmento dos mercados culturais, mas ainda se ressalvando a possibilidade de manutenção de suas práticas e valores. Conforme elaboro em outra comunicação (LEISTNER, 2016a), tal possibilidade parte da própria conotação híbrida contida nos elementos simbólicos que articulam o grupo, a qual pode ser compreendida nos termos de uma “cultura de transição” - relativa à manutenção de elementos próprios de uma cultura tradicional que foram ressignificados na inserção dos agentes dessa mesma cultura num contexto urbano e periférico. É conveniente retomar aqui que os coletivos de artesãos de brinquedo de Miriti são formados por indivíduos provenientes das regiões ribeirinhas da localidade, os quais migraram para os bairros periféricos de Abaetetuba no processo de industrialização do Município. Desse modo, trata-se de comunidades cujos elementos significativos 120 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

compreenderiam aquilo que Canclini (2013) categoriza como parte de “culturas híbridas”, conjugando elementos próprios de uma cosmologia tradicional em aproximação com o contexto urbano. O que parece importante é que a lógica que organiza as interações e projetos através dos quais esses coletivos se articulam não se encontra efetivamente ligada a processos de integração a uma perspectiva comunitária tradicional, ao mesmo tempo em que resiste aos imperativos e condicionamentos que emergem em suas aproximações com o mercado e a burocracia estatal. Amparado em François Dubet (1994), sugiro que é justamente essa posição equidistante entre uma lógica da integração (comunitária) e uma lógica estratégica (mercado) que possibilita a emergência do agir político e da atitude crítica, como parece ocorrer no caso dos coletivos de artesãos de Abaetetuba. Torna-se necessário retomar que Dubet (1994) concebe as formações sociais a partir da existência de três grandes sistemas, a comunidade, o mercado e o sistema cultural, cada qual fundamentado numa lógica específica, compreendendo que a experiência social designa o resultado de uma articulação aleatória através da qual a ação dos atores pode estar inserida em alguma daquelas lógicas. Enquanto no âmbito da comunidade (lógica da integração) o ator encontra-se integrado ao sistema e sua ação é mobilizada em torno dos valores e da moral vigente, no contexto do mercado (lógica da estratégia) sua identidade opera como um recurso num plano de relações concorrenciais. Em ambos os casos, os condicionamentos da estrutura social ou do mercado incidem sobre a capacidade da agência humana. Por outro lado, é no contexto do sistema cultural que emerge a lógica da subjetivação, concebida por Dubet (1994) como momento de intersecção entre as lógicas anteriores, no qual o ator se define por um posicionamento crítico e como autor de sua própria vida. Trata-se das condições através das quais o indivíduo constrói sua identidade social, articulando as diversas lógicas de que participa e estabelecendo uma reflexão crítica acerca dos condicionantes da comunidade e do mercado: o indivíduo surge então como sujeito da ação política, do agir crítico e da deliberação. Projetando essa reflexão junto aos dados do LAPCAB, observa-se que no caso dos coletivos de Ponte Alta ocorre a predominância de um modelo de ações pragmático configurado numa relação meios-fins que favorece os condicionamentos do mercado. Já no contexto do quilombo do Mumbuca, embora as perspectivas de uma identidade Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 121

comunitária e tradicional resistam ao modelo mercadológico, os condicionamentos de uma ação baseada em valores complexificam suas negociações com as lógicas de reprodução adjacentes. Noutro sentido, é justamente num modelo em que as mediações se configuraram como ponto médio entre a lógica comunitária e de mercado que se torna possível o empoderamento dos atores envolvidos com as políticas empreendidas. De maneira evidente, as diferenças nas mediações aqui observadas não partem apenas da dimensão institucional contida nas políticas culturais e ambientais, mas da própria lógica através da qual os atores articulam seus projetos em conexão com as mediações disponíveis, assim conferindo um sentido a suas experiências sociais. Com isso não estou propondo que determinados coletivos devam se adequar às mediações disponíveis, e nem mesmo que as políticas culturais e ambientais devam contemplar em sua formulação os processos de mediação favoráveis a essa posição de “meio termo” entre valores comunitários e de mercado. O que proponho é que a análise dos processos de mediação desenvolvidos nas políticas da cultura ou do meio ambiente possa localizar esses espaços discursivos de “meio termo” através das quais seja possível questionar a capacidade de protagonismo dos atores sociais no gerenciamento de suas experiências.

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disCursos globais e produção soCial do loCal: o desenvolvimento sustentável e a mineração responsável Como prátiCa disCursiva e modelo para a ação empresarial

gAbrielA scotto

Introdução As reflexões e análises que se apresentam neste texto são resultado de uma pesquisa cujo objetivo consistiu em compreender as mudanças sociais e culturais decorrentes da cada vez mais intensa e visível presença das grandes empresas mineradoras na vida cotidiana das «comunidades locais» onde atuam «promovendo o desenvolvimento sustentável» através de programas de capacitação, apoio a projetos sociais, patrocínios culturais, estágios para jovens, parcerias com as prefeituras, ONGs e Universidades, etc.1. O foco da análise foram as empresas transnacionais que atuam na área de minério de ferro e siderurgia como, por exemplo, a inglesa Anglo American. Neste artigo se abordam as possíveis consequências práticas que as orientações sugeridas pelo Projeto Mineração, Minerais e Desenvolvimento Sustentável (Projeto MMSD), no nível global, têm na forma de atuação local das grandes empresas de mineração. Seguindo como premissa o postulado formulado por autores como Weber e, posteriormente, Clifford Geertz, dentre outros, de que as ideias têm que se institucionalizar para terem na sociedade não apenas uma existência intelectual, mas também uma existência material, no texto a seguir procura-se apresentar algumas pistas capazes de jogar luz sobre questões tais como: através de que formas e práticas sociais se materializa o modelo de ação global para “um desen1 A pesquisa “O novo espírito da mineração: o ‘desenvolvimento sustentável e a mineração responsável’ como prática discursiva e modelo para a ação empresarial. O caso das empresas mineradoras em São João da Barra (RJ)” foi realizada no período 2012-2015 e contou com financiamento da Faperj e da Proppi/UFF. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 125

volvimento local sustentável”? Que transformações e mudanças sociais ocorrem localmente com a chegada das empresas e a implementação do seu modelo de ação? Lembrando as análises de Gluckman (2010) para abordar as mudanças sociais e políticas na África do Sul, o texto se interroga, também, sobre quais são os efeitos, em termos da reconfiguração de conflitos e das dinâmicas locais, da chegada destes novos atores sociais. Como se redefinem as relações entre a população e o Estado, na medida em que novas formas de governança passam a ser definidas e que as empresas (juntamente com ONGs, associações de classe, universidades, etc.) passam a ocupar um lugar prioritário na elaboração e execução de políticas públicas na área de saúde, educação, capacitação técnica, etc.? O projeto Mineração, Minerais e Desenvolvimento Sustentável: as atas de fundação de um discurso global e um guiade ação para as grandes empresas transnacionais no setor da mineração Este Programa no se pregunta por la sustentabilidad de la industria, sino por cómo la industria puede contribuir al desarrollo sustentable de regiones y países mineros. (Abriendo Brechas - América del Sur, 2002)

Em 1999, sob a Iniciativa Global para a Mineração (GMI) – resultante de uma reunião convocada em Londres pela empresa mineradora Rio Tinto, através do Conselho Mundial Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (World Business Council for Sustainable Development- WBCSD), algumas das maiores empresas transnacionais mineiras2 encomendaram ao Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED) o Projeto Mineração, Minerais e Desenvolvimento Sustentável (Projeto MMSD) com o objetivo de “entender como a exploração mineral e o setor de mineração podem contribuir com a transição global ao desenvolvimento sustentável”.3 Essa iniciativa em âmbito mundial teve - na parte correspondente às Américas-, o estudo individualizado de alguns países da região, dentre 2 Anglo American, BHP Billiton, Codelco, Newmont, Noranda, Phelps Dodge, Placer Dome, Rio Tinto, e Western Mining Corporation. 3 Abundante informação sobre o projeto encontra-se disponível em: acesso em 10 de setembro de 2015. 126 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

eles o Brasil. A versão brasileira do Projeto MMSD foi coordenada e executada pelo Centro de Tecnologia Mineral (CETEM)4. Os resultados finais do Projeto MMSD foram apresentados num relatório cujo nome em português é “Abrindo Novos Caminhos. Mineração, Minerais e Desenvolvimento Sustentável”, lançado publicamente durante a Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável, em 2002 em Joanesburgo (IIED e WBCSD, 2002). Nesse documento se propõe “um guia básico” para orientar o estabelecimento de uma “agenda para a mudança” em relação à mineração transnacional em grande escala, de forma a que a atividade possa ser concebida como um fator fundamental para o “desenvolvimento sustentável”. Ao tomar essa iniciativa, as empresas de mineração reconhecem - segundo relato de Maria Amélia Enriquez (2008: 130), pesquisadora do CETEM -, a “má reputação” da indústria mineral e avaliam que seriam amplas as possibilidades de que a mineração contribuísse para o desenvolvimento sustentável através de um engajamento mais ativo das companhias mineradoras com outras “partes interessadas” (stakeholders). O Relatório Abrindo Novos Caminhos começa com o diagnóstico sobre os problemas de credibilidade que o setor de mineração enfrenta e elenca os desafios a serem superados; a seguir listam-se os pontos de uma agenda de desenvolvimento sustentável para a mineração, e apresenta-se, à guisa de conclusão, “Um Programa para Mudança” que permita ao setor mineral mudar sua “visão de futuro” e “maximizar sua contribuição ao desenvolvimento sustentável” (IIED e WBCSD, 2002: 13). Mirta Antonelli, no seu estudo sobre os dispositivos culturais implementados pela megamineração transnacional, pondera que o Projeto MMSD, o relatório Abrindo Novos Caminhos e o conjunto de outras produções que o acompanham podem ser pensados como as atas de fundação de um discurso global com dimensões públicas (ANTONELLI, 2007). 4 O CETEM, criado em 1978, é um instituto de pesquisa de atuação nacional, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI. Localiza-se no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro na Cidade Universitária (Ilha do Fundão). Em 2010 foi iniciado na linha de pesquisa: Recursos Minerais e Sociedade o projeto “Grandes Minas e APL’s de base mineral x Comunidade Local” com o objetivo central da “pesquisar se a grande mineração e as APL’s, atualmente instaladas e em operação no Brasil, geram benefícios sustentáveis líquidos para a Comunidade local onde se situa a Mina, através de dez estudos de caso selecionados no Brasil entre as Grandes Minas existentes e de cinco APL’s” (CETEM, disponível em: , acesso em 15 de setembro de 2015)

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No entanto, cabe ressaltar que, além do seu caráter fundacional e delimitador de um campo discursivo de identidades empresariais em termos globais, o relatório Abrindo Novos Caminhos também fornece um modelo de ação para as grandes empresas transnacionais no setor da mineração. Nele se recomendam, concretamente, a implementação de uma variedade de “políticas e programas que abordem aspectos da agenda do desenvolvimento sustentável” como meio para pôr a agenda em prática. (IIED e WBCSD, 2002: 156). Como fica explicitado na citação a seguir, extraída da Introdução do relatório, não são apenas diagnósticos e considerações de ordem abstrata o que o Projeto MMSD apresenta, mas, pelo contrário, propõe-se como um “guia básico” com “recomendações políticas” para o setor: O projeto MMSD assumiu desde o início que o desenvolvimento sustentável poderia proporcionar um marco de referência útil para guiar o setor mineral. Também acreditou que ao estabelecer os desafios a serem vencidos – de todas as perspectivas e de forma equilibrada – surgiriam novas maneiras de avançar. Esse Sumário Executivo constitui um guia básico das questões prioritárias do setor, que o MMSD identificou nas suas consultas com diferentes atores, e salienta algumas das recomendações políticas mais importantes que surgiram do processo de consulta e análise. (“Introdução” em: IIED e WBCSD, 2002: 1).

Corroborando a afirmação de Antonelli (2007 e 2009) sobre o Projeto MMSD como fundador de um discurso global, sua elaboração foi o passo preliminar para a criação em 2001 - nas vésperas da Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável em Joanesburgo - do Conselho Internacional de Mineração e Metais (International Council on Mining and Metals – ICMM)5 para representar as grandes empresas de mineração durante o evento. Uma das primeiras ações do Conselho 5 O ICMM está sediado em Londres, Inglaterra, e reúne 21 das maiores empresas de mineração do mundo. Seu objetivo, conforme apresentado na página web do próprio Conselho é “aprimorar as formas como atuam as companhias do setor”. Para isso, o ICMM desenvolve “parcerias” com diversas instituições, como organizações não governamentais (ONGs), organismos internacionais e academia, dentre outras. Por meio dessas parcerias, o ICMM atua em várias questões, como a mudança climática, a saúde e a segurança de comunidades, o impacto da mineração na biodiversidade, os direitos dos povos indígenas e, também, os reflexos na indústria e as consequências futuras do surgimento de novos agentes globais. A proposta é estimular as mineradoras a apreender como é possível compartilhar práticas positivas” (Disponível em: ). 128 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

de Diretores do ICMM foi determinar que as empresas afiliadas se comprometessem a implementar e avaliar seu desempenho com base nos “10 Princípios para o desempenho no campo do desenvolvimento sustentável” (ICMM, 2003)6. A delimitação de um campo discursivo e normativo em torno da articulação da mineração e do desenvolvimento sustentável vai ao encontro de processos globais que transcendem o campo específico da indústria extrativa. Este processo fica evidenciado pelo fato da elaboração dos 10 Princípios ter sido feita com base em outros padrões globais orientadores que incluem: a Declaração do Rio 1992, a Global Reporting Initiative, as Diretrizes do OCDE para Empresas Multinacionais, as Políticas Operacionais do Banco Mundial, a Convenção da OCDE sobre o Combate à Corrupção, as Convenções da OIT 98, 169, 176 e os Princípios Voluntários sobre Direitos Humanos e Segurança (ICMM, 2003). O desenvolvimento sustentável e a mineração responsável (e sua retórica correspondente) começam a ser apresentados nas páginas institucionais das empresas, em congressos e reuniões, e nos Relatórios Anuais de Sustentabilidade, evocando o principio jurídico de responsabilidade ante terceiros - compromisso de não dano - ao mesmo tempo em que postula a “natureza filantrópica” do empresariado sensível às necessidades e desejos da sociedade e das comunidades onde se apresentam as atividades da empresa. Esses conceitos surgem simultaneamente, ancorados na noção de responsabilidade social empresarial (RSE), conceito global, também, que combina a chamada filantropia empresarial com uma ideia mais geral acerca da responsabilidade das empresas em relação ao impacto social e ambiental que geram suas ati6 Os 10 Princípios: 1 - Implementar e manter práticas comerciais éticas e sistemas íntegros; 2 - Integrar as considerações sobre o desenvolvimento sustentável ao processo de tomada de decisões corporativas; 3 - Defender os direitos humanos fundamentais e respeitar a cultura, os costumes e os valores no trato com funcionários e outras pessoas afetadas por nossas atividades; 4 - Implementar estratégias de gestão de riscos baseadas em dados válidos e na ciência bem fundamentada; 5 – Buscar a melhoria contínua de nossa atuação nas áreas de saúde e segurança; 6 - Buscar a melhoria contínua de nossa atuação na área ambiental; 7 - Contribuir para a conservação da biodiversidade e das abordagens integradas ao planejamento do uso da terra; 8 - Facilitar e incentivar o desenvolvimento, a utilização, a reutilização, a reciclagem e o descarte de nossos produtos de maneira responsável; 9 - Contribuir para o desenvolvimento social, econômico e institucional das comunidades onde trabalhamos; 10 - Estabelecer acordos efetivos e transparentes com as partes interessadas para o comprometimento, a comunicação e a verificação independente das informações (grifo nosso - Fonte: ICMM, 2003). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 129

vidades. Esse modelo de ação empresarial que surgiu no Fórum Econômico de Davos, também em 1999 como o Projeto MMSD, tem sido proposto por e para as grandes empresas que operam em contextos de grande diversidade, de forte competição internacional e, principalmente, de crescente exposição à opinião pública.7 As empresas do setor de mineração têm investido não poucos recursos no desenvolvimento de uma estratégia de governabilidade social tendente a criar o que - usando a imagem de Boltanski e Chiapello (2009) quando analisam as formas que assume a reorganização do capitalismo a partir da década de 90 - designamos de “novo espírito da mineração”. De forte cunho moral e ideológico, os princípios inaugurados publicamente pelo projeto MMSD se traduzem em práticas em “prol do desenvolvimento sustentável e da mineração responsável” cujo objetivo seria o de lograr tanto o apoio e adesão dos stakeholders nos locais onde operam, como o acesso a públicos e instâncias internacionais que cobram – através de indicadores de sustentabilidade a responsabilidade social e ambiental das empresas - um “diferencial para alcançar novos mercados” (LEMOS, 2013: 119). Para alguns autores críticos desse modelo (WHITMORE, 2006; ANTONELLI, 2009; IBASE, 2011, dentre outros) o discurso da “mineração responsável” é distintivo de uma estratégia empresarial que «busca legitimar o modelo extrativista exportador de modo geral, e minerador em particular, mas oculta de forma sistemática os graves e profundos impactos sociais e ambientais de tais empreendimentos» (IBASE, 2011: 7 A RSE adquiriu um formato institucional através do Pacto Global em 2000, programa liderado pelo PNUD, CEPAL e a OIT tendente a aumentar a responsabilidade social das empresas nos campos dos direitos humanos, standard laborais e meio ambiente. Em 1999, Kofi Annan, Secretário-geral da ONU, ao lançar o Global Compact (Pacto Global) solicita aos dirigentes do mundo dos negócios a aplicação de um conjunto de nove princípios sobre os direitos humanos, trabalhistas e questões ambientais. Segundo Hariessa Villlas Boas: “A responsabilidade social das empresas tem sido proposta como práticas sociais e ambientais voluntárias das companhias, indo para além de suas obrigações juridicamente estabelecidas. Compreende todas aquelas atividades realizadas pelas empresas para maximizar os benefícios dos projetos ao mesmo tempo em que, minimizam seus impactos, que podem, e normalmente o fazem, se estendem muito além do que é exigido pelas leis dos países em que operam. Neste contexto, o termo “social” não se refere aos problemas sociais, mas aos objetivos sociais, tais como o desenvolvimento econômico, contribuições sociais e de proteção ambiental. A responsabilidade social tem sido descrita como uma das ferramentas que as empresas utilizam para implementar o desenvolvimento sustentável” (VILLAS BOAS, 2011: 13). 130 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

20). A partir do desenvolvimento sustentável como modelo de ação, as empresas produzem fortíssimas intervenções na cultura e na vida cotidiana das comunidades onde estão presentes, através de, como já mencionado no início do texto, programas de capacitação para jovens, apoio a projetos sociais, oficinas e outras atividades de educação ambiental, de patrocínios culturais, estágios para jovens, parcerias com as prefeituras, ONGs e Universidades, etc. Maristella Svampa et al, ao estudar a mineração transnacional na Argentina, assinalam para o fato das grandes empresas estarem se convertendo cada vez mais num ator social total na medida em que: a) re-configuram as economias locais preexistentes, reorientando as economias locais em função das novas atividades econômicas e criando novos enclaves de exportação; b) produzem um impacto negativo em termos ambientais e sanitários, que repercute sobre as condições de vida da população; e finalmente, embora não menos importante, c) tendem a ampliar a sua esfera de ação, constituindo-se em “agentes de socialização direta” através de um conjunto diverso de ações sociais, educativas e comunitárias (SVAMPA et al, 2009: 47-48) Contudo, não é o objetivo deste artigo determinar se a mineração responsável e o desenvolvimento sustentável são apenas estratégias de marketing, ou estabelecer se se trata de uma questão de “novos discursos para velhas práticas” (WHITMORE, 2006); interessa, ao contrário, como assinalado inicialmente, conceber analiticamente as estratégias discursivas como modelos de ação “materializados” em conjuntos de práticas sociais que envolvem a participação direta e ativa das empresas. A produção global da “comunidade local” Um ano após o lançamento de Abrindo Novos Caminhos, e desta vez com o papel ativo do Banco Mundial, apresentam-se publicamente as “ferramentas” (Toolkit) para auxiliar os membros do ICMM a implementar os “Dez princípios de desenvolvimento sustentável”, e em particular o seu nono princípio: “Contribuir para o desenvolvimento social, econômico e institucional das comunidades onde trabalhamos”. O Toolkit fornece orientação prática para todos os estágios do processo de mineração, desde a exploração até a construção, operações e eventualmente a retirada de serviços e o fechamento, incluindo pós-fechamento. Grande parte do Toolkit é dirigida ao pessoal da empresa de mineração. Entretanto “há ferramentas que seriam usadas por coPolíticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 131

munidades onde a empresa de mineração, em geral, desempenharia um papel de facilitadora. Os governos também podem decidir modificar suas leis de licenciamento, para fornecer uma estrutura que estabeleça regras e atribua responsabilidades por empreender algumas das ações incluídas no Toolkit.” (ESMAP et al, 2005: 12) As abordagens apresentadas na Caixa de Ferramentas foram conjuntamente, segundo declarado no documento, coordenadas pela Divisão de Políticas de Mineração e Gás e Óleo do Banco Mundial e pelo ICMM. A empresa brasileira Vale apoiou a tradução do manual de ferramentas de desenvolvimento de comunidades do ICMM para o português de forma: a incentivar “o aprimoramento contínuo de engajamento com partes interessadas (stakeholders) e desenvolvimento de comunidades como parte fundamental do desenvolvimento sustentável.” (ESMAP et al, 2005: Contracapa). Segundo palavras do ICMM e do Banco Mundial, as companhias mineradoras devem perseguir os seus interesses de uma forma que também promovam os interesses das “comunidades locais”: A indústria de mineração pode desempenhar um papel central no desenvolvimento da comunidade atuando como estimuladora de mudanças positivas em áreas que possam, de outra forma, ter pouco, se alguma, oportunidade de desenvolvimento econômico e social. Isso ocorre principalmente em situações em que a mineração pode ser uma catalisadora, para auxiliar a construir outras fontes de renda sustentáveis (que não as de mineração) nas áreas onde as minas estão localizadas, para que as comunidades possam desenvolver-se independentemente da mina e, assim, sobreviver à exaustão das reservas de minérios e à saída da operação de mineração. Para isso, devem-se promover ligações dinâmicas entre comunidades e órgãos externos de apoio.(ICMM/ Banco Mundial, 2005 – Cap.2 “Mineração e desenvolvimento de comunidades”).

A citação acima dispensa muitos comentários. Podemos observar que, não apenas as empresas se eximem das suas responsabilidades perante as consequências negativas que a mineração possa vir a ter no local onde se encontram as minas, como muito pelo contrário, elas seriam os agentes do “desenvolvimento das comunidades” (econômico e social), assumindo o papel do próprio Estado. A ideia de que a mineração é um trampolim para o desenvolvimento encontra amparo teórico, conforme afirma Maria Amélia Enriquez (2008: 106) em diversos re132 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

latórios do Banco Mundial, para quem a associação entre crescimento econômico e redução da pobreza é uma verdade inquestionável Dessa forma, segundo a autora, para o Banco financiar projetos de mineração em “economias subdesenvolvidas” será importante para o crescimento econômico e, consequentemente, para a redução da pobreza. Retrospectivamente, o Desenvolvimento de Comunidade foi um conceito institucionalizado pela ONU após a II Guerra Mundial, no contexto da Guerra Fria. Sob os argumentos que viam na pobreza a causa de todos os males e riscos se inicia, sob a liderança dos Estados Unidos, um extenso programa de assistência aos países pobres (AMMAN, 1980: 29 e Ss.). Traçado sob uma visão que concebe a sociedade como harmônica e equilibrada, o Desenvolvimento de Comunidades é definido como um “processo através do qual os esforços do próprio povo se unem aos das autoridades governamentais com o fim de melhorar as condições econômicas, sociais e culturais das comunidades, integrar essas comunidades na vida nacional e capacitá-las a contribuir plenamente para o progresso do país.” (AMMAN, 1980: 32). Considero que esta é a matriz ideológica que se encontra ainda vigente nas abordagens da “mineração sustentável”. Com outras palavras: novas roupagens para velhas perspectivas. Contudo, a meu ver, haveria dois elementos novos na perspectiva de Desenvolvimento de Comunidade, tal como se apresenta no Toolkit: em primeiro lugar, a terminologia do Desenvolvimento Sustentável (empregada quase como sinônimo de Desenvolvimento de Comunidade); e em segundo, o da atribuição de um papel mais muito mais protagonista às empresas: O desenvolvimento de comunidades é o processo pelo qual ampliam-se sua força e sua eficácia, melhorando a qualidade de vida das pessoas e permitindo que elas participem dos processos decisórios, atingindo, a longo prazo, um controle maior sobre sua vida. Programas de desenvolvimento sustentável para comunidades são aqueles que, ao longo do tempo, contribuem para que elas se tornem cada vez mais viáveis. As atividades de processamento de minerais e de mineração podem desempenhar um papel central no desenvolvimento sustentável das comunidades, atuando como catalisador para mudanças positivas no âmbito econômico-social e em áreas que possam, de alguma forma, apresentar oportunidades limitadas ao desenvolvimento econômico e social. (ESMAP, Banco Mundial e ICMM; 2005: Contracapa).

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Porém, a noção de comunidade embutida na perspectiva da mineração sustentável continua a mesma: Comunidade: Um grupo social que possui crenças e valores compartilhados, associações estáveis e expectativa de interação contínua. Pode ser definida geograficamente por fronteiras políticas ou de recurso, ou socialmente, como uma comunidade de pessoas com os mesmos interesses. (ESMAP, Banco Mundial e ICMM; 2005, Glossário).

O Desenvolvimento Sustentável e o trabalho junto às comunidades da Anglo American A página em português da empresa Anglo American apresenta as ações sociais e ambientais da empresa na seção “Desenvolvimento Sustentável” o qual define com as seguintes palavras: O desenvolvimento sustentável, por definição, diz respeito ao futuro. Na Anglo American estamos ajudando a moldar esse futuro minimizando qualquer impacto negativo de nossas operações atuais. Ao mesmo tempo, desenvolvemos ações com as comunidades locais para assegurar que elas se beneficiem de nossas atividades – agora e nos próximos anos. (Anglo American – Desenvolvimento Sustentável, disponível em: < http:// www.angloamerican.com.br/>).

Observamos que congruentemente com o Projeto MMSD, o DS abre define o campo de intervenção no nível local, junto “as comunidades”. Mas um tipo de intervenção onde a empresa não deixa de se pensar como um ator, diríamos político, fundamental: As comunidades onde operamos são essenciais para nosso sucesso. Ao mesmo tempo, com frequência somos vitais para sua crescente prosperidade. A dependência mútua torna natural o desejo de efetuar contribuições positivas e duradouras. Ser um bom vizinho é um de nossos principais objetivos.

Mais ainda: Nossos objetivos de promover relacionamentos sólidos com as comunidades locais e aumentar sua capacitação baseiam-se na crença de que teremos mais sucesso se as comunidades onde operamos 134 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

crescerem com desenvolvimento econômico e social. Buscamos envolver a população local nas questões que possam afetá-la, e nosso apoio aos projetos comunitários deve refletir as prioridades dos moradores, o desenvolvimento sustentável e a relação custo benefício. Procuramos avaliar a contribuição de nossas operações ao desenvolvimento social e econômico local, e publicar relatórios destes resultados. (ANGLO AMERICAN BRASIL, 2004: 22).

Conforme seus relatórios anuais, a empresa investe uma considerável soma de recursos financeiros em projetos junto às comunidades em que atuam, seja em doações ou investimentos em dinheiro, em doações em bens, serviços ou em tempo dos empregados. Do total de investimentos, segundo a empresa, aproximadamente 67% são para projetos na área de cultura, 18% em educação e juventude, 1% em saúde, 1% em meio ambiente e habitação, e os demais 13% em outras áreas (ANGLO AMERICAN BRASIL, 2004). Sempre segundo informações da empresa, no Rio de Janeiro: •

a empresa é responsável pelo desenvolvimento da usina de compostagem e reciclagem de Natividade e a estação de tratamento de água em Porciúncula.



teria investido R$ 4 milhões (0,5% do valor do empreendimento - Compensação Ambiental) na recuperação da usina de compostagem e reciclagem de São João da Barra e na dragagem de canais no município.



no Porto do Açu, a Anglo American implanta, em conjunto com a LLX Minas-Rio e Prefeitura de São João da Barra (RJ), um Terminal Pesqueiro que permitirá aos trabalhadores realizarem o beneficiamento do pescado de forma adequada e organizada, facilitando a logística, o armazenamento e comercialização. O terreno que abrigará o Terminal Pesqueiro já foi adquirido pela Anglo American e o projeto entregue ao órgão ambiental do Rio de Janeiro, para licenciamento ambiental. Parceiro do projeto, o SEBRAE-RJ está realizando a avaliação do processo produtivo e desenvolverá o modelo de gestão. O projeto envolve também a alfabetização dos pescadores e de seus familiares em parceria com o Sesc/Senai e a prefeitura, beneficiando 300 pessoas. (Em “Desenvolvimento de negócios locais”). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 135

análise de duas situações soCiais Dez anos depois: ICMM, Anglo American, ONGs e a comunidade de Barro Alto na Rio+20 Em 2012, exatamente 10 anos do lançamento do Projeto MMSD e por ocasião da Cúpula Rio +20 voltada para o debate sobre a Economia Verde, o IIED promoveu a Sessão Reflexões sobre uma década de mineração, minerais e desenvolvimento sustentável para avaliar os logros do setor mineral nesses dez anos e discutir os novos desafios. Durante o evento foi lançado o documento: MMSD+10: Reflecting on a decade, contendo as principais conclusões da avaliação realizada pelo IIED. Sobre os logros (ou não) em relação ao desempenho das empresas junto às comunidades o documento avalia: “community involvement overall cannot beconsidered na área of achievement, and remains one of the biggest challenges for minerals and sustainable development. Company policies does not always lead to best practice on the ground ” (IIED, 2012: 18). Acredito, baseada na minha experiência no campo, assim como no acompanhamento dos inúmeros conflitos locais emergentes que não teria sido necessária muita avaliação para se chegar a essa conclusão... mas não deixa de ser um dado a ser observado o fato de que o relatório reconheça esse aspecto. No entanto, mais do que comentar o Relatório de avaliação, quero levantar algumas questões sobre a própria Sessão, na qual participei como observadora. Ela pode ser abordada como uma situação social na qual os diferentes grupos sociais que integram o campo da mineração sustentável estiveram presentes e dramatizaram seus papeis. Mesmo não constando oficialmente da programação, a “comunidade” também se fez presente. O evento foi realizado num auditório da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Universidade (PUC-RJ), no bairro da Gávea. A Mesa de palestrantes esteve integrada por um representante do IIED, o diretor de Comunicações da ICMM, por um dos presidentes da Anglo American e pelo diretor da ONG brasileira Agenda Pública, “parceira” da Anglo no Programa de Fortalecimento Institucional e Participação Social de Barro Alto e Niquelândia (GO), localidades onde a empresa tem operações de ferroníquel no Brasil. No público, umas 50 pessoas aproximadamente, alguns empresários e funcionários das empresas, alunos da PUC, e varias outras pessoas de quem não consegui identificar sua procedência. Na plateia também, sentadas na 136 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

primeira fileira, estavam duas representantes da “comunidade de Barro Alto” para quem foi passado o microfone para que prestassem seu depoimento sobre “como a vida da comunidade tinha melhorado com a chegada da empresa”. Não houve quase debate, não houve imprevistos, nem “imponderáveis” malinowskianos. Mesmo assim, dentre os vários aspectos que poderia mencionar, gostaria de destacar um: a ausência de representantes do Poder Público. Isto é significativo, principalmente se consideramos que o programa da Agenda Pública em Barro Alto representa “o esforço comum [ONG Agenda Pública e empresa Anglo] em desenvolver capacidades de gestão e de implementar políticas públicas que possam oferecer respostas às demandas da cidade”. Destaco esse aspecto por considerá-lo um ponto importante que a minha pesquisa revelou: seja pela sua aparente ausência ou pela sua presença como “parceiro” (aparentemente secundário) das empresas, o governo municipal é um ator fundamental a ser levado em conta se queremos entender o papel e as formas de atuação das empresas de mineração no local, junto “à comunidade”. Aprofundar na análise dessa relação e da reconfiguração das relações de poder local, com foco nas relações (diversas) entre prefeitura, empresa e “comunidade” fica como desafio para um futuro trabalho. A “comunidade sanjoanense” visita o Superporto do Açu: análise de uma situação social no município de São João da Barra (RJ, Brasil) Um dos “programas sociais” postos em prática, desde outubro de 2009, pela LLX, em parceria com a Prefeitura Municipal de São João da Barra (RJ) é o Programa de Visitas “Superporto, Nosso futuro” cujo objetivo, conforme apresentado no material institucional de divulgação é “promover a integração da comunidade sanjoanense com o Super Porto do Açu” por meio de visitas às obras e ao Centro de Visitantes. As visitas do programa Superporto Nosso Futuro8 acontecem todas as quintas-feiras com a participação de grupos de até 40 pessoas. As inscrições podem ser feitas diretamente na Prefeitura de São João da Barra, pelo telefone ou e-mail. Formalmente, o programa de visitas (bastante ritualizado) consiste nas seguintes etapas: 8 Agradeço a Raquel Isidoro, bolsista de iniciação científica durante o projeto, pela observação participante durante a Visita e posterior registro. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 137

1. Inscrição dos interessados na sede da Prefeitura 2. Escolha e contato com os “visitantes” 3. Encontro dos Visitantes na data e local marcados (partindo da sede do município em São João da Barra) 4. Translado de ônibus dos Visitantes até o centro de Visitantes a) Palestra informativa b) Vídeos institucionais sobre o Grupo EBX c) maquete do empreendimento 5. Visita guiada ao canteiro de obras, indo até o píer 6. Retorno ao Centro de Visitantes: Lanche, entrega de brindes 7. Regresso a São João da Barra Analiticamente, o Programa de Visitas mediante o qual a empresa “recebe a comunidade local nas obras do Complexo Industrial do Superporto do Açu”, me interessa porque ele – concebido como situação social expõe o “comunitarismo” que perpassa a matriz discursiva das empresas, assim como as relações sociais que se estabelecem entre empresa, governo municipal e população, num contexto social marcado pela presença de uma empresa omnipresente em todas as dimensões da vida social local. O público alvo do Programa são os “moradores” ou como são chamados no material de divulgação: “a comunidade são-joanense”; no entanto a comunidade de moradores (ou vizinhos) não é equivalente às “comunidades locais’ (as que neste caso seriam constituídas principalmente por pescadores e produtores rurais, objetos do “desenvolvimento de comunidades”). Mas seja uma ou a outra, nos dois casos se se idealizam grupos sociais homogêneos e harmônicos e se expulsa a possibilidade de conflitos sociais para fora do âmbito comunitário. Outra reflexão tem a ver como o fato da Prefeitura junto à empresa, serem as anfitriãs que convidam, e os moradores, os convidados a visitar algo que pareceria estar fora do território deles. A meu ver, se configura dessa maneira uma relação de “exterioridade” (complicada) entre a Prefeitura e a população, onde a ultima só participa como “visitante” sem muito direito a diálogo. A grande maioria das questões que a análise da Déborah Bronz (2011) levanta ao abordar os Programas de Comunicação Social (PCS) e os processos sociais (conflitantes) em torno do que ela chama de Empreendimento 2, se aplicam ao caso que venho analisando. Ela traz informações que permitem imaginar, também, como poderiam ter acontecido 138 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

as reuniões entre empresários, funcionários, consultores e membros da administração pública envolvidos na definição e implementação de um PCS (ou uma ação de responsabilidade social empresarial, como ser um Programa de Visitas), e da relação entre os processos de licenciamento dos empreendimentos e “as diferentes tecnologias de comunicação que são utilizadas pelas empresas para dar visibilidade ao empreendimento”. Gostaria de concluir com a seguinte citação, extraída do trabalho de Bronz, porque ela confirma – com outras palavras -o que a percebemos durante a visita ao Porto: O Programa de Comunicação, ao contrário do que se propõe no documento oficial que o estandardiza no processo licenciamento ambiental, o Plano Básico Ambiental, não cria canais de comunicação ou diálogo entre empreendedores, consultores, moradores, trabalhadores e gestores. Ele é montado para difundir os discursos empresariais formulados sobre os empreendimentos. E também para distribuir peças e difundir uma “boa imagem” da empresa – com todos os recursos visuais e digitais de que fazem uso. A comunicação como mitigação, neste caso, não funciona como uma medida para evitar “acidentes”, mas sim para evitar que os empreendedores sejam surpreendidos por ocorrências não planejadas. A mitigação mitiga os empresários, quando estes se apresentam como empreendedores e consultores (BRONZ, 2011:404-405).

O conceito de “comunidade” empregado pelas empresas parece ecoar nos mais diversos campos, inclusive no de artigos acadêmicos que, não raramente, parecerem considerar taken for granted a existência da “comunidade” e do “local”. De forma a quebrar a ilusão do “comunitarismo local” penso ser fundamental pensar num “espaço da mineração” sem ficarmos presos à ilusão empirista e topográfica contida nas noções de “município”, “local”, “comunidade” e “comunidades locais”. Nesse sentido, o espaço das empresas de mineração de intervenção “junto às comunidades” não coincide com os locais onde estão os empreendimentos, nem a mina, ele é muito mais amplo (e menos preciso). Por sua vez, a presença de conflitos e a emergência de diversos sujeitos coletivos (associações, movimento ambientalistas, grupo de “atingidos”, etc.) põem em evidência o inadequado de se pensar em termos de “comunidade sãojoanense” ou “comunidade conceiçõenese”; assim como questiona a poder absoluto do “desenvolvimento sustentável e da mineração responsável” como dispositivos para garantir às empresas a procurada “a licença social para operar”. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 139

Considerações finais Como principal conclusão, apontamos que não há uma relação direta e de mão única entre os princípios do Projeto MMSD que aderem ao DS como “agenda global e modelo de ação para o desenvolvimento das comunidades locais” e sua tradução efetiva nas práticas locais das empresas, neste caso, a Anglo American. O “desenvolvimento sustentável e a mineração responsável” como prática discursiva e modelo para a ação empresarial alude a uma matriz discursiva (e comunicacional) cujas audiências e interlocutores se encontram nos níveis nacionais e internacionais (agências reguladoras, outras empresas do setor, instituições multilaterais, organismos internacionais, bancos, etc). No entanto, cabe observar que é nesse campo discursivo e organizacional que uma importante maioria dos consultores e das ONGs “parceiras” se nutrem (financeiramente, também) para elaborar os programas e projetos “locais” e o de trabalho “junto às comunidades”. Por sua vez, a “intensa” e visível presença de grandes empresas mineradoras na vida cotidiana dos locais onde atuam, “promovendo o desenvolvimento sustentável” através de programas de capacitação, apoio a projetos sociais, patrocínios culturais, estágios para jovens, parcerias com as prefeituras, ONGs e Universidades, etc., parece encontrar sua razão de ser mais nas exigências derivadas dos processos de licenciamento ambiental do que nos estímulos provindos do “novo espírito da mineração”. Ao cruzarmos a lista das “medidas condicionantes” e “mitigadoras dos impactos sociais e ambientais” definidas pelos Estudos de Impactos Ambiental (EIA) nos processos para a obtenção das Licenças Prévias (com os quais as empresas devem cumprir se querem obter, no final do processo, a Licença de Operação) com as ações projetos implementados localmente, vemos que a coincidência é quase completa9. A afirmação acima se cruza analiticamente com a minha proposta de pensarmos num “espaço da mineração”, nos termos proposto por 9 Segundo as conclusões baseadas em pesquisas realizadas sobre processos concretos de licenciamento, a “medida condicionante” pode ser vista como um dos dispositivos de postergação de conflitos: Esses dispositivos “permitem que se aprove a licença e se defina uma série de condições a serem cumpridas até a liberação da licença seguinte. Decisões cruciais sobre a obra são automaticamente lançadas para fases posteriores à obtenção das licenças, através destes procedimentos que tornaram-se quase uma regra durante todo o licenciamento ambiental. FASE / ETTERN-IPPUR (2011: 32). 140 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Champagne (1975) sem ficarmos presos à ilusão empirista e topográfica contida nas noções de “município”, “local”, “comunidade” e “comunidades locais”. Nesse sentido, o espaço da Anglo de intervenção “junto às comunidades” não coincide como os locais onde está o porto, o mineroduto e a mina, ele é muito mais amplo (e menos preciso). Ele será juntos aos grupos definidos como “impactados” pelo EIA, será junto aos comerciantes e políticos nas sedes dos municípios, será na Rio+20 durante o seminário na PUC onde a ONG parceira e a comunidade local estão presentes; será junto aos moradores vizinhos da pedreira de Itaóca, em Campos dos Goytacazes, da onde se extraem as pedras para a construção do terminal portuário; será no aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, onde os outodoors da empresa na sala de embarque retratam em primeiro plano, um trabalhador, um membro da “comunidade”, um “empresário” etc. Para concluir, diria que a existência de numerosos conflitos questiona o poder absoluto do “desenvolvimento sustentável e da mineração responsável” como dispositivos para garantir às empresas a procurada “a licença social para operar”.

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os figureiros de taubaté, sp: tradição, diferenCiação e inovação na arte popular

André luiz dA silvA José rogério lopes pAolo totAro Introdução O caso aqui descrito é um recorte do projeto “Políticas culturais e ambientais, coletividades e patrimônios no Brasil: algumas questões epistêmicas”, desenvolvido no LaPCAB-Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil1. O objetivo do projeto é investigar as trajetórias e práticas de coletividades e comunidades de atores produtores de bens identitários, ou de marcação social (artesãos, extrativistas, pescadores, entre outros), que se reconhecem em um contexto ambiental determinado e utilizam, nas suas atividades, tecnologias patrimoniais2 que integram as percepções locais de cultura e ambiente. Na primeira fase do projeto (2011-2014), investigamos 33 coletividades e comunidades constituídas nos critérios da pesquisa, distribuídas em 17 estados do país. Na segunda fase (2015-2017), selecionamos 10 desses casos, em 9 estados das diferentes regiões do país3, para aprofundarmos a investigação de algumas questões epistêmicas elaboradas sobre a primeira fase (LOPES e TOTARO, 2016). Na medida em que os casos investigados se apresentaram em uma miríade de questões específicas, particulares ou singularizadas biograficamente 1 Ver página do Laboratório no Facebook: www.facebook.com/lapcab. 2 As práticas e fazeres de ofício dessas comunidades estão inscritos na definição de tecnologias patrimoniais por produzirem artefatos ou formas culturais que preservam dinâmicas de enraizamento socioambiental (ARDANS, 2014) variados e mediados por técnicas produtivas de bens identitários. 3 As investigações foram norteadas pelos procedimentos da análise situacional, com base na abordagem etnográfica (VAN VELSEN, 1987), utilizando técnicas de investigação estipuladas em um quadro comum às pesquisas em Ciências Sociais, consistindo de observação direta dos contextos investigados, entrevistas, coleta documental e aplicação de questionários, complementadas pelo acompanhamento regular de canais de divulgação das coletividades na web. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 147

(KOPYTOFF, 2008), optamos por realizar uma análise geral dos mesmos, em detrimento de uma análise global, em outro estudo (LOPES e MEIRELLES, 2016). Tal análise permitiu reconhecer que as comunidades e coletividades com as quais pesquisamos apresentavam um marco de origem delimitado por interações sensíveis das mesmas com seus contextos ambientais, em geral, definidos pelas atividades extrativistas e de coleta. Os artefatos que produzem ganharam formas culturais nesse marco original, relacionando-se com técnicas e conhecimentos, em torno de um modelo de trabalho comunitário, coletivo ou colaborativo. Todavia, a trajetória de interações dessas comunidades e coletividades com agentes exógenos aos seus projetos foi produzindo deslocamentos de sentido (ou de percepção de si, em relação com o ambiente) naquela experiência de interações sensíveis. Esses deslocamentos foram marcados por agenciamentos mercantis, institucionais e de políticas culturais que condicionaram e promoveram uma ressignificação dos ofícios tradicionais e saberes comunitários locais, em dois sentidos principais: a) no âmbito das lógicas de organização desses atores, especialmente no que se refere à experiência sensível de suas interações com a natureza, à coletivização da produção e a articulações político institucionais; b) nos termos de uma possível transformação das tecnologias patrimoniais dessas comunidades, dos seus artefatos culturais produzidos, bem como das lógicas de distribuição e comercialização desses artefatos, num mercado de bens culturais contemporâneos. Dessa análise geral, e retornando aos casos investigados na fase atual do projeto, passamos a considerar aquela miríade de questões específicas segundo alguns perspectivismos de análise que possibilitam estabelecer correspondências entre os casos, a partir das orientações definidas pelos projetos dos mesmos, frente à ressignificação de sentidos descritas acima. No caso aqui descrito, o perspectivismo que orienta a elaboração refere-se ao impacto das forças modernizantes de agenciamentos exógenos sobre a experiência sensível de interações entre as comunidades e seus contextos ambientais, na qual os artefatos culturais ganham forma cultural. Aqui, consideramos especificamente como o mercado de consumo cultural dos artefatos de uma associação de artistas populares, localizados em Taubaté, estado de São Paulo, gera os deslocamentos de sentido mencionados acima, em sua trajetória.

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Contexto, histórias e identidades figureiras Taubaté é uma cidade com aproximadamente 270.000 habitantes, situada na atual região metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte, no Estado de São Paulo. Nas últimas décadas, o nome dessa cidade está se tornando mais conhecido pelos produtos de uma híbrida atividade de escultura popular, situada entre tradição e mercado, trabalho assalariado e autônomo, artesanato e arte, enquadramento e diferenciação. Essa atividade é a dos “Figureiros de Taubaté” reunidos na Associação Casa do Figureiro “Maria da Conceição Frutuoso Barbosa”, atuante em uma sede, a “Casa do Figureiro”, que se localiza no bairro da Imaculada, nas adjacências da Rua Imaculada, conhecida como Rua das Figureiras. A Associação tem como escopo a produção e a venda de figuras de argila secadas ao sol e pintadas. As figuras são de tipo tanto religioso (sobretudo com referência à preparação de presépios) quanto leigo. A atividade dos figureiros é classificável como “arte popular” e não como artesanato, de acordo com a distinção feita por Silva (2011). De fato, o produto artesanal não tem marco autoral, enquanto as “figureiras” assinam cada peça e as figuras são encomendadas e vendidas sempre com referência à figureira que as produziu. De outro lado, as figuras não podem ser tratadas como obras de arte convencional, enquanto a técnica das figureiras não passou por uma institucionalização acadêmica (SILVA, 2011). Portanto, é somente por brevidade que nos referiremos a esses “artistas populares”, chamando-os doravante de artesãos. O começo da atividade dos figureiros foi referido a um uso doméstico e não de tipo profissional. E aqui, as histórias e narrativas que as pessoas do lugar contam sobre a origem e o desenvolvimento dessa atividade apresentam dissonâncias. Desde pesquisas realizadas nas décadas de 1980 e 1990 (LOPES, 2006), a atividade se originou na primeira metade do século XX e se desenvolveu ligada aos registros coletivos das migrações rurais, por pessoas que se deslocaram para Taubaté, vindas de cidades pequenas da região. Desde o início, a produção das pequenas imagens de argila oscilava nos motivos de sua elaboração, variando entre registros imagéticos de manifestações religiosas (como procissões, santos e grupos devocionais populares) e do trabalho rural (como as atividades de lavoura, o trato com animais e os serviços domésticos). Representantes desse primeiro período, como o Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 149

senhor Benedito Gomes da Silva4, produziam imagens pouco refinadas (desproporcionais ou disformes, dispostas em paisagens assimétricas), ao estilo da arte ingênua, ou primitivista.

Detalhe de peça (Procissão) de Benedito Gomes da Silva e o autor trabalhando. Fonte: arquivo do autor (1987).

O desenvolvimento de uma política de valorização do folclore5, desde a década de 1940, ativada por estudos e ações como os desenvolvidos por Mário de Andrade, propiciou as condições para que essa atividade adquirisse legitimidade e relevância social, e atraísse novos adeptos. Isso fez com que o destino das peças produzidas fosse variando do uso doméstico ao institucional, e daí, ao comercial (AQUINO, 2012). Acompanhando tal variação, as demandas exógenas operadas na negociação com os consumidores locais, ou com os mecenas institucionais, influenciaram a emergência de novos registros imagéticos na produção dos figureiros, que passaram por refinamentos em sua elaboração. O principal deles foi operado na década de 1960, por três irmãs que residiam no bairro (Maria Luiza, Maria Cândida e Maria Edith, filhas de José Leite Santos), que passaram a produzir peças mais refinadas e detalhistas (proporcionais e dispostas em paisagens simétricas), em conformidade com a estética figurativa muito ao gosto das instituições 4 Ícone da primeira geração de figureiros, em Taubaté, há ainda algumas obras do mesmo preservadas em exposição no SESC de Taubaté, coletadas pelo pesquisador. 5 Folclore é aqui entendido na acepção discutida por Ortiz (1992), como identidade projetada sobre a constituição de um modelo de nação, de base popular ativa, em contraste com uma identidade original, projetada desde um mito constitutivo da mesma nação, ao gosto dos românticos. 150 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

e de um mercado em processo de modernização, como o ocorrido no período, na região do Vale do Paraíba.

As três irmãs figureiras: Luíza, Edith e Cândida. Fonte: arquivo do autor (1988).

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As figuras que resultaram dessa mudança, embora ainda identificadas pelo esmero do artífice popular, propiciaram o início de um processo de estandardização da produção das peças, que passou por um duplo movimento, nesse contexto. De um lado, a estética figurativa possibilitava a divisão e a especialização do trabalho do artesão, que passou a seguir um padrão médio em escala colaborativa, incluindo outras pessoas da família do artesão e vizinhos. Sobretudo, essa escala colaborativa acompanhava os fluxos e refluxos das encomendas feitas às figureiras, que se concentravam em períodos específicos, como o Natal (no caso de uso doméstico) e os períodos de feiras de artesanato e exposições (no caso de uso institucional). De outro, a mesma estética figurativa, em escala colaborativa, possibilitou ambientes de aprendizagem e difusão do ofício de figureiro, ampliando o número de artesãos em atuação, no bairro, gerando uma concorrência entre os mesmos que motivou a diversificação dos motivos figurativos produzidos nas peças à disposição, para um mercado consumidor crescente.

Figureiras produzindo em ambiente doméstico e escala colaborativa. Fonte: arquivo do autor (1987).

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Sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, essa diversificação foi se evidenciando no bairro e no meio institucional6. De tal diversificação foram se constituindo outros padrões de identificação da atividade, hoje caracterizada também nos moldes da arte espontânea (PROKOP, 1988) de um segmento de atores culturais que reelaboram figurativamente o cotidiano da vida coletiva, desde os registros da memória coletiva, na experiência do bairro, mas que extrapola suas configurações territoriais, movendo-se entre o passado e as demandas de um presente. Ou seja, tensionada entre a tradição e o mercado de consumo crescente, a atividade de figureiro desenvolveu-se ora justificada pela autenticidade das peças e a legitimidade de seus autores (autenticação e legitimação definidas pela atuação de experts institucionais, geralmente, que se encaminha para a patrimonialização cultural), ora justificada pela inovação de motivos e registros cotidianos modernizados, nas peças, mas ainda elaborados com materiais e técnicas ancestrais (tradição geralmente legitimada pelos próprios figureiros)7. Nos dois casos, porém, como sugere Spooner (2008) as justificativas se inserem em regimes de valor que se configuram na interação entre os produtores e o mercado. Já a versão coletada atualmente, junto às figureiras que atuam na Associação responsável pela “Casa do Figureiro”, segue outro registro. Segundo relato das mesmas, na segunda década do século XX, já existia o hábito, nessa área de Taubaté, de “fazer o presépio” nas festividades do Natal, para ser colocado em casa e comemorar a Natividade no interior da família estrita. Cada morador realizava seu próprio presépio, incluindo as personagens da Natividade. A argila para realizar as figuras do presépio era extraída na beira do rio Itaim, cujo leito corre próximo ao bairro e à rua Imaculada. Por isso, essa arte se desenvolveu especialmente entre esses moradores. Encontrar a argila de boa qualidade, coletá-la e levá-la para as casas comportava um trabalho bastante pesado. Além disso, reproduzir as estatuetas representava uma operação difícil e nem todos os habi6 Alguns registros de pesquisa elaborados por Lopes (1995) possibilitam pensar como essa diversificação acompanhou a necessária reorganização das pessoas do lugar, artesãos ou não, às exigências das técnicas de vida moderna. Assim, enquanto o pesquisador atuava como pesquisador e programador cultural do SESC de Taubaté, SP, entre 1985 e 1988, pôde acompanhar tal processo in loco. 7 Essa distinção na trajetória da atividade, ou do ofício de figureiro, pode ser relativizada, na medida em que a concepção de autenticidade atribuída ao ofício tradicional é uma concepção associada à modernidade (CORRÊA, 2016) e resultante da atuação de experts ligados ao mercado, a agências institucionais, ou a políticas públicas. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 153

tantes do bairro desenvolveram as habilidades para isso. Aqueles que desenvolveram essas capacidades (os “santeiros”) começaram a vender essas estatuetas para os outros. Alguns, não tendo condições para comprar os “santos”, começaram a colaborar com os santeiros, produzindo as figuras mais simples do presépio, como “vaquinhas”, “burrinhos”, “cadeirinhas”, etc. (as “figuras”), em troca dos produtos dos santeiros. Assim se desenvolveram dois tipos de artesanato, aquele dos santeiros e o dos “figureiros”. Com o tempo, até os figureiros aprenderam a fazer santos e pela palavra figureiros se passou a indicar artesãos capazes de fazer figuras e santos. Na década de 1960, os figureiros começaram a se dedicar a esse trabalho durante o ano todo, produzindo figuras e estatuetas não necessariamente ligadas ao adorno do presépio e tornando sua atividade uma verdadeira profissão. Esse é o período das “três Marias” (as três irmãs figureiras anteriormente citadas). Anita da Silva Sampaio, mãe da atual Presidente da associação de figureiros, era da mesma geração das três Marias e também era figureira. A família Sampaio e a família Santos são hoje as depositárias da tradição da arte dos figureiros, pois são as únicas que ainda têm integrantes na Associação. Além disso, todos os outros integrantes foram treinados e introduzidos nessa arte por Dona Isméria Santos (já Presidente) e por Josiane Sampaio (atual Presidente). A atual associação é a terceira. As primeiras foram criadas na época das “três Marias” (na década de 1960) e não se tratavam de associações especificamente de figureiros, mas de artesãos em geral. Quando essas associações não atuaram mais, os figureiros passaram a utilizar para a venda a casa de algum deles (por exemplo, a da “Dona” M. Luiza Santos). Em 1993, Dona Luiza obteve, graças a conhecimentos pessoais, que a prefeitura de Taubaté edificasse uma “casa” do artesanato. Na intenção do Prefeito, a casa deveria hospedar o trabalho e os produtos não somente da “arte popular” que trabalha com argila, mas também da que trabalha com madeira. Mas, após poucos anos, esse segundo tipo de artesãos desistira por falta de vendas e a casa foi sendo utilizada, até hoje, somente pelos figureiros. Em 1993 (ano de sua constituição) a Associação contava com 12 integrantes. Hoje eles são 35 (19 das famílias Sampaio e Santos), mais dois aprendizes. São de ambos os sexos, embora seja costume falar de “figureiras” pela proeminência das mulheres nesse trabalho. A produção de figuras é uma atividade profissional que representa a principal ou a única 154 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

fonte de renda desses artesãos. Embora haja um “laboratório” na Casa do Figureiro, os pesquisadores constataram que a maioria do trabalho era desenvolvida no domicílio dos artesãos: durante as visitas realizadas na pesquisa havia sempre poucos artesãos trabalhando no laboratório, embora a presidente destacasse que a associação se encontrava num período de grande pressão de encomendas pela proximidade do Natal (parte da produção tem por destino um consumidor religioso). As técnicas de trabalho e de comercialização Os figureiros trabalham com argila. No começo, os próprios figureiros procuravam a argila, retirando-a do fundo de buracos escavados na beira do rio Itaim, que passa próximo ao final da rua ”Imaculada Conceição”, lugar principal de moradia dos figureiros das primeiras gerações. Antes de trabalhar a argila, é precisa torná-la homogênea e mais fina. Num primeiro momento, isso foi feito batendo-a; depois começaram a ser usados moedores de carne. Segundo os depoimentos, esse trabalho era muito cansativo, “deixando os braços doloridos” até o ponto de tornar impossível executar os trabalhos finos de artesanato por todo o dia seguinte. A partir de 1996, três anos depois de sua formação, a Associação passou a comprar argila já “pronta”. Isso ocorreu porque a Prefeitura de Taubaté decretou a área do entorno do rio Itaim como de proteção ambiental, visando preservar os mananciais da bacia hidrográfica do Rio Paraíba, de onde se extrai água para abastecimento da cidade. Dessa forma, as restrições ambientais impostas por políticas públicas afetaram a atividade extrativista dos figureiros e introduziram um processo de reflexividade sobre suas interações com o contexto ambiental. Assim, premida pela necessidade da matéria-prima, a Associação passou a terceirizar e a justificar o fornecimento da argila. Conforme o relato de uma depoente, essa argila é “autorizada” (isto é, produzida de acordo com padrões de cuidado ambiental). Alega-se que isso permitiria “colaborar com o meio ambiente”, pois continuando a cavar buracos no rio para retirar a argila, chegaria um momento em que “o rio não ia mais sustentar”. Na realidade, essa solução só transfere o problema para a firma que produz e fornece a argila pronta. Aliás, enquanto o impacto ambiental gerado pela extração direta da argila por parte dos artesãos seria simples para monitorar e, talvez, para ser regulado de Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 155

forma autônoma e espontânea, aquele de uma grande firma que processa a argila em nível industrial se torna difícil de conhecer e controlar, senão quando alertando o aparato fiscalizador do Estado. Os figureiros trabalham a peça de argila umidificando esse material e, depois, modelando-a com os dedos e com a ajuda de um palito “de dente”, uma simples faca, ou outro talher, até a peça de argila tomar a forma desejada. Depois que a peça está pronta, eles a deixam secar um pouco à sombra, antes de levá-la ao sol para terminar de secar. Algumas peças são colocadas no forno, em lugar de serem levadas ao sol. A vantagem de queimar no forno consiste nas peças se tornarem, por esse tratamento, mais leves e adquirirem mais durabilidade. Alguns entrevistados defendem que, por isso mesmo, há clientes que preferem as peças secadas no forno, causando, assim, a tendência dos figureiros a escolher essa solução. Muitos deles, contudo, têm algum receio em colocar as figuras religiosas no forno por uma questão de devoção às imagens sagradas. Existe também um critério prático que condiciona a escolha do forno ou do sol: as figuras maiores, mais pesadas, vão com mais frequência ao forno, enquanto as menores se prestam mais a ser secadas ao sol. Uma vez bem secadas, cada figureiro pinta as peças conforme seu gosto e seu estilo particular, terminando, com isso, seu trabalho.

Figureira produzindo na Casa do Figureiro. Fonte: arquivo dos autores (2011).

Embora os figureiros respeitem alguns cânones da tradição da atividade, cada produto apresenta características que remetem a seu autor. 156 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Os entrevistados defendem que só olhando as figuras é possível entender quem foi o autor e que vários clientes possuem essa competência. Em Taubaté, os produtos são vendidos exclusivamente na Casa do Figureiro, mas é possível encontrá-los também em outras cidades, através de dois canais: o primeiro é dado pela venda de figuras da Associação aos lojistas de outras cidades; o segundo, por balcões de venda que a própria Associação coloca em vários mercados e feiras. De qualquer forma, a associação não tem um sistema de distribuição do produto para varejistas. Os donos das lojas se dirigem, como qualquer outro cliente, para os balcões da Casa do Figureiro ou dos mercados e das feiras, compram as figuras e as levam para suas lojas. Vinculação dos atores à Associação Cada figureiro vende seus próprios produtos, pela intermediação da Associação, e seus ganhos vêm exclusivamente dessa venda. Outrora, era possível se associar, depois de ter frequentado um curso de formação (não formalmente reconhecido) cujos professores foram as atuais Presidente (da família Sampaio) e Vice-presidente (da família Santos). Atualmente, a Associação não prevê novas afiliações, pois não há mais cursos. As famílias Sampaio e Santos parecem ter uma clara supremacia sobre os outros figureiros. Elas são as que gerenciam as relações externas da Associação e que decidem as estratégias. Portanto, elas têm mais visibilidade e possibilidade de serem conhecidas e seus produtos valorizados no mercado. Aliás, elas podem gozar da autoridade que vem de serem os “mestres” dos outros associados. Questões culturais e ambientais que condicionam a atividade dos figureiros Além da necessidade de terceirizar o fornecimento de argila, com o consequente processo de reflexividade que se instalou nas interações dos artesãos com a Associação e com o contexto ambiental8, as 8 O processo de reflexividade introduzido pela restrição ao extrativismo da argila gerou uma ressignificação dessa prática para um nível simbólico. Assim, no galpão da Casa do Figureiro que serve à produção das peças, foi colocado na parede um quadro com fotografia de um figureiro extraindo argila das margens do rio Itaim. Esse quadro compõe com outros, no mesmo local, uma narrativa imagética da tradição de trabalho dos figureiros. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 157

interações com o mercado de consumo cultural instalam outro tipo de reflexividade: os artesãos da Associação percebem que sua sobrevivência está ligada à capacidade de se diferenciar tanto do anonimato do artesanato, quanto da padronização dos produtos industriais. Nesse sentido, o fato de as peças produzidas serem únicas e assinadas pelos seus autores garante essa diferenciação no nível mais alto possível, que é o da unicidade. Mas, contemporaneamente, a associação deve estar no mercado e, não podendo contar com autores tão famosos (como acontece com a arte “erudita”), se apoia na tradição para impor uma padronização a seus “artistas populares”; uma padronização que, contudo, guarda elementos de forte diferenciação, para não se perder na multidão dos produtos industriais. Em outras palavras, a utilização de técnicas tradicionais preserva os figureiros do perigo de serem confundidos com os produtos industriais e a autoria (assinada) de cada peça os preserva do perigo de cair no anonimato do artesanato. Contudo, nesse jogo, a tradição se encontra numa posição difícil. De um lado, a autoria pode acabar por impelir o artista a sair dos cânones da tradição. De outro lado, a repetição regular de alguns clichês estéticos tradicionais leva as forças do mercado a planejar, através, por exemplo, do uso de “estampas”, a produção em série das figuras. A Associação experimentou essas opostas tendências de saída da tradição. A primeira é representada especialmente pelo caso de Décio Carvalho. Décio é um figureiro que fez a Escola de Arte e cursou Universidade. Ele começou a personalizar “demais” seus produtos, acompanhando suas inspirações e técnicas aprendidas na escola de arte, saindo parcialmente do estilo “tradicional dos figureiros”. Depoentes nos expuseram que Décio teve problemas por isso. Essas dificuldades foram confirmadas, embora não de forma aberta, pelo depoimento da Presidente da Associação. Ao final, Décio acabou por separar rigidamente seu trabalho e seus produtos de figureiro, de seu trabalho e produtos enquanto “escultor”9.

9 Essa separação gerou a possibilidade de diversificar sua trajetória. Assim, no momento em que finalizamos esse texto (outubro de 2016), Décio se encontra na Itália, realizando aperfeiçoamento em arte sacra. Sua movimentação pela Itália encontra-se registrada em sua página no Facebook. 158 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

Figureiro Décio expõe o forno doado pelo SEBRAE. Fonte: arquivo dos autores (2011).

De outro lado, a Associação tem problemas com o excesso de padronização que tende ao mercado. Um exemplo disso é dado por uma proposta de parceria oferecida à Associação pelo SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). O SEBRAE – pelo depoimento da Presidente – propôs aos artesãos da Associação organizarem-se em uma cooperativa e mudarem a organização da produção, no sentido de especializar cada figureiro a trabalhar uma parte somente da figura, com a peça passando de mão em mão para chegar, no final, ao produto acabado. Segundo a Presidente da Associação, ela entendeu muito bem o risco dessa proposta que o SEBRAE teria feito, percebeu que aquele tipo de organização do trabalho decretaria o fim da ligação que os figureiros têm com a tradição, relatando que foi por isso que a proposta foi recusada. Questionamentos conclusivos Os últimos relatos dos figureiros sobre as origens históricas de sua profissão não fazem menção ao papel desenvolvido pelas forças modernizantes. Isso, em contraste com os depoimentos dos próprios figureiros, nas décadas de 1980 e 1990, que destacavam esse papel. Eles deixavam entender que a especialização na produção (santo ou figura, pavão ou personagem da vida cotidiana, etc.) e o aprimoramento das técnicas figurativas (rostos bem delineados, perspectivas e simetrias Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 159

nas paisagens, etc.) foi impelido em boa parte pela expansão da demanda dos produtos. Foi o aumento da procura que introduziu uma concorrência entre os vários artistas, rumo à diferenciação marcante de tipologias de produção e, nela, um estilo individual. Hoje, os figureiros apresentam-se preocupados com uma narrativa que remete a relações tradicionais, locais, comunitárias e colaborativas. Essa preocupação permite compreender uma das consequências que a passagem do modo de regulação fordista para o da “acumulação flexível” (HARVEY, 1992) gerou nas relações sociais contemporâneas. Em nossa sociedade de consumo há uma contínua renovação da demanda mediante a acelerada mudança de gostos e de estilos de vida. Dessa forma, o capital escapa daquele seu perigo mortal representando pela saturação do mercado. Essa contínua obsolescência e renovação de gostos precisa de fontes culturais que alimentem o mecanismo. Nesse sentido, a vontade de resgate das culturas marginais aproveita essa inércia estrutural da sociedade de consumo contemporânea, para encontrar reconhecimento além dos nichos periféricos da sua formação. Os figureiros parecem ter consciência de que a “conveniência” para a sociedade e o mercado em investir recursos na cultura sinalizada pela sua produção está, hoje, nos valores diferenciais das tradições locais e do trabalho de tipo comunitário e doméstico (OLIVEIRA, 2007). Disso poderia decorrer a tendência deles em subestimar os elementos da concorrência, da racionalização nas técnicas de sua arte e a recusa de uma produção massificada.

Detalhe de sala de vendas da Casa do Figureiro, modernizada. Fonte: arquivo dos autores (2014).

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Contudo, com referência ao trabalho doméstico, é necessário lembrar que ele não é, por nada, um obstáculo à massificação. Pelo contrário, a indústria doméstica foi historicamente o passo intermediário entre o artesanato e o “sistema de fábrica”, pois representou o estágio preparatório da Revolução Industrial. Tomemos o caso da indústria têxtil. Quando, no século XVIII, os mercados de tecidos se ampliaram muito, o comerciante se tornou o intermediário obrigatório para vender os produtos do trabalho doméstico. Governando a demanda, ele acabou por governar também a produção. Sabia de quanto tecido precisaria para as vendas futuras. Começou, então, a comprar ele mesmo a matéria prima e a entregá-la aos vários artesãos, para as diferentes fases da produção (preparação, fiação, tecedura, acabamento). Ele se impôs como a única referência possível não somente para vender a mercadoria acabada, mas também para a passagem do produto de uma fase para outra do processo produtivo e, portanto, de um produtor para outro. O trabalhador domiciliar não tinha mais liberdade de produzir uma ou outra mercadoria, mas se condicionou a produzir obrigatoriamente um material que representava uma fase de um processo que se tornava estranho para ele. O valor de sua prestação começou a ser combinado previamente, adquirindo sempre mais a forma do salário. O comerciante podia comissionar os trabalhos também a produtores territorialmente distantes, mas mais baratos, e se tornou sempre mais frequentemente o proprietário das cottages e dos instrumentos utilizados, que dava em aluguel aos trabalhadores dessa indústria doméstica (MANTOUX, 1960: 40-53; LANDES, 1994: 52-53). A propriedade dos meios de produção, a organização do trabalho e a mercadoria se estranharam do produtor, que adquiriu as faces do operário manufatureiro. O que historicamente aconteceu com a indústria doméstica foi que, em presença de um aumento relativamente repentino da demanda, ela caiu sob o jogo do capital comercial e entrou em um processo que a levou para uma forma fabril de produção (HOBSBAWN, 1979: 52-54). Esse mecanismo se estabilizou como uma tensão constante na indústria doméstica, também depois da Revolução Industrial. Os figureiros agora escapam desse perigo porque vendem eles mesmos seus produtos e não entram nas redes comerciais. Eles intuem que, entregando-se aos circuitos da distribuição comercial (meio privilegiado para aumentar a demanda) a natureza da sua atividade poderia mudar totalmente, até encaminhando-a para uma divisão do trabalho que acabe não somente com o elemento artístico da produção, mas também com o artesanal. Nisso está o sentido Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 161

da recusa deles à proposta do SEBRAE de tornarem-se uma cooperativa. Contudo, eles buscam se inserir mais no mercado e expandir a demanda para seus produtos. Como alcançar esse objetivo guardando o marco de arte popular da atividade? Existe também, para os figureiros, outro problema estrutural ligado a expansão da demanda e que se relaciona com mecanismos psicossociais do consumo. Tais mecanismos são descritos por análises do marketing que se inspiram na Teoria da Distinção Optimal (Optimal Distinctiveness Theory) (BREWER, 1991, 1993; BREWER e MANZI, 1993; BREWER e WEBER, 1994), elaborada no campo da psicologia social. Essa teoria prevê que, em havendo interação de consumo entre dois grupos de tamanho desigual, isto é, existindo uma “maioria” e uma “minoria”, na maioria a insatisfação quanto às necessidades de diferenciação social são mais evidentes do que na minoria. Apoiando-se nessa ideia, Timmor e Katz-Navon (2008) propuseram o seguinte modelo no campo do consumo: para cada novo produto, um consumidor pode pertencer ou ao subgrupo dos que ainda não adotaram o produto, permanecendo ligado ao “velho produto” (in-group), ou ao subgrupo dos que já passaram a adotar esse novo produto (out-group). O consumidor adotará ou não o novo produto em função do tamanho psicologicamente percebido dos dois grupos e das contrastantes orientações do consumidor para a assimilação e a diferenciação social. No modelo, esse mecanismo toma a forma de um processo cíclico, sendo que a própria passagem dos consumidores para o out-group aumenta seu tamanho, impelindo consumidores com menor necessidade de diferenciação a optar pelo novo produto. Ao final do processo, os consumidores com alta necessidade de diferenciação já estão olhando para mais um novo produto, reinicializando assim o processo. Conforme essa hipótese teórica do Marketing, uma maior difusão impeliria os produtos dos figureiros para uma perda de diferenciação de seus consumidores. Essa perda poderia ser equilibrada somente por um novo produto com a mesma “marca” da velha. Mas essa ideia não representa uma estratégia possível para os figureiros. Eles gozam de dois marcos diferenciais: a tradição e, no interior dela, a autoria. A tradição é o que os torna reconhecíveis como grupo social e como atividade produtiva e, portanto, não pode ser abandonada. Se emergir uma novidade na produção, a mesma deveria permanecer na esteira do marco da tradição. Mas eles estão impossibilitados a passar de uma “linha” de produção para uma nova mediante a autoria. Em um sentido, as “figuras” são sempre novas, 162 | Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas

porque geradas pela espontaneidade (PROKOP, 1988) singular de cada figureiro; em outro, elas nunca são novas, porque a inovação se distribui de forma constante e casual nos produtos, conforme a capacidade inventiva dos figureiros, sem evidenciar uma passagem de uma “linha” para outra. Portanto, a sua produção não pode se encaixar nos processos cíclicos, ilustrados por Timmor e Katz-Navon, constituídos pela passagem contínua da inclusão para a diferenciação, de um produto que se torna velho para outro que aparece novo. Essa condição não é somente dos figureiros. Todos os grupos que foram desvalorizados pela cultura dominante e que, agora, justamente como consequência dessa marginalização, se encontram com um patrimônio disponível de diferenciação cultural, compartilham as dificuldades dos figureiros. Trata-se de grupos que estão no cerne daquele conceito da “conveniência da cultura” proposto por Yúdice (2006) e que representa uma das facetas da economia da “acumulação flexível” (HARVEY, 1992). Eles hoje tendem a aproveitar as diferenças acumuladas para avançar no caminho do processo identitário, em particular mediante performances artístico-culturais que ganhem um espaço econômico no circuito do consumo. O mercado (mas também os próprios grupos) tendem a enquadrar essas performances em modelos, para tornar reconhecíveis e destacáveis as diferenças. Embora qualquer enquadramento sempre gere identidades alternativas, essas também tendem, por sua vez, a ser enquadradas. Parece se propor aqui, mais uma vez, o modelo cíclico teorizado pelo marketing. Nesse caso, porém, não se trata da passagem de um produto para outro, com a possibilidade também de permanecer numa mesma marca, mas da passagem de um nicho cultural para o outro, que pode significar, inclusive, de um grupo social para o outro. Nesse tipo de dinâmica, não são “consumidos” e tornados “velhos” para o mercado somente os objetos, mas também as tradições e os processos identitários. No caso dos figureiros, a criatividade autoral pode contrastar a tendência para o enquadramento comercial. A saber, ela pode ajudar a tradição a guardar seu valor diferencial, sua “heterogeneidade” frente à “homogeneidade”, que tenderia a uma produção quando vira mercadoria (APPADURAI, 2008; KOPYTOFF, 2008). Mas ela pode também constituir um perigo para a manutenção daquela própria tradição, quando o individualismo criativo do artista popular (talvez, sob a pressão de exigências particulares de clientes e lojistas, ou de influências de agências institucionais) se afastar demais de determinados cânones. Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências coletivas | 163

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sobre os autores aloisio rusCheinsky: Professor titular do PPG Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Líder do Grupo de Pesquisa Sociedade e ambiente: Atores, conflitos e políticas ambientais. andré luiz da silva: Docente efetivo de Sociologia e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporâneas e docente do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Humano: Formação, Políticas e Práticas Sociais da Universidade de Taubaté. breno augusto souto maior fontes: Professor da Universidade Federal de Pernambuco vinculado ao Programa de Pós Graduação em Sociologia. E, têm orientado alunos de Graduação, Mestrado e Doutorado que executam atividades de pesquisa no NUCEM (Núcleo de Cidadania) do PPGS/UFPE e no Grupo de Pesquisa sobre Redes e Poder Local, que coordena. Carlos alberto máximo pimenta: Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). Também, coordena o Grupo de Pesquisa Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade. gabriela sCotto: Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da UFF (Campos dos Goytacazes) e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento regional, ambiente e políticas públicas (PPGDAP/UFF). josé marCio barros: Professor efetivo do PPG em Artes da UEMG e do PPG em Comunicação da PUC Minas. Professor colaborador do PPG em Cultura e Sociedade da UFBA, Também coordena o Observatório da Diversidade Cultural e o Programa Pensar e Agir com a Cultura e integra a Rede de Estudos em Políticas Culturais. josé rogério lopes: Professor Titular do PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, Professor do PPG em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins. É, também, editor da Revista Ciências Sociais Unisinos e Coordenador do LaPCAB-Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil. paolo totaro: Professor Adjunto e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-graduação em Sociologia - Instituto de Ciências Sociais (ICS), Universidade Federal de Alagoas (UFAL). rodrigo marques leistner: Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), lecionando na área de Sociologia e desenvolvendo pesquisas junto ao Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI).

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