Políticas públicas e diversidade religiosa: espaços inter-religiosos em dois hospitais de uma capital brasileira

May 23, 2017 | Autor: Emerson Giumbelli | Categoria: Secularisms and Secularities
Share Embed


Descrição do Produto

Versão em português para artigo Giumbelli, Emerson. Public Policy and Religious Diversity: Interreligious Spaces in Two Hospitals in a Brazilian Capital City. Latin American Perspectives, v. 43, p. 186-199, 2016.

Políticas públicas e diversidade religiosa: espaços inter-religiosos em dois hospitais de uma capital brasileira Resumo: No Brasil, a diversidade vem sendo incorporada como princípio de políticas públicas recentes. O texto busca refletir sobre as características dos “espaços inter-religiosos” que existem em dois grandes hospitais públicos, situados em uma capital brasileira. Diversas atividades de grupos religiosos foram observadas nesses dois espaços, assim como alguns aspectos do trabalho do coletivo que organiza tais atividades foram analisados. Os resultados gerais são apresentados levando-se em consideração quadros mais gerais acerca de configurações hegemônicas na relação entre religião e sociedade. A discussão está orientada por preocupações teóricas que incidem sobre o tema das formas de concepção e ordenação da diversidade religiosa, caracterizada pela distinção e implicação entre as noções de pluralismo e pluralidade. Palavras-chave: diversidade religiosa, pluralismo religioso, espaços inter-religiosos, espaço público, políticas públicas

1

Políticas públicas e diversidade religiosa: espaços inter-religiosos em dois hospitais de uma capital brasileira 1

1. Introdução No Brasil, desde o início do regime republicano (proclamado em 1889), instituiu-se um arranjo jurídico que assume os princípios da separação entre Estado e grupos religiosos e da liberdade religiosa. Tal arranjo precisa ser entendido considerando o lugar ocupado pelo catolicismo na sociedade brasileira. Se a ruptura com o regime anterior se fez em detrimento da Igreja Católica, que perde sua condição de religião oficial, ela se manteve como a referência fundamental para a própria noção de “religião” que orientaria todo o arranjo descrito acima. 2 Essa situação sustentou-se, entre outros fatores, no quadro praticamente monopolístico das afiliações religiosas, até os anos 1980. As estatísticas então começaram a mudar, com o crescimento das pessoas “sem religião” e, sobretudo, dos evangélicos (termo que passou a abranger o conjunto dos protestantes), que constituem atualmente 22,2% do total da população. O encolhimento do catolicismo (1940: 95,2%; 1991: 83,3%; 2010: 64,6%) tem como contrapartida o aumento da diversidade religiosa no Brasil – tema que levanta muitas questões, algumas das quais formuladas na próxima seção deste artigo. Uma das dimensões da diversidade é sua incorporação como princípio de políticas públicas recentes no Brasil. Isso ocorre em iniciativas voltadas para questões de gênero e sexualidade. Exemplos são ações ministeriais que procuram combater problemas associados à vida das mulheres (violência, saúde etc) e a decisão, no âmbito do Poder Judiciário, que obriga a oficialização de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. Algumas dessas iniciativas recebem a oposição de grupos religiosos. Outro campo em que a diversidade aparece como princípio assumido é o das políticas de igualdade racial. Programas de ações afirmativas, em benefício da população negra, vêm sendo desenvolvidos em muitas instituições. Nesse caso, 2

também, há uma interface com a religião, pois os grupos afro-brasileiros, considerados como emblemas da negritude, são eventualmente favorecidos. Mais diretamente, a relação entre diversidade, religião e políticas públicas aparece na promoção de campanhas contra a intolerância religiosa e na criação, em 2013, do Comitê Nacional da Diversidade Religiosa. 3 Este texto apresenta resultados de uma pesquisa que acompanha uma iniciativa específica de articulação entre diversidade, religião e políticas públicas. Ela vem ocorrendo no Grupo Hospitalar Conceição (GHC), instituição que controla quatro hospitais na cidade brasileira de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. O GHC é um dos principais complexos de saúde na região, empregando quase 8 mil profissionais e atuando em amplas especialidades terapêuticas que atingem milhares de pessoas. Desde 2003, todos os atendimentos são custeados com recursos públicos, havendo vínculo direto entre a administração do GHC e o Ministério da Saúde. Vale notar que os hospitais que compõem o GHC foram criados (o primeiro deles em 1959) como instituições privadas, dois dos quais receberam nomes religiosos – Nossa Senhora da Conceição e Cristo Redentor. Antes de serem estatizados, congregações religiosas atuavam nos serviços terapêuticos – situação que demonstra a importância histórica da presença católica na esfera do atendimento à saúde no Brasil. 4 O GHC foi escolhido como objeto de pesquisa porque abriga o que denomina de “espaços inter-religiosos”, nos quais diversos grupos religiosos celebram atividades abertas aos pacientes, funcionários e visitantes dos hospitais. Neste texto, apresentarei dados sobre os espaços situados nos hospitais Conceição e Cristo Redentor. A gestão dos Espaços InterReligiosos do GHC, embora dependa formalmente das gerências administrativas dos hospitais, é definida pelo grupo denominado Fórum Inter-Religioso do GHC. Por não ter existência formal, a genealogia do Fórum é narrada por seus participantes e pelos registros disponíveis sobre sua história.5 Suas origens remetem à diversificação da assistência religiosa, que até o final dos anos 1990 teria sido exclusivamente católica. Em 2001, visando assumir e gerenciar 3

a nova situação, é criado um fórum ecumênico, com participantes da Igreja Católica e de igrejas evangélicas históricas, com destaque para os luteranos.6 Em maio de 2002, uma cerimônia marcou a transformação da capela católica do Hospital Conceição em local ecumênico. No caso do Hospital Cristo Redentor, que também abrigava uma capela católica, a criação de uma nova sala para atividades religiosas ocorreu vinculada a uma reforma (concluída em 2010) garantida por recursos de um programa do Ministério da Saúde que incentiva reestruturações espaciais nos hospitais. Outro fator que contribui para a criação dos Espaços Inter-Religiosos no GHC é a atuação da Comissão Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR), criada em 2003. O nome remete à Secretaria Especial que existe em âmbito federal, uma das principais articuladoras de ações afirmativas em políticas públicas, revelando a sintonia existente entre a direção do GHC e o governo sob os mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (20032010). A CEPPIR tem como motivação principal o combate ao “racismo institucional”. Um dos temas cobertos por sua atuação é a religiosidade. Em outubro de 2008, o GHC promoveu, por iniciativa da CEPPIR, o I Encontro das Religiões de Matriz Africana, que marcou o início das atividades dessas religiões no Espaço Inter-Religioso do Hospital Cristo Redentor. Em 2010, essa participação se estendeu para os espaços congêneres do GHC. Finalmente, devemos ainda considerar, pelo GHC, e mais especificamente no âmbito do Fórum Inter-Religioso e da CEPPIR, a referência à Política Nacional de Humanização (PNH). Trata-se de um programa lançado em 2004 pelo Ministério da Saúde. Integração e democratização são palavras-chave desse programa, que pretende atuar transversalmente às estruturas que prestam atendimento vinculado ao sistema público de saúde. De acordo com um dos documentos do PNH, “humanizar é (...) ofertar atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais” (apud Boldrini, 2012: 64). Um dos alvos do PNH são 4

os usuários dos serviços de saúde, reconhecendo-lhes direitos que podem abranger a dimensão da religiosidade.7 Ocorre aí outra sintonia entre políticas públicas mais gerais e a concepção de assistência religiosa proposta pelo Fórum Inter-Religioso do GHC. Embora não haja espaço para tratar desse tema aqui, é importante mencionar alguns pontos. Os expoentes do Fórum Inter-Religioso recorrem aos princípios de liberdade religiosa e de direitos dos usuários, articulados à ideia de humanização, como justificativas para a proposição da noção de “saúde integral” e seu atrelamento com as práticas de assistência religiosa. Nessa noção, saúde é concebida como sinônimo de “bem-estar físico, mental, social e espiritual”. A consequência mais relevante disso é o entendimento da “espiritualidade” como inerente à pessoa, devendo, assim, ser contemplada no atendimento aos pacientes. Na prática, esse entendimento, até agora ao menos, recebe pouco embasamento em idioma biomédico e enfrenta resistências por parte de outros setores do GHC. Por outro lado, o próprio Fórum Inter-Religioso assume o papel de defensor das concepções hospitalares dominantes ao exigir dos “visitadores” – como são chamadas as pessoas que oferecem a assistência religiosa – o conhecimento e o respeito às normas de higiene e assepsia médicas. A promoção periódica de cursos voltados à capacitação de visitadores é, então, parte das atribuições do Fórum, durante as quais se produz uma determinada expectativa quanto às formas legítimas da assistência religiosa. Retomando a história que se pode traçar sobre o Fórum, é em 2007 que se torna “InterReligioso”, pois, segundo documento do grupo, “agregou instituições não cristãs como as religiões de matriz africana e outras filosofias de vida como o Seicho-No-Ie”.8 Há ainda o registro de que no mesmo ano uma instituição espírita kardecista passa a atuar sistematicamente no Hospital Conceição, tanto na visita a pacientes quanto em atividades na capela. Atualmente, os espaços inter-religiosos têm sua ocupação definida por um cronograma semanal que estipula os grupos e seus respectivos horários de atividades. Assim, 5

são dois os focos que identificam as principais atribuições do Fórum: organização e regulamentação da assistência religiosa e administração dos espaços inter-religiosos dos hospitais que formam o GHC. O Fórum é integrado por representantes de grupos que têm interesse em prestar assistência religiosa e em utilizar os espaços inter-religiosos. Estão previstas reuniões mensais entre seus integrantes. Para sua condução executiva, o Fórum conta também com uma coordenação, composta por uma dezena de pessoas, a maioria delas apontadas entre os representantes religiosos e outras indicadas pela direção do GHC. Neste texto, busco refletir sobre as características dos “espaços inter-religiosos” que existem em dois hospitais do GHC. Diversas atividades de grupos religiosos foram observadas nesses dois espaços. Foram também sistematizados aspectos da composição e do trabalho do Fórum Inter-Religioso. Ao final, buscarei sintetizar os resultados da análise empreendida, em diálogo com questões levantadas ao longo do texto. Essa análise está orientada por preocupações que incidem sobre o tema das formas de concepção da diversidade religiosa. Dedico a próxima seção a um detalhamento teórico desse tema, partindo da constatação de que o GHC assume uma postura pluralista na constituição de seu Fórum Inter-Religioso. As discussões aqui empreendidas procuram contribuir para a caracterização de mudanças nas hegemonias religiosas no quadro das realidades sociais latinoamericanas e entram em diálogo com preocupações que envolvem a presença da religião no espaço público.

2. Teorizando o pluralismo: aspectos da diversidade religiosa O rompimento com quadros históricos de monopólio religioso como característica de transformações sociais em diversos contextos recentes levanta o problema teórico da diversidade. Concordo com Burity (1997) sobre a possibilidade de fazer a distinção entre pluralidade e pluralismo. O primeiro termo procura designar uma situação de fato, que pode

6

ser evidenciada através de diversos dados, no plano das instituições, das vivências e dos trânsitos. Já pluralismo envolve um reconhecimento desse fato – o que significa também uma determinada apresentação da realidade. A distinção permite trabalhar com a diversidade em sua dimensão política – por contraste com o tratamento “econômico” que as teorias do mercado religioso lhe conferem. Em outras palavras: mais do que associações necessárias ou automáticas entre diversidade religiosa e ausência de monopólio legal do campo religioso, importam os modos pelos quais a diversidade é apresentada e, sob certa perspectiva, assumida. Podemos encontrar uma formulação semelhante no trabalho de James Beckford (2003), que procura distinguir, a propósito do conceito de pluralismo, três dimensões. A primeira tem a ver com indicadores empíricos de diversidade religiosa, que permitiriam mensurar sua magnitude. A segunda refere-se ao grau de aceitação ou de legitimidade dos diversos grupos que compõem uma formação social e histórica. Isso deixa claro o tratamento político que o autor reserva à questão, o que lhe permite fazer uma crítica às teorias de Peter Berger (1967), as quais são, por sua vez, uma das principais inspirações para as teorias do mercado religioso. Beckford discorda que a constatação da existência de diversidade religiosa no presente configure um contraste total com o passado. Ele sugere que reservemos o termo pluralismo para descrever situações em que a diversidade é assumida como um valor moral ou político. Frigerio e Wynarczy (2008) tomam as elaborações de Beckford para sustentar a distinção entre diversidade e pluralismo a partir de uma análise empírica. Considerando as últimas três décadas da história argentina, eles demonstram que a perda de adesão sofrida pela Igreja Católica não foi acompanhada pela valorização do pluralismo. Grupos afro-brasileiros e igrejas evangélicas enfrentam dificuldades burocráticas e passam por uma cobertura midiática que os mantêm distantes da legitimidade usufruída pelo catolicismo. Penso que realmente ocorre um avanço na discussão sobre o tema da diversidade quando são consideradas as distinções sugeridas por Burity (1997), Beckford (2003) e Frigerio e 7

Wynarczy (2008). No entanto, ao trabalharmos o pluralismo na dimensão dos valores, corremos o risco de elevá-lo a uma espécie de ideal, confundido com alguma definição histórica específica. Daí a importância de conferir centralidade à dimensão dos arranjos ou configurações de diversidade. Nesse caso, a pergunta mais pertinente passaria a ser: que relações entre determinados grupos religiosos são produzidas dentro de certos arranjos e certos discursos? A fim de esclarecer minha posição, pode ser interessante traçar um paralelo com a discussão que realiza Walzer (1999) a propósito da noção de tolerância. Ela permite não absolutizar a definição de tolerância forjada na Europa dos séculos XVII e XVIII, que se apresenta como a única capaz de produzir a convivência, sob um mesmo ordenamento político, entre grupos que cultivam ideais de vida distintos. Walzer chama a atenção para a existência de outros regimes de tolerância, que, apelando para outros instrumentos, produziam também alguma convivência. Creio que Sanchis (1995) sugere algo semelhante quando caracteriza o campo religioso no Brasil lançando mão da noção de sincretismo. O campo religioso no Brasil sempre se apresentou como diverso, mesmo quando havia uma Igreja oficial, até porque o próprio catolicismo assumiu muitas facetas. O que se trata de entender, então, é como se transformaram os regimes de diversidade, considerando a introdução de novos agentes no campo em diferentes períodos e cenários históricos. O predomínio de tendências mais ou menos pluralistas no campo religioso brasileiro atual é objeto do debate entre Marcelo Camurça (2006) e Antônio Flávio Pierucci (2006). Camurça destaca o reforço de uma situação de diversidade religiosa no Brasil com base em dados do Censo populacional do IBGE de 2000. 9 Foram registradas, nos formulários do Censo, cerca de 35 mil respostas diferentes para o quesito “religião”. Elas foram depois agrupadas em 144 categorias, e assim apresentadas ao público. Camurça chama ainda atenção para modos de crença que comportam pertencimentos múltiplos e adesões flutuantes. Já Pierucci, partindo 8

dos mesmos dados, irá enfatizar o peso cristão – católico e evangélico – no resultado das estatísticas. “Vivemos na verdade num país noventa por cento cristão (89,2%). Isso quer dizer que do alto de seus oligopólios e prerrogativas o espectro do monoteísmo ainda ronda nossos confusos destinos pesadamente [e que] nossa diversidade religiosa ainda é balbuciante” (Pierucci, 2006: 51). No entanto, em minha visão, o que pode aparecer nesse debate como uma oposição – de realidades ou de posicionamentos – precisa ser considerado de outra forma. Ou seja, diversificação e hegemonização são vetores que convivem, sob modos que variam, na constituição do campo religioso brasileiro e na sua interação com a sociedade, incluindo as políticas públicas. O tema do ensino religioso em escolas públicas no Brasil serve como uma ilustração interessante.10 No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, por conta do modelo adotado, um concurso público para professores de ensino religioso, realizado em 2005, tomou como critério para distribuição de vagas os dados sobre afiliação religiosa. Disso resultou que 68% das vagas tenham sido reservadas para professores “católicos”, 26% para “evangélicos” e o restante para “outras religiões”. Estabeleceu-se, dessa forma, uma hegemonia cristã. Em outros estados, para lidar com o ensino religioso, foram criados e credenciados “conselhos” com representantes de várias religiões. Nessa outra possibilidade, abre-se a questão de como a diversidade religiosa é reconhecida e representada (inclusive encetando novas hegemonias) em fóruns coletivos e quais suas implicações, por exemplo, para a definição de conteúdos curriculares. O tema do ensino religioso nos revela ainda as reconfigurações que a pluralidade pode comportar quando se passa do cenário das afiliações religiosas da população em geral (terreno em que debatem Camurça e Pierucci) para quadros mais específicos. A assistência religiosa em hospitais, assim como a caracterização e gestão de espaços inter-religiosos, é outro desses quadros específicos.

9

Este texto está exatamente voltado para a discussão acerca da diversidade religiosa tendo como campo de observação as atividades do Fórum Inter-Religioso do GHC, especialmente aquelas que envolvem os espaços inter-religiosos dos hospitais Conceição e Cristo Redentor. Seguindo a discussão acima empreendida, uma série de questões afigura-se como pertinente: quantos e quais grupos participam da instância que existe para gerenciar aqueles “espaços inter-religosos”? Como sua convivência é organizada? Os espaços são isonomicamente usufruídos? Sua forma de ocupação é a mesma por parte dos grupos religiosos presentes? Lembremos que não é possível ignorar as diferenças entre os dois espaços, um deles sendo uma sala sem símbolos religiosos, o outro persistindo como capela com feições católicas. Como se pode descrever a resultante das opções e configurações assumidas na atuação do Fórum Inter-Religioso do GHC? Com isso se pretende demonstrar os contornos que assume na prática a adesão ao pluralismo; inversamente, trata-se de caracterizar a forma de pluralismo que aí se define pelo modo como é contemplada a pluralidade de grupos e tradições religiosas. Embora não esteja entre os objetivos deste trabalho, é interessante mencionar o diálogo que pode ser estabelecido entre o que apresento e dois campos de pesquisa que envolvem a relação entre religião e espaço, com particular atenção para seus aspectos políticos. Há muitas situações constituídas por conflitos em torno de sítios religiosos, que colocam em primeiro plano as disputas, em práticas e narrativas, entre distintas tradições religiosas ou entre modos de relação entre religião e nacionalidade. É o caso de alguns templos na Índia reivindicados igualmente por hindus e muçulmanos e mesmo da controvérsia acerca da instalação de um centro muçulmano nas proximidades da região onde estavam as Torres Gêmeas em Nova York. Um segundo campo incide sobre a distribuição das religiões no espaço urbano. No Brasil, os templos católicos estão historicamente associados com regiões centrais das cidades, enquanto que os templos afrorreligiosos estão relegados às periferias; os evangélicos, por sua vez, vêm disputando espaço tanto nas regiões centrais quanto nas periféricas. Nos dois 10

campos, trata-se de entender disputas dentro de situações não planejadas. No caso do Fórum Inter-Religioso do GHC, acompanhamos um quadro de convivência deliberada e administrada – o que, como veremos, não anula a configuração de hegemonias.

3. Configurações da diversidade: organização e atividades dos espaços inter-religiosos De acordo com o “Plano de Trabalho”, 11 o Fórum Inter-Religioso se responsabiliza pela organização “do atendimento nos espaços inter-religiosos e da visitação dos usuários nos hospitais do GHC”. Vejamos agora então o que ocorre naqueles espaços dos hospitais Conceição e Cristo Redentor, considerando mais algumas características do Fórum. Embora o documento os considere como locais de “atendimento”, as manifestações e formas de ocupação daqueles espaços são variadas. A rigor, a noção de “atendimento” sugere que os espaços inter-religiosos seriam extensões de outras áreas nas quais os “visitadores” oferecem assistência religiosa a pacientes e seus familiares. Mas constatamos que os espaços abrigam atividades diversas, que guardam relações também diversas com a ideia mais geral de assistência religiosa. Noto que os profissionais que trabalham nos hospitais (sobretudo dos setores de enfermagem, administração e serviços de limpeza) é que se destacam como os frequentadores mais regulares dos espaços inter-religiosos, seja para acompanhar as atividades oferecidas pelos grupos, seja para fazer uso individual. 12 Tratemos, assim, das variações observadas nas atividades desenvolvidas nos espaços interreligiosos dos hospitais Conceição e Cristo Redentor. Naquelas conduzidas por pessoas ligadas a religiões afro-brasileiras, predomina o atendimento, em um sentido talvez diferente daquele com que a palavra aparece no “plano de trabalho”. Formam-se filas para consultas individuais, nas quais uma sacerdotisa dialoga com os pedidos dos visitantes. No caso de algumas igrejas pentecostais, a atividade adquire as características de um culto, com orações,

11

leituras de textos bíblicos, testemunhos e cantos. O número de pessoas envolvidas na realização, em comparação com os grupos afro, é maior; em compensação, a atividade pentecostal parece não depender de um “público”, pois ela se desenrola igualmente mesmo quando mais ninguém está presente no espaço. Portanto, enquanto sacerdotes afrorreligiosos dedicam-se a um atendimento, grupos pentecostais contentam-se em ocupar o espaço. Outra diferença entre as atividades é a relação com o atendimento em outras áreas do hospital. Os visitadores de religiões afro-brasileiras preferiam não prestar assistência religiosa fora dos espaços inter-religiosos. Alguns grupos pentecostais, embora o desejassem, não tinham a permissão para fazê-lo, pois seus membros não haviam concluído o curso para habilitação. Outros, também pentecostais, já estavam habilitados, e combinam o culto no espaço interreligioso com perambulações por quartos e ambulatórios. Às vezes, parece que a atividade no espaço inter-religioso é tida apenas como uma referência para as visitas aos quartos e outras áreas onde se encontram os pacientes. É o que ocorreu em um horário reservado a luteranos; não houve atividade no espaço, mas se soube que os religiosos poderiam estar “evangelizando pelos corredores”. Ocorreu também no horário reservado a católicos, que previa celebração de missa: dois padres chegaram e em vez de permanecerem no espaço seguiram para atender pacientes em seus quartos. Ou seja, alguns grupos usam o espaço como uma espécie de base para atingir os pacientes, desenvolvendo as condições para isso. Mas, afinal – e aqui passamos a outro ponto, a partir do qual será possível avaliar a preponderância de certos grupos – como é a distribuição que determina a ocupação dos espaços inter-religiosos nos dois hospitais? Baseei-me nas indicações que estão afixadas nas entradas dos espaços.13 No Cristo Redentor, não houve mudança da escala de distribuição entre 2010 e 2012. Seis grupos são especificados: a Igreja Católica, as religiões afrobrasileiras, a Seicho-No-Ie, a Assembleia de Deus e mais duas igrejas pentecostais. A distribuição é desigual: os católicos estão programados para quatro dias na semana, 12

totalizando cinco horas e meia de ocupação; os assembleianos, dois dias e quatro horas; os afro, um dia e três horas; os demais, um dia, entre uma e duas horas. No Hospital Conceição, o leque de grupos é maior. Considerando os três anos, 16 grupos são registrados. Esse número não inclui coletivos não religiosos (coral, grupos de apoio a pacientes), cujas atividades estão também previstas na planilha. Há poucas mudanças ao longo do tempo: em 2011, não constam uma igreja luterana e uma assembleiana; outra igreja pentecostal é mencionada apenas em 2011. Se tomamos como base o calendário de 2011, os resultados são os seguintes. A Igreja Católica mantém predominância com três dias e cinco horas. Outros grupos também se destacam: duas Assembleias de Deus, com quatro dias e nove horas; luteranos estão programados para dois dias, uma hora e meia; os afros, para um dia, quatro horas. Os demais são grupos pentecostais, a Seicho-No-Ie e uma instituição espírita, que ocupam o espaço por apenas uma ocasião. Em 2012, os afros reduziram sua ocupação para apenas uma hora. Assim, apesar de serem as mais numerosas, as igrejas evangélicas não se destacam em termos de ocupação, com a exceção dos luteranos e dos assembleianos. Pode-se notar uma correlação entre a distribuição nos espaços e a composição da coordenação do Fórum Inter-Religioso do GHC. O “Plano de Trabalho” se encerra com uma lista de nomes, os quais compõem essa instância: a filiação religiosa dessas pessoas inclui catolicismo, luteranismo, religiões afro-brasileiras e Assembleia de Deus.14 Os que puderam frequentar em 2012 os eventos promovidos pelo Fórum observam o protagonismo – considerando responsabilidades assumidas, uso da palavra, condução de atividades – de um padre católico, de um pastor luterano, de um leigo católico e de uma adepta de religiões afro. No caso das últimas duas pessoas, note-se que sua filiação religiosa é atenuada pelo fato de serem representantes do GHC na estrutura do Fórum. Mesmo com essa ressalva, pode-se concluir, após a observação da distribuição dos grupos nos espaços inter-religiosos e da 13

formação da Coordenação do Fórum, que ocorre uma espécie de composição católicoluterana-afro-assembleiana. É preciso fazer outros comentários a fim de esclarecer mais alguns pontos acerca do modo como se concebe e administra a pluralidade religiosa no Fórum do GHC. A composição acima mencionada ganha um papel preciso na medida em que tende a atenuar a força de grupos pentecostais que possuam concepções de assistência religiosa e de intervenção junto aos pacientes que destoam daquelas que são promovidas nos eventos do Fórum. As concepções predominantes são produto de uma espécie de negociação entre os promovedores da assistência religiosa e os guardiões dos padrões biomédicos. Assim, apesar de serem mais numerosos nos eventos do Fórum, os grupos pentecostais exercem pouco poder na definição de seus rumos. É significativo que, em um desses eventos, a liderança assembleiana que é também membro da coordenação do Fórum tenha se expressado em nome do “povo evangélico”, antes que várias outras igrejas pentecostais se pronunciassem por meio de outras lideranças. O grupo a que pertence aquela liderança, em uma de suas atividades no espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor, fez questão de expor suas diferenças em relação a “esses crentes barulhentos, que gritam...”. Em eventos de capacitação dos visitadores promovidos pelo Fórum Inter-Religioso do GHC, observa-se a valorização de concepções e vocabulários que não são indiferentes à diversidade religiosa. Central nessas concepções e vocabulários é a noção de espiritualidade. Aplicada à assistência religiosa, tal noção produz, por exemplo, a recusa do proselitismo e do milagre. Nos pronunciamentos observados durante os eventos de capacitação, notou-se que expoentes católicos e luteranos são exatamente aqueles que enunciam tal recusa. Expoentes afrorreligiosos entram em sintonia com tal discurso, enfatizando sua disposição de acolhida “sem preconceitos”. Já os representantes de algumas igrejas pentecostais não apresentam um discurso muito distinto daquilo que se pode ver em seus templos: testemunhos de conversão e 14

do poder do “Senhor Jesus que opera maravilhas”. Enquanto alguns pentecostais relatam curas milagrosas, um dos coordenadores do Fórum lembra a importância de que, em certos casos, o visitador saiba ajudar um paciente a morrer com dignidade e de que, sempre, a assistência religiosa existe “não para ganhar fieis, mas para prestar serviço”. Quanto às relações internas aos que participam da composição católico-luterana-afroassembleiana, creio que temos um campo de tensões, constituído por várias dimensões. Devese notar que não existe nenhuma regra formal de exclusão, o que significa que a ocupação dos espaços e a constituição da coordenação do Fórum estão sujeitas a mudanças e são definidas por arranjos variáveis, em que atuam fatores históricos e circunstanciais. Se tomamos como ponto de apoio a relação que se estabelece entre cristianismo e tradições afro-brasileiras, o quadro a que chegamos não é simples. Por um lado, não é difícil constatar o predomínio católico na ocupação dos espaços e nas posições do Fórum, mas ele é tensionado pela significativa presença evangélica. Por outro lado, o terreno conquistado pelas religiões afrobrasileiras contou com o acordo e a participação de pessoas vinculadas ao catolicismo que estão na coordenação do Fórum.15 É significativa a forma que adquiriu o símbolo do Fórum Inter-Religioso do GHC. Trata-se de um círculo formado pela união de mãos e braços de oito pessoas. Um dos coordenadores do Fórum explicou que se pretende expressar “solidariedade” e “amor ao próximo”, segundo ele, valores comuns a todas as religiões; ao mesmo tempo, se buscou uma solução que não recorresse a referências religiosas particulares. A diversidade se expressa pela presença de cores de pele mais claras e mais escuras, o que remete a uma leitura que valoriza a “matriz africana”. A questão dos símbolos é um ponto importante na definição das relações entre referências religiosas no GHC. Como vimos, embora se empregue nos dois hospitais a designação “espaços inter-religiosos”, suas configurações são muito distintas. No Hospital Cristo Redentor, a sala que veio em substituição à capela removida, possui cerca de 25m², está 15

localizada no mesmo andar da entrada principal do hospital, com acesso indicado por placas. Uma porta de vidro dá acesso aos fundos da sala; à frente, fica uma mesa alta; no espaço entre a porta e a mesa, se distribuem conjuntos de poltronas, cerca de 20 lugares. Nas paredes, pintadas na cor azul clara, não há qualquer objeto, com exceção de dois ou três ventiladores. Não há nenhuma iluminação especial, nem janelas para o exterior. Às vezes, é possível encontrar, deixados sobre a mesa, pedaços de papel com pedidos e orações. A impressão geral é a de um ambiente pouco aconchegante, embora isso possa ser atenuado durante a realização de atividades que interferem no aspecto da sala. O padre católico, pertencente à paróquia do bairro onde se localiza o Hospital, que nele mantinha atividades religiosas, foi contrário à modificação que fez desaparecer a capela original. Segundo Boldrini (2012), houve negociações com o arcebispo; o padre que levantou reticências ainda é o responsável pela ocupação católica do espaço inter-religioso. Durante algum tempo, houve controvérsias entre os usuários do espaço, pois funcionários católicos afixaram um crucifixo. O crucifixo era retirado por pessoas de outros grupos religiosos. Afinal, decidiu-se que não haveria nenhum símbolo. Atualmente, existe um banner ao lado da porta de acesso com o emblema do Fórum e uma folha com o registro da escala de ocupação da sala. Em eventos e conversas, foi levantada a possibilidade de haver alguma ornamentação. O outro padre católico, que participa da coordenação do Fórum, refere-se ao espaço como “esvaziado” (apud Boldrini, 2012: 93). Outra pessoa da coordenação, vinculada às religiões afro-brasileiras, lembrou que se pensou em utilizar o mesmo emblema para decorar a sala, e também alguma planta. Mas imagens da natureza foram por ela mesma afastadas, pois remetem a ícones afrorreligiosos, o que romperia a neutralidade do espaço. Seu despojamento, assim, resulta da combinação de uma questão de princípios e de uma ausência provisória de uma decoração tida como adequada.

16

Já no Hospital Conceição, o espaço inter-religioso corresponde a um lugar que existe desde a sua construção. Trata-se de uma capela com referências católicas. 16 Possui acomodações para aproximadamente 90 pessoas sentadas, com bancos da mesma natureza que encontramos em igrejas. A disposição é a de um templo, com altar no fundo, perto do qual está um sacrário e uma grande imagem de Cristo crucificado. Nas paredes, quadros retratando as estações da via sacra. Os vitrais representam a eucaristia, a consagração e outros ritos e símbolos católicos. Na entrada, há uma grande imagem de Nossa Senhora da Conceição; a seus pés, uma caixa de papelão para depósito de pedidos de oração; entre a estátua e a porta, há uma caixa de madeira também para receber pedidos. Perto dali, apoiado sobre o espaldar do último dos bancos, há um exemplar da Bíblia com suas páginas abertas. Do outro lado, um mural, onde está afixada a planilha com o cronograma de atividades, uma folha destacando o horário das missas, além de outros anúncios. Quem olhar a partir do altar, vai ainda ver outro crucifixo, de pequenas dimensões. De acordo com Boldrini (2012), no começo da década de 2000 levantou-se a ideia de transformação da capela (por exemplo, com a retirada da imagem de Nossa Senhora), proposta que enfrentou muitas resistências por parte de funcionários do hospital. Lembremos que desde 2002 a capela passou a ser considerada ecumênica. Dois dos coordenadores do Fórum me contaram que as únicas modificações efetuadas envolveram a retirada de imagens de santos. A identificação “capela ecumênica” continua até hoje e, ao contrário do outro hospital, no Conceição não há placas indicativas com a expressão “espaço inter-religioso”. Outra diferença é que a capela fica em um local de grande circulação, não muito longe da entrada de visitantes, sendo facilmente visível. Nela já foram celebrados batizados, casamentos, aniversários e velórios de funcionários (Ranquetat, 2012: 270), o que pode ter contribuído para as resistências acima referidas. Nada indica que vá ocorrer, no curto prazo, alguma modificação maior nesse espaço. 17

No presente, o que se pode constatar são as diferentes atitudes de representantes religiosos frente ao contraste entre os dois espaços inter-religiosos. O padre católico que participa da coordenação do Fórum faz uma defesa das características atuais da capela do Conceição: o “respeito à história” e à “cultura” justifica essa preservação, alega ele, que acrescenta não se sentir incomodado de saber que no mesmo local “o pessoal de matriz africana vai dar um passe” (apud Boldrini, 2012: 101-102). Já as sacerdotisas afro-brasileiras que ocupam uma vez por semana aquele espaço demonstram certo constrangimento, demonstrado em conversas durante a pesquisa. Sobretudo, ganha uma expressão ritual, pois as pessoas que conduzem o atendimento preferem se posicionar em um dos cantos da capela, perto da entrada, no lado oposto ao que está a imagem de Nossa Senhora. Recentemente, ali foi colocado, na parede, um quadro que retrata Jesus de corpo inteiro. Atualmente, ele compartilha o espaço com o banner que leva o emblema do Fórum. Uma outra luta de imagens e arranjos espaciais ocorre no espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor. Foi-me relatado que, em algumas ocasiões, deixava-se a sala com as poltronas dispostas em círculo após a realização das atividades afro-religiosas. A pessoa que ocupa a coordenação do Fórum não considera ideal a presença da mesa, pois sugere uma configuração que não contempla essas religiões. E os grupos evangélicos? A pesquisa reuniu algumas observações interessantes. Durante as pregações que ocorrem nos “cultos” realizados nos espaços inter-religiosos, são comuns lembranças dos argumentos bíblicos que permitem a condenação da “adoração das imagens”. Mesmo os assembleianos tocam nessa tecla – ou talvez sobretudo eles. Indagados se sofrem algum incômodo por suas atividades se realizarem em espaço com tantos símbolos católicos, a resposta é significativa: por que se incomodar com algo que não tem valor? Penso que vale relatar uma das observações de uma atividade assembleiana, pois ela dramatiza muito bem essa conciliação entre a crítica aberta e a presença confortável. Na verdade, como veremos, converte o símbolo que seria constrangedor na ocasião para melhor demonstrar a sua crítica. 18

Eis a cena. Durante sua pregação, uma missionária aponta para a imagem de Nossa Senhora ao fundo e destaca que há uma lâmpada direcionada a ela. Ora, essa é a prova da sua fraqueza, precisar de uma luz artificial que a ilumine. Todos deveriam saber que a verdadeira luz é Jesus, conclui a missionária. Em suma, a pluralidade é uma questão que se apresenta com muitas facetas nas atividades geridas pelo Fórum Inter-Religioso do GHC. Procurei mostrar as recorrências e as tensões que caracterizam a constituição do Fórum que reúne grupos religiosos interessados em atuar na assistência religiosa hospitalar. Propus a formulação de uma composição católico-luteranaafro-assembleiana para traduzir a resultante (provisória e instável) que podemos atribuir à coordenação do Fórum e à definição do cronograma formal dos espaços inter-religiosos. Tentei com isso sugerir os contornos que adquire a pluralidade no Fórum e a concepção de pluralismo nele implícita. Mas o tema não se esgota aí, pois é ainda dele que tratamos quando acompanhamos as formas variadas com que os grupos religiosos se relacionam com a assistência religiosa e com a ocupação dos espaços inter-religiosos. É necessário aprofundar a compreensão dessas dimensões, sobretudo considerando a postura bastante diversa de católicos, assembleianos e afro-religiosos naqueles espaços. Pode-se sugerir que cada um deles vive dilemas próprios. A sala do Hospital Cristo Redentor poderá se adaptar à diversidade de seus ocupantes e ao mesmo tempo transmitir aconchego aos seus visitantes? A capela do Hospital Redentor resistirá aos incômodos que acompanham as atividades dos grupos que acolhe?

4. Observações Finais O tema da presença da religião nos hospitais, evidentemente, não passa por investimentos e transformações apenas no Brasil. 17 Seria muito interessante desenvolver análises que

19

prezassem preocupações comparativas. A consulta aos trabalhos que enfocam outros países 18 confirma que se pode caracterizar como política a forma pela qual se apresenta e se administra a diversidade religiosa. Não apenas porque o tema vem sendo objeto de políticas públicas em diversos âmbitos e porque se impõe como um aspecto do gerenciamento de muitas instituições públicas. Uma vez levantada como questão na esfera pública, a diversidade religiosa envolve dimensões crucialmente políticas, que passam por questões de representação e de reconhecimento de grupos sociais. No Brasil, a identificação entre religião e catolicismo, de um lado, e, de outro, a presença francamente majoritária dos católicos retardou o ingresso do tema na agenda política. Como já ficou indicado, reacomodações no ensino religioso e a criação de comitês de diversidade religiosa apontam para novos e variados cenários. Tomemos, por exemplo, o espaço urbano. Os evangélicos vêm se destacando por sua presença em regiões periféricas e centrais, em alguns casos assinalando sua força com a construção de grandes templos. Situação semelhante ocorre na política institucional, por conta da eleição de seus representantes em parlamentos municipais, estaduais e federais. Ou seja, quando olhamos para as cidades e as instituições legislativas, os evangélicos adquirem grandeza em termos de representação e reconhecimento. No entanto, se consideramos o universo da cultura – sobretudo naquelas dimensões que envolvem narrativas que vinculam religião e nacionalidade –, os evangélicos enfrentam dificuldades de representação e reconhecimento, o que contrasta com a posição conferida a afrorreligiosos e, sobretudo, católicos.19 Os cenários envolvem também dimensões discursivas. É possível, por exemplo, detectar uma tensão entre duas categorias que percorrem as formas estatais de valorização da diversidade religiosa. No ato de criação do Comitê Estadual da Diversidade Religiosa do Rio Grande do Sul,20 algumas autoridades utilizaram a noção de “tolerância”, enquanto outras, recusando essa noção, preferiram se referir a “direitos”. Partindo dessa tensão, é interessante notar que a 20

ascensão pública dos evangélicos no Brasil ocorreu baseada no recurso ao direito de liberdade religiosa. Nesse caso, a “liberdade religiosa”, longe de significar a garantia de existência de um grupo religioso, serviu para acompanhar sua expansão por várias esferas da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, se atentarmos para o uso da expressão “intolerância religiosa”, percebemos que ela comumente se articula às denúncias dirigidas contra os evangélicos em defesa dos afrorreligiosos. Ou seja, outra tensão se estabelece entre liberdade religiosa e intolerância religiosa. Penso, portanto, que, quando se trata de diversidade religiosa, uma série de variáveis interfere na manutenção de hegemonias e no seu questionamento. Em contextos institucionais, como aquele que foi analisado neste texto, configurações hegemônicas podem se tornar mais explícitas. Um exemplo são as Forças Armadas no Brasil, que adotam o modelo das capelanias para oferecer assistência religiosa aos militares. Segundo Boldrini (2012: 112): “Existe um total de 67 vagas para capelães nas Forças Armadas, sendo que o número de capelães de cada grupo religioso corresponde à proporção de adeptos na população brasileira, tendo como base o censo demográfico do IBGE”. Ora, o censo demográfico não capta distinções entre católicos praticantes e não praticantes e reflete as condições que levam a subestimar o número de pessoas que recorrem a templos afrorreligiosos. Adotá-lo com critério implica em privilegiar o catolicismo em detrimento das religiões afro-brasileiras. A experiência conduzida no GHC produz entendimento bem diverso acerca da diversidade religiosa. Há um compromisso com o pluralismo religioso. Isso não significa que não haja outras hegemonias, traduzidas em configurações espaciais e categorias discursivas, que tentei expressar com a formulação “católico-luterana-afro-assembleiana”. Menos que um bloco, essa composição indica um campo de tensões. Notei também que há uma espécie de diálogo de diversas religiões com o tema da pluralidade, mediado pela existência de duas configurações muito diferentes de espaço inter-religioso. Ao não seguir o modelo da capelania, o Fórum 21

Inter-Religioso do GHC vem apostando em um gerenciamento mais aberto da diversidade, oferecendo-se como um âmbito que pode contemplar muitos participantes e procurando administrar a resultante a partir de condições específicas constituídas pelos interessados. Portanto, o acompanhamento e a análise dessa experiência em hospitais de uma capital brasileira é uma forma interessante de perceber como transformações mais amplas em curso em sociedades latino-americanas se traduzem em arranjos institucionais específicos. Nesses arranjos, hegemonias são reconfiguradas. Alguns movimentos apontam para a conquista de espaços por parte de agentes subalternos. É o caso dos evangélicos, que buscam expressar sua força também nos espaços hospitalares. É também o caso dos afrorreligiosos e outras religiões minoritárias, que lutam pelo direito à presença e à visibilidade. Os católicos, por sua vez, representam a um só tempo o agente privilegiado e ameaçado. Acredito que o desafio para os estudiosos está em compreender a articulação entre vetores mais amplos e configurações específicas, considerando as dimensões políticas envolvidas nos variados cenários e formas de conceber e administrar a diversidade religiosa no Brasil.

Referências bibliográficas BOLDRINI, Marcos 2012 Desconfessionalização dos espaços religiosos e assistência religiosa em hospitais de Porto Alegre. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUC-RS. BECKFORD, James. 2003 Social Theory and Religion. Cambridge: Cambridge University Press. BERGER, Peter.

22

1967 The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion. Nova York, Anchor Books. BURITY, Joanildo A. 1997 Identidade e Política no Campo Religioso: Estudos Sobre Cultura, Pluralismo e o Novo Ativismo Eclesial. Recife: IPESPE/Editora UFPE. CAMURÇA, Marcelo Ayres 2006 “A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000,” pp.35-48 in F. Teixeira e R. Menezes (orgs.), As Religiões no Brasil – Continuidades e Rupturas. Petrópolis: Vozes. COLLINS, P., et al. 2007 NHS Hospital ‘Chaplaincies’ in a Multi-Faith Society: The Spatial Dimension of Religion and Spirituality in Hospital (Final Report). Durham: Durham University / National Health Service Department of Health, Estates and Facilities. FRIGERIO, Alejandro e Hilario Wynarczyk 2008 “Diversidad no es lo mismo que pluralismo: cambios en el campo religioso argentino (1985-2000) y lucha de los evangélicos por sus derechos religiosos.” Sociedade e Estado 23 (2): 227-260. GILLIAT-RAY, Sophie 2008 “From ‘Visiting Minister’ to ‘Muslim Chaplain’: the growth of Muslim chaplaincy in Britain, 1970-2007,” pp. 145-157 in Barker, E. & Richardson, J. (eds.), The Centrality of Religion in Social Life. Aldershot: Ashgate. GIUMBELLI, Emerson 2008 “A Presença do Religioso no Espaço Público: Modalidades no Brasil.” Religião & Sociedade, 28 (2): 80-101. 23

GIUMBELLI, Emerson 2011 “Ensino religioso e assistência religiosa no Rio Grande do Sul: quadros exploratórios.” Civitas: Revista de Ciências Sociais, 11 (2): 259-283. GIUMBELLI, Emerson 2013 “The problem of secularism and religious regulation: anthropological perspectives.” Religion and Society – Advances in Research, 4: 93-108. HEWSON, Chris e Ralf Brand 2011 “Multi-Faith Space: Towards a Practice-based Assessment”. Paper presented at the International RC21 Conference 2011. JOHNSON, Paul C. 2005 “Three Paths to Legitimacy: African Diaspora Religions and the State.” Culture and Religion, 6 (1): 79-105. LEVINE, Daniel 2012 Politics, Religion, and Society in Latin America. Boulder: CO. Lynne Rienner Publishers LÉVY, Isabelle 2004 La Religion à l’Hôpital. Paris: Presses de la Renaissance. MACHADO, Maria das Dores Campos 2012 “Religião, cultura e política”. Religião & Sociedade, 32 (2): 29-56. MAFRA, Clara 2011 “A ‘arma da cultura’ e os ‘universalismos parciais’.” Mana, 17: 607-624. MAINWARING, Scott

24

1986 The Catholic Church and Politics in Brazil, 1916-1985. Stanford: Stanford University Press. MONTERO, Paula 2006 “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasi.l” Novos Estudos CEBRAP, 74: 4765. PIERUCCI, Antônio Flávio 2006 “Cadê nossa diversidade religiosa? – Comentários ao texto de Marcelo Camurça,” pp. 49-51 in F. Teixeira e R. Menezes (orgs.), As Religiões no Brasil – Continuidades e Rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006. RANQUETAT Jr., Cesar Alberto 2012 Laicidade à brasileira: um estudo sobre a controvérsia em torno da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Porto Alegre: Tese de Doutorado, PPGAS/UFRGS. SANCHIS, Pierre 1995 “As tramas sincréticas da história: sincretismo e modernidade no espaço lusobrasileiro.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28: 123-138. SULLIVAN, Winnifred 2010 “Spiritual Governance”. Texto apresentado no evento “States of Devotion: Religion, Neoliberalism and the Politics of the Body in the Americas”, promovido por The Hemispheric Institute of Performance and Politics (New York University). WALZER, Michael 1999 On Toleration. Yale: Yale University Press.

25

1

Uma primeira versão deste texto foi apresentada na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os

dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. Este trabalho insere-se no âmbito do projeto “Presença religiosa no espaço publico no Brasil em três âmbitos”, apoiado por Bolsa de Produtividade do CNPq. 2

Para um aprofundamento da discussão acerca das relações entre Estado e religiões no Brasil, pode-se recorrer a

Montero (2006) e Giumbelli (2008, 2013). Para um quadro mais amplo, ver Levine (2012). 3

Para o comitê, ver http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/programas/diversidade-religiosa, acesso

em 18.03.2014. As ações do comitê não foram publicizadas por enquanto. Alguns estados promovem iniciativas similares. Acerca de disputas envolvendo o campo dos direitos sexuais, ver Machado (2012). 4

Cf. http://www.ghc.com.br/default.asp?idmenu=1, acessado em 08.05.2012. Para a história do GHC, baseio-me

em Boldrini (2012), que recorreu a fontes escritas e entrevistas. Sobre a relação entre Igreja Católica e políticas sociais no Brasil, ver Mainwaring (1986). 5

As fontes para o histórico dos espaços religiosos nos três hospitais e para a sua gestão são diversas: conversas

informais e entrevistas que realizei, observações de eventos efetivadas por mim ou pela auxiliar de pesquisada que integrou o projeto, documentos que me foram transmitidos por pessoas ligadas à gestão dos espaços, dados sistematizados na tese de Ranquetat Jr (2012) e, sobretudo, na dissertação de Boldrini (2012). Manifesto meus agradecimentos a esses dois pesquisadores e à auxiliar de pesquisa, Victoria da Fonseca Pereira, assim como aos meus interlocutores no campo de pesquisa. 6

No Brasil, distingue-se entre igrejas evangélicas históricas e as pentecostais. As últimas serão integradas ao

Fórum do GHC ao longo da década de 2000, com destaque para denominações identificadas à Assembleia de Deus, a maior igreja pentecostal em número de adeptos. 7

http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1114. Acessado em 08.05.2012.

8

“Plano de Trabalho” do Fórum Inter-Religioso do GHC, que me foi repassado por sua coordenação em 2011.

As religiões de matriz africana incluem variantes organizadas do culto aos orixás; no caso do Fórum, envolve representantes do Batuque e da Umbanda. Seicho-No-Ie é um grupo de origem japonesa, há bastante tempo estabelecido no Brasil. 9

Os dados do Censo de 2010 permitem o mesmo debate.

10

Dediquei a este tema vários textos. Ver o mais recente deles, Giumbelli (2011).

11

Ver nota 8.

26

12

Não há dados precisos sobre a frequentação dos espaços. As indicações estão baseadas em observações de

atividades nos espaços inter-religiosos realizadas em 2011 e 2012. As mesmas observações servem de base para o que vem a seguir. 13

Reunindo registros próprios com os de Boldrini (2012), temos acesso a informações relativas a três anos

(2010, 2011 e 2012). 14

No final de abril de 2012, a nova versão do regulamento de visitação lista um número maior de representantes.

Seria preciso acompanhar as reuniões da coordenação e outras atividades do Fórum para saber se há alguma mudança em termos de maior participação desses novos representantes. Comparando-se o cronograma dos espaços religiosos e o documento acima mencionado, verifica-se que alguns grupos (quase todos pentecostais) são mencionados no segundo e não no primeiro. Com base em outras informações, parece haver uma flutuação quanto à participação de igrejas pentecostais no Fórum. 15

No início de 2012, o leigo católico que participava da coordenação do Fórum afastou-se de seu cargo (assessor

da diretoria) no hospital. Como não houve a sua substituição no Fórum, a mudança fortaleceu o protagonismo da funcionária do hospital que é também adepta de religiões afro e atua junto à CEPPIR/GHC. 16

Duas imagens dessa capela podem ser vistas em:

http://www.ghc.com.br/default.asp?idMenu=4&idRegistro=6582. Acesso em 25.02.2013. 17

Noto a existência da Associação Cristã de Assistentes Espirituais Hospitalares do Brasil, que atua desde 2008

com essa denominação, organizando cursos e eventos. Para maiores informações, ver Boldrini (2012). 18

Não são muitas as referências sobre o tema, mas elas tendem a crescer. Ver algumas questões mais gerais

levantadas no texto de Hewson e Brand (2011) e no projeto em que estão envolvidos na Universidade de Manchester: http://www.sed.manchester.ac.uk/architecture/research/mfs/ (acesso em 11.05.2012). Outras referências são Gilliat-Ray (2008) e Collins (2007) para Inglaterra; Lévy (2004) para a França; Sullivan (2010) para os Estados Unidos. 19

Sobre essas questões, ver Mafra (2011) e Johnson (2005).

20

Sobre esse evento, no qual estive presente, ver http://www.portal.rs.gov.br/conteudo/19615/rs-e-o-primeiro-

estado-brasileiro-a-ter-comite-de-diversidade-religiosa-, acesso em 18.03.2014.

27

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.