POLÍTICAS DO CORPO E A DESAGREGAÇÃO DO PARENTESCO: O CASO DAS MÃES DE LEITE E DAS MÃES DE UMBIGO NA COMUNIDADE DE BOA VISTA DOS NEGROS

June 13, 2017 | Autor: A. Echazú Boschem... | Categoria: Brazilian Studies, Anthropology of Kinship, Public Health, Breastfeeding
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POlíticas do corpo e a desagregação do parentesco: o caso das mães de
leite e das mães de umbigo na comunidade de Boa Vista dos Negros


Ana Gretel Echazú Böschemeier

Neste artigo observamos um processo de construção das identidades
sociais fundadas no parentesco a partir de usos corporais específicos: o
parto e a amamentação. Para isso, analisamos a interação entre práticas
corporais no processo de criação e os nomes de mãe que são atribuídos às
mulheres com base em esquemas vernáculos do parentesco, a partir de laços
de leite e laços de umbigo. Também observamos como as políticas de saúde do
Estado brasileiro impactaram esses esquemas de parentesco por meio da
promoção do parto institucional e do aleitamento materno, fortalecendo a
família biológica e desagregando esses laços.
Os resultados apresentados aqui fazem parte da minha dissertação de
mestrado (Böschemeier, 2010), defendida dentro do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade Federal de Rio Grande do Norte.
Iniciada em julho de 2008, a pesquisa empírica foi desenvolvida entre
setembro de 2008 e fevereiro de 2010, contabilizando um total de oito
viagens à comunidade de Boa Vista. Tomando como foco a construção local das
identidades femininas, foi construída o que SCHEPER-HUGHES (1992) chama de
woman-centered ethnography, ou seja, uma etnografia centrada nas mulheres.
Essa aproximação privilegia a construção das mulheres como sujeitos com
múltiplos tipos de inserção nos esquemas de parentesco. No percurso da
pesquisa, foi realizada uma série de entrevistas, além da observação
participante de momentos ordinários e extraordinários na comunidade. Em
relação à dinâmica das entrevistas em campo, é preciso destacar que ela
começou sendo restrita e ampliou-se na medida em que nosso conhecimento das
redes sociais tornava-se maior. Isto ficou muito claro com a aplicação de
um survey, um questionário geral sobre temas identitários, sociais e
reprodutivos, que foi dirigido a trinta e sete mulheres adultas da
comunidade em meados de 2009. O survey permitiu alcançar uma aproximação
numérica das histórias reprodutivas das mulheres, dividindo-as por grupos
de idade, e considerando: nascimentos, partos e abortos; presença ou não de
parteira; local de moradia e de parto[1]. As informações fornecidas pelo
survey foram complementadas com entrevistas posteriores, as quais,
colocadas em diálogo, permitiram a realização de relatos centrados em
múltiplos egos. Tais relatos são aqui entendidos como histórias de família
(CABRAL; LIMA, 2005), e empregados como ferramenta metodológica que
permitiu contextualizar as trajetórias de vida das mulheres da comunidade.
Em várias situações tivemos a oportunidade de participar da conversa de
mulheres falando das próprias trajetórias vitais acompanhadas de outras
mulheres. Poderíamos dizer que se criava aí um espaço espontâneo para a
elaboração de relatos centrados em múltiplos egos, onde os depoimentos de
umas eram complementados pelos de outras. Experiências como essa permitiram
a possibilidade de acessar um "conhecimento de ego mais polifacetado"
(CABRAL; LIMA, 2005, p. 5), onde as vidas particulares eram narradas de
forma colaborativa.

UMA "GRANDE FAMÍLIA"

A comunidade de Boa Vista dos Negros encontra-se situada no sertão do
Rio Grande do Norte. Está localizada no município de Parelhas, na região do
Seridó, a uma distância de 250 km da cidade de Natal, e de 15 km da cidade
de Parelhas; esta última com quase vinte mil habitantes. A população de Boa
Vista dos Negros é de 125 pessoas aproximadamente. Dentre elas, 76 são
homens e 49 são mulheres. Elas se distribuem em 30 unidades domésticas. Os
habitantes de Boa Vista têm como principais atividades econômicas o
trabalho doméstico em cidades próximas, como as construções de peças de
cerâmica, as lavouras em agricultura de subsistência e a criação de animais
(gado, bodes, galinhas) para consumo próprio. Eles se reconhecem como "uma
grande família", e compartilham uma memória genealógica comum.
As pessoas da Boa Vista viveram uma série de mudanças através do
tempo; o que constitui a sua percepção desse laço social. Existe uma
relação muito forte entre laços de parentesco e práticas sócio-
reprodutivas, que colocam em diálogo constante os territórios difusos do
simbólico e da realidade vivida. Como se concebem as crianças, como é que
elas são criadas, o que as torna parte do grupo, como se constroem os elos
de pertencimento: a partir dessas práticas sócio-reprodutivas é que se
expressam fortemente as concepções de pertencimento e identidade na
comunidade. Foi realizada a análise das continuidades e rupturas nas
práticas sócio-reprodutivas das mulheres de Boa Vista no tempo, definindo
algumas tendências gerais a partir de uma divisão das mulheres em gerações,
desde aquelas que nasceram nas primeiras décadas do século XX (desde 1925)
até as que nasceram nas últimas décadas do mesmo século (a entrevistada
mais nova nasceu no final de 1980). Entende-se por práticas sócio-
reprodutivas o conjunto de práticas corporais relativos à anticoncepção,
gravidez, parto, amamentação e criação relativas a um grupo social
determinado, condicionadas em termos de gênero e geração (BLÁZQUEZ
RODRÍGUEZ, 2005). O significado dessas práticas vai além do espaço íntimo e
volúvel do interior das famílias, ao qual estamos acostumados a associá-
las. Tais práticas possuem uma forte significação social, pois estão
inseridas na rede de parentesco das pessoas intervenientes, e são
condicionadas por ações de tipo estatal, especialmente as políticas de
saúde.
Desta forma, determinadas práticas corporais constituem o processo de
criação de novas pessoas no grupo a partir do diálogo entre diferentes
imperativos sociais. No decorrer do texto destacaremos duas práticas
corporais, o parto e a amamentação, e duas categorias vernáculas de
parentesco, a mãe de peito e a mãe de umbigo, enfatizando as concepções
vernáculas a partir das quais esses corpos são lidos e construídos e suas
mudanças suscitadas a partir das políticas de Estado.

NOMES DE MÃE

Na comunidade, para alcançar o estatuto de serem mães, as mulheres não
precisam ter tido filhos biológicos. Há diversas formas nas quais se
expressam as maternidades na comunidade, e elas se observam no uso múltiplo
do termo mãe, e nas várias mães (e figuras associadas) que as pessoas
ganham durante as suas vidas. A questão das muitas mães da Boa Vista é
especialmente interessante para uma aproximação às políticas do corpo em
chave antropológica. Por uma parte, a maternidade é um processo que coloca
o corpo feminino em primeiro plano, pois é um elemento ativo na criação e
na nutrição dos novos sujeitos. Por outro lado, desde que a antropologia se
constituiu como disciplina, as genealogias do parentesco foram consideradas
como sistemas de símbolos que não se constituem somente a partir dos laços
biológicos. As genealogias se baseiam nas idéias de consubstancialidade de
um grupo, quer dizer, das atribuições de direitos e deveres aos sujeitos
sociais a partir da crença numa substância comum (HOLY, 1996). Dentro deste
esquema também são considerados os laços biológicos, que no Ocidente são os
referentes de consubstancialidade par excellence. Porém, existem muitas
outras formas de vínculo genealógico. Na Boa Vista, pudemos observar que as
substâncias que possibilitam o laço de parentesco entre as pessoas não
devem, necessariamente, ser transmitidas na procriação (nature kinship):
elas também podem ser transmitidas na criação (nurture kinship). O uso
polissêmico do termo mãe na comunidade permite observar a multiplicidade de
laços de parentesco possíveis no âmbito local e também rediscutir os usos
corporais que elas envolvem, dando-lhes um significado material e
subjetivamente vivido.
Assim, representando os laços construídos na procriação sob a
relação, culturalmente mediada, entre mães e filhos, observamos as
seguintes figuras sociais:
– São todos filhos de verdade, ou biológicos, ou filhos mesmo, aqueles
que foram gerados pela mesma mulher.
– São todos filhos de umbigo da mesma mulher aqueles que foram
atendidos por ela durante o parto.
– São todos filhos de peito aqueles que foram amamentados pela mesma
mulher.


Também nos laços genealogicamente traçados em consonância com a relação
mãe/filho a figura da madrinha, da avó materna e das tias é importante. A
complexidade de todas estas denominações mostra a densidade social dos
laços baseados no parentesco em nível local, coisa que constitui uma rede
de pertencimentos, lealdades e atitudes que tendem a durar a vida toda e a
guiar as ações dos sujeitos. Tal rede é, ao mesmo tempo, organizadora e
limitante. Uma pessoa qualquer, pelo fato de ter nascido em um determinado
ponto da rede social, goza de uma série de direitos e deveres
imprescritíveis: "kinship status is an ascribed status" (HOLY, 1996: 155)
cuja margem de negociação é limitada e se encontra, até certo ponto, fora
do controle das pessoas individuais. Nesse sentido, as relações de
parentesco são, ou tendem a ser, involuntárias, inalteráveis e permanentes
(HOLY, 1996: 156).
Porém, mesmo que parte do sentido da existência dos laços de parentesco
seja o seu princípio de indissolubilidade, eles não acontecem simplesmente,
mas precisam de um permanente investimento, que é cultural, quer dizer,
está ligado às práticas cotidianas ritualmente repetidas. Na comunidade
estudada, as pessoas transitam pelos diferentes espaços sociais a partir de
um esquema estriado por essas relações de parentesco, que lhes fornece
modelos a partir dos quais não só eles circulam, mas também circula
ativamente todo tipo de bens, cuidados e serviços.
Em Boa Vista, as mães biológicas são chamadas de mãe de parto, mãe
dadeira e também mãe biológica. A existência de mães de umbigo, mães de
peito, mães de criação, avós que são chamadas de mãe, madrinhas e tias
constitui uma rede social maior que complementa a identidade e as funções
desta mãe. A existência de tal rede, que se conforma num processo de
múltiplas nomeações ao longo da vida das mulheres, se relaciona ao fenômeno
de "fragmentação da maternidade"[2] (STONE, 2004), em que os deveres e
direitos atribuídos à função de mãe são deslocados da mãe biológica para
serem distribuídos numa rede social mais ampla de pessoas também
identificadas como mães. A multivocidade do termo também pode ser
entendida dentro do que Pina Cabral e Pedroso Lima (2005: 17) chamam de
"processos de expansão do parentesco", relacionados com estratégias de
criação de laços sociais a partir de vínculos genealogicamente orientados.


AS MÃES DE UMBIGO



O termo mãe de umbigo, mesmo que aplicado hoje também às parteiras
institucionais, é próprio do contexto do parto domiciliar. As mulheres de
Boa Vista têm lembranças muito ricas das velhas parteiras que assistiam às
mulheres na comunidade. Hoje não existem ali pessoas que prestem esse
serviço, mas o peso delas no imaginário social local é, até hoje, inegável.
Elas aparecem como figuras incansáveis, generosas, sempre prontas,
transitando entre grupos, ajudando as mulheres, cuidando das crianças,
dando conselhos, curando feridas; enfim, construindo entre as pessoas, por
meio de suas atividades, diferentes tipos de amálgamas sociais,
fortalecendo os vínculos de responsabilidade e cuidado, e possibilitando o
bem estar dos corpos em relação.
As parteiras domiciliares não tinham sempre o mesmo grau de
proximidade com as mulheres parturientes. É possível observar uma tendência
em valorizar uma parteira com maior proximidade social sobre outra que se
encontra mais afastada socialmente da mulher parturiente. Tais tendências
são descritas por Cabral e Lima (1995: 15) como "processos de definição dos
parentes". Em tais processos, pode ser imaginado um modelo de redes sociais
que se estende desde um centro de maior intimidade e proximidade para uma
periferia de laços de menor intimidade e proximidade. As parteiras
domiciliares, em termos gerais, pertenciam ao espaço de maior intimidade e
proximidade relativo às parturientes: usualmente, elas compartilhavam um
espaço em que os laços sociais eram densos: eram tias, primas, avós,
vizinhas. Porém, desde 1950, as mulheres da Boa Vista foram dar à luz nas
maternidades, onde eram atendidas por parteiras institucionais. Isto trouxe
uma forte reconfiguração dos vínculos sócio-reprodutivos. É interessante
observar que, mesmo que as parteiras institucionais estivessem
completamente fora da rede de parentesco mais próxima, elas eram – e ainda
são – introduzidas de alguma forma dentro desses espaços de pertencimento,
a partir da continuidade no uso da denominação mães de umbigo.
Desta forma, é possível observar uma forte tendência a criar vínculos
genealógicos entre parteiras e parturientes através do processo de
assistência ao parto. As parteiras podiam pertencer ou não à rede familiar,
mas elas começam a ter um lugar especial na rede genealógica da criança a
partir da sua função como assistentes do processo de parto e futuras mães
de umbigo das crianças. Já não há parteiras domiciliares em Boa Vista,
"esse povo acabou-se todinho", afirma Seu Manoel, neto de Mãe Gardina, a
parteira mais lembrada da comunidade. Todas as pessoas entrevistadas
consideravam que as parteiras eram muito sabidas e tinham "o dom de Deus
nas mãos". O trabalho delas era agradecido com comidas ou roupas usadas,
mas nem sempre: "era só o que a pessoa tinha, mas não era obrigação". As
parteiras ativavam um circuito de dom que envolvia as mulheres e as
crianças através de laços de parentesco. Se bem que a maternidade seja o
local mais freqüente dos partos nos dias atuais, mais da metade das
mulheres entrevistadas no survey nasceram em casa e ainda lembravam o nome
da sua própria parteira; o que indica a importância real de participação
destas mulheres sabidas na história e na identidade das pessoas.


AS MÃES DE PEITO



A noção de mãe de peito permite refletir sobre dinâmicas sócio-
reprodutivas locais que vinculam noções de abundância e generosidade ao
estabelecimento do laço corporal da amamentação entre mulheres e crianças.
Quem são as mães de peito? Na comunidade local, assim como em outros
contextos brasileiros (SEGATO, 1996), o termo é utilizado para denominar as
mulheres que amamentaram crianças que não foram da sua própria descendência
biológica. Tal prática, muito comum em diferentes culturas do mundo (MAHER,
1995) e que foi perseguida na Europa pela medicina higienista moderna
(YALOM, 1997) e depois pela medicina pública brasileira (MARQUES, 2000),
questiona radicalmente as concepções naturalistas do parentesco intrínsecas
ao modelo do aleitamento materno e a díade mãe/filho preconizados hoje
pelas políticas estatais de saúde pública.
Elza, que tinha 44 anos em 2010, nasceu no sítio Rajada, narra uma
história interessante a respeito. Ela conta que foi alimentada por dois
leites, o leite da sua mãe e o leite de uma vizinha, "que tinha tido um
filho que nasceu morto". Essa mulher, a partir do ato de tê-la amamentado,
virou a sua mãe de peito para a vida toda. Outro caso é o de Mariquinha,
que foi amamentada não só pela sua mãe, mas também por uma irmã da sua mãe,
cuja criança "não conseguia acabar o leite da mãe". Mariquinha mamou dela,
tia Teodora, como também o fez seu irmão. Essa pessoa tinha um lugar
diferente no universo das relações de Mariquinha. Ela não era só a sua tia,
mas também a sua mãe de peito: "mamãe ensinava a chamar mãe de peito".
A mãe de peito ou mãe de leite era uma figura geralmente próxima em
termos de parentesco ou vizinhança. Chamava-se assim a uma mulher que, por
diversos motivos (doenças, falta de leite da mãe biológica, ou simplesmente
ânimo de colaboração) alimentou com seu próprio leite uma criança que não
fazia parte da sua descendência biológica. Todas as mulheres de Boa Vista,
se não viveram pessoalmente essa situação, conheceram alguém que passou por
esse processo: um irmão/irmã, um sobrinho/sobrinha, um amigo/amiga ou um
próprio filho/a foram amamentados por mães de peito. Desde a perspectiva de
uma antropologia do corpo, o intercâmbio de leite entre as mulheres pode
ser entendido aqui como a entrega de um dom e um intercâmbio de favores,
que envolve usos corporais mediados por laços de parentesco e cuidado.
Filhos e filhas das mulheres da Boa Vista reconhecem que não existe
um vínculo biológico entre eles, mas o elo maternal é alimentado
diariamente sob um esquema mais geral de direitos e deveres entre mãe e
filho/filha cujas intensidades podem variar de acordo com o tipo específico
de laço (mãe biológica ou 'dadeira, mãe de criação, mãe de umbigo, mãe de
peito, madrinha), e que vão se tornando mais difusas na medida em que a
importância social do laço decresce. Em todos os casos, para o
estabelecimento deste tipo de relações, a categoria nativa de respeito é um
eixo central, que condiciona todo tipo de condutas. Uma expressão
particularmente interessante disto é a saudação da bença ("benção"), que
crianças e jovens pedem a pessoas das gerações mais velhas, a maneira de
gesto de cortesia. Por exemplo, ao se encontrarem na rua, France Iris, de
15 anos, com Preta, de 34, a sua madrinha, France Iris exclama: "madrinha,
me dê a bença?", ao que Preta responde: "Deus lhe abençoe, minha filha".
A maternidade, por não ser entendida como a expressão direta da
reprodução biológica, significa a possibilidade, simbólica e empírica, de
se constituir como mãe. A mulher não se investe como tal em solidão, mas a
partir do diálogo com os filhos/filhas que cria e com as outras mulheres da
rede social próxima, com as quais pode compartilhar seu estatuto maternal.
Nem toda mulher tem sido mãe biológica na Boa Vista (de fato, há alguns
casos de mulheres solteiras), mas todas as mulheres adultas fazem parte da
rede social a partir do exercício de algum dos tipos de papel maternal
descritos acima. Por sua vez, poderíamos dizer que não existe um estado
permanente de maternidade, que, uma vez atingido, se mostra inalterável.
Mesmo que estejam baseadas em fatos biológicos e em usos do corpo, as
identidades maternas são mutáveis. A sua importância se acentua ou reduz de
acordo com as mais diversas circunstâncias vitais, como nascimentos, mortes
e doenças próprias ou dos membros do grupo familiar.
As crianças gozam da densidade desses laços sociais que as conectam a
vários nódulos dentro da rede de afetos. A criança que teve várias mães é
uma criança que se encontra acolhida e contida por uma rede social de
pertencimento e cuidado. A rede de responsabilidades sociais
genealogicamente orientada a partir desses dois usos do termo mãe (de peito
e de umbigo) mostra-se como um importante fator de organização social
local, e sua dinâmica deve ser levada em conta se quisermos entender a
dinâmica das relações não só internas aos espaços domiciliares, mas também
no contexto político, econômico e cultural da comunidade de Boa Vista. A
rede de vínculos relativos à maternidade não só cria pautas para a
conformação das famílias, mas também possibilita a circulação das mulheres
fora delas, transcendendo os limites físicos da comunidade. De fato, hoje
existem imperativos de circulação bastante fortes na comunidade, sobretudo
dirigidos às mulheres. Muitas mulheres são chamadas cada vez com mais força
para participar da vida social, política e econômica das cidades. Para
muitas delas resulta estratégico contar com uma rede de mulheres próximas
que exerçam funções maternais e permitam a sua ausência temporária nas
casas.
Com efeito, uma das questões que atravessa a construção das gerações
é a negociação de significados ao redor da maternidade, suas práticas e
seus atributos. A mulher cuida, alimenta, nutre. Porém, pudemos observar
que, no caso das mulheres da comunidade da Boa Vista dos Negros, o espaço
da mulher/mãe não é só aquele da "casa", onde as mulheres costumam nutrir,
alimentar, consolar e fazer crescer; inclusive porque os limites entre
"casas" e "casas" são fortemente flexíveis. Identidades tais como as de mãe
de umbigo e mãe de peito configuram dinamicamente esses usos do espaço, e
definem seus limites e possibilidades de circulação.

O CORPO NO PARENTESCO: LAÇOS DE PEITO, LAÇOS DE UMBIGO


Em termos de processos corporais femininos orientados para a
reprodução biológica, outros estudos da área de antropologia, gênero e
reprodução têm definido uma série de instâncias que formam um continuum:
gravidez, parto, pós-parto, amamentação e, enfim, criação, constituída por
diferentes formas de cuidado e alimentação infantil (BLÁZQUEZ RODRÍGUEZ,
2005). Dentro desses processos corporais, há dois que nos parecem
particularmente interessantes, por estarem diretamente vinculados aos laços
genealógicos em foco, os de mãe de umbigo e mãe de peito. Esses processos
são o parto e a amamentação, que na comunidade em estudo consistem em
momentos da vida dotados de significação forte e perdurável na memória das
pessoas. Tais processos, encarnados no corpo das mulheres e também das
crianças, são produto de uma complexa relação entre processos biológicos,
estabelecimento de laços de cuidado entre pessoas, circulação de produtos
corporais e simbolismo relativo a esses produtos e processos corporais no
universo social.
De acordo com Marcel Mauss, há um aspecto muito interessante a ser
observado na incorporação de hábitos e costumes nos sujeitos sociais. Tal
aspecto é o das técnicas do corpo. Cada técnica do corpo pode ser
compreendida como um "ato tradicional eficaz" (MAUSS, 2003: 407), cuja
existência não é possível sem a sua repetição e a transmissão de uma
geração para a outra. Na Boa Vista, observamos uma série de repetições
costumeiras de gestos e disposições corporais, que podem ser transmitidas
entre gerações, mas que também podem ser modificadas por outras forças
sociais e políticas, como a ação do sistema de saúde.
Tradicionalmente, gravidez e pós-parto estiveram condicionados por uma
série de tabus e restrições que fazem com que as mulheres que transitam por
essas fases ganhem o estatuto transitório da liminaridade (TURNER, 1974;
FLEISCHER, 2007). Tanto a gravidez quanto o pós-parto podem ser
considerados como estados liminares, pois são instâncias especialmente
intensas e perigosas que definem a passagem da mulher para um novo momento
da sua trajetória vital, e que, por isso, apresentam uma série de cuidados
do corpo com um alto significado simbólico. Em Boa Vista, tais cuidados,
que podem tomar a forma de tabus, proibições ou simplesmente
condicionamentos, quando estudados, revelam uma relação muito forte não só
entre a mulher e a criança, mas também entre a mulher e seu contexto social
próximo e até com os animais, plantas e elementos do entorno natural. As
diferentes formas de praticar e viver o parto e o aleitamento expressam
formas específicas de conceber e vivenciar o corpo, tanto para a mulher
quanto para a criança. Esses esquemas locais de experiência do corpo
feminino e infantil serão, como veremos depois, colocados em questão a
partir das diferentes políticas do corpo lançadas desde 1970, com as
estratégias da Atenção Básica do sistema brasileiro de saúde.
Neste ponto, observaremos dois momentos relacionados com o ciclo de
vida das mulheres da comunidade, e as suas vinculações com as idéias sobre
o corpo. Tais momentos são o parto e a amamentação. No que segue, serão
apresentados em termos da sua relação simbólica com o corpo da mulher e da
criança, levando em consideração a dimensão corporal dos significados
social e culturalmente transmitidos.

LAÇO DE UMBIGO

"Se o menino nascer feio, vão dizer que foi por conta do parto.
Parto é aqui uma coisa muito importante".
Maria Benigna, parteira institucional.
Maternidade de Parelhas.


A forma de parir tem mudado significativamente a partir de meados do
século XX. Não só têm mudado as técnicas corporais, os cuidados do corpo da
mãe e da criança, mas também os espaços onde esse processo ocorre e as
pessoas que dele participam. A história da mudança na forma de nascer das
pessoas da Boa Vista está estreitamente vinculada à história da Maternidade
Graciliano Lordão, da cidade próxima de Parelhas, fundada em meados da
década de 1950. A maternidade, originalmente construída a partir da
iniciativa de uma organização de caridade local, foi desenvolvendo um
trabalho cada vez mais forte de cooptação das mulheres da região e de
medicalização das suas práticas reprodutivas. O finado doutor Lordão, cujo
nome hoje identifica a maternidade, foi uma figura chave nesse processo. A
parteira institucional Maria Benigna é outra figura importante. Ela tem
mais de 60 anos e trabalha há 48 na maternidade. Até hoje exerce a sua
função de parteira na instituição. Ela comenta: "eu tenho filhos em todos
os cantos, mas nenhum deles é meu filho biológico. Deus não quis, parece".
Benigna conta que, quando os médicos começaram a atender às mulheres
grávidas para dar a luz nas casas, "às vezes a situação era tão precária
que o médico tinha que botar uma mesa na sala, pois não tinha mesa".
Nos relatos de Benigna temos acesso a um registro privilegiado que se
refere à progressiva institucionalização da prática do parto horizontal,
próprio das concepções médicas modernas, em que o corpo da mulher
parturiente tende a ser visto como objeto passivo e colocado na mesa, à
disposição das mãos do médico. Por sua vez, Clotilde, de 84 anos, uma das
mulheres mais idosas da comunidade, possui outra experiência, completamente
diferente daquela do parto horizontal. Ela comenta que a maior diferença
entre parir em casa e parir na maternidade era, para ela, a posição do
corpo ao momento de parir: "Na maternidade, a gente fica na cama deitada.
Em casa, eu tinha um cepo de madeira, e era aí que sentava". Esse cepo era
uma espécie de cadeira oca, onde a criança era colocada quando nascia.
Depois era imediatamente levada para tomar banho e receber os cuidados
rotineiramente prescritos. Mas não é só no campo das técnicas do corpo, mas
também da circulação e mobilidade dos próprios corpos, que se imprimem as
diferenças entre o parto nas "casas" e o parto institucional. No parto nas
"casas", as parturientes ficavam fixas, enquanto toda uma rede de cuidados
se movimentava em torno delas: parteiras, vizinhos e parentes dirigiam-se à
casa para assistir ou visitar. Já no caso do parto institucional, são as
parturientes que se movimentam, enquanto a rede de cuidados permanece fixa,
centrada nos contornos das maternidades e dos hospitais.
As parteiras tradicionais da comunidade foram parte importante das
itinerâncias mantidas pelas mulheres de Boa Vista especialmente até meados
do século XX. Elas, como mulheres que transitavam entre "casas" e "casas",
podiam ser conhecidas como curiosas (segundo a expressão da parteira
institucional Maria Benigna), e também podem ser classificadas dentro do
conceito antropológico de mulheres bricoleuses, remetendo às mulheres que
tinham múltiplas atividades (curar, cuidar, acompanhar, limpar, cozinhar) e
gozavam de alta circulação e aceitação no contexto social local e regional
(VERDIER, 1979: 151). Apesar da sua alta mobilidade, as parteiras não
circulavam livremente, mas dentro de circuitos configurados pelas redes de
parentesco.
O parto em casa e o parto na maternidade, a partir de 1950, constituem
opções; mas com o tempo a opção de parir na maternidade vai se configurando
como única via[3]. Porém, pelo menos no âmbito discursivo, parir em casa se
apresenta ainda hoje como a melhor opção na fala de algumas entrevistadas.
O que fica claro é que dar à luz em um ou em outro espaço prefiguram
itinerários corporais bem diferentes para essas mulheres.
As mulheres que deram à luz em casa reproduziram o modelo de um espaço
fechado em que o corpo da parturiente deve ser cuidado e resguardado de uma
série de perigos do mundo natural e sobrenatural. Nesse modelo, valorizam-
se a intimidade e a proximidade, o cuidado e a afetividade próprios do
tratamento das parteiras e da rede familiar mais próxima. Já as mulheres
que deram à luz na maternidade ativaram concepções sobre a importância de
parir num espaço limpo, higiênico e confortável. Ali se valorizam a
eficiência, o atendimento, a sensação de segurança e o conforto. O fato de
dar à luz no hospital tem ganhado uma legitimidade crescente, à luz das
concepções médicas sobre saúde materno-infantil e da responsabilidade
materna pela diminuição das mortes infantis, própria dos discursos da saúde
pública. Desta forma, "a díade mãe – filho encontra-se enredada nos mais
diversos problemas morais" (MARQUES, 2000: 1) de maneira crescente,
enquanto vão se orientando as perspectivas locais sobre os usos do corpo, a
maternidade e a mortalidade infantis, para dar resposta a esses problemas.
Na fala de todas as entrevistadas, inclusive a daquelas que
reivindicam claramente a opção de parir no hospital, os valores sobre o que
deve ser um bom parto estão estritamente relacionados com a ajuda de uma
boa parteira. Na economia das emoções e no código particular de
sociabilidade próprios do contexto vernáculo, uma parteira boa é alguém que
"conversa com calma", "cuida bem da pessoa", "não é grossa" e ainda é
considerada um "amor de pessoa". Já a parteira ruim "obriga a não gritar e
gemer", é "grossa", "bruta" e "ignorante", é "desinteressada", é
"intrigante", tem um "jeito esquisito" e "pode deixar você morrer, e nem se
importar".
Outras qualidades da boa parteira já estão relacionadas com um dom
especial, que algumas qualificam como um dom de Deus, que faz com que elas
não só cumpram uma função de assistência no parto, mas também tenham a
capacidade de, ao fazê-lo, benzer as crianças na sua chegada no mundo
social. O vínculo da figura da parteira com a da rezadeira no sertão
seridoense é estreito, segundo demonstram os estudos de Santos (2007).
Assim, muitas rezadeiras também foram parteiras domiciliares e dizem que
elas têm "o dom de curar as dores do povo".
O circuito de dom que ativavam as parteiras domiciliares envolvia
troca de serviços (a assistência ao parto) por troca de presentes (roupas,
alimentos e até dinheiro) dentro de uma relação que se instaurava entre
parteira e criança para toda a vida. Diz-se de Mãe Gardina, a parteira
local mais afamada, que "tinha filhos por todo canto", e, sendo da
comunidade, também assistia partos em outras localidades.
As parteiras tradicionais, e ainda as parteiras institucionais da
maternidade de Parelhas, são chamadas de mães de umbigo das crianças que
receberam. Elas podem não ter tido filhos (e de fato, é comum observar
parteiras que não os tiveram), mas devem agir como se fossem mães, tanto
das crianças como das próprias mães, demonstrando carinho, cuidado e ânimo
de contenção. Ainda no contexto dos relatos das mulheres que deram à luz na
maternidade, as noções de eficiência e risco no sentido biomédico (AYRES,
2005) são praticamente inexistentes na avaliação do desempenho do trabalho
da parteira. O fato de ser uma "boa parteira" e "fazer as coisas direito"
está mais relacionado com o respeito a determinados códigos de conduta
afetiva do que com a preservação das normas de bio-segurança no processo de
atenção da mulher e da criança. As parteiras domiciliares, hoje
desaparecidas em sua função, estão presentes na memória das pessoas de Boa
Vista, e tal memória afetiva, vinculada a uma concepção muito positiva do
parto e das parteiras tradicionais, é a que fornece os esquemas de
avaliação das parteiras no contexto hospitalar.
Por outro lado, a idéia de uma opção entre parir em casa ou no
hospital permite pensar no conflito de práticas e valores desigualmente
posicionados na estrutura dos poderes relativos aos corpos femininos. As
opções de parir em casa ou no hospital são possibilidades culturalmente
informadas, mas elas não representam uma escolha verdadeiramente livre para
as mulheres. O fato de parir em casa ou no hospital é politicamente
condicionado, e envolve, segundo Fleischer (2006: 248), "destinos cheios de
sentidos que informam sobre a atuação das parteiras [...], sobre a relação
entre as parturientes e suas famílias, sobre o serviço oferecido pela saúde
oficial". No caso do parto nos hospitais, cada vez mais majoritário, tal
escolha não eliminou totalmente pontos fundamentais do sistema anterior de
crenças. Desta forma, como indica Fleischer, é importante observar que,
mesmo que as parteiras tenham desaparecido, "isto não quer dizer que as
concepções de corpo e de doença tenham mudado ou se medicalizado"
(FLEISCHER, 2006: 273). Um reflexo disso são as memórias vivas sobre as
parteiras e a explicação dos processos reprodutivos que encontramos hoje em
Boa Vista. Porém, a noção do parentesco através do laço de umbigo tem se
visto debilitada, pois as parteiras da maternidade Lordão nem sempre se
reconhecem como mães de umbigo das crianças que recebem, e, devido às
condições formais do seu trabalho hospitalar, recebem dezenas de crianças
semanalmente, coisa que dificulta o estabelecimento de um laço genealógico
tal como aquele que era criado entre parteiras tradicionais e mulheres da
comunidade.


LAÇO DE PEITO



A amamentação representa uma forma muito particular de estabelecimento
de um laço entre a mulher e a criança a partir dos corpos, por meio da
conexão nutrícia entre eles. Observaremos que, da mesma maneira que
acontece com a gravidez, o parto e o pós-parto, também há explicações
locais para falar do tempo de aleitamento, da disposição da criança para
ser amamentada e do desmame: técnicas do corpo cujo sentido não se esgota
no estritamente nutricional. Todos esses processos estão carregados de
sentidos locais, que enunciam uma forte cultura sobre o corpo vinculada com
cânones de abundância, generosidade e importância do laço social entre
pessoas que criam e pessoas que são criadas na comunidade de Boa Vista.
Temos observado o alto valor simbólico atribuído ao leite na
comunidade de Boa Vista. Ele aparece como imagem da abundância nos relatos
sobre a fome das mulheres mais velhas. Fome e abundância são metáforas
generativas (SCHEPER-HUGUES, 1992) a partir das quais se explicam as vidas
das pessoas, seus trânsitos, suas escolhas vitais, o passado e o presente.
É notável que a fome como metáfora tenha marcado o caráter social de tantos
homens e mulheres nordestinos: ela foi uma das imagens que participou mais
fortemente da construção do Nordeste como região dentro do contexto
brasileiro (ALBUQUERQUE JR, 2007).
A fome, para além das ideologias que se traçam sobre ela, é uma
experiência social vivida, cuja simbolização e respostas variam de
indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo (SCHEPER-HUGHES, 1992: 135).
A fome é relatada e atualizada pelas entrevistadas sobretudo em referência
às épocas de seca, onde havia uma significativa redução da variedade de
alimentos: "tinha épocas que não tinha nada que comer. Era no aperreio
mesmo", comenta Damiana de 68 anos. Naquela época, as pessoas alimentavam-
se de espécies do açude, raízes e frutos silvestres, como ostras, a
maniçoba e o cacto xiquexique. Essa fome, porém, não era crônica, mas
cíclica. Os relatos ilustram que os momentos de carência eram seguidos por
momentos de fartura de alimentos. Acreditamos que esse ciclo particular
fome-fartura configurou padrões particulares de resposta social que
influenciaram as concepções locais sobre o leite e a amamentação.
Assim, no imaginário local, o leite de mãe é uma das melhores armas
contra a fome durante o tempo de criação dos filhos. A amamentação
representa, durante o ano inteiro, um fluxo muito mais estável que o
ingresso de alimentos na dieta diária das crianças. É por isso que, numa
análise simbólica, o leite materno pode ser contemplado como o oposto
complementar da fome: no universo social restrito ao consumo infantil, se
fome é sinônimo de carência o leite materno é sinônimo de abundância.
Nas entrevistas com pessoas de Boa Vista, não só entre mulheres, mas
também entre homens, temos registrado um comentário freqüente: "é muito bom
gostar de leite". Isto se refere não só ao leite materno, mas também ao
leite de vaca. A importância do gado se revela aqui como constituinte da
cultura de criação de pequenos animais do sertão nordestino. O leite de
vaca e também de cabra são altamente valorizados e eles têm sido
utilizados, em muitos casos, complementando a amamentação das crianças
antes mesmo de completarem um ano de idade. Por sua vez, o leite de gado e
o leite de mãe se diferenciam em um ponto fundamental: o leite de gado pode
ser escasso, mas o leite materno é compreendido culturalmente como sendo
uma substância sempre abundante.
O leite de mãe está relacionado com a amamentação como um ato de
doação, cuja importância social se radica na relação produtiva entre o
valor simbólico do leite como produto e o laço que se estabelece durante o
período da amamentação. Em várias falas, percebe-se que a amamentação não é
concebida como mera questão de sobrevivência, mas sim como um momento chave
na construção de um laço social bem valorizado. Temos observado que
amamentar também está vinculado de certa forma com o prestígio social, a
partir do fato de que as crianças que têm sido amamentadas por mais tempo
gozam, geralmente, de uma rede social de apoio. Em Boa Vista, ter sido
amamentado com sucesso é exibido como uma marca de inserção social:
significa ter sido bem-vindo, cuidado e se encontrar inserido num espaço de
contenção. Nas memórias das mulheres isto é muito claro. As crianças que
foram amamentadas durante muito tempo são chamadas carinhosamente de
crianças desenganadas. É muito interessante observar como elas crescem com
a memória desse processo, lembrando-se das histórias relatadas por sua
própria mãe e por irmãos mais velhos. Suelma, de 34 anos, relatou-me: "a
agente de saúde fala que amamentar até seis meses é bom, mas a gente fica
aqui em casa, vai amamentando tudo quanto pode... ô bichinhos pra gostar de
mamar! Eles gostam mesmo". Maria Francisca, de 78 anos, sabe que foi
amamentada até os 3 anos: "mãe dizia que eu era muito desenganada, não
podia ir para o chão, nem na rede. Sim... Eu era muito querida, eram seis
homens, e mulher era só eu". Amamentar está relacionado com passar coisas
boas para as novas gerações através do leite, especialmente, o dom da
força, pois as crianças que não foram amamentadas são consideradas como
mais fracas e suscetíveis de contrair doenças.
O tempo considerado suficiente para amamentar é, segundo as mulheres
de Boa Vista, até depois dos dois anos de idade, tempo considerado uma
amamentação prolongada, segundo a opinião médica atual (PALMER, 1991;
ECHAZÚ BÖSCHEMEIER, 2007). Nesse contexto, o desmame é um momento
especialmente significativo, em que se colocam explicitamente os
significados sociais que circulam ao redor da mulher e da criança que é
amamentada. Os relatos do desmame aparecem aqui como um jogo de interesses
entre a criança e a sua mãe, ou, em termos simbólicos, entre o valor social
de ser amamentado e o cansaço (ou limite no ato de doação) da mãe. Para
Gilda (34 anos), desmamar seus filhos "era um aperto, um caso sério",
enquanto que Maria Francisca afirmava com um sorriso: "´tadinha da minha
mãe... eu quase que não deixo mais de mamar".
As mães de peito eram as mulheres que subsidiavam essa relação entre a
mãe e seu filho biológico, oferecendo o valorizado produto do leite de mãe
e criando, nesse ato, um novo vínculo de parentesco, o laço de peito.

O IMPACTO DESAGREGADOR DAS POLÍTICAS DE SAÚDE


As políticas de saúde são analisadas aqui em seu efeito específico de
desagregadoras de dois laços de parentesco tradicionalmente instituídos na
comunidade de Boa Vista, o laço de umbigo e o laço de peito. Esse não é um
processo isolado. Estudos sobre o parentesco em contextos capitalistas e
ocidentais têm observado que, com a ação do Estado, certas formas de
parentesco tendem a se diluir, enquanto outras tendem a ser fortalecidas
(BESTARD, 1998). Nos Estados ocidentais modernos, a família nuclear passa a
ser concebida como unidade moral privilegiada, e se baseia na criação dos
laços de parentesco a partir de dois vínculos específicos, esposo/esposa e
mãe/filho biológico que convivem sob um mesmo teto. As famílias assim
concebidas se constituíram em objeto privilegiado das intervenções do
sistema público de saúde brasileiro (MARQUES, 2000), a partir de inúmeras
políticas de saúde que podemos também definir como um tipo específico de
políticas do corpo (OLDFIELD ET AL, 2009).
Consideramos as políticas de saúde como políticas do corpo desde o
momento em que elas são direcionadas para o tratamento dos corpos e
organizam diferentes espaços de poder por meio da atribuição de diferentes
status ("sadio - doente", "normal – anormal") que ensejam possibilidades de
cura (informação, medicamentos, intervenções) por parte de agentes
especializados. As políticas de saúde agenciam o poder através do corpo,
agindo em escalas tanto materiais como representacionais.
Como temos observado, as políticas de saúde impactaram fortemente a
comunidade, sobretudo a partir da década de 1960, época na qual se funda a
maternidade da cidade próxima de Parelhas. Já na década de 1980 a
iniciativa capilarizada e descentralizadora da Estratégia Saúde da Família
(SUS/Ministério da Saúde) começa a atingir o interior das casas da Boa
Vista, e uma série de dispositivos de cuidado infantil são transmitidos às
mulheres-mães biológicas.
Na Estratégia Saúde da Família, a família é associada e fixada à
unidade doméstica. A fixação da família à unidade doméstica tem uma
importância estratégica na logística das intervenções sanitárias no espaço.
Isto faz dela uma entidade observável e localizável, e permite uma
intervenção mais precisa, com a fixação dos sujeitos nos espaços
necessários para a obtenção de dados por parte do sistema de saúde. Os
outros laços familiares (no sentido da família extensa) que perpassam os
contextos domésticos são negligenciados em tal aproximação. A concepção de
família como unidade doméstica invisibiliza a conexão estratégica de fato
existente entre espaços domiciliares dentro da comunidade, nos quais as
pessoas circulam criando e recriando redes de apoio e pertencimento. Também
negligencia aspectos da realidade cotidiana das pessoas relativos ao
caráter complexo dos sistemas locais de parentesco, o caráter lábil dos
laços afetivo-sexuais no interior das famílias, as novas formas de
conjugalidade e as mudanças que aconteceram no interior das famílias no
contexto brasileiro ao longo das últimas décadas.
Com a ampliação do acesso da população ao sistema de saúde se
intensificou o combate a duas práticas essenciais aos esquemas vernáculos
de parentesco: o parto domiciliar e a amamentação por parte de uma mulher
que não a mãe biológica. Essas duas práticas, cujo simbolismo repercutia na
rede de cuidados locais destinados às crianças, foram silenciadas e até
combatidas. Ao mesmo tempo, o aleitamento materno e o parto institucional
se constituem como dois dos mais importantes eixos das estratégias de
prevenção destas políticas. O parto institucional e o aleitamento materno
se constituem em medidas de tipo biopolítico que transformaram o corpo da
mãe e da criança em corpos com uma nova importância para o Estado
(FOUCAULT, 1978; LAZZARATTO, 2000). Uma mudança radical nas concepções e
práticas a respeito do parto e da mortalidade infantil se observa nos
resultados da comparação entre os índices de mortalidade infantil na
maternidade e nos partos domiciliares, com uma alta mortalidade infantil
nas casas (próxima de uma entre quatro crianças) e uma baixa mortalidade
infantil na instituição (próxima de uma entre cem)[4].
A parteira institucional Maria Benigna relata como foram os primeiros
tempos da Maternidade através de relatos vinculados à figura do Dr. Lordão.
Ele queria "trazer o mulherio" que povoava as serras para a maternidade.
Porém, no início era "aquela coisa, que todo mundo tinha medo", conta
Benigna. "Mas ele ia e trazia elas com seu próprio carro". Benigna diz
que: "no começo foi difícil, há sessenta anos era muito difícil" que as
mulheres fossem parir na maternidade. Mas a mudança foi radical: "hoje o
que é muito difícil é fazer um parto em casa". Por sua vez, a ênfase no
aleitamento materno (e não simplesmente amamentação) como prática ideal e
natural essencializa e naturaliza o vínculo mãe/filho a partir da
amamentação. Ao contrário da progressão temporal que indica uma tendência
decrescente do parto domiciliar concomitante com uma tendência crescente ao
parto no hospital ao longo do século, observa-se que não existe uma
tendência a amamentar menos tempo na medida em que nos aproximamos da
contemporaneidade. Nesse sentido, o parto no hospital e o declínio da
amamentação não são práticas correlativas. A amamentação como prática
vernácula e a amamentação como prática promovida pela saúde pública são
duas tendências que não entram em oposição, desde que se respeitem, do lado
das práticas vernáculas, duas condições: a amamentação deve ser entre uma
mãe e seu filho biológico (e com isso se prepara um combate silencioso à
figura tradicional das mães de leite) e deve ser regulada por determinadas
prescrições, como a de não amamentar por muito tempo (com isso, entra-se em
conflito com as práticas locais de amamentação prolongada)[5].
Pela natureza da intervenção, capilarizada e localizada, e pela sua
constante emissão, todas essas ações de atenção primária em termos de saúde
têm tido um impacto muito forte nas concepções sobre corporeidade e
processos corporais da comunidade. Foram as prescrições do modelo da
atenção primária que modificaram a prática vernácula do aleitamento, a
partir da definição da circulação do leite na díade mãe/filho e da
definição do tempo adequado para amamentar. A amamentação deve ter um
limite mínimo (seis meses) e um limite máximo (dois anos). Estas novas
concepções não se reproduziram automaticamente. De fato, observa-se que o
conhecimento e apropriação deste modelo sanitário não é homogêneo; existem
diferenças que podem ser delineadas tanto em termos de gerações quanto em
termos de capital social, fato que permitiria um acesso diferencial aos
serviços de saúde.
As entrevistadas mais novas tendem a assumir as regras e prescrições
corporais do modelo da atenção primária em saúde concordando com as
opiniões sobre as práticas de amamentação: deve-se amamentar até pelo menos
os seis meses de idade, e não ultrapassar o tempo da amamentação sugerido.
Elas tenderam a realizar a experiência corporal ditada pelas políticas de
saúde. Por outro lado, as mulheres mais velhas de Boa Vista têm amamentado
até os três ou quatro anos, sempre que esse processo não seja interrompido
por doenças próprias da mulher ou pela concepção de uma nova criança.
Assim, no uso social das prescrições médicas na comunidade de Boa Vista
observa-se uma diferença interna, que traça linhas de comportamento
distintivo entre mulheres mais novas e mais velhas.
Porém, as mulheres melhor posicionadas em termos de capital social
(entendido aqui como categoria que expressa um acesso diferencial aos
espaços sociais considerados legítimos) possuem um maior conhecimento e
acesso às concepções medicalizadas da amamentação. Aqui, o conhecimento das
prescrições sanitárias revela uma melhor educação e acesso e, com isso, uma
maior adequação ao cânone de cidadania exigido. Assim, observa-se que
existe um verdadeiro valor social no fato de aceder à cidadania a partir de
práticas como o aleitamento materno ou o parto hospitalar. Assim, a mulher
satisfaz as expectativas das políticas de saúde da população, e se torna,
como mãe biológica, a responsável pelas suas próprias crianças.
A diferença entre os espaços vernáculos de cuidado do corpo feminino e
infantil e os espaços médicos não se restringe aos usos corporais. Levando
em consideração que os usos corporais acontecem no contexto de
comportamentos socialmente prescritos, observa-se que as concepções sobre o
corpo feminino e infantil estão fixadas em esquemas de cuidado e
pertencimento, que por sua vez são delineados por redes sociais. A rede
social que se articula ao redor do termo mãe na comunidade é especialmente
interessante na compreensão destes processos.
A presente aproximação sobre o corpo não reflete sobre ele apenas em
termos da sua concretude, mas também em termos das identidades que ele
constrói e que são por ele construídas. Em Boa Vista, os processos
reprodutivos femininos estão fortemente ligados à rede de cuidados
feminina, e ela está organizada sob a multiplicidade de identidades sociais
da maternidade. Isso se reflete nas terminologias do parentesco usadas até
hoje na comunidade, que demonstram a complexidade inerente ao termo mãe,
denominação que se fragmenta e cujas variações correspondem a diferentes
usos corporais, responsabilidades e cuidados entre mulheres adultas e
crianças.

CONCLUSÃO

Neste artigo observamos os processos locais pelos quais a maternidade
se constitui enquanto processo socialmente constituído na comunidade da Boa
Vista dos Negros. Nela existe uma multiplicidade de figuras sociais
relativas ao termo mãe que desafiam a noção moderna do parentesco biológico
mãe – filho. Porém, essas figuras estão se transformando a partir da ação
específica das políticas do corpo impulsionadas pelo sistema de saúde,
especialmente a partir da Estratégia Saúde da Família. Observamos como a
figura da mãe de peito é diluída na promoção da prática corporal do
aleitamento materno, enquanto a figura da mãe de umbigo tende a ser
dissolvida na promoção da prática do parto hospitalar. Desta forma, as
políticas de saúde possuem um efeito intrínseco de desagregação das redes
de parentesco vernáculas, por meio da imposição do laço biológico mãe-filho
como eixo das suas intervenções. Com isso, tendem a ser invisibilizadas, e
ainda a desaparecer, as técnicas corporais que faziam com que as mulheres
amamentassem crianças que não eram da sua descendência biológica, ou
assistissem a vinda de novas crianças em partos domiciliares.
Os casos da mãe de peito e da mãe de umbigo constituem uma questão
de interesse para a antropologia do corpo, do gênero e da saúde: ainda que
as duas representem figuras secundárias da maternidade, elas reivindicam o
gesto eminentemente social dos vínculos do parentesco baseados nos corpos;
mas não nos corpos biológica e geneticamente determinados. Elas se baseiam
nos corpos conectados nutritivamente, a partir de sua participação nos atos
simbolicamente perduráveis do parto e da amamentação. Desta forma, tanto as
mães de peito quanto as mães de umbigo continuam a representar a expressão
da possibilidade social de gerar laços de cuidado e pertencimento que
transcendem os elos biológicos.
O presente artigo também propõe colocar sob um olhar crítico as
políticas de saúde administradas pelo Estado. Propomos que elas não
representam instrumentos ingênuos de melhoramento da realidade social. Elas
não atingem só os grupos sociais a partir do melhoramento de índices e
taxas de morbidade e mortalidade: também tendem a criar novos sujeitos e a
disciplinar os corpos a partir da imposição de determinadas concepções e
práticas, consideradas moralmente válidas. Porém, tais políticas não são
completamente inocentes, nem se aplicam sobre tábulas rasas: elas se
enfrentam com sujeitos que foram criados com base em um complexo conjunto
de idéias sobre a vida, o papel de cada pessoa na sua rede de relações
sociais, as possibilidades do corpo. Neste artigo, observou-se que as
políticas de saúde também podem ter impactos inesperados, como a
reconfiguração da rede de parentesco local, do universo normativo a partir
do qual as pessoas constroem o seu pertencimento ao grupo. A desagregação
da figura da mãe de peito e da mãe de umbigo a partir do impacto do parto
institucional e da promoção do aleitamento materno por parte do sistema de
saúde brasileiro são casos específicos que trazem elementos potencialmente
ricos para pensar as transformações e novas possibilidades de constituição
de futuras famílias potencialmente ricas em significado e densas em laços
afetivos.

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-----------------------
[1] Os grupos de idade, divididos de 10 em 10 anos, representam o marcador
biossocial relativo às gerações, entendendo geração como uma categoria de
pertencimento baseada na experiência inter-subjetiva da temporalidade
(BRITTO DA MOTTA, 1999; JELIN, 2002). A organização inicial dos casos em
grupos de idade apresenta a vantagem de fornecer um esquema fixo no qual
podem ser organizadas as pessoas. Isto não significa, é claro, o
pertencimento automático à mesma geração. O passo dos grupos de idade às
gerações se produz na análise dos diferentes produtos da pesquisa (survey,
entrevistas individuais, entrevistas coletivas e observação participante).
[2] O conceito de "fragmentação da maternidade" é elaborado por Stone
(2004) em seus estudos de parentesco para explicar as complexas situações
que advêm do uso das novas tecnologias reprodutivas, onde a noção de
concepção é separada da de nascimento, enquanto os embriões são separados
dos úteros pela intervenção médica nos corpos das mulheres. Aqui, há várias
mulheres que se constituem como mães da criança. A "fragmentação da
maternidade" nesse contexto é relativa ao uso de tecnologias biomédicas.
Porém, a "fragmentação da maternidade" proposta aqui está vinculada à
existência de várias mulheres que participam na criação das novas gerações,
que são chamadas de mãe ou termos relativos, e cuja importância social está
fortemente ligada a uma idéia de maternidade.
[3] Na análise das trajetórias reprodutivas das mulheres entrevistadas e
dos locais onde elas tiveram todos os seus filhos podem ser estruturados
três modelos, organizados de acordo com a assistência no parto: modelo da
atenção domiciliar, modelo da atenção na maternidade e modelo misto. De
acordo com os padrões observados, o modelo da atenção domiciliar é o único
na geração de mulheres nascidas em 1930, pois todas nasceram em casa. Já
como mães, e entre 1950 e 1970, aderiram ao modelo misto do local de
parição, parindo em alguns casos na maternidade e em outros em casa. As
filhas delas, a partir de 1970, e sobretudo as netas, entre 1980 e 2000,
pariram no hospital, exclusivamente. Assim, é possível observar uma
tendência dos partos acontecerem crescentemente no hospital. Na geração que
dá à luz entre 1950 e 1970 coexistem os dois modelos, o de parto domiciliar
e o de parto hospitalar.
[4] Fonte: Livro de atas da Maternidade Graciliano Lordão.
[5] Assim, Nemésia (46 anos), que é de Boa Vista e é formada em enfermagem,
afirma: "todas as mulheres da comunidade amamentaram. Até demais!". O
sentido desta noção de excesso é relativo aos cânones de preservação do
tempo adequado para amamentar: de acordo com as prescrições da saúde
pública, a prática local de amamentar mais de dois anos é considerada um
excesso.
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