PONTES TRANSATLÂNTICAS: DAS RELAÇÕES ENTRE A MADEIRA E O BRASIL NO PRIMEIRO QUARTEL DO SÉCULO XIX (ALGUNS ASPECTOS) (2011)

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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP

ISBN: 978-85-60667-69-7

PONTES TRANSATLÂNTICAS: DAS RELAÇÕES ENTRE A MADEIRA E O BRASIL NO PRIMEIRO QUARTEL DO SÉCULO XIX (ALGUNS ASPECTOS)

Paulo Miguel Rodrigues - Universidade da Madeira (Portugal)1

A análise das relações entre a Ilha da Madeira e o Brasil durante o século XIX remete-nos para diversos aspectos da realidade insular madeirense e brasileira, não se podendo resumir, por isso, à tradicional temática das migrações, que tende a predominar nos trabalhos de investigação na área das Humanidades. Com a nossa comunicação, pretendemos destacar esses outros (novos) aspectos, demonstrando a sua relevância para a compreensão das relações luso-brasileiras, que têm na Madeira a sua pedra-de-toque. Neste sentido, ocupar-nos-emos da análise de um período-charneira marcado por uma crise multifacetada, sentida nas duas margens do Atlântico, aproveitando para reflectir também sobre algumas questões-chave (a adjacência, a mobilidade humana, as trocas interculturais) que emergiram durante o período investigado e que nos ajudam a compreender melhor as relações entre a Madeira e o Brasil (do cultural, ao económico, passando pelo político). Assim, o nosso ponto de partida situar-se-á em finais de 1807, data da fuga da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, acontecimento que contribuiu para a criação de um novo paradigma relacional entre a Madeira e o Brasil. Apresentaremos, portanto, uma breve síntese analítica, sobre três temas, sabendo que cada um deles é susceptível de um desenvolvimento mais aprofundado, mas que não cabe no âmbito deste Congresso. No fundo, cada um deles seria suficiente para outras tantas comunicações. As fontes consultadas encontram-se no ANTT (Lisboa), no Arquivo Regional da Madeira (Funchal) e no National Archives / Public Record Office (Londres). 1

Doutor em História Contemporânea de Portugal (Universidade Madeira), Mestre em História de Portugal e Licenciado em História (Universidade Lisboa, Faculdade Letras). Professor auxiliar no Centro de Competências de Artes e Humanidades da Universidade da Madeira (CCAH), coordenador do Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais (CIERL). A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) financiou parte dos custos de participação do autor neste Congresso, através de uma bolsa.

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Neste sentido, vamos passar um rápido olhar sobre: as consequências gerais e imediatas da fuga da Coroa portuguesa nas relações entre o Brasil e a Madeira; as ligações particulares entre Pernambuco e a Ilha, e a posição da Coroa e da Regência portuguesas, no contexto dos acontecimentos de 1817, tendo em conta a comunidade madeirense residente em Pernambuco); a interessante (mas ainda muito desconhecida) questão da Adjacência da Madeira (ao Reino de Portugal e/ou ao do Brasil). O período que delimita o objecto desta comunicação foi, como sabemos, de profundas mudanças nos contextos internacional, nacional e local. Na verdade, durante o primeiro quartel do século XIX, para além de se ter alterado o sistema internacional, também se começaram a desenvolver, no espaço atlântico português - em particular naquele que hoje se considera da lusofonia - as raízes dessa enorme árvore, de crescimento lento e complexo, que se chamou liberalismo, então associado ao nacionalismo e aos projectos de autonomia, emancipação, independência e formação de novos Estados (quer no espaço Ibero-americano, quer no espaço europeu). A Ilha da Madeira também entrou nesse turbilhão, até porque, nunca é de mais destacar, durante o período em causa o Atlântico reafirmou a sua importância, quer enquanto espaço central/essencial de confronto, quer enquanto espaço de desequilíbrio entre as grandes potências. Ou seja, na perspectiva europeia ocidental, o Atlântico reafirmou-se enquanto auto-estrada para o mundo, via principal de ligação aos Impérios. Neste quadro, a Madeira, colónia portuguesa, representava, para quem a ocupasse, uma importante mais-valia, não só sob o ponto de vista estratégico-militar, mas também económico-financeiro. Por isto mesmo a Ilha foi ocupada, duas vezes, pelas forças britânicas: a primeira, em Julho de 1801 (durante 6 meses, até Janeiro de 1802); a segunda, em Novembro de 1807 (durante 7 anos, até Outubro de 1814). Neste segundo caso, aliás, a Ilha começou por ser tomada pelas forças britânicas, deixando de ser, inclusive, portuguesa, entre 27 de Dezembro de 1807 e Março/Abril 1808. Mas este é um assunto sobre o qual já escrevemos e que se encontra à margem do objecto desta comunicação1. Mesmo sem desenvolver este assunto, é necessário tê-lo sempre presente, pois só assim se compreende devidamente o teor das relações que se estabeleceram entre a Madeira e o Brasil. A este respeito, já tivemos oportunidade de apresentar uma proposta

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de subdivisão em quatro fases para este período (1800-1825)2: 1. 1800-1807; 2. 18081814; 3. 1815-1820: 4. 1821-1825. 1. 1800-1807: caracterizada ainda pelas linhas de força definidas no século XVIII, isto é, persistência de um sistema de monopólios, atribuídos e controlados pela Coroa portuguesa. A partir de Lisboa se restringia, evitava ou tornava ilegais as ligações comerciais com a costa brasileira. Na verdade, mesmo às ligações asseguradas por navios com bandeira portuguesa se imponha um limite, não sendo permitido que ultrapassassem os dois ou três navios/ano3. Aliás, mesmo quando, no início do século, se procurou criar um sistema de correios marítimos, foi evidente a preocupação de afastar a Madeira do circuito luso-brasileiro, o que se concretizou, por exemplo, na indicação expressa de que os correios apenas deviam existir entre o Reino, a Madeira e os Açores4. Apesar de tudo, convém não esquecer que entre Julho de 1801 e Janeiro de 1802, na sequência da ameaça franco-espanhola na Península Ibérica e da Guerra das Laranjas, a Ilha esteve ocupada por forças britânicas. Esta primeira ocupação persistiu até à definição dos termos da Paz de Amiens, entre a França e o Reino Unido, que estabilizando a situação na Europa e na Península, tornava inconsequente a manutenção de uma força armada britânica na Madeira. No fundo, a Madeira funcionava como uma farpa no próprio sistema comercial português - uma farpa impulsionada pelos mercadores britânicos, que tentavam usar a Ilha como entreposto (o carrefour, nas palavras de Albert Silbert), usado para promover também a introdução de produtos/fazendas no espaço brasileiro. A coroa portuguesa tinha consciência disto e em 1803 viu-se obrigada a reafirmar, com veemência, a proibição do embarque a partir do Funchal a quaisquer géneros estrangeiros com destino ao Brasil5. Como facilmente se deduz, esta situação só se manteve até à fuga da Corte e à abertura dos portos brasileiros, iniciativas que ocorreram por decisiva pressão britânica. 2. 1808-1814: marca o fim de um paradigma, introduzindo alterações muito significativas, algumas delas radicais, nas relações madeirense-brasileiras.

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A pedra-de-toque foi fim do monopólio comercial imposto por Lisboa, algo que a fuga da Corte e, acima de tudo, a pressão britânica (política e comercial) e as reivindicações insulares/locais vieram pôr termo6. A primeira alteração deu-se quase de imediato, pois a partir de então as relações entre a Madeira e o Brasil passaram a ser as relações entre a Ilha e a Coroa portuguesa. Ou seja, de interditas, as ligações passaram a ser necessárias, se não mesmo imperiosas, inclusive na perspectiva da Corte portuguesa, pouco interessada em permitir a natural e progressiva ascensão da influência britânica na Madeira. Estas circunstâncias, aparentemente simples, tiveram múltiplas consequências, impondo, desde logo, a redefinição do paradigma administrativo, que teve repercussões políticas e institucionais. Numa outra dimensão, é preciso ter consciência das alterações que se verificaram nos quadros mentais dos coevos, algo que ainda hoje temos alguma dificuldade em compreender. Na verdade, é-nos, de todo, impossível aferir aquilo que sentiram e vivenciaram os homens da época, perante tamanha mudança na arquitectura do Império português. Isto será relevante, por exemplo, quando se colocar a questão da Adjacência, no início dos anos Vinte, no âmbito da revolta liberal e da instauração do novo ideal político, com um forte cariz nacionalista. Mas esta segunda fase, como já se disse, foi marcada, acima de tudo, pelos acontecimentos da última semana de Dezembro de 1807, quando a Madeira foi tomada pelas forças britânicas, deixando de se exercer então sobre ela a soberania portuguesa, situação que se manteve até Março/Abril de 1808, data em que aquela foi devolvida à Coroa, embora com o comando militar reservado aos britânicos. Só então se deu inicio à segunda ocupação, que na sua génese e princípios norteadores foi muito semelhante à que se concretizara em 1801. Desta vez, porém, com uma duração consideravelmente superior, uma vez que os britânicos só retiraram passados sete anos, em Outubro de 1814. Mas estes anos marcaram uma viragem significativa, com repercussões na História, Cultura e Literatura madeirenses e nas relações da Ilha com o espaço Atlântico e, em particular, com o Brasil, embora este continue a ser um vasto campo por investigar, circunstância que, por defeito, leva muitos a concluir que nada existiu e que nada há para estudar.

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No caso específico das relações madeirense-brasileiras, a fuga do príncipe regente representou uma mudança substancial, mas num sentido diametralmente oposto àquele que seguiram as relações entre o espaço brasileiro e as cidades de Lisboa e do Porto. Ou seja: se a passagem da Corte para o Rio implicou uma quebra abrupta nas ligações/contactos do Reino com o Brasil, aconteceu exactamente o contrário em relação ao Funchal, em termos absolutos, mas acima de tudo em termos relativos. A começar pela dimensão material. Bastam-nos alguns exemplos: o número de saídas de navios do porto do Funchal com destino ao Brasil passou de um máximo de 2/ano (entre 1799 a 1807), para um valor médio de 18 navios, entre 1808 e 1814, com picos de 32 navios (em 1808), 21 (em 1809 e 1810) e 29 (em 1813). O número médio de navios da Madeira com destino ao Brasil cresceu quase dez vezes. E é necessário ter consciência da importância da chegada de um só navio quando se trata do mundo insular. Algo semelhante sucedeu com os navios provenientes do Brasil, embora, como é óbvio, de uma forma não tão substancial: a média passou de 2 para 6 navios/ano, entre 1808 e 1814. O porto brasileiro com o qual se realizou maior intercâmbio (em valores totais, isto é, a soma entradas/saídas) foi o de Salvador da Baía: entre 1808 e 1814 saíram do Funchal 37 navios com destino a Salvador, pouco menos do que aqueles que se dirigiram para o Rio de Janeiro (45). Por outro lado, no que diz respeito aos navios que deram entrada no Funchal, destacam-se claramente os 28 provenientes de Salvador, perante os 5 oriundos do Rio. A este respeito, aliás, convém destacar o lugar ocupado pelo Pernambuco, com 19 navios a saírem do Funchal com destino ao Recife. Neste novo quadro, por razões conjunturais, estavam extintos os pressupostos que afastavam a Madeira do circuito luso-brasileiro. Isto fez aumentar, de uma forma exponencial, o tráfego naval, incentivado, inclusive, por algumas medidas, tomadas pela Coroa, que agora visavam proteger a entrada e o comércio dos produtos brasileiros na Ilha, com destaque para o algodão, o tabaco, o açúcar e a aguardente (cachaça), tendo em vista quer a sua reexportação, quer a sua utilização interna7. Ora, com o aumento do intercâmbio, também se transportaram ideias, reivindicações comuns, periódicos, folhetos, ideologias, emergindo assim novas noções e propostas de relacionamento entre a Madeira e o(s) espaço(s) brasileiro(s).

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Neste âmbito, as autoridades insulares e locais, incentivadas pela distância a que passaram a estar da Corte (de semanas, para meses), pela presença britânica no Funchal, e também pela evolução da realidade político-administrativa brasileira (do surgimento de diversas Academias à fundação do Banco do Brasil), procuraram aprofundar e desenvolver a sua autonomia perante o(s) poder(es) do centro, quer promovendo novos mecanismos de decisão, que ultrapassem a(s) inércia(s) e o(s) descontentamento(s) que a distância centro/periferia também fizera emergir, quer adoptando uma atitude passiva ou activa, consoante estas beneficiassem os interesses insulares8. É exactamente esta dimensão que se vai salientar nas duas fases seguintes (18151820 e 1821-1825), até porque, pelo teor das reivindicações e pelo surgimento dos primeiros sinais de crise (dos dois lados do Atlântico), num quadro de mudança da conjuntura internacional, irá verificar-se uma aproximação clara da Ilha aos sentimentos brasileiros, em particular àqueles que se começaram a viver no Nordeste. Aliás, convém ter a noção de que em Pernambuco e na Baía existiam importantes comunidades madeirenses. 3. 1815-1820: A instituição do Reino Unido de Portugal e do Brasil, em Dezembro de 1815 - verdadeira tentativa de refundação do império português, que se pretendia concretizar e desenvolver através de uma união transatlântica, sob a égide da Casa de Bragança - é uma clara demonstração das intenções futuras de D. João VI (algo que aqui, como é óbvio, nos abstemos de analisar). A estas intenções a Inglaterra, como é evidente, não podia anuir e deixou-o sempre bem claro9. Esta terceira fase é marcada, portanto, pela ressaca do vendaval napoleónico, pelo início do sistema de hegemonia britânica, pela edificação do Reino Unido acima referido, mas também pela não adesão da Madeira à revolta liberal, entretanto vitoriosa no Reino. Na Ilha aquilo que se fez foi confirmar a fidelidade ao monarca e reconhecer a sua soberania, uma atitude aprovada e louvada por D. João VI. Com isto, a Madeira passava a estar adjacente ao Brasil, uma quase colónia, em teoria subordinada ao poder instalado no Rio de Janeiro, mas sobre pressão de Lisboa. Deste modo, a Madeira, à semelhança do que sucedeu no Nordeste brasileiro (em particular na Baía e em Pernambuco, exactamente os espaços com os quais a Ilha mantivera mais contactos), viu-se perante dois pólos de poder, ambos com intenções centrípetas. Sem a presença das tropas britânicas (que se retiraram em Outubro de

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1814)10, a Madeira flutuava no Atlântico - para usar uma expressão coeva -, entre a Corte e a Regência. E, à semelhança do que sucedia na Baía e em Pernambuco, exigia o reforço da sua autonomia, fundamentando-a na distância e nas medidas adoptadas por D. João no Rio. Também a este respeito se detecta a proximidade e as semelhanças entre a Ilha e aqueles dois Estados: não retiravam as vantagens de quem estava perto do poder (recebendo favores e privilégios), mas queixavam-se de ter o ónus de o sustentar. O mesmo sucedeu quanto à crescente insatisfação dos militares (como sucedeu no Recife) e à criação de (novos) impostos e/ou saques (no caso da Junta da Fazenda do Funchal), realizados para satisfazer as crescentes e elevadas necessidades financeiras da Coroa. Por outro lado, se na região nordestina se começou a fazer sentir a crise nas produções açucareira e algodoeira, na Madeira, com o fim das guerras napoleónicas, passou-se o mesmo em relação à produção vinícola. Ou seja, a vários níveis, os factores de insatisfação eram comuns, associados também à crise nas principais indústrias. A este quadro, devem ainda juntar-se outros dois factores: a) as ideias liberais, disseminadas pela Europa e Atlântico, associadas à emergência do nacionalismo, mas também ao autonomismo; b) a influência (nos dois lados do Atlântico) da actividade maçónica na definição das linhas de evolução política a seguir. Foi por ter consciência de tudo isto que a Coroa portuguesa se apressou a proibir, por exemplo, os contactos entre o Recife e o Funchal, quando se deu a eclosão do movimento de revolta em Pernambuco, em Março de 1817. De imediato se enviaram instruções, com carácter de urgência, para que fossem sequestrados os bens e os navios dos mercadores estabelecidos naquela praça brasileira que se encontrassem no Funchal (caso se provassem que estavam ligados à revolta)11. Não foi por acaso que também por este anos (1817 a 1819), ocorreram na Madeira vários confrontos entre alguns sectores da população e as autoridades insulares: os casos das vilas da Ponta do Sol, Calheta e São Vicente são os melhores exemplos. Daí que, ao mesmo tempo, o poder instalado no Brasil também se tivesse apressado a estabelecer (em 1818) um sistema de correios marítimos, que garantisse a rapidez na troca de correspondência entre Lisboa, o Funchal e o Rio. Vejam-se, portanto, as diferenças em relação à atitude adoptada durante a primeira fase (até 1807).

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Apesar de tudo, durante esta terceira fase, uma das questões proeminentes teve a ver com a definição da Adjacência política da Madeira, que se começou a colocar com as crescentes dúvidas em relação a quem tinha legitimidade e autoridade para exercer o poder sobre a Ilha. Esta foi uma indecisão que, por sua vez, promoveu fortes hesitações, não só quanto à atitude a adoptar perante a legislação que chegava ao Funchal, emanada do Rio, como também o que fazer perante as ordens provenientes das autoridades existentes em Lisboa. No fundo, o que estava em causa - em definitivo e de uma forma agravada após os acontecimentos de meados de 1820 no Reino - era saber a quem se devia subordinar a Ilha e as autoridades nela existentes, no quadro de um profundo nacionalismo que caracterizava os vintistas, decididos a fazer reverter o Brasil à sua antiga condição de colónia, mas continuando a admitir que a soberania legítima se mantinha na Coroa de D. João VI, em particular se este se comprometesse a jurar as Bases da Constituição12. Eis outro tema que ultrapassa o âmbito restrito desta comunicação, mas que nos interessa, pelo teor da resposta que chegou do Rio de Janeiro: a Madeira não devia qualquer sujeição às autoridades do Reino, impondo-se, por isso, que cumprisse a legislação adoptada no espaço brasileiro, por ser uma colónia, sob a tutela do ministério da Marinha e dos Domínios Ultramarinos (sediado no Rio)13. A este respeito, a Coroa só começou a vacilar (anuindo à aproximação da Ilha do Reino) a partir de Março/Abril de 1820, em parte porque na Corte só então se começou a ter a noção do rumo que estavam a seguir os assuntos políticos na Península (como poucos meses depois, em Agosto/Setembro se confirmou). Mas mesmo assim, o que se procurou defender, no primeiro trimestre de 1820, foi uma espécie de relação dual, algo que, na essência, estava de acordo com a (nova) monarquia que D. João pretendia desenvolver: por um lado, uma adjacência política, institucional e militar da Ilha ao Brasil; por outro, uma adjacência comercial e económica ao Reino, neste caso para que se cumprisse a legislação de carácter proteccionista a implementar no Reino.

4. 1821-1825: estes foram anos de extrema tensão, nos dois lados do Atlântico e também, por via disso, no arquipélago da Madeira. Como se sabe, as consequências políticas imediatas da revolta liberal, o regresso do monarca a Lisboa e a proclamação

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da independência do Brasil iriam marcar um momento de viragem na História Contemporânea de Portugal. Foi neste contexto que a Madeira viu, uma vez mais, ser alterado o teor das relações que vinha mantendo com o Brasil. A adesão da Ilha à causa liberal, a 28 de Janeiro de 1821, já fazia pressupor uma mudança, algo que o regresso de D. João VI ao Reino (em Julho) impôs em definitivo, colocando um ponto final nas bases relacionais estabelecidas desde 1808. Por outro lado, o regresso do monarca confirmou - se isso ainda fosse necessário - a subordinação da Ilha ao poder instituído em Lisboa, algo que, na prática, para muitos assuntos, já vinha ocorrendo desde Fevereiro de 1821. Verificou-se, assim, na essência, um regresso ao passado - uma quase analepse -, um esforço analéptico por parte do novo poder liberal, que também se deve compreender como parte integrante do desejo vintista de restaurar as forças da nação e do Império colonial, embora agora a coberto de um pensamento político diverso e de uma nova arquitectura de poderes, pensados destaque-se - quase exclusivamente para o Reino. O Grito do Ipiranga e o constante receio de uma renovada intervenção britânica, vieram apressar a concretização legislativa e jurídica do conceito de adjacência, artifício que os vintistas encontraram para confirmar e garantir em definitivo a soberania portuguesa sobre os arquipélagos da Madeira e dos Açores. A este respeito, porém, não podemos deixar de destacar o facto de, num primeiro momento, no projecto da Constituição brasileira de 1824 deixar em aberto a hipótese de expansão do novel Reino, inclusive para o Atlântico. Ora, parece-nos evidente que a(s) prioridade(s) seriam Angola e Cabo Verde, mas isto não nos deve fazer esquecer quer as palavras de D. João VI antes de regressar a Lisboa, assumindo adjacência da ilhas ao Brasil, quer o fundado receio que no Reino, num momento de confronto entre Portugal e o Brasil, efectivamente se sentiu em relação à manutenção da soberania portuguesa nas ilhas do Atlântico. O fiel da balança, como se percebe, foi a Inglaterra: não por acaso, a hipótese deixada em aberto no projecto de Constituição, desapareceu por completo do texto promulgado. No mesmo sentido, aliás, se devem entender a oposição britânica quer à manutenção do Reino Unido de Portugal e do Brasil, quer às renovadas intenções colonialistas de Portugal sobre o Brasil, quer ainda às incipientes intenções independentistas madeirenses e/ou às propostas para a Ilha passar a existir num regime

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de protectorado britânico (sucedâneo, por exemplo, daquele que os britânicos criado em algumas ilhas do Mediterrâneo, durante as guerras napoleónicas). Esta questão, porém, já faz parte de outra História. Para terminar podemos ainda referir que, em termos totais (entradas e saídas), entre 1799 e 1825, temos os seguintes valores registados: 112 navios/viagens a ligar a Baía à Madeira; 83 em relação ao Rio; 48 a Pernambuco, num total de 291 viagens (202 saídas e 89 entradas). Em termos percentuais, as saídas para o Brasil representaram 1% do total de saídas em 1807; 10% em 1808; 5% em 1809; 10% em 1813. De uma forma muito significativa, estes valores desceram para 0,3% em 1821 e 0,6% em 1822.

REFERÊNCIAS

RODRIGUES, Paulo Miguel, A Madeira entre 1820 e 1842: relações de poder e influência britânica, Funchal, Funchal500Anos, 2008. ------- A política e as questões militares na Madeira. O período das guerras napoleónicas, Funchal, SRTC/CEHA, 1999ª. ------- “Os interesses britânicos na Ilha da Madeira”, O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular, vol. I, Lisboa, Tribuna da História, 2009, pp. 101-152. ------- “A Madeira e o Brasil no primeiro quartel do século XIX”, As Ilhas e o Brasil, Funchal, CEHA, 2000, pp. 429-442, reeditado em A Madeira e o Brasil – Colectânea de Estudos, Funchal, CEHA, 2004, pp. 85-98. ------- “O movimento do porto do Funchal durante as Guerras Napoleónicas”, XIX Encontro da APHES (Working Paper), Funchal, 1999b (policopiado). SILBERT, Albert, Un carrefour de l’Atlantique: Madère (1640-1820), Lisboa, Império, 1954 (reed. 1997). NOTAS 1

Rodrigues, 1999ª. Rodrigues, 2000. 3 Silbert, 1954 (reed. 1997). 4 ARM-AGC, 197, 22/12/1800. 5 ARM-AGC, 197, 10/1/1803. 2

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Rodrigues, 1999b e 2009, pp. 101-152. No âmbito destas medidas, foram aumentados os direitos de todo o algodão que não fosse brasileiro. Para além dos géneros referidos, também vinham do Brasil muitos outros produtos, entre os quais se podem destacar: mel, meias solas, vassouras, varas, farinha, arroz, cera, lenha, couros, tábuas, cocos, café e cachaça. Com alguma frequência, também se encontra o chamado vinho da roda (vinho da Madeira, embarcado nos porões dos navios, para fazer o percurso no Atlântico durante largos meses, com vista ao apuramento das suas qualidades). 8 A criação das Juntas do Desembargo do Paço e da Agricultura (ambas em Setembro de 1811) são exemplos, que se vieram juntar às Juntas da Fazenda (Abril 1775) e Criminal (Novembro 1803). 9 Rodrigues, 2008. 10 Note-se que à época chegou a circular o rumor de que nas negociações de paz em Viena a Inglaterra ia exigir a entrega da Madeira, de algumas das Ilhas dos Açores e da Ilha de Santa Catarina. 11 ARM-AGC, 200, 26/3/1817 - A chamada revolução pernambucana eclodiu a 6 Março e durou até Maio de 1817. 12 As Bases da Constituição foram aprovadas a 9 de Março de 1821 e juradas por D. João, a 21 de Julho, pouco depois de ter desembarcado em Lisboa (a 4). 13 ARM-AGC, 200, 26/8/1815 e 2/10/1817. 7

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