Políticas da escrita, políticas do corpo nos Babilaques de Waly Salomão

May 28, 2017 | Autor: Augustto Cipriani | Categoria: Waly Salomão
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Políticas da escrita, políticas do corpo nos babilaques de Waly Salomão Augustto Corrêa Cipriani76

RESUMO: Em seu artigo “Museus e babilaques: um mundo de singulares afinidades”, de 2011, Roberto Said aponta como os babilaques de Waly Salomão reconfiguram a noção de coleção no cenário da cultura brasileira, ao propor uma (re)organização poética de objetos cotidianos, insignificantes, que então se fazem visíveis e adquirem um novo significado. Podemos notar, assim, baseando-nos nos estudos de Jacques Rancière, que há uma política ali engendrada, em que o gesto da escrita aparece ainda como um meio de resistência ao academicismo e à crítica de arte especializada, entendidos como dispositivos de censura, que fossilizam a produção e a recepção de arte. Resistência que não pode ser dissociada da situação política em que vivia o Brasil nos anos 1970, cuja violência fez vítima o próprio corpo de Waly Salomão. Buscamos, então, esboçar qual a política da escrita que se constrói nos babilaques, atentando-nos para o aspecto de resistência da criação artística. A hipótese com que trabalhamos é a de que Waly Salomão busca nos babilaques um meio de expressão artística em que corpo e escrita surgem como formas de resistência ao cerceamento comportamental e artístico de seu contexto histórico. PALAVRAS-CHAVE: Waly Salomão; Babilaques; política 76 Mestrando em Estudos Literários (PósLit/FALE/UFMG). 179

Para exposição de seus babilaques em 1979, Waly Salomão preparou um texto em que definia tais objetos artísticos enquanto “PERFORMANCE POÉTICO-VISUAL” (SALOMÃO, 2007. p. 21), apontando seu caráter intersticial, localizando-os entre as artes cênicas, as artes visuais e a literatura. Os babilaques abrem-se como um desafio à crítica, já que mesmo antes de se debruçar sobre seus significados, os estudiosos se perdem na profusão de possibilidades de demarcação do objeto: seriam babilaques os cadernos em que Waly inscrevia seus esboços de criação poética? Ou seria o processo de organização espacial de objetos e seu contato com o texto verbal? Ou, afinal, seriam as fotos tiradas durante esse processo? No catálogo da exposição Babilaques: alguns cristais clivados são apresentados diversos modos de olhar sobre os babilaques, dentre os quais se destacam: “poemas-objeto” para Maria Arlete Gonçalves (SALOMÃO, 2007. p. 5), “séries de fotografias” para Luciano Figueiredo (SALOMÃO, 2007. p. 10), “tradução visual mais adequada da leitura oral que o próprio Waly fazia de sua poesia” para Arnaldo Antunes (SALOMÃO, 2007. p. 35) e, por fim, “experiência de fusão da escrita com a plasticidade”, como o próprio Waly Salomão indica em 2002 (SALOMÃO, 2007. p. 61). Os babilaques, desse modo, como a primeira declaração de Waly já apresenta, embaralham as fronteiras entre os diferentes discursos; inserindo-se em um lugar intermediário, indefinido, e desestabilizando a fixidez das demarcações artísticas. Foi Armando Freitas Filho, em seu poema “Salmo”, ao ler os babilaques com 180

“olho-míssil” e não “olho-fóssil”, quem percebeu o traço desterritorializado dos babilaques e propôs o questionamento: “Aonde é o lugar onde os Babilaques?” (SALOMÃO, 2007. p. 97) Percebe-se, portanto, que a produção de Waly propõe uma reconfiguração de lugares, além de uma reflexão sobre a política do fazer artístico no Brasil, como aponta Roberto Said: Esse complexo jogo de imagens em que os discursos poético, crítico e fotográfico se suplementam, atando e desatando as linhas divisórias dos saberes sociais e artísticos, perturba a ordem dos significados, embaralhando, para dizer com Jacques Rancière, 'a partilha do sensível' na cena poética brasileira.” (SAID, 2011. p. 188)

A partir de tal constatação, o presente estudo se volta ao aspecto político dos babilaques, tendo como base os conceitos de “política da escrita” e “efeito de realidade” de Jacques Rancière, no intuito de mapear os procedimentos artísticos que Waly Salomão lança mão para combater o discurso hegemônico – intelectual ou artístico –, que refletia os mecanismo de censura da conjuntura política brasileira do momento. A política dos babilaques reside na proposição de uma nova partilha dos lugares na cultura brasileira e na exposição da necessidade do trânsito livre para a plena exploração dos limites artísticos. Em “Território Randômia”, por exemplo, Waly expõe uma noção dos babilaques e de sua apresentação ao público negando uma listagem de “leituras-fóssil” que se apoiariam em 181

marcos que delimitassem o objeto: “NÃO exibição de slides prestação de contas dos trabalhos realizados NÃO mostra dos poemas NÃO cadernos escritos NÃO” (SALOMÃO, 2007. p. 94). Ao enquadrar essa enumeração com duas negativas, é apresentado ao público que somente a definição pelo negativo é capaz de explicar o babilaque, ou seja trata-se de um objeto que escapa das (de)limitações artísticas. O título do peça, com sua caligrafia que se expande pela página e demarca uma cartografia do aleatório, ao lado de um recorte de uma fotografia na qual Mick Jagger dirige um chute para a câmera, cria uma imagem irônica da demarcação dos lugares. A ironia reside no absurdo de definir visualmente um território aleatório ou circunscrever o gesto do vocalista, conhecido por suas performances corporais, dentro de grossas linhas vermelhas. A alusão à Rondônia, por fim, região que em 1975 ainda preservava sua condição de território, configurando, portanto, um lugar fronteiriço e marginal tanto no que tange aos limites geográficos do Brasil quanto à sua organização políticoadministrativa reflete próprio entre-lugar do babilaque. O território-babilaque, instalando-se momentaneamente pelas metrópoles da América, espelha ainda a vivência de Waly Salomão, cujo trânsito estava diretamente associado à contingência política pós-AI5. Tendo sido produzidos durante os anos de 1975 a 1977 nas cidades de Nova Iorque, Salvador e Rio de Janeiro, os babilaques evidenciam o caráter errante da poética de Waly. No babilaque da série “Stride”, por exemplo, o olhar do artista 182

brasileiro exilado na cidade de Nova Iorque indica a possibilidade de encontro e embaralhamento dos lugares propiciados pelo cosmopolitismo da cidade: “New York City é uma big city que são países dentro dos quais continentes são in touch with” (SALOMÃO, 2007. p. 70). Waly simboliza ainda a catatonia de uma juventude que iniciava uma revolução nos modos de ser e de viver no Brasil do anos 1960 e que se viu proscrita pelos mecanismos de controle estatal da ditadura militar. A icônica canção “Vapor Barato”, de Waly Salomão e Jards Macalé, sintetiza o exílio e a errância de uma geração sem lugar, que não condizia com os preceitos morais e comportamentais da ditadura: “Oh, sim/ eu estou tão cansado/ mas não pra dizer/ que estou indo embora” (SALOMÃO, 1983, p. 149) A fuga nesse caso não pode ser compreendida como escapismo, ou seja, enquanto atitude apolítica. Tomado lado a lado da perspectiva adotada em “Stride”, o deslocamento que marca a poética de Waly propõe um novo modo de visibilidade, ao criar espaços na arte e na poesia contemporânea brasileira para o discurso de resistência do exilado. Para Jacques Rancière, a política se funda exatamente na criação de visibilidades e, para isso, o autor lança mão de vocábulos da ordem da espacialidade, indicando que o movimento de tornar algo visível parte de seu deslocamento e da construção de novos lugares: La actividad política es la que desplaza a un cuerpo del lugar que le estaba asignado o cambia el destino de un lugar, hace ver lo que no tenía razón para ser visto, hace escuchar un discurso allí donde solo el ruido tenía lugar, 183

hace escuchar como discurso lo que no era escuchado más que como ruido. (apud FREIRE, 2015. p. 129)

Os babilaques, assim como os poemas e canções de Waly Salomão, operam como meios de expressão e, principalmente, como meios de reorganização política dos discursos. A obra de Waly – iniciada durante o período no cárcere – é perpassada por um desejo de liberdade latente, que vê na escrita um meio possível de experimentação e (re)construção da realidade. Os babilaques, em específico, trazem consigo para a cena da poesia e da arte brasileira uma profusão de elementos ínfimos – como latas, folhas de palmeira, entulhos em geral – e enquadramentos estranhos e aparentemente imotivados, como a própria materialidade do caderno que se alia ainda a um pá de remo ou um arranjo visual de folhas de palmeiras, por exemplo. Esses elementos apontam para uma reorganização dos lugares da arte e da poesia brasileira, ou seja, uma outra partilha do sensível, nos termos de Jacques Rancière. A presença do elemento estranho e insignificante de sua poética permite continuar o paralelismo entre os babilaques e a teoria de Rancière tendo em vista a noção de “efeito de realidade”, que se volta à leitura de Roland Barthes sobre o realismo do século XIX: Existem somente a estrutura e o resíduo. Barthes identifica o último como um novo tipo de verossimilhança, a afirmação tautológica do real como real. Mas creio que a crítica dos campeões reacionários da velha verossimilhança via com mais acuidade o que estava em jogo: a invasão da 184

“democracia”, diziam eles: uma nova realidade social “insistente” implodindo toda estrutura adequada do enredo, qualquer concatenação correta das ações. Este é o ponto: Barthes analisa o “efeito de real” da perspectiva “modernista”, igualando modernidade literária, e seu significado político, com a purificação da estrutura do enredo, descartando as imagens parasíticas do “real”. Mas a literatura como configuração moderna da arte de escrever é justamente o oposto: ela é a supressão das fronteiras que delineiam o espaço dessa pureza. O que está em jogo neste “excesso” não é a oposição do singular e da estrutura, é o conflito entre duas distribuições do sensível. (RANCIÈRE, 2010. p. 86)

Esses elementos “menores” adentram, ainda, a produção de Waly Salomão não como mero ornamento, mas enquanto elemento poético e político, como aponta Roberto Said: “O processo com o qual arruma suas quinquilharias de escrita opera como um modo de decupar as palavras, potencializando-as de sentido. A oikonomia de Waly, 'leitor luterano de Drummond', revela-se igualmente sensível aos objetos menores.” (SAID, 2011. p. 187) Por fim, para dar fechamento ao diálogo com a teoria de Rancière, a possibilidade da literatura trazer à tona esses elementos menores e insignificantes, para o autor, está ligada ao estatuto democrático da escrita. Tal traço da escrita depende de seu estatuto órfão e independente com relação à voz do discurso. Nas palavras do autor: a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia legitimamente e o leva a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer. A perturbação teórica da escrita tem um nome político: chama-se democracia. A condição órfã do escrito 185

sem pai corresponde o estado de uma política sem pastor nem arquè. (RANCIÈRE, 1995. p, 9)

A democracia se erige, assim, a partir do momento em que o discurso se aparta de um pai e, em termos derridianos, opera contra o fonocentrismo da pensamento ocidental. A voz, nesse enquadramento teórico, reencena no campo discursivo a centralidade de poder e, enquanto presença, se liga ao conceito metafísico de alma. Isso posto, instaura-se um conflito entre tal mirada do aspecto político da voz e a oralidade presente nos babilaques de Waly Salomão. Como apontam a definição de Arnaldo Antunes anteriormente exposta ou a de Arto Lindsay que afirma que os babilaques são “poemas vocais [que engendram] relações múltiplas entre o visual e o verbal” (SALOMÃO, 2007. p. 81) a dicção vocal é um elemento central dos babilaques. Ao comentar a poesia de Allen Ginsberg, por exemplo, Waly toma para si a missão poética que o poeta novaiorquino já havia tomado de Walt Whitman, de “alargamento do ritmo respiratório” da poesia, em que “todos os aspectos da vida social e da realidade erótica transformavam o poema em um 'campo de ação', veiculando o fluxo vivo da experiência. Derrames seminais, injeções na veia da sensibilidade, empapuçamento de gírias. O ouvido esperto de uma aparelhagem de previsão do tempo captando as falas das ruas.” (SALOMÃO, 2005. p. 124-125)

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Faz-se necessário, portanto, delimitar qual a política dos babilaques – uma política da escrita que opera de modo diverso da descrita por Jacques Rancière. Para isso, deve-se traçar uma leitura suplementar do conceito de democracia literária que possibilite perceber a função política da voz na escrita de Waly Salomão. Para isso, primeiramente, deve-se compreender que a voz que perpassa os babilaques de Waly Salomão, ao contrário da concepção trabalhada por Rancière, é uma emanação de um corpo – um corpo que escreve e compõe o corpo da escrita. Não se trata da voz do discurso, que lhe dá autoridade e forma, mas, ao contrário, tratase da voz corporal que se inscreve visualmente nos babilaques, jogando e experimentando formas do fazer artístico, através de jogos com cores, espacializações, caligrafias diversas etc. A voz indica o corpo de que é origem e se expande a partir dele, como aponta Paul Zumthor (ZUMTHOR, 2010. p. 12), e, no caso da poesia de Waly, apresenta seu corpo a partir da “potência da voz corpórea que o impregna e o movimenta, fazendo-o verdadeiramente existir junto, mas não dentro, à visualidade diagramada da página, aspirando à condição de música” (ORNELLAS, 2008. p. 135). Desse modo, a hipótese que se apresenta neste estudo é a de que se trata de uma resistência do corpo que se manifesta nos babilaques por meio da oralidade e que, desse modo, estabelece um nova política. A voz encarnada enquanto letra se apresenta nos babilaques sob a forma de repetições gaguejantes, no jogo de 187

palavras e no uso de expressões em inglês, tiradas das ruas de Manhattan. No babilaque “Brasilly”, de 1976, por exemplo, as falas das ruas americanas compõem o “monstruário” de personagens de um roteiro “rated-X”, em que se friccionam, como personagens de um filme perverso/pervertido, a polidez e a cordialidade do americano (“Miss Have a Nice Week-end” e “Mr and Mrs See You Later) e seus preconceitos e exoticismos sobre corpos do outro (“Lady Cockroach La Cucaracha” e “Big Bitch Fat Fag”). Waly retraça, nessa obra, as vozes da América de Whitman e Ginsberg ao esboçar um peça pornô em que os corpos de explorados e exploradores do cenário estadunidense configurariam “personagens em busca dum autor”, a partir do qual essas relações de abuso dos corpos poderiam ser reencenadas ou revertidas em cena. Ao mesclar, no título, seu nome e sua nacionalidade, Waly se insere na cena enquanto corpo explorado – brasileiro, exilado, “Papagaya Brasilyca” – em busca de um autor que reescreva a história de abuso dos corpos minoritários, que dominavam a cena política tanto no Brasil quanto nos EUA. (SALOMÃO, 2007. p. 92). Aliada à presença da voz, nos babilaques “Contrutivista Tabaréu” e “Logbook” o próprio corpo de Waly também se faz presente, já que há a necessidade de segurar o caderno para que ele mantenha a posição para o registro fotográfico. Suas mãos e braços entram em cena e escancaram o processo criativo, a montagem dos babilaques. Como afirma, Roberto Said:

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A arqueologia da linguagem empreendida por Waly expõe, portanto, os fósseis de sua composição. Todo o processo da escrita - “caixão de lixo ou de arquivo” – é elevado à condição de produto final. O caderno de notas, entendido como resto do ato criativo, torna-se o próprio objeto de criação. […] Ao migrar da página à rua, ao perder o estatuto de esboço para ser apresentado como arte-final, ao se afirmar como coisa entre coisas, o poema babilaque instaura uma outra dinâmica de ressignificação. (SAID, 2011. p. 187)

A aparição do corpo do artista indica que essa exposição do processo criativo deve ser entendida, ainda, enquanto gesto corporal. Jean-Luc Nancy, em seu livro Corpus, comenta que o corpo toca a escrita nas suas extremidades, essa “excrição” do corpo ocorrendo “ao longo do bordo, do limite, da ponta, da extremidade da escrita, [onde] só acontece isso [tocar o corpo].” (NANCY, 2000. p. 11). É exatamente a periferia da escrita que Waly traz à tona nos babilaques, seja na aparição de seu corpo, na exposição dos objetos de composição – como as canetas em “Under the bare tree” – ou ainda no tema de seus textos, voltados muitas vezes ao processo de criação ou exposição dos babilaques. Por exemplo, o texto de “Construtivista Tabaréu”, de 1977, a série mais longa de babilaques, aparenta ser o esboço da apresentação que Waly fez em Curitiba no mesmo ano: “Escolhi este nome para o evento Walecture Walestra com projeção dos slides b-a-b-i-l-a-q-u-e-s-” (SALOMÃO, 2007. p. 38). Ao captar fotograficamente esse texto em diferentes lugares – na grama, entre pedras e na porta de um carro – Waly faz durar sua apresentação – a primeira projeção 189

pública dos babilaques – e a desloca temporal e espacialmente. Waly, ao invés de produzir um ensaio ou um artigo de sua projeção, suplanta a efemeridade de sua apresentação expondo seus bastidores e esboços, explorando o traço da inconclusividade que marca sua obra. O fato de o processo de composição se mostrar escancarado confirma essa noção de inacabamento da obra que Waly Salomão sempre retoma em seus poemas e babilaques. Em “Mondrian Barato” o inacabamento se torna explícito e se mostra enquanto resistência ao academicismo: PRAZER DE ESCREVER por entre e CONTRA os GUSANOS d'ALIBANIA por entre e CONTRA bacharéis formando formados SCHOLARS professores univers universitários críticos de arte críticos artístas sindicalizados malícia against BULLSHITTING pelo INAUGURAL contra o ACUMULATIVO acumulado mesmo principalmente a acumulação de sapiência – cúmulo da comilância ANTIARQUIVISTASSSSS pelo NOTEBOOK caderno de apontamentos NOT BOOK o inconcluído inconclusivo inconclusível o nunca inteiramente gerado que se geragerageraexagera nunca era (SALOMÃO, 2007. p. 66)

Nesse babilaque em específico, a noção política se volta ao tom acusativo e aponta o pensamento acadêmico como um mal a ser combatido. Apesar da escrita de Waly Salomão ser repleta de referências do cânone literário e da tradição do pensamento ocidental, a acumulação de conhecimento e o arquivismo são apontados como métodos de censura do fazer artístico. Isso se dá porque as figuras do arquivo e da “acumulação de sapiência” 190

referidas no babilaque dizem respeito a um modo de conhecimento estanque e delimitador que era comum à academia da época. O arquivo e o conhecimento dos babilaques é o do NOTEBOOKNOT BOOK, ou seja, um caderno de anotações, não um livro acabado, engendrando um modo do (des)organização mais próxima à do trapeiro benjaminiano do que do catálogo de biblioteca. Os elementos que povoam os babilaques, desde os cadernos até as folhas de palmeira, se apresentam como restos da cultura, objetos menores e desestabilizadores que não cabem nas demarcações estéticas dos críticos e professores universitários da década de 1970. Os textos dos babilaques, ainda, carregados de uma oralidade desconsertante desafiam a discursividade e inauguram uma linguagem. Waly trabalha com o que restou de fora do pensamento vigente – seja do discurso acadêmico-conservador ou da esquerda militante – e inaugura um outro modo de política, uma política menor, do corpo. A política dos babilaques, assim, adiantam a discussão das “patrulhas ideológicas”, como discute Silviano Santiago ao apontar o nascimento de uma “cultura adversária” dentro da esquerda durante o processo de redemocratização (SANTIAGO, 2004. p. 136). Ao trazer o corpo para a discussão política, Waly retoma a proposta hippie de liberdade dos corpos, mas a reencena nos fins da ditadura brasileira, momento em que os corpos políticos que restaram começam a conclamar novamente sua autonomia. Sabe-se 191

que

o

surgimento

da

nova

esquerda

no

período

da

redemocratização provém de movimentos de artistas e intelectuais que propunham reivindicações – muitas vezes tomadas de discussões políticas que surgiam no exterior – que não se conformavam com as propostas dos partidos de esquerda. Dentre elas, destacamos aqui a questão do corpo, que foi deixada de lado pela esquerda exatamente por se ligar ao escapismo e ao pacifismo da cultura hippie americana, atividades contraculturais tidas como inofensivas. A liberdade dos corpos aparece na escrita de Waly entendendo o gesto da escrita como um gozo, como indica o “prazer de escrever” de “Mondrian Barato” ou, mais diretamente, como apresentado em um poema de Gigolô de Bibelôs: minha disposição poética??? AMAR a página enquanto CARNE numa espécie perversa de FODA (SALOMÃO, 1983. p. 171)

A proposta de combate moral e comportamental na obra de Waly se diferencia do discurso hippie por se inserir em uma contingência política de repressão estatal, tornando visível e possível o corpo no contexto de violência e tortura. Para Paulo Henriques Britto, a aproximação e o descompasso entre essas duas culturas é o que marca a “geração pós-tropicalista”, cujos traços

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podemos perceber na primeira poesia de Waly e em algumas de suas letras de música: A indignação ideológica dos engajados e a crítica social irônica dos tropicalistas dão lugar a uma postura de desencantamento e desânimo. No exato momento em que uma parcela da juventude de classe média urbana brasileira adota os cabelos longos e trajes coloridos que assinalam a identificação com a “nação Woodstock” do primeiro mundo, alguns dos mais significativos músicos populares do período produzem um punhado de canções que, longe de tematizar o amor livre, o psicodelismo ou a contestação do sistema político, privilegiam temas como o medo, a solidão, a derrota, o exílio, a loucura. (BRITTO, 2002)

Tendo sido produzidos em Nova Iorque, os babilaques substituem esse traço sombrio por uma postura mais combativa e inventiva, buscando novas possibilidades criativas. A autorreferência que marca os babilaques indicam as tentativas e êxitos de trilhar novos caminhos estéticos para a expressão que contemple o prazer de produzir arte. O distanciamento da realidade nacional propiciou a Waly refletir sobre os rumos de sua produção e os modos com que sua escrita pudesse pensar a arte no Brasil; ou seja, a partir de seu deslocamento geográfico, Waly pôde vislumbrar a reorganização dos lugares que os babilaques operam na cultura brasileira. A política dos babilaques, por fim, propõe uma desterritorialização, um resgate da oralidade que dá visibilidade ao corpo e opera um questionamento dos lugares na cultura brasileira. Assim, dentre as divergentes explicações do que seriam os 193

babilaques, talvez a mais acertada seja aquela relacionada ao vocabulário policial, corruptela de badulaques, que designava o conjunto de documentos e pertences que um indivíduo carrega consigo. Isso porque os babilaques são o que Waly tem para mostrar, são seu trabalho exposto. Bem mais que os documentos e pertences que ele poderia carregar consigo, os babilaques identificam Waly Salomão, sua política, seu corpo.

REFERÊNCIAS: BRITTO, Paulo Henriques. “A temática noturna no rock póstropicalista”. In: NAVES, Santuza Cambraia; DUARTE, Paulo Sérgio (orgs.). Do Samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume-dumará, 2002. Disponível em: . FREIRE, Raúl Rodríguez. La literatura (im)possible: Bolaño e los fines de la literatura. In:______________. Sin retorno: variaciones sobre archivo y narrativa latinoamericana. Adrogué: La cebra, 2015. p. 97-153. NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Passagens, 2000. ORNELLAS, Sandro. Waly Salomão e o teatro do corpo. Ipotesi. Juiz de Fora, v. 12, n. 2, p. 129 – 143, Julho - Dezembro, 2008. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 194

________________. O efeito de realidade e a política da ficção. Novos estudos Cebrap. São Paulo, n. 86, mar. 2010. p. 75-90. SAID, Roberto. Museus e babilaques: um mundo de singulares afinidades. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (Orgs.). Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 176-191. SALOMÃO, Waly. Armarinho de miudezas. Ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

______________. Babilaques: alguns cristais clivados. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria e Kabuki Produções Culturais, 2007. SANTIAGO, Silviano. A democratização no Brasil (1979 – 1981): cultura versus arte. In: ______________. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 134 – 149. ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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