Políticas públicas para formação de docentes: revendo princípios e dilemas.

May 30, 2017 | Autor: Ana Santos | Categoria: Educação, Ensino Superior, Educação Fisica
Share Embed


Descrição do Produto

Políticas públicas para formação de docentes: revendo os princípios e dilemas Ana Lúcia Padrão dos SANTOS

Ensaios

XI Seminário de Educação Física Escolar: Saberes Docentes

Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo

Introdução A relação entre políticas públicas e a formação de docentes pode ser analisada a partir de diferentes referenciais. Tal apreciação poderia ser feita a luz do conhecimento acadêmico, e sem dúvida traria ideias profundas e inovadoras a respeito do tema, porém seria um recorte específico do amplo universo de teorias a respeito do assunto. Outra abordagem viável é o estudo desta associação do ponto de vista da sociedade, que efetivamente sente as consequências práticas da dinâmica desta relação. Contudo, diante das limitações que se impõem a um ensaio seria difícil contemplar as diferenças sociais, econômicas, geográficas e tantas outras existentes em um país com tamanha dimensão e diversidade. Assim, optou-se por examinar o vínculo entre estes dois elementos a partir da legislação vigente. Inicialmente porque a legislação se aplica a todo o país, independentemente da região, da condição social e das diferenças de pensamento. Além disso, a legislação é na verdade a materialização do pensamento e da lógica do poder público sobre determinada área. Vale ressaltar ainda que esta temática é constante nos meios de comunicação, porém nem sempre a sociedade tem

acesso a informações precisas a respeito do assunto, muito menos se detém a uma análise crítica a respeito das aplicações e consequências da lei, consequências essas que se impõem a acadêmicos, sociedade, alunos e todos os envolvidos neste contexto. No caso da Educação Física há outro elemento que teve e ainda tem uma interferência decisiva na construção deste cenário: o reconhecimento da profissão em 1998 e as mudanças no mercado de trabalho que resultaram em alterações significativas na legislação do ensino superior no que se refere à formação profissional na área, tanto para a licenciatura quanto ao bacharelado em Educação Física (BRASIL, 1998). A formação docente em Educação Física é certamente mais abrangente do que a experiência no ensino superior, porém é difícil negar sua importância e impacto na carreira profissional de um indivíduo. Considerando que as experiências vividas por aqueles que pretendem se tornar professores de Educação Física é fortemente influenciada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, é crucial que se procure conhecer e compreender suas proposições e seus conflitos.

Diretrizes curriculares nacionais: breve esboço No que se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais, de modo muito conciso é possível estabelecer a história recente dos cursos de licenciatura em Educação Física seguindo os seguintes documentos: - Resolução CFE nº 03/87, publicada em 1987, e que instituiu os conteúdos mínimos e duração dos cursos de graduação em Educação Física, que na época contemplava o bacharelado e/ou a licenciatura plena (BRASIL,1987). - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996 (BRASIL,1996). - Lei nº 9696/98, publicada em 1998 e que regulamenta a profissão de Educação Física (BRASIL,1998). - Resolução CNE/CP nº1/2002, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de

Professores da Educação Básica, e a Resolução CNE/ CP nº 2/2002 que estabelece a carga horária dos cursos de licenciatura em nível superior (BRASIL, 2002a, 2002b). - Parecer CNE/CES nº58/2004 e posteriormente a Resolução CNE/CES nº 7/2004 na qual são instituídas as Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em Educação Física (BRASIL, 2004b, 2004d). - Resolução CNE/CP nº 2/2004 que amplia o prazo para que as instituições de Ensino Superior se adaptem a nova legislação, o que volta a acontecer em 2005 através da CNE/CP nº1/2005 (BRASIL, 2004c, 2005). A observação mais atenta destes textos pode contar muito das mudanças da concepção do poder público em relação à formação dos professores de Educação Física, e também permite uma reflexão acerca do vínculo entre

Rev. bras. Educ. Fís. Esporte, São Paulo, v.25, p.19-22, nov. 2011. Suplemento n.6. • 19

Ensaios

XI Seminário de Educação Física Escolar: Saberes Docentes

as proposições feitas nestes documentos e a realidade dos cursos de ensino superior. Um dos textos fundamentais para a construção de projetos pedagógicos de cursos de licenciatura em Educação Física é a Resolução nº7/2004, que apesar de mencionar a autonomia das instituições de ensino superior na elaboração dos seus cursos, trata detalhadamente de vários aspectos da formação docente em Educação Física, a começar pela caracterização da sua atuação. O Professor da Educação Básica, licenciatura plena em Educação Física, deverá estar qualificado para a docência deste componente curricular na educação básica, tendo como referência a legislação própria do Conselho Nacional de Educação, bem como as orientações específicas para esta formação tratadas nesta Resolução (BRASIL, 2004d, p.18).

Na sequência do texto são enunciadas as competências e habilidades gerais e específicas que devem ser desenvolvidas ao longo da formação pelo aluno do curso de Educação Física, bem como é descrita minuciosamente as características da formação ampliada e da formação específica do aluno, a qual é concebida como um conjunto de conhecimentos identificadores da Educação Física. A estruturação curricular dos cursos prevê a organização dos conhecimentos através de disciplinas e também de componentes curriculares obrigatórios como o estágio profissional curricular, a prática profissional e as atividades complementares, sendo possível ainda acrescentar no projeto pedagógico a realização do trabalho de conclusão de curso. Além da configuração curricular, há também uma determinação muito precisa no que se refere à carga horária dos cursos e da distribuição dos seus componentes, como determina a Resolução CNE/CP n° 2/2002.

Art. 1º A carga horária dos cursos de Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, será efetivada mediante a integralização de, no mínimo, 2800 (duas mil e oitocentas) horas, nas quais a articulação teoria-prática garanta, nos termos dos seus projetos pedagógicos, as seguintes dimensões dos componentes comuns: I - 400 (quatrocentas) horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso; II - 400 (quatrocentas) horas de estágio curricular supervisionado a partir do início da segunda metade do curso; III - 1800 (mil e oitocentas) horas de aulas para os conteúdos curriculares de natureza científico-cultural; IV - 200 (duzentas) horas para outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais (BRASIL, 2002b, p.9).

Destaca-se ainda que a influência do poder público na estruturação dos cursos de formação de professores em Educação Física não se dá apenas através das Diretrizes Curriculares Nacionais, mas também através da fiscalização do cumprimento de tais diretrizes através do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior - SINAES, instituído a partir da Lei nº 10.861 de 14 de abril de 2004 (BRASIL, 2004a). Entender a lógica do poder público sobre a formação de professores é o primeiro passo para poder dialogar com as instituições responsáveis pelas diretrizes nacionais, entender as consequências destas diretrizes no cotidiano das instituições de ensino superior e identificar seus dilemas e as suas contradições no processo de aprimoramento na formação professores em Educação Física.

Diretrizes curriculares nacionais: breve confronto com a realidade Diante das diretrizes curriculares alguns impasses se estabelecem tanto do ponto de vista conceitual quanto do ponto de vista prático. Inicialmente é preciso considerar que os docentes de cursos superior em Educação Física, na sua grande maioria tiveram sua própria formação a partir de um currículo único e nem sempre acompanharam as discussões conceituais a respeito da identidade da licenciatura e do bacharelado. Os professores que se dedicaram ao ensino superior e que, de alguma forma, seguiram a carreira acadêmica em cursos de pósgraduação muitas vezes se dedicaram aos estudos de aspectos tão específicos de suas áreas que se distanciaram da identidade dos campos do saber da licenciatura. Na sua

prática docente diária em faculdades, centros integrados e universidades, a grande maioria de professores trabalha em um regime de trabalho conhecido como horista, ou seja, recebem apenas pelas aulas que lecionam, que em geral é a sua área de especialização, e portanto, acabam por não ter tempo para acompanhar as mudanças na legislação, muito menos de tentar compreendê-la de modo mais profundo e crítico. Evidência deste problema é que muitas instituições buscam aproximar os currículos da licenciatura e bacharelado e não conseguem fazer a distinção entre os dois projetos pedagógicos, muito menos diferenciar o perfil do egresso em cada curso. Mesmo depois de tanto tempo da publicação da legislação supracitada,

20 • Rev. bras. Educ. Fís. Esporte, São Paulo, v.25, p.19-22, nov. 2011. Suplemento n.6.

o Conselho Federal de Educação Física - CONFEF, no intuito de esclarecer procedimentos referentes à emissão de registro profissional, fez uma consulta ao Ministério da Educação, que em resposta ao CONFEF, através de Nota Técnica reafirmou a exigência legal da diferenciação dos cursos de licenciatura e bacharelado. (BRASIL, 2010). Com essa nova regulamentação, o licenciado em Educação Física está habilitado a atuar na docência em nível de Educação Básica e o bacharel a atuar no ambiente não-escolar. Portanto, o aluno que deseja atuar nas duas frentes deverá obter ambas as graduações, comprovadas através da expedição de dois diplomas, com conseqüência de haver concluído dois cursos distintos, com um ingresso para cada curso.

Outro problema que diz respeito aos docentes do ensino superior que formam os licenciados em Educação Física é que nem sempre estes tais professores tem a formação adequada, apesar da legalidade de sua atuação profissional. Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2010) o curso de Educação Física está em oitavo lugar entre os cursos mais procurados no ensino superior. No Senso de Educação Superior 2009 (BRASIL, 2010) consta que existem no país 422 cursos de Educação Física. Considerando que a COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE P ESSOAL DE N ÍVEL S UPERIOR (2011) aponta que existem 25 programas de mestrado e 13 programas de doutorado na área de Educação Física a relação que se estabelece é de um programa de mestrado para cada 16,8 cursos de formação de professor em Educação Física e um programa de doutorado para cada 32,4 cursos de formação de professores em Educação Física. Estes dados revelam que além do problema da formação do docente para o ensino superior, ou da escassez deste profissional qualificado, para atender as exigências do

Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior - SINAES (BRASIL,2004a), muitas vezes os cursos de Educação Física procuram mestres e doutores em outras áreas para atuarem na implementação de seu projeto pedagógico e isso, por vezes, acaba por tornar ainda mais nebulosa a identidade dos cursos voltados a licenciatura. Considerando-se que estes profissionais são os responsáveis por definir e desenvolverem em suas disciplinas os saberes docentes pertinentes à formação do professor de Educação Física e de desenvolverem as competências e habilidades características desta atuação profissional, o cenário atual se apresenta problemático. Se no campo das disciplinas existem aspectos de difícil solução, no que se refere aos outros componentes curriculares obrigatórios a situação não é mais fácil. Do ponto de vista da legislação é obrigatório que o aluno, durante sua formação, cumpra o estágio curricular (400 horas) e a prática de ensino (400 horas), que na sua totalidade significam 28,57% de toda a carga horária do curso (BRASIL, 2002b). Levando-se em conta que nem todas as regiões do país a Educação Física está presente nos anos iniciais da educação formal é difícil imaginar como estes alunos conseguem cumprir tais exigências legais e ter uma visão ampla do ensino básico. Outro dado preocupante é apresentado pelos resultados do Relatório Síntese - ENADE 2007 (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2007), no qual 59% dos ingressantes e 53,4% dos concluintes relatam estarem matriculados em cursos noturnos, e 64,9% dos ingressantes e 81,7% dos concluintes relatam trabalhar. Se nos cursos noturnos não há a disciplina Educação Física nas escolas, é de se imaginar de que modo tais alunos conseguem cumprir 800 horas de estágio curricular e prática de ensino em um horário que não é o do seu curso.

Ensaios

XI Seminário de Educação Física Escolar: Saberes Docentes

Conclusão A formação do docente em Educação Física ainda é um assunto que requer grande aprofundamento teórico e conceitual, além da análise dos resultados práticos dos princípios adotados pelo poder público. A legislação é importante para nortear as discussões a esse respeito e evitar divagações infundadas, porém é importante também que a sociedade e especialmente os profissionais da área se apropriem do conhecimento desta legislação

e atuem no sentido de implementá-la da melhor forma possível para cada realidade e ainda se mobilizem para tentar modificá-la naquilo que ela não corresponde aos anseios da sociedade. Uma relação positiva entre o poder público e a sociedade, no que se refere à formação de professores, depende de conhecimento sobre esta temática e diálogo entre as partes envolvidas. diferenciação dos cursos de licenciatura e bacharelado.

Rev. bras. Educ. Fís. Esporte, São Paulo, v.25, p.19-22, nov. 2011. Suplemento n.6. • 21

Ensaios

XI Seminário de Educação Física Escolar: Saberes Docentes

Referências BRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 9394, de 17 de dezembro de 1996. Brasília: Senado, 1996. ______. Lei n. 9696, de 1º de setembro de 1998. Brasília: Senado, 1998. ______. Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004. Brasília: Senado, 2004a. BRASIL. Conselho Federal de Educação. Resolução n. 3, de 16 de junho de 1987. Diário Oficial n.172, Brasília, 1987. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CSE n. 58, de 18 de fevereiro 2004. Brasília: CNE, 2004b. ______. Resolução CNE/CP n. 1, de 18 de fevereiro de 2002. Brasília: CNE, 2002a. ______. Resolução CNE/CP n. 2, de 19 de fevereiro de 2002. Brasília: CNE, 2002b. ______. Resolução CNE/CP nº1, de 17 de novembro de 2005. Brasília: CNE, 2005. ______. Resolução CNE/CP nº2, de 1 de setembro de 2004. Brasília: CNE, 2004c. ______. Resolução CNE/CSE n. 7, de 31 de março de 2004. Brasília: CNE, 2004d. BRASIL. Ministério da Educação. Nota Técnica n° 003/2010 - CGOC/DESUP/SESu/MEC. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2011a. ______. Resumo técnico: censo da educação superior de 2009. Brasília: Ministério da Educação, 2010. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2011b. COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Mestrados / Doutorados reconhecidos. Brasília: CAPES, 2011. Disponível em: . AceSso em: 31 out. 2011. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Relatório Síntese - ENADE 2007. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2011.

22 • Rev. bras. Educ. Fís. Esporte, São Paulo, v.25, p.19-22, nov. 2011. Suplemento n.6.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.