POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E INCENTIVOS FISCAIS EM ÂMBITO ESTADUAL: BREVE COMPARATIVO ENTRE AS LEIS DO RIO DE JANEIRO, MINAS GERAIS E RIO GRANDE DO SUL

June 13, 2017 | Autor: Pedro Souza | Categoria: Políticas Culturais, Direitos Culturais, Incentivos Fiscais
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POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E INCENTIVOS FISCAIS EM ÂMBITO ESTADUAL: BREVE COMPARATIVO ENTRE AS LEIS DO RIO DE JANEIRO, MINAS GERAIS E RIO GRANDE DO SUL.

Pedro Bastos de Souza1

RESUMO: A presente pesquisa debate o papel das leis de incentivo estadual à cultura com base na renúncia de receitas tributárias em âmbito estadual. Apresenta um breve panorama evolutivo do papel do Estado na promoção de políticas culturais. Parte-se da premissa de que a cultura deve ser pensada não apenas sob o ângulo econômico, mas sob o aspecto simbólico e como indutora de cidadania. Realiza-se uma análise comparativa entre as leis estaduais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, buscando ressaltar os principais aspectos jurídicos trazidos pelas referidas normas. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, incentivos fiscais, leis estaduais. 1. INTRODUÇÃO O papel do Estado na garantia dos direitos culturais vai muito além da questão o acesso a bens de natureza artística apreciáveis economicamente. A formulação e implementação de políticas culturais deve levar em conta, necessariamente, o aspecto simbólico e de cidadania presentes nas mais diversas manifestações culturais. Com a Constituição Federal de 1988 já se forma uma moldura progressista e plural do que se espera da atuação do Estado em matéria de proteção dos bens culturais: pluralismo e diversidade são vetores essenciais neste sentido. Contraditoriamente, os movimentos neoliberais promoveram, desde então, um movimento de mercantilização da cultura, com a crença de que o mercado pode, por si só, fomentar o desenvolvimento cultural do país. O auge desta crença ocorre no governo Collor, com o rebaixamento do Ministério da Cultura a status de secretaria e com o fim da Embrafilme. Cada vez mais o Estado deixaria de investir em políticas culturais, o que traria concentração do mercado, elitização no acesso e esmaecimento de aspectos importantes da cultura popular e do patrimônio imaterial brasileiros. A sistemática de utilização de incentivos fiscais à cultura, por meio da renúncia de tributos, parece surgir como uma solução intermediária para este cenário. Embora represente o 1 Mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Advogado e Jornalista. Pesquisador Associado à UNIRIO – Grupo de Pesquisa CNPq Direito, Democracia e Desenvolvimento. Contato: [email protected]

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afastamento da atuação direta do Estado, ao mesmo tempo não se filia a um mecanismo de todo liberal, já que permanece o poder público como coordenador e regulador. É neste cenário que as leis de incentivo acabam por adquirir papel relevante, na medida em que permitem, de alguma forma, que o Estado continue atuando, ainda que de forma indireta, na promoção de políticas culturais. A partir de 2003, tendo em conta um conceito antropológico de cultura e uma gestão mais participativa nas políticas culturais, a ação estatal adquire um viés mais ativo. A utilização de leis de incentivo fiscal como único (ou hegemônico) modelo de promoção à cultura gera distorções e não permite grandes avanços na democratização da produção, acesso e proteção a bens culturais. Contudo, se conjugada com outros mecanismos e coordenada com políticas em nível macro, representa importante papel no fomento à cultura. Se durante os anos 1990 e início de 2000 o governo federal concentrava uma parte muito significativa de ações com base incentivos fiscais na área de cultura, hoje os Estados têm, cada vez mais, levado a cabo este tipo de ação. Com base em dados fornecidos pelas Secretarias Estaduais de Cultura, observa-se que em Minas Gerais os projetos patrocinados somaram R$ 275 milhões entre 2011 e 2014. No Rio de Janeiro, entre 2009 e 2012 o valor foi ainda maior: mais de 309 milhões. Já o Rio Grande do Sul, desde 2010, busca diversificar o modo de produção de políticas públicas na área cultural, por meio do sistema Pró-cultura, conjugando os incentivos fiscais com o financiamento via Fundo de Apoio à Cultura e ações diretas, assemelhando-se, desta forma, com o modelo adotado pelo Ministério da Cultura em nível federal, em que se destaca o Programa Cultura Viva. O objetivo da presente pesquisa é realizar um breve estudo comparativo sobre as legislações estaduais referentes ao fomento à cultura por meio de incentivos fiscais. Busca-se não apenas realizar um estudo descritivo das leis, mas levar em conta também a evolução do papel do Estado na promoção de políticas de cultura e na garantia de direitos culturais, tendo como base os artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Tomou-se como objeto de análise os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, tendo como critério metodológico o fato de serem entes federativos com significativa produção cultural e em que as leis de incentivo tem se consolidado como instrumento relevante no financiamento à cultura, seja em número de ações, seja em volume de recursos. 2. POLÍTICAS PÚBLICAS E CULTURA: PAPEL DO ESTADO E OS INCENTIVOS FISCAIS

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Não se pode falar em incentivo à cultura sem inserir a discussão em um tema mais amplo: o das políticas públicas de cultura. É preciso ter de modo claro o que se entende por cultura e qual o contexto em que insere a participação do Estado. Como bem lembrado por Botelho (2001, p.77), o financiamento à cultura deve ser determinado pela política e não o contrário. Mesmo quando se transferem responsabilidades para o setor privado, isso não exclui o papel regulador do Estado, uma vez que se está tratando de renúncia fiscal De acordo com a Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais da UNESCO (1982) o conceito de cultura é definido como: “[...] o conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abarca, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”, conceito este que se mostra afinado com a acepção antropológica de cultura. Conforme Malinowski (1968:37), o conceito de cultura envolve manifestações as mais diversas, incluindo bens de consumo, as normas que regem os diferentes grupos sociais, as ideias e as artes, as crenças e os costumes. Em culturas simples ou complexas, estão envolvidos aspectos humanos, materiais e espirituais. Marés (1993:23) comenta que a novidade mais importante trazida com a Constituição Federal de 1988, foi alterar o conceito de bens integrantes do patrimônio cultural passando a considerar que são aqueles ‘portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira’. Pela primeira vez no Brasil foi reconhecida, em texto legal, a diversidade cultural brasileira, que em conseqüência passou a ser protegida e enaltecida, passando a ter relevância jurídica os valores populares, indígenas e afrobrasileiros. As manifestações artísticas – ou culturais em sentido estrito – estão incluídas neste complexo de relações e representam o próprio sentimento da sociedade em relação a si própria. A Constituição Brasileira reconhece o pluralismo cultural da sociedade e Democratização do acesso à cultura e valorização da diversidade étnica e regional são vetores constitucionais expressos. Conforme previsto no art. 216, §3º, a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. (SOUZA, 2014, p.1). Para que um sistema efetivo de financiamento às atividades culturais funcione é obrigatório que se estabeleça uma política pública, em que parcerias – tanto entre áreas de governo, num plano horizontal, quanto entre as três instâncias administrativas, num plano

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vertical – são fundamentais para conquistar novas fontes privadas de financiamento. Conseqüentemente, para que os incentivos fiscais funcionem é necessário que haja um clima de recepção favorável a eles na sociedade e, nesse sentido, a postura do governo com relação à cultura e às artes é fundamental. (BOTELHO, 2001, p.78) Por meio da formulação de uma política cultural que se poderá hierarquizar as prioridades e pensar numa política de diversificação de fontes de financiamento, quadro dentro do qual uma lei de benefício fiscal é um dos aspectos possíveis. (BOTELHO, 2001, p.78) Qualificado como fenômeno de extrafiscalidade, o incentivo fiscal é conceituado por Nascimento (2013, p. 6) como “um estímulo estatal, mediante a renúncia de receitas, para que os agentes econômicos tenham comportamento distinto daquele que adotariam naturalmente, com base exclusiva na lógica empresarial, atendendo também aos reclames do interesse público.” Quais seriam estes “reclames” do interesse público? Decerto que devem espelhar o tratamento constitucional dado à cultura, nos artigos 215 e 216, que são densificados, por exemplo, em nível federal pelo Plano Nacional de Cultura, pelo PROCULTURA e por outros programas setoriais. O mesmo se pode falar das normas estaduais, que, a par de ressaltarem as peculiaridades e aspectos regionais, devem estar em consonância com um modo de pensar a cultura que esteja conectado com as demais unidades da federação e mesmo com as visões mais progressistas no plano internacional. Cite-se, neste sentido, a Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais (UNESCO, 1982), a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial (2003), a Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO, 2005). Segundo Nascimento (2013, p.13), o emprego dos incentivos fiscais como instrumento de políticas públicas não somente está autorizado pelo ordenamento constitucional brasileiro, como também é incentivado. Assim, as medidas extrafiscais não devem ser concedidas de forma indiscriminada, mas sim compor um programa de ações e atender suas diretrizes (resultados a alcançar, ordem de prioridades, duração, quantidade de recursos). Botelho (2001, p.77) bem lembra que a busca pelo patrocínio privado reflete o movimento mundial iniciado nos anos 1980 e motivado pela crise econômica e pelas soluções procuradas dentro do chamado quadro neoliberal, no qual os governos começaram a cortar seus financiamentos para as áreas sociais e, mais particularmente, para a cultura. Em uma breve retrospectiva histórica, em nível federal pode-se mencionar a Lei 7505, de 1986, como uma das precursoras em matéria de incentivo fiscal à cultura, que permitiu aos

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contribuintes do Imposto de Renda abaterem da renda bruta ou deduzirem como despesa operacional o valor de doações, patrocínios e investimentos, realizados por meio de ou em favor de pessoas jurídicas de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos. Em 1991 surge à Lei Rouanet (Lei 8313 ), que facultou às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural (art. 18). Analisando o desenvolvimento das políticas de incentivo fiscal à cultura no Brasil em nível federal até 2002, Arruda (2003, p.188) ressalta que, após um período de verdadeira míngua no governo Collor – com a extinção do Ministério da Cultura – houve um incremento da atuação do Estado durante o governo FHC, se comparados com os governos anteriores, mas seguindo uma lógica de mercantilização da cultura, liberal até certo ponto, mas com aumento da transferência de recursos indiretos. Conforme Arruda (2003,p.188): “O espírito da política cultural no período nutriu-se da função regulamentadora, uma vez que coube aos gestores do ministério o papel de intermediários e de avalizadores do processo – expresso no julgamento de mérito dos projetos apresentados, acompanhado da atitude de estimulação e de incentivo, desenvolvendo o exercício normatizador, tornando a atividade pública um meio de aproximação dos agentes no campo da cultura. O aparente laissez-faire, todavia, alimentou-se, a rigor, da transferência de recursos, uma vez que a lei de incentivo troca pagamentos de impostos – que poderiam ser aplicados de modo diverso – por investimento cultural. Se os produtores culturais são beneficiários inequívocos da política implementada, igualmente o são os organismos privados quando podem se utilizar do marketing cultural, com os efeitos previsíveis de valorização da imagem das empresas envolvidas. Instalou-se uma certa pedagogia no âmbito da cultura que produziu o disciplinamento dos agentes, criou funções, e vem despertando uma ética muito peculiar na esfera do financiamento privado, uma vez que é o Estado o normatizador, mas sobretudo a instância a repassar os recursos, embora de forma indireta.” Pouco antes da análise de Arruda, Botelho (2001, p.,73) comentara que a tônica do setor é um recuo na formulação de políticas públicas globais, no sentido pleno do termo, embora se fale muito em política cultural. Hoje, é o financiamento de projetos, tomados isoladamente, que assumiu o primeiro plano do debate – através das diversas leis de benefício fiscal existentes no país. É possível afirmar que a partir de 2003 o Estado, especialmente em nível federal, passa a adotar um modelo híbrido. Ao mesmo tempo em que aumenta os recursos destinados à sistemática de incentivos fiscais, busca outras formas de atuação, de que é exemplo o Plano 5

Nacional de Cultura e o Cultura Viva. Passa, com o sistema PROCULTURA, em 2010, a buscar uma maior integração entre a política de incentivos fiscais e outras formas de se estimular a produção cultural no país. Conforme destacado por Alves (2012, p.5), nas gestões dos Ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003 a 2010), foram criados ou regulamentados vários canais de participação da sociedade civil, possibilitando ampliar a ação das políticas culturais, como foram os casos da regulamentação do Fundo Nacional da Cultura (FNC), da criação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (2005), do Plano Nacional de Cultura com a instalação de Câmaras Setoriais (2004), do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva instituindo os Pontos de Cultura (2004), do Sistema Federal de Cultura (2005), do Vale Cultura (2010) e do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – PROCULTURA (2010). Houve, na concepção de Alves (2012), Rubim (2013) e Freitas (2012), uma clara mudança de rumo na própria concepção do que seja o papel do Estado nas políticas de cultura, em um processo de maior democratização, de valorização da diversidade, participação da sociedade civil e mais presença da atuação pública. Como destacado por Rubim (2013, p. 233), em alguns casos a atuação do Ministério da Cultura passa mesmo a ser inauguradora, a exemplo da atenção e do apoio às culturas indígenas. “Em outros casos, se não é inaugural, sem dúvida revela um diferencial de investimento em relação às situações anteriores. É o que acontece nas culturas de afirmação sexual, na cultura digital e mesmo na cultura midiática audiovisual.” Segundo o autor: “São exemplos força desta atuação: o deslocamento institucional da ANCINE para o Ministério da Cultura; a tentativa de transformar a ANCINE em ANCINAV; o projeto DOC-TV, que associa o ministério à rede pública de televisão para produzir documentários em todo o país; a luta pela Televisão Pública; o programa Revelando os Brasis, que apóia a produção audiovisual em cidades de até 20 mil habitantes; o edital para jogos eletrônicos; os apoios às paradas gay; os seminários nacionais de culturas populares etc.”

Conforme Alves (2012, p.4), o MinC, a partir de 2003, com as gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira, buscou partir de uma concepção de cultura mais ampla, em que incorporou uma noção de cultura de cunho antropológico e, além disso, buscou ampliar os canais de participação dos vários segmentos da sociedade civil na construção de políticas públicas de cultura. Como resultado desse contexto, tivemos a promulgação da lei que reconhece a diversidade cultural, a criação do Programa Cultura Viva e a substituição da Lei Rouanet pelo PROCULTURA. E,

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ainda, esse Ministério da Cultura, através da promoção de encontros, fóruns e conferências, buscou criar um consenso em torno dessas ações para que fossem ampliadas para os outros âmbitos do poder público, os estaduais e os municipais, de modo a atingir também os seus interlocutores, representados pelos agentes culturais que fomentam ações na área da cultura. Paralelamente a este processo, tem-se a edição de uma série de novas leis de incentivo fiscal à cultura em âmbito estadual e municipal, de que são exemplos o Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Rio Grande do Sul, escolhidas para análise específica neste estudo por uma questão de escala: trata-se de unidades da federação populosas, com produção cultural relevante em diversas áreas e com os mecanismos de incentivo fiscal funcionando com razoável vigor, envolvendo um número significativo de projetos e volume re recursos. Permanecem, decerto, críticas no modelo de incentivo fiscal, por conta da concentração de proponentes, da concentração geográfica e da priorização de projetos com nítido apelo comercial em detrimento de manifestações populares e de raiz (Freitas, 2012). Neste ponto, a participação de entes federativos menores, como Estados e Municípios, mais próximos da cultura e realidade locais, pode significar um passo a mais no processo de democratização cultural mesmo na via do incentivo fiscal, já que terão maior prioridade ações de valorização da cultura regional/local 2

3. LEIS ESTADUAIS DE INCENTIVO À CULTURA: ESTUDO DE CASO Cumpre ressaltar, como feito por Bevilácqua (2010, p.219), que a fixação de normas gerais de procedimento a renúncia de receitas não implica vulneração da autonomia dos entes federativos que dispõem também de competência concorrente para legislar sobre a matéria, como assim fizeram alguns estados. Faz-se, desde logo, a ressalva metodológica de que neste estudo não se está a tratar de aspectos de direito financeiro ou de como se desenvolve, sob a ótica do ente estatal, a mecânica da arrecadação dos tributos e os aspectos operacionais do orçamento. O enfoque, aqui, é analisar as legislações em relação à sua finalidade de incentivadora do direito à cultura, tendo como foco o modo de operação dos mecanismos para quem produz os bens culturais e para quem patrocina. Apenas a título de exemplo, ressalte-se que apenas no ano de 2012 a renúncia de receita do estado do Rio de Janeiro chegou a mais de R$ 99 milhões de reais (SEC-RJ, 2013). Em 2

Em que pese, por exemplo, a possibilidade expressa na lei de apresentação de projetos estrangeiros no Rio de Janeiro e a previsão expressa de financiamento de música eletrônica no Rio Grande do Sul. 7

Minas Gerais, o valor chegou a R$ 79 milhões em 2014 (SEC-MG, 2014). O estudo fluminense aponta, ainda, o perfil dos grandes patrocinadores - empresas de grande porte, com atuação ou capital multinacional e ações em bolsa: Petrobras, Oi, Light, AmBev e Coca-Cola. A lei fluminense (1954/1992) é bastante sucinta se comparada com a mineira e a gaúcha. Conta com apenas seis artigos apresentando a estrutura básica do sistema, deixando aspectos operacionais e técnicos para serem normatizados por decreto (Decreto 44013/2013). Já as leis gaúcha (13490/2010) e mineira (17615/2008) trazem um grau de detalhamento maior, contando, respectivamente, com 31 e 20 artigos. Ambas, ao contrário da lei fluminense, apresentam diretrizes, objetivos e princípios. Embora a normatização por decreto tenha a vantagem de se permitir maior agilidade para questões operacionais, acaba-se deixando um poder de decisão excessivo nas mãos do Executivo, além sujeitar as políticas a flutuações de governo. O fato é que desde 2010 já houve três decretos alterando a regulamentação da Lei 1954/1992. Além disso, o estabelecimento de diretrizes e objetivos na lei contribui para se fortaleça um arcabouço institucional a configurar uma política de Estado, já que os governos deverão, necessariamente, seguir os princípios ali estabelecidos. Na verdade a lei gaucha é a que mais se afina com o modelo federal, de se criar um sistema, com princípios e objetivos bem definidos, e que conjugue as ações de incentivo fiscal via renuncia de receita com outros mecanismos (Fundo de Apoio à Cultura e dotações orçamentárias diretas3). Coincidência ou não, o nome dos sistemas é praticamente idêntico (PROCULTURA E PRÓ-CULTURA). O art 1º da lei gaúcha estabelece algumas diretrizes gerais sobre distribuição de recursos, em que fica clara a importância de se valorizar as várias regiões do Estado e de se estimular novas iniciativas culturais. Já o art.2º trata de princípios de gestão de modo genérico: transparência, eficiência, racionalização, segurança, dentre outros. Trata-se de dispositivo que pouco contribui em efetivo conteúdo, pois não seria razoável prever um sistema “ineficiente, irracional ou inseguro”. São, contudo, palavras que andam na moda no ideário político e jurídico. As três leis estabelecem quais seriam as “áreas” a serem abrangidas pela lei. A ideia de tipificar possíveis “áreas” culturais e colocá-las em uma lista aparentemente cerrada não parece ser algo muito produtivo. Algumas “listas” acabam sendo mais sucintas do que outras, embora o próprio conceito de cultura não deva ser encarado como algo hermético. A lei gaúcha, neste 3

Lei 13490/2010, art. 3º, I a III 8

ponto, é bastante prolixa, mas ao final de cada “área” e um detalhamento em “subáreas”, acaba utilizando sempre a possibilidade de “outras”. Assim, vicissitudes e peculiaridades à parte, mesmo buscando classificar manifestações, acaba-se, de certa forma, aderindo a um conceito razoavelmente amplo de cultura, que se aproxima do conceito antropológico apresentado no tópico anterior. Em relação à música, na lei gaucha faz-se questão de explicitar até mesmo os gêneros musicais passíveis de apoio. Incluiu-se a música gospel (art. 4º, § 2º, mas desde que os eventos não sejam promovidos por igrejas). Mantém-se, em tese, a laicidade do Estado. Em sequência, a lei gaucha enumera exemplificativamente gêneros passíveis de incentivo, incluindo manifestações típicas da cultura brasileira, ao lado de qualificações como “eletrônica” e “country”. A lei gaúcha, mais prolixa na enumeração, é a única a mencionar explicitamente as culturas populares (art. 4º, I, f). A lei mineira, embora menos extensa na, traz relevante menção ao patrimônio imaterial (art. 8º, VI). Outro ponto interessante das leis mineira e gaúcha é prever apoio à produção científica vinculada à cultura e às áreas previstas na lei, como cursos, bolsas de estudos e publicações (art.8º, parágrafo único / art 4º, º 1º). Projetos de reforma e construção de equipamentos culturais são explicitamente previstos na lei gaucha e mineira. Já a lei fluminense menciona vagamente o apoio a “acervo e patrimônio histórico-cultural”. As leis fluminense e mineira fazem curiosa menção à gastronomia (art. 2º, X; art. 8º, VI). A lei mineira inclui, ainda, a filatelia (art. 8º, III). O apoio à produção literária está presente nas três leis e deve incluir não só a produção de livros, mas até mesmo de revistas e obras informativas. Um ponto fora da curva quanto ao alcance dos projetos abrangidos é a previsão na lei fluminense do apoio a “esportes profissionais e amadores, desde que federados” (art,2º, IX). Existem algumas vedações quanto a quem pode beneficiar-se do incentivo fiscal. No Rio de Janeiro, não poderá ser patrocinador quem estiver em débito com o Estado (art. 3º, §1º). Além disso, fica vedada a utilização do incentivo quanto a projetos em que sejam beneficiários a própria empresa incentivada, seus sócios ou titulares e suas coligadas ou controladas. Tanto a lei fluminense como a lei gaúcha vedam práticas de nepotismo, no sentido de não poder haver parentesco entre o produtor cultural e o contribuinte/patrocinador. Na lei fluminense a vedação vai até a parentes em primeiro grau e cônjuges/companheiros. A lei gaúcha veda quando o vínculo for até terceiro grau, inclusive por afinidade. Também a lei mineira prevê vedações semelhantes: beneficiar o próprio incentivador e os parentes em

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primeiro grau /cônjuge/companheiro. 4 Por fim, a lei gaúcha veta os produtores com cadastro sujo no CADIN. Ainda no que tange ao âmbito de aplicação, em todas as legislações contribuintes/patrocinadores deverão ser sediados nos respectivos estados. A lei fluminense permite expressamente o patrocínio de produções culturais estrangeiras (art.1º, §1). Quanto à participação de outros entes federativos, há diferenças relevantes nos três sistemas. A lei gaucha autoriza o Estado a participar de empreendimentos conjuntos com os municípios, os demais Estados e a União (art. 11). Já o art. 11 da lei mineira veda expressamente o apoio a órgão ou entidade da administração direta de qualquer esfera federativa. Permite-se somente o apoio a fundações estaduais ligadas á cultura ou a associações/fundações de apoio ligadas a unidades culturais pertencentes ao poder público. No Rio de Janeiro é permitido o apoio a municípios, mas apenas quanto a efemérides municipais. Em relação ao quanto as empresas patrocinadoras podem se beneficiar, os percentuais variam entre os estados. O Rio de Janeiro prevê 4% do ICMS a recolher em cada período mensal para projetos nacionais e 1% para produções estrangeiras. Há uma contrapartida obrigatória, já que para poder utilizar os benefícios a empresa deverá contribuir com parcela equivalente a, pelo menos, 20% do desconto que pretende realizar. Já em Minas Gerais a dedução, mensal, aumenta em razão inversamente proporcional ao tamanho da empresa: 10% para empresas com receita até quatro vezes maior que o limite para as empresas de pequeno porte: 7% para faturamento entre quatro e oito vezes o de uma EPP; 3% para empresas com faturamento maior que oito vezes o de uma EPP. Sob a ótica do volume de renuncia fiscal em relação à arrecadação do Estado, Minas Gerais limita a 0,30% da receita líquida do ICMS (art.4º). Não há um mínimo a ser aplicado. No Rio de Janeiro, há um mínimo de 0,25% e um máximo de 0,50% (art. 1º, §3). No Rio Grande do Sul a lei prevê um máximo de 0,5% da receita líquida, sendo que 25% deste total deve ser destinado a projetos apresentados diretamente pelas prefeituras municipais ou por produtores culturais por ela autorizados (art. 27, caput e §1º). Em Minas Gerais também há uma “cota” para projetos do interior. Do montante total de recursos aprovados pela comissão técnica para captação, 45% devem ser destinados para empreendedores domiciliados no interior o Estado. O modelo gaúcho é mais sofisticado. Como o mineiro, possui um escalonamento, que chega a 3% do saldo devedor para valores acima de ICMS a recolher acima de R$ 400.000,00.

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Lei fluminense: art. 3º, §2º e 3º; Lei gaúcha; art. 10; Lei mineira: art. 13. 10

Permite-se a cumulação com benefícios de outras esferas/leis, desde que a mesma despesa não seja patrocinada em duplicidade. Além disso, no Rio Grande do Sul o beneficiário deverá repassar 5% do valor a ser compensado em projetos ligados a preservação e restauração de bens móveis imóveis integrantes do patrimônio cultural ou para construção, reforma, restauro de equipamentos culturais (art. 6º, II, b; c/c art. 4º, VII e VIII), via Fundo de Apoio à Cultura. Quando não se tratar de projetos nesta área, o repasse deverá ser de 25%. Também no Rio Grande do Sul, sempre que o evento receber mais que 80% de incentivo fiscal no valor do projeto, será proibida a cobrança de ingressos relativos á entrada do evento. Trata-se, assim, de medida de democratização de acesso aos bens culturais. Registre-se que no Rio de Janeiro há uma cota de 10% de ingressos repassados à Secretaria de Cultura. O Rio Grande do Sul possui algumas medidas de cunho democratizante previstas no sistema, que é integrado não só pelos projetos via incentivo fiscal como também pelo Fundo de Apoio à Cultura. Em todas as atividades organizadas diretamente pelo Estado, estudantes e professores possuem entrada gratuita (art. 13, § 2º).

Por meio do FAC, projetos são

selecionados via editais especiais e podem ter até 100% do projeto financiado. (art.17) Um Conselho Estadual de Cultura e um conselho de representantes dos municípios se reúnem para julgar os projetos e estabelecer ações especiais objeto de editais específicos. A definição as Ações Especiais deve ser precedida de audiências públicas (art. 19, §1º). No Rio de Janeiro, os projetos culturais serão avaliados em duas etapas: -Parecer técnico; Aprovação pela CAP. Conforme orientação da SEC-RJ (2013): “Durante a etapa de parecer técnico, a Superintendência da Lei de Incentivo fará avaliação do projeto cultural tendo em vista a adequação da proposta às determinações legais e os aspectos relacionados à área específica do projeto e sua linha de ação. A Comissão de Avaliação de Projetos – CAP - é formada por representantes da SEC e por membros com notável experiência no setor cultural e fará a avaliação e aprovação dos projetos culturais que estejam de acordo com a política de incentivo à cultura dispostas na Lei nº 1954/92 e no Decreto nº 44.013/2013, habilitando-os para captação de recursos. “

Sob o ângulo do patrocinador a lei gaúcha possui uma vantagem, pois autoriza (art. 28º) a utilização de espaço público das instituições culturais do Estado para a exposição, divulgação das empresas patrocinadoras. Por fim, há que se fazer remissão breve aos Decretos Regulamentadores, que prevêem trâmites para a apresentação de projetos, critérios de avaliação e outras questões procedimentais 11

e burocráticas, de interesse prático para quem atua na área, mas de diminuta relevância acadêmico-científica. São eles os Decretos 44.013/2013 (RJ), 47618/2010 (RS) e 44866/2008 (MG).

4. QUADRO COMPARATIVO

Incentivo ao patrocinador

Rio de Janeiro

Rio Grande do Sul

Minas Gerais

Lei 1954/2006

Lei 13490/2010

Lei 17615/2008

4% do ICMS recolhido no mês (produções nacionais) e 1% (produções estrangeiras)

3% do ICMS a partir de R$ 400.000,00.

3, 7 ou 10% (dependendo do faturamento da empresa)

e tabela do art.6º (menor o imposto, maior o incentivo)

Ações Não menciona afirmativas para desenvolviment o regional

25% dos recursos do Procultura para os municípios

45% dos projetos aprovados para o interior do Estado

Incentivos ao público

Entrada gratuita em ações diretas para estudantes e professores da rede estadual.

Não menciona

Cota de 10% dos ingressos (previsão em decreto)

Entrada gratuita em projetos com mais de 80% do valor incentivado Limite de recursos do Estado

Mínimo 0,25% e máximo de 0,5% da arrecadação do ICMS

Até 0,5% da receita líquida do ICMS, não podendo ser menor que o ano anterior.

Até 0,3% da receita líquida

Contrapartida obrigatória

No mínimo 20% em patrocínio direto

5% ou 25% repassados ao FAC.

1 a 5%

Restrições

Patrocinador como beneficiário

Patrocinador como beneficiário

Patrocinador como beneficiário

Parentesco produtor/patrocinador – parentes em 1º

Parentesco produtor/patrocinador – parentes em 3º

Parentesco produtor/patrocinador – parentes em 1º 12

grau/conjuge/companheir grau/conjuge/companheir grau/conjuge/companheir o o e afins o

Decreto

44.013/2013

47618/2010

44866/2008

Agenciamento

Até 5%

Até 10%

Até 10%

5. CONCLUSÕES As legislações analisadas possuem muito mais semelhanças do que diferenças. Embora caiam na atecnia de enumerar manifestações culturais incentiváveis – para depois abrir um leque de opções por meio de cláusulas abertas - acabam abrangendo um conceito amplo de cultura. A prática tem mostrado que muitas das atividades são transversais a diversos nichos, valores ou bem culturais a serem protegidos, especialmente quando se relacionam à proteção do patrimônio imaterial. Muitas vezes a letra fria da lei não capitula determinada “área”, mas o Estado acaba desenvolvendo ações, por exemplo, no campo da diversidade (de gênero, etnia, orientação sexual), nas quais se produz cultura por diversos meios. Pouco tem sido feito para atrair o patrocinador pessoa física, para quem, via de regra, o patrocínio à cultura mediante incentivos fiscais parece ser uma realidade distante. Uma maior penetração destes mecanismos poderia representar maior democratização no próprio financiamento, uma vez que a pessoa física pauta sua escolha não por um esperado “retorno de imagem”, mas por outros critérios de natureza individual ou social. É uma obviedade afirmar que as pessoas físicas não estão incluídas como possíveis patrocinadoras nas leis estaduais de incentivo, pois não são contribuintes de ICMS. Seria interessante, contudo, prever modelo complementar, que permitisse às pessoas físicas contribuírem para projetos culturais e obterem, por exemplo, redução de algum imposto estadual – ITD ou IPVA, por exemplo. O sistema do Rio Grande do Sul se mostra mais consentâneo com um modo de pensar a ação do Estado na garantia de direitos culturais de forma mais plural e integrada, pensandose um modelo que conjuga os mecanismos de incentivo fiscal com ações de natureza afirmativa, via ação direta do Estado ou via fundos setoriais, voltados para ações especiais. Os Estados deveriam se inspirar nesta experiência e, principalmente na experiência em âmbito federal, em especial após a implementação do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva e do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – PROCULTURA (2010).

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A questão de se incentivar a cultura por meio de incentivos fiscais não deve se limitar a discussões de natureza orçamentária ou tributária e tampouco em mero cumprimento de requisitos formais e formulários burocratas exigidos por lei ou decreto. É preciso sua inserção em uma política de Estado, com objetivos claros de desenvolvimento cultural conforme os ditames de um Estado Pluralista e multiétnico, previsto constitucionalmente. É com este norte que se deve pensar, por exemplo, na valorização do patrimônio imaterial e nos projetos ligados a memória. Deve-se pensar os mecanismos de fomento à cultura também como redutores das desigualdades regionais, o que já é, em alguma medida, objeto de preocupação nas legislações de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Na prática, contudo, nem sempre os resultados são animadores. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Noroeste Fluminense, região mais pobre do Estado, recebeu somente 0,2% dos recursos oriundos de projetos incentivados no ano de 2012. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Maria Aparecida. A inserção da dimensão econômica nas políticas públicas de cultura no Brasil. In Anais do III Seminário Internacional de Políticas Culturais. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2012. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A política cultural: regulação estatal e mecenato privado. In Tempo Social – USP. Novembro/2003. BEVILACQUA, Lucas. Responsabilidade Fiscal e ICMS: uma perspectiva de controle. Revista de Direito, n.25, 2010. BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas. São Paulo em perspectiva, 15(2), 2001. DURAN, José Carlos Garcia et al. Patrocínio empresarial e incentivos fiscais. a cultura no Brasil: análise de uma experiência recente. RAE - Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 37, n. 4, p. 38-44 Out./Dez. 1997 ESTADO DE MINAS GERAIS. Panorama da lei de incentivo à cultura de Minas Gerais. Disponível em www.cultura.mg.gov.br . Acesso em 12.12.2014 ESTADO DE MINAS GERAIS. Lei Estadual 17615/ 2008 e Decreto 43615/2013. ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Benefício fiscal 2008 a 2012. Dados da Lei de Incentivo à cultura do estado do Rio de Janeiro. http://www.cultura.rj.gov.br/leidoincentivo/docsli/dados_da_lei_de_incentivo_14082013_revisado.pdf ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Lei Estadual 1954/1992. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual 13490/2010 e Decreto 47618/2010. FREITAS, Laura Lopes de. A lei Rouanet e a atual produção cultural brasileira: retrato da relação entre incentivo fiscal e a produção cultural no Brasil. Trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos. Universidade de São Paulo, 2012.

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