Políticas de clima como vetor estruturante da integração de políticas setoriais
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Políticas de clima como vetor estruturante da integração de políticas setoriais Texto apresentado ao Painel: Interações entre as políticas públicas e a agenda das mudanças climáticas na América Latina, do Encontro da ANPPAS 2015 – Brasília, 19/5/2015
Marcel Bursztyn
Professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável Universidade de Brasília
Introdução O debate sobre a mudança climática configura um espaço de interesse para o tratamento de temas mais gerais, como a regulação, as políticas públicas e o planejamento, além da própria questão do clima. A despeito de uma persistente corrente de pesquisas, discursos e decisões que têm como fundamento a negação do caráter antropogênico de tal mudança, os sucessivos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática -‐ IPCC e a publicação de estudos cada vez mais sólidos têm ampliado o grau de certeza quanto a esse tema. Um testemunho disso é a mobilização da comunidade internacional em torno de acordos e protocolos que contribuam para enfrentar as situações de vulnerabilidade, criar mecanismos de adaptação e promover ações voltadas à mitigação (no sentido de redução das causas do problema, no longo prazo). Como resultado, as estruturas de governo (e de governança) nacionais também refletem a tendência à institucionalização de ações regulatórias voltadas ao enfrentamento da mudança climática. Trata-‐se de um processo que se assemelha ao que ocorreu ao longo dos anos 1970 e 1980, quando o debate internacional e algumas experiências nacionais de enfrentamento dos desafios inerentes à gestão ambiental inspiraram uma maré de criação de organismos e de definição de políticas voltadas ao meio ambiente. O objetivo deste texto, ainda na forma de um ensaio, é discutir as limitações inerentes à adoção da questão climática como prioridade de políticas públicas em escala nacional. Ao mesmo tempo, trata o tema como um espaço de oportunidade para que se considere a integração de políticas setoriais como via para a retomada do planejamento como estratégia de aumento da efetividade da função reguladora do Estado e de redução de efeitos contraditórios dos diversos campos de intervenção pública. O foco é a experiência brasileira.
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A questão climática ganha status de prioridade política A questão climática já estava presentes no conjunto das políticas públicas de meio ambiente, desde a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei no. 6938/81). Mas essa presença se dava de forma indireta: ao se controlar emissões veiculares, visando reduzir a poluição do ar, há também um efeito sobre as emissões que provocam efeito estufa; ao se reduzir o uso de gases CFC, nos moldes estabelecidos pelo Protocolo de Montreal, contribui-‐se também para a redução dos efeitos climáticos negativos; ao se combater o desmatamento e criar áreas protegidas, melhora-‐se o balanço entre emissões e sequestro de CO2. Antes disso, vale assinalar, o Brasil já atuava há um século no enfrentamento dos efeitos das secas no semiárido nordestino. De forma explicita, no entanto, as políticas de clima no Brasil começam a se delinear ao final da primeira década do século atual. Alguns fatos merecem referência (Bursztyn & Bursztyn, 2013, 449-‐451): -‐
Em 2004, o Brasil submeteu sua Comunicação Nacional Inicial à Convenção do Clima, contendo o seu primeiro inventário, no qual são apresentados dados sobre emissão de gases de efeito estufa -‐ GEE do período de 1990 a 1994. -‐ Em junho de 2000, o governo federal criou o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas -‐ FBMC, presidido pelo Presidente da República e que tem como membros Ministros de Estado, presidentes de agências reguladoras, secretários estaduais de meio ambiente, representantes do setor empresarial, da sociedade civil, da academia e de organizações não governamentais1. -‐ Em 2007, foi instituído o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima – CIM, composto por dezessete órgãos federais e coordenado pela Casa Civil da Presidência da República e o seu Grupo Executivo – Gex, formado por oito ministérios e pelo FBMC, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente. Estes organismos têm como funções principais elaborar e implementar a Política Nacional sobre Mudança do Clima -‐ PNMC e o Plano Nacional sobre Mudança Climática. -‐ Em dezembro de 2008, foi lançado o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, que tem como objetivo o incentivo ao desenvolvimento e aprimoramento de ações de mitigação no Brasil, bem como a criação de condições internas para enfrentar os impactos negativos do aquecimento global. O plano foi concebido para passar por revisões e avaliações sazonais de resultados. Ele se estrutura em quatro eixos: oportunidades de mitigação; impactos, vulnerabilidade e adaptação; pesquisa e desenvolvimento; e educação, capacitação e comunicação. Entre as metas apresentadas destaca-‐se a redução em 80% do índice de desmatamento na Amazônia até 2020, a duplicação das áreas de florestas plantadas de 5,5 milhões de ha para 11 milhões de ha (sendo 2 milhões de ha com uso de espécies nativas). Há que se assinalar que tais metas são condicionadas à existência de recursos nacionais e internacionais novos e adicionais para fiscalização e reorientação econômica da região florestada. 1 http://www.forumclima.org.br/pt/home (acesso em 23/4/2015).
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Em novembro de 2009, foi promulgada a Lei no 12.187, que dispõe sobre a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, cujo objetivo é a redução de emissões antropogênicas e a remoção, por meio de sumidouros de GEE. Estabelece, também, que setores da economia devem assumir metas de emissões de GEE. O Art. 12 prevê uma meta de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre 36,1% e 38,9%, até o ano de 2020. Tais números foram apresentados como metas voluntárias do Brasil na COP-‐15, em Copenhagen, no ano de 2009. O dezembro de 2010, o Decreto no 7390 institui formalmente o Plano Nacional sobre Mudança do Clima2. Em seu Art. 1o, o Plano estabelece que “Os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos das políticas públicas e programas governamentais deverão, sempre que for aplicável, compatibilizar-‐se com os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima”. Essa determinação legal aponta para o imperativo de se integrar diferentes eixos de políticas públicas, conforme aponta o Art. 3o: I - Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal - PPCDAm; II - Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado - PPCerrado; III - Plano Decenal de Expansão de Energia - PDE; IV - Plano para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura; e V - Plano de Redução de Emissões da Siderurgia.
A questão climática adquire capilaridade no tecido institucional do Estado O ideia de se elaborar um Plano Nacional de Mudanças Climáticas, de 2008, foi uma decisão de caráter político. Pelos compromissos estabelecidos na Convenção-‐Quadro das Nações Unidas Sobre Mudanças Climáticas -‐ UNFCCC, o Brasil não precisaria reduzir suas emissões de GEE. Entretanto, pressões internas dos ambientalistas e a estratégia de mostrar à comunidade internacional o engajamento do País em ações de mitigação levaram o governo a reconhecer a sua responsabilidade em estabelecer instrumentos e metas voltados ao clima (May & Vinha, 2012). Tais ações são, portanto, consideradas como de caráter voluntário (NAMAs – Nationally Appropriate Mitigation Actions, ou Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas). O Plano deixa claro a determinação de que o enfretamento da mudança climática passa a ser um eixo integrador de política públicas, ao definir o envolvimento dos planos setoriais com o tema. Em alguns casos, como nas áreas de saúde, gestão de recursos hídricos e cidades, o envolvimento se daria por meio de ações de adaptação. Já os setores industrial, infraestrutura e floresta, dentre outros, teriam um envolvimento com a mitigação. A agropecuária, pela sua natureza, deveria atuar tanto em mitigação quanto em adaptação. 2 http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2010/decreto-‐7390-‐9-‐dezembro-‐2010-‐609643-‐
norma-‐pe.html (acesso em 23/4/2015).
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É nesse sentido que o Plano ABC – Agricultura de Baixo Carbono – é lançado, em 20103. Em seu detalhamento, o Plano ABC contempla sete programas: -‐ -‐ -‐ -‐ -‐ -‐ -‐
Recuperação de Pastagens Degradadas; Integração Lavoura-‐Pecuária-‐Floresta (iLPF) e Sistemas Agroflorestais (SAFs); Sistema Plantio Direto (SPD); Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN); Florestas Plantadas; Tratamento de Dejetos Animais; Adaptação às Mudanças Climáticas.
Outros setores se lançaram no esforço nacional para inserir, no âmbito de suas áreas de atuação, a preocupação com a mudança climática. Já em 2007, o Ministério da Ciência e Tecnologia (atualmente MCTI – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) criou a Rede Clima -‐ Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais – que tem como missão gerar e disseminar conhecimentos para que o Brasil possa responder aos desafios representados pelas causas e efeitos da mudança climática global. A Rede Clima conta atualmente com 15 subredes, distribuídas entre um amplo conjunto de universidades e institutos de pesquisa, no Brasil: Agricultura, Biodiversidade e Ecossistemas, Cidades e Urbanização, Desastres Naturais, Desenvolvimento Regional, Divulgação Científica, Economia, Energias Renováveis, Modelagem Climática, Oceanos, Recursos Hídricos, Saúde, Serviços Ambientais dos Ecossistemas, Usos da Terra e Zonas Costeiras4. Em 2013, o Ministério do Desenvolvimento Industrial e Comércio Exterior -‐ MDIC lançou o Plano Setorial de Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Indústria de Transformação5. Em 2014, com certo atraso em relação a outras áreas governamentais cujo foco de atuação é setorial, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que tem a missão esperada de prover subsídios para que os órgãos de governo definam suas ações de longo prazo, criou um Núcleo de Pensamento Estratégico sobre Mudança do Clima6. Os exemplos acima são apenas ilustrações da institucionalização do tema mudança climática no universo de organismos governamentais. O processo reproduz, de certa forma, o mesmo tipo de movimento em duplo sentido que ocorreu após a adoção da Política Nacional de Meio Ambiente, de 1981: no sentido vertical, por meio da criação de órgãos e o estabelecimento de políticas no nível dos estados federados e dos municípios; no sentido horizontal, mediante a internalização do tema em órgãos e políticas setoriais na escala federal. Como para a área ambiental em geral, o desafio maior da política do clima não é o da convergência das ações setoriais em relação ao enfrentamento da mudança http://www.agricultura.gov.br/desenvolvimento-‐sustentavel/plano-‐abc (acesso em 23/4/2015). 4 http://redeclima.ccst.inpe.br (acesso em 23/4/2015). 5 http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivos/dwnl_1371044607.pdf (acesso em 23/4/2015). 6 http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=6&data= 25/07/2014 (acesso em 23/4/2015). 3
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climática, mas sim o da integração (Bammer, 2013) das políticas. Contradições entre políticas de clima e outros eixos de políticas públicas Vista pela ótica da avaliação da efetividade das políticas públicas, o fato de se agregar mais um elemento norteador às políticas setoriais mediante determinação top-‐down, nos moldes como o estabelecido na PNMC, não é uma garantia de sucesso. Na prática, o emaranhado de missões, políticas e instrumentos com que lidam os muitos setores da regulação pública trazem o risco de que a nova prioridade (de caráter suprassetorial) fique confinada ao campo da retórica. São vários os exemplos que podem ilustrar essa assertiva. Ao mesmo tempo em que o Ministério da Agricultura assume um papel de vanguarda no enfrentamento da mudança climática, com o lançamento do Plano ABC, suas responsabilidades na promoção de outras prioridades nacionais, como aumentar a produção de commodities pelo agronegócio se reforça. Carros-‐chefes de um sistema econômico nacional cada vez mais dependente da exportação agropecuária, a soja, o milho, o algodão e a carne são atividades que, na prática, refletem prioridades reais das políticas públicas. Isso fica evidente ao se considerar, por exemplo, o aporte de financiamentos, a construção de infraestrutura e a adaptação dos instrumentos de política ambiental (como o Código Florestal) a situações reais de descumprimento prévio das normas. No âmbito da energia, ao mesmo tempo em que o Plano Nacional sobre Mudança do Clima define como meta em dez anos a ampliação em 11% do consumo interno de etanol (o que é um número bem conservador), pouco tem sido feito para integrar as políticas de clima, de energia e agrícola. Mendes & Rodrigues Filho (2012) mostram que entre 1990 e 2008 (portanto, antes da exploração de petróleo na camada do pré-‐sal do Brasil), o crescimento das emissões absolutas do setor petróleo e gás foi de 115%, o que representa um aumento anual de 8,2 milhões de tCO2e. Outras metas do mesmo Plano também parecem não caminhar no sentido de um cumprimento satisfatório, mesmo que ainda careçam de verificação por meio de ações de acompanhamento e avaliação. Dentre elas, destaca-‐se: -‐ -‐
dobrar a área de florestas plantadas, para 11 milhões de hectares em 2020, sendo 2 milhões de ha com uso de espécies nativas; e aumentar reciclagem de resíduos sólidos urbanos em 20% até 2015;
A política fundiária também apresenta pontos de contradição com a política do clima. Se, por um lado, há uma determinação em se reduzir o desmatamento na Amazônia em 80%, a proliferação de assentamentos promovidos pelo INCRA e a expansão do agronegócio na região representam, por outro lado, um contraponto que constrange a possibilidade de sucesso dessa meta. Yanay et al. (2015) estimam que 41% da área de florestas nos assentamentos da reforma agrária foram desmatados, até 2013. Le Torneau & Bursztyn (2010) também trataram do tema-‐tabu que são as contradições entre as políticas fundiária e ambiental na
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Amazônia. Os autores mostram que a estratégia adotada desde o período de regime militar até nossos dias, que têm como fundamento a transferência do “problema fundiário” de outras regiões para a Amazônia, acarreta inevitavelmente uma pressão sobre a floresta, com implicações, portanto, sobre a dinâmica do clima. A tese de Mesquita (2015) trata de outro foco de contradição entre políticas públicas. Ao estudar estratégias de segurança alimentar no semiárido nordestino, a autora aponta a relação entre a persistente vulnerabilidade dos agricultores familiares aos efeitos do clima e a fragilidade dos mesmos em participar como beneficiários do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA. A tese de Toledo (2014) faz um apanhado das experiências do Reino Unido e da Alemanha na integração das políticas de clima e de energia. Ao abordar o caso brasileiro, entretanto, o estudo aponta gargalos crônicos, essencialmente derivados da dificuldade em se compatibilizar missões e instrumentos setoriais com compromissos suprassetoriais. É relevante assinalar que a história do Brasil revela diversos exemplos da contradição entre eixos de políticas públicas, o que demonstra que esse não é um problema específico da política de clima. Dentre os exemplos, destaca-‐se: -‐ -‐ -‐ -‐ -‐ -‐ -‐
a estratégia de ocupação da ocupação da Amazônia x políticas de meio ambiente; a promoção da agricultura de exportação x políticas de meio ambiente x política industrial de agregação de valor aos recursos primários; os conflitos entre os usos múltiplos dos recursos hídricos; a política (ou a falta de política) habitacional urbana x política ambiental urbana e instrumentos de regulação (como zoneamento e códigos de postura); as políticas de proteção social (do tipo cash transfers) x políticas de inserção produtiva; as políticas "contra as secas", que resultam em criação de áreas de irrigação moderna (oásis) x iniciativas de convivência (como a construção de cisternas para armazenamento de água da chuva); políticas (ou estratégias) demográficas x pressão sobre a base de infraestrutura (a ocupação de Rondônia é um exemplo eloquente disso).
O desafio de se enfrentar a mudança climática expõe uma vulnerabilidade persistente das políticas públicas em geral: como passar da ação setorial para a convergência em torno de questões suprassetoriais e, principalmente, como assegurar que a convergência leve à integração. Ainda que esse seja um problema universal, ele é crítico no Brasil, onde um conjunto de circunstâncias amplia a fragilidade das instituições, gerando riscos de que as ações públicas resultem em jogo de soma zero ou mesmo negativa. Dentre os fatores que inibem a integração de políticas, destaca-‐se: -‐
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A cultura burocrática corporativa dos órgãos setoriais, que leva a práticas autocentradas e mesmo a conflitos institucionais com outros entes públicos, cujas missões sejam divergentes. A exigência de licenciamento ambiental de certos empreendimentos sempre aparece como exemplo de conflito entre instituições. A cultura política de loteamento de setores de atuação governamental 6
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entre aliados dos governos, o que leva a uma dissociação entre missão institucional e interesses particulares. A tradição de “captura” dos mecanismos de intervenção pública por grupos de interesse em escala local. O saldo de mais de um século de políticas de enfrentamento dos efeitos das secas no semiárido nordestino pelas elites tradicionais da região são um exemplo desse processo. A cooptação de agentes públicos por meio de intimidação ou corrupção, que leva ao não cumprimento de missões institucionais. A existência de um amplo conjunto de prioridades, muitas delas contraditórias entre si, como foi assinalado mais acima. A boa prática do planejamento ensina que, quando se tem muitas prioridades é por que não se tem prioridade. Hierarquizar, dentro de uma escala de importância, é responsabilidade dos governos. O “curtoprazismo”, como doença infantil da democracia. Governantes que têm como horizonte temporal de suas ações apenas a duração de seu mandato estão fadados a realizações limitadas. Constroem escolas, mas não melhoram a educação; atuam sobre consequências de problemas graves, mas não se interessam pelas suas causas.
O “curtoprazismo” diante de crises econômicas (e elas são frequentes...) é inimigo de mudanças estruturais. Sempre que as taxas de crescimento do PIB estão em níveis baixos e negativos, acaba prevalecendo uma conduta conservadora, de se privilegiar setores que apresentem algum dinamismo, mesmo que não sejam portadores de um futuro desejável. Exemplo disso é o recente aumento da participação do setor primário na economia brasileira, que expressa uma desindustrialização relativa. Entre retórica e prioridade Um dos desafios do processo de planejamento apontado por vasta literatura é o da definição de prioridades. É evidente que quanto mais complexa uma sociedade, maior é o número de questões que demandam regulação pública e o estabelecimento de estratégias de longo prazo. Entretanto, ainda que algumas dessas questões sejam prioridades no âmbito dos organismos encarregados de seu enfrentamento, nem todos têm o mesmo grau de relevância, quando confrontados com outros problemas. Como comparar, por exemplo, a prioridade para a saúde, em relação à de energia? Ao se tomar decisões sobre alocação de recursos (orçamento), qual deve ser o critério? Cada uma delas é relevante para seu respectivo ministério, mas em alguma instância decisória deve ser feita uma hierarquização. Práticas recentes de planejamento e de governança participativos apontam que uma ampliação do universo de atores envolvidos nas decisões, mediante inclusão de diferentes esferas setoriais e níveis de governo, além de representações da sociedade civil, tende a levar a um maior grau de acerto, legitimidade e efetividade. Mas há também riscos, típicos da ação da ação de lobbies, da falta de conhecimento de contextos mais amplos, de práticas clientelistas e da diluição da
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responsabilidade (accountability). O mesmo tipo de conflito entre missões de órgãos setoriais se reproduz internamente a essas instituições. Por exemplo, ensino fundamental e ensino técnico são prioridades na educação, mas qual deles é mais relevante como opção de política? A porteriori, sabe-‐se que a efetiva alocação de verbas é um bom termômetro. Mas sempre permanece latente a falta de definição a priori. Considerando os níveis de governo, a definição de prioridades é ainda mais complexa. O que é de interesse para o País como um todo pode não corresponder às expectativas de municípios. Um exemplo clássico é a criação de áreas protegidas, que são do interesse nacional, mas “imobilizam” espaços produtivos locais. Diante do contexto acima, a política de clima tende a reproduzir vícios e limitações que já acontecem em outros eixos de prioridades, como a própria busca do desenvolvimento sustentável: há avanços com a convergência (horizontal e vertical), mas permanecem impasses na integração. Nesse sentido, a retórica tende a anular a efetividade, e a banalização da “prioridade que não é prioritária” se torna o fundamento da inação ou de um jogo de faz-‐de-‐conta. Esse fenômeno foi estudado por Fonseca & Bursztyn (2009) para o caso da sustentabilidade, conceito que tende a ser assimilável por todos (ou quase todos), sem que isso implique necessariamente mudanças de práticas ou atitudes. Quando isso acontece, abre-‐se espaço para atores (governamentais ou não) que pegam carona no discurso politicamente correto (free-‐reiders do discurso), como modo de legitimar, pela retórica, práticas que contradizem o próprio conteúdo do discurso (Fonseca; Bursztyn & Allen, 2012).
Repensar o planejamento O grau de complexidade do enfrentamento da mudança climática, no âmbito das políticas públicas, remete ao debate sobre os fundamentos da própria teoria do planejamento. Pela sua natureza interdisciplinar, pelo seu caráter interinstitucional e pela sua abrangência internacional, o tema constitui um caso típico do que Rittel & Webber (1973) denominaram wicked problem (ou “problema pernicioso”, numa tradução livre). Diferentemente dos problemas “domesticáveis” ou “benignos”, os problemas do tipo wicked não são suscetíveis de uma solução absoluta, ou da definição de uma equação ou fórmula matemática que permita verificar se foi ou não resolvido, de maneira absoluta. A construção de uma ponte, por exemplo, demanda um conjunto de procedimentos e, se 99% das obras foram realizadas, faltando apenas os acessos, o empreendimento não está pronto e não tem utilidade. Reduzir as emissões de GEE demanda uma complexa teia de decisões e procedimentos. Mas se os resultados obtidos forem apenas 50% das metas previstas, não se pode concluir que houve fracasso total. Por outro lado, mesmo que a ponte seja 100% concluída (e, o grau de sucesso da obra seja 100%), isso não significa que os objetivos da construção sejam automaticamente atingidos. Se a ponte concluída
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não se justifica, por não levar a lugar algum, então ela foi um mau empreendimento e teria sido melhor (mais barato) se não tivesse atingido a plenitude da efetividade de sua construção. A solução de um problema matemático pode ser verdadeiro ou falso. A solução para um problema complexo, por outro lado, é relativa, e seu enfrentamento nos permite apenas considerar se é boa, ruim ou suficientemente boa. Ao se deparar com o estudo das formas de governança adotadas para o trato de desafios sociais, Grindle (2004 e 2007) percebeu que um conjunto de indicadores, cada vez mais numerosos e sofisticados, era utilizado como parâmetro para mensurar se os processos eram bons ou ruins (good governance ou bad governance). Sua conclusão foi que a lista de atributos necessários a se considerar tais processos como bons era tão ampla e crescente, que pouca utilidade tinham, na prática. O fato de que pela sua complexidade esses problemas não têm solução absoluta, levou a autora a sugerir o conceito de governança “suficientemente boa” (good enough governance). A ponte é um problema do tipo “domesticável”, na visão de Rittel & Webber (1975). Já a redução dos níveis de emissão de GEE é um problema “wicked”. Geralmente os problemas domesticáveis podem estar situados no âmbito de organismos setoriais. Os problemas de maior complexidade, por sua vez, tendem a demandar a ação coordenada de várias instituições. Por isso, são dependentes de algum tipo de estrutura suprassetorial e de decisões políticas que determinem o seu grau de prioridade. O desafio, para o planejamento, é compatibilizar as vantagens da especialização setorial com os imperativos de coordenação e de integração dos setores. Considerações finais A mudança climática entrou explicitamente na agenda das prioridades brasileiras há cerca de uma década, por via da definição de estratégias de ação envolvendo vários setores de governo. Isso tem levado à inclusão do tema em políticas setoriais, caracterizando um processo de convergência, mas não se pode afirmar, por ora, que tenha havido integração efetiva das políticas. Ainda há sinais evidentes de que no universo geral das políticas públicas persistem outras prioridades, que são antagônicas em relação às ações voltadas à redução das emissões de GEE. Por ora, ações de longo prazo visando a mitigar fatores que levem a mudança climática são apenas uma dentre muitas prioridades nacionais. O envolvimento de órgãos setoriais ajuda, mas não é o bastante para resolver os complexos desafios inerentes à redução das emissões. Questões imediatas, como geração de empregos, aumento das exportações, combate à inflação, redução do déficit de infraestrutura ou garantia de geração de energia também estão na agenda das prioridades e tendem a polarizar as atenções e legitimidade. O enfrentamento de tais questões pelas vias tradicionais pede neutralizar as iniciativas de mitigação, confinando a política do clima às práticas de adaptação.
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O descompasso entre política de clima e outras vertentes da regulação pública oportuniza a atualização de um debate que é tão antigo quanto a própria prática do planejamento: a coordenação entre as várias missões e responsabilidades do Estado. Planejar é priorizar. Isso não implica deixar de lado algumas questões, menos prementes. Mas implica, sim, hierarquizar e compatibilizar efeitos (diretos e indiretos; positivos e negativos). Para que se consiga evitar um jogo de soma negativa ou zero é preciso que haja integração dos diferentes eixos de políticas públicas.
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Referências Bibliográficas: Bammer, Gabriele. Disciplining Interdisciplinarity: Integration and Implementation Sciences for Researching Complex Real-‐World Problems. Canberra: ANU Press, 2013. Fonseca, I. F. ; Bursztyn, M. ; Allen, B. S. . Trivializing sustainability: Environmental governance and rhetorical free-‐riders in the Brazilian Amazon. Natural Resources Forum (Print), v. 36, p. 28-‐37, 2012. Fonseca, I. F. ; Bursztyn, M. A banalização da sustentabilidade: reflexões sobre governança ambiental em escala local. Sociedade e Estado (UnB. Impresso), v. 24, p. 17-‐ 46, 2009. Grindle, Merilee. Good enough governance revisited. Development Policy Review, v. 25, n. 5, p. 553-‐574, 2007. Grindle, Merilee. Good enough governance: poverty reduction and reform in developing countries. Governance: An International Journal of Policy, Administration, and Institutions, v. 17, n. 4, p. 525-‐548, 2004. Le Tourneau, François-‐Michel; Bursztyn, Marcel. Assentamentos rurais na Amazônia: contradições entre a política agrária e a política ambiental. Ambiente e Sociedade, Campinas, v. 13, n. 1, p. 111-‐130, 2010. May, Peter H; Vinha, Valéria da. Adaptação às mudanças climáticas no Brasil: o papel do investimento privado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 26, n. 74, p. 229-‐246, 2012. Mendes, Thiago de Araújo; Rodrigues-‐Filho, Saulo. Antes do pré-‐sal: emissões de gases de efeito estufa do setor de petróleo e gás no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 26, n. 74, p. 201-‐218, 2012. Mesquita, Patrícia dos Santos. Segurança Alimentar, Mudanças Climáticas e Proteção Social no Semiárido Brasileiro (Cariri, Ceará). 2015. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) -‐ Universidade de Brasília. Rittel, H. W. J., & Webber, M. M. Dilemmas in a general theory of planning. Policy Sciences, 4, p. 155–169, 1973. Toledo Filho, Demétrio Florentino de. Integração da política climática: segurança energética e proteção climática, lições das experiências da Alemanha e Reino Unido. 2014. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) -‐ Universidade de Brasília. Yanai, A.M.; Nogueira, E.M.; Fearnside, P.M.; Graça, P.M.L.A. Desmatamento e perda de carbono até 2013 em assentamentos rurais na Amazônia Legal. In: Anais XVII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto -‐ SBSR, João Pessoa-‐PB, Brasil, 25 a 29 de abril de 2015, INPE. Disponível em: http://www.dsr.inpe.br/sbsr2015/files/p0978.pdf (acesso em 23/4/2015).
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