Por aí e por muito longe: dívidas, migrações e os libertos de 1888

July 5, 2017 | Autor: Leonardo Marques | Categoria: Escravidão, Paraná, Pós-Abolição
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Por aí e por muito longe: dívidas, migrações e os libertos de 1888

Leonardo Marques

2 Copyright © 2009 by Leonardo Marques Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou fórmula, seja mecânico ou eletrônico, por fotocópia, por gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora.

Organizador da Coleção Carlos A. M. Lima Coordenação editorial Marcely Almeida Preparação e revisão de originais Édio Pullig Revisão e Copydesk Luciana Peres Editoração Eletrônica e Projeto Gráfico Margareth Bastos Capa Margareth Bastos

sobre foto de Margareth Bastos, Canyon Guartelá(PR)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M315p MARQUES, Leonardo Por aí e por muito longe:dívidas, migrações e os libertos de 1888 / Leonardo Marques. - Rio de Janeiro : Apicuri, 2009. 140p. : il. 16x23cm -(Distâncias) ISBN 978-85-61022-24-2 1. Escravos libertos - Paraná - História. 2. Escravos Emancipação - Paraná - História. 3. Escravidão - Paraná - História. I. Título. II. Série. 09-2953. 19.06.09 013289

CDD: 981.62 CDU: 94(816.2) 19.06.09

[2009] Todos os direitos desta edição reservados à Editora Apicuri. Telefone/Fax (21) 2533-7917 [email protected] www.apicuri.com.br

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à memória de Domingos Marques Teixeira

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Prefácio

Ainda há muito a se pesquisar sobre as experiências, estratégias e trajetórias dos libertos após a abolição final de 1888. De maneira geral, os historiadores se interessam muito mais pela escravidão do que pelo que sucedeu com as populações negras depois – omissão só parcialmente explicável devido às dificuldades de encontrar fontes adequadas para estudos da pós-abolição. A maioria dos cientistas sociais, por outro lado, prefere pesquisar o racismo e a resistência contra a dominação racial hoje ou nas últimas décadas, muitas vezes querendo intervir nos debates atuais sobre políticas públicas identitárias e compensatórias. O trabalho clássico de Florestan Fernandes focalizava os percursos de negros depois da abolição, como estratégia para explicar a persistência da desigualdade racial e avaliar as chances de sua superação na “sociedade de classes” característica do Capitalismo moderno.1 Hoje esta abordagem geral é muito criticada, sobretudo por historiadores da escravidão, por tratar os escravos como vítimas passivas, incapazes de responder de maneira ativa e criativa à sua situação, e por alegar que aos cativos faltavam autocontrole e laços sociais familiares e comunitários, o que teria levado os libertos a comportamentos autodestrutivos e contraproducentes, como a vagabundagem e o alcoolismo, que os incapacitaram para a competição no mercado de trabalho capitalista. Contra essas afirmações, numerosos historiadores apresentam evidências de que os escravos construíam sólidas redes de relações sempre que puderam, e que suas principais aspirações, formadas em boa medida pelo contato com pobres livres, eram essencialmente camponesas – acesso a terra, a formação de famílias e certo grau de autonomia na vida cotidiana.2 FERNANDES, 1978. Arrolar todos estes escritos seria impossível, porque criticar Fernandes virou uma espécie de ritual em quase qualquer dissertação ou tese sobre os últimos anos da escravidão, contudo 1 2

6 Com isso, eles invalidam várias das premissas centrais do argumento de Fernandes, mas geralmente não pesquisam o que aconteceu com os libertos e os negros nascidos livres depois da abolição. Portanto, contribuem com poucos subsídios para a elaboração de explicações alternativas pela persistência do racismo e da desigualdade racial nas décadas subsequentes. Com este livro, Leonardo Marques se une ao pequeno mas crescente grupo de estudiosos que aborda de maneira direta a vida dos ex-escravizados depois do 13 de maio. Os outros escritos nessa área geralmente estudam as regiões “centrais” do Brasil, sobretudo os estados e as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.3 Marques, no entanto, pesquisou uma região periférica – o Paraná –, onde, segundo os estereótipos prevalentes, a escravidão e as populações negras tinham pouca relevância. O método básico aqui é de seguir as trajetórias de indivíduos e famílias por meio da coligação de várias fontes, prestando atenção às relações sociais envolvidas na mobilidade social e nas mudanças geográficas. Para isso, Leonardo Marques focalizou principalmente os municípios de Campo Largo e Curitiba, pesquisando inventários, processos criminais, censos e listas de classificação de escravos para o fundo de emancipação. Ainda hoje, alguns estudiosos conceituados da escravidão ou das relações raciais em outras regiões do Brasil se referem ao Sul como uma espécie de nova Europa, quase sem negros e indígenas, assim compactuando com as representações difundidas por elites e intelectuais regionais no passado, e ainda acreditadas por muitos descendentes de europeus na região. Entretanto, Marques não somente evidencia a presença – já conhecida por historiadores do tema nessa região – de grande número de negros no Paraná, mas também demonstra a importância de se estudar regiões periféricas para a compreensão do que aconteceu com os libertos e negros nascidos livres antes e depois da abolição. Em função do “projeto camponês”, gestado dentro da própria escravidão e em contato com os pobres livres, muitos libertos procuraram as áreas periféricas, onde o acesso a terra era mais fácil. Se, depois da efetiva proibição do tráfico, em 1851, muitos escravos foram vendidos das regiões periféricas para os centros de cafeicultura, sobretudo São Paulo, houve também um fluxo no sentido inverso de pobres livres, muitos deles negros, em busca de terras. Ao longo do século XIX, a proporção de livres entre a população negra do Paraná sempre foi alta. Marques também apresenta evidências de que somente uma minoria dos ex-cativos de Campo Largo migrou para a cidade de Curitiba, a maioria ou ficou em Campo Largo ou migrou para o interior do Estado. Usando algumas das críticas mais incisivas se encontram em Andrews, 1991; Azevedo, 1987 e Slenes, 1999. 3 Por exemplo, a maioria dos ensaios em Cunha e Gomes (org.) 2007 se trata de Rio de Janeiro ou São Paulo. Outro livro muito importante nessa área é Rios e Mattos 2005, que é principalmente sobre o Estado do Rio de Janeiro, com algumas partes sobre São Paulo.

7 dados de censos, Leonardo Marques também mostra que os municípios paranaenses com maior proporção de não brancos eram justamente aqueles da fronteira de expansão agrícola. Isso contradiz o mito, tantas vezes repetido nos estados do Sul, de que a derruba do mato e a expansão das áreas cultivadas foi obra quase exclusiva dos imigrantes europeus e seus descendentes. Certamente ainda há muito que pesquisar a respeito dos não brancos livres antes e depois da abolição, mas o trabalho de Marques é um bom início, no que diz respeito ao Paraná, apontando a importância central da família e das migrações.4 Um motivo central pela mobilidade geográfica de libertos era a busca da reunião familiar. Marques mostra a importância da família nas migrações com a discussão de casos específicos. Além dos laços emocionais óbvios e as tentativas de reconstituir famílias parcialmente desmembradas por venda ou herança, o autor nos lembra da importância da família para o “projeto camponês”. Como em quase qualquer sociedade camponesa, a sobrevivência dependia da mão de obra familiar. Mas as relações sociais que importavam para os ex-cativos não eram somente os laços “horizontais” de parentesco, amizade e vizinhança. Para sobreviver com certo grau de segurança, muitas vezes dependiam de relações com as elites locais. Para essas elites, a crise e o fim da escravidão colocavam o problema de como manter sua posição social e garantir o acesso ao esforço de trabalho dos pobres. Marques aponta a intensificação, nesse período, de estratégias de “produção de dependentes”, sobretudo a doação de terras a ex-escravos e o endividamento. Com relação a este último método de subordinação, Marques destaca o papel dos donos de vendas, alguns dos quais eram fazendeiros também, que acumulavam poder com o fornecimento adiantado de gêneros e outros produtos de primeira necessidade aos pobres, muitas vezes em troca de produtos agrícolas entregues depois da colheita. Ao mesmo tempo em que os favores e as dívidas mantinham a hierarquia social, os pobres manipulavam as relações de dependência para assegurar a proteção e o acesso a bens essenciais. Um tema que perpassa todo o trabalho é a ambiguidade e a flexibilidade das categorias de cor, tanto nas fontes oficiais como na vida cotidiana. Categorias mudam ou somem de um censo para outro – “pardo” é substituído por “mestiço”, e “caboclo” desaparece. Um indivíduo se classifica por uma categoria de cor, mas é referido por outros com outra categoria. Marques concorda com autores como Hebe Mattos e Sheila de Castro Faria que as classificações de cor no século XIX muitas vezes referenciavam mais a posição social que a pigmentação da pele, ou pelo menos aludiam a alguma combinação de pigmentação e posição social. É lógico supor que o Paraná era Outros temas importantes para a pesquisa seriam os processos de expropriação das terras ocupadas por essas populações e as relações entre os não brancos rurais e os colonos europeus. Cf. Zarth, 2002, sobre os moradores “nacionais” do interior do Rio Grande do Sul no século XIX. 4

8 justamente o tipo de contexto onde essas categorias eram mais incertas e mutáveis, porque a população não branca da província incluía uma alta proporção de livres, e tudo sugere que era principalmente entre os livres pobres que as categorias de cor foram perdendo fixidez ao longo do século XIX.5 As ambiguidades são particularmente evidentes com respeito ao termo “caboclo”, que em outras regiões geralmente se referia a mestiços de indígenas e brancos ou a descendentes de indígenas que não viviam mais como “índios”. Mas no Paraná e no resto do Sul do Brasil, este termo muitas vezes se referia a negros também, porque englobava quase toda a população rural “nacional”, ou seja, os moradores rurais que não eram colonos europeus ou seus descendentes. Marques também aponta que o uso de categorias “raciais” é muito mais comum nos processos criminais de Curitiba que nos de Campo Largo. Parece que, na população menor e mais estável de Campo Largo, onde os indivíduos eram mais conhecidos, houve uma tendência de identificar as pessoas por nome e por relações sociais (“ex-escravo de fulano”, “sobrinho de beltrano”), mas em Curitiba, onde havia muito mais movimento, as categorias de cor eram usadas para caracterizar indivíduos desconhecidos. Se, por um lado, Marques traz informações e interpretações importantes sobre uma região periférica na época da abolição, por outro ele dialoga com a literatura sobre o resto do Brasil e da América, assim quebrando o mito, implícito em boa parte da historiografia brasileira, do Brasil sui generis, incomparável com outros países. Ele inclui uma discussão inteligente da literatura sobre a pós-abolição na América Latina, nos Estados Unidos e no Caribe, que, por sua vez, orienta sua interpretação dos dados coletados nos arquivos paranaenses. Este livro mostra que um estudo de uma região “marginal” não precisa ser regionalista. Muito pelo contrário, é a partir das margens que se podem produzir algumas das contribuições historiográficas mais originais e perspicazes, mas para isso acontecer o historiador das regiões periféricas precisa participar nos debates nacionais e internacionais. Espera-se que outros jovens historiadores sigam o exemplo de Leonardo Marques, e escrevam histórias não regionalistas dos outros Brasis, além dos grandes centros econômicos e políticos. Karl Monsma Universidade do Vale do Rio dos Sinos

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Cf. MATTOS, 1998.

9 BIBLIOGRAFIA CITADA: ANDREWS, George Reid. Blacks and Whites in São Paulo, Brazil, 1888-1988. Madison: University of Wisconsin Press, 1991. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites; século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Quase-cidadão: Histórias e Antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes, v. 1, O legado da “raça branca”. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1978. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista – Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.

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Sumário

Introdução 13 Capítulo 1 A historiografia do pós-abolição 29 O pós-abolição como objeto de pesquisa no Brasil 29 Homens livres, campesinato e mercado interno 37 O pós-abolição em outras regiões 42 Uma nota sobre os estudos comparativos 51 Capítulo 2 O grande sítio do Timbutuva 55

Capítulo 3 Em Campo Largo 71 Doações 72 Crédito 77 Endividamentos e hierarquia 81 As trocas desiguais 85 As estratégias na dádiva 91

12 Capítulo 4 Por Curitiba 99 A capital 99 Mulatos, pretos, negros e caboclos 103 De passagem 109 Capítulo 5 Para o interior 115 Circulando 116 Um caso pré-abolição 119 Caminhos e Fronteiras 123 A família negra após a abolição 133 Considerações finais Fontes 139

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Introdução

“Em sociedades em que as grandes massas jamais poderiam ter esperanças concretas de incorporar-se à sociedade ‘burguesa’, é natural que as visões e estratégias heterodoxas de reconceituação do universo social retivessem sua força.” Richard Morse*

Segundo o historiador Alfred Crosby o Paraná é uma neoeuropa. As zonas temperadas da América do Sul, segundo ele, são exemplos do sucesso da expansão europeia e da recriação de velhas sociedades no Novo Mundo. Há, no entanto, um elemento essencial ausente na narrativa de Crosby: a escravidão. As áreas tropicais das Américas, e não as temperadas, foram na maior parte da era moderna os centros do crescimento econômico. No século XVIII, Saint Domingue ficou mundialmente conhecida como a “pérola das Antilhas”, sendo responsável pela maior parte de todo açúcar, café e anil exportados no mercado internacional. Durante o mesmo período, o Caribe Britânico progrediu paralelamente ao Caribe Francês e as duas áreas importaram mais de três milhões de escravos africanos, cerca da metade de todos os africanos traficados durante aquele século.1 *MORSE, Richard M. A Volta de Mcluhanaíma: Cinco Estudos Solenes e Uma Brincadeira Séria. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 203. 1 CROSBY, Alfred.The Ecological Imperialism. Para estimativas do tráfico atlântico, ver: BEHRENDT, Steven, FLORENTINO, Manolo; ELTIS, David; RICHARDSON, David, In: Voyages The Trans-Atlantic Slave Trade Database 2 Legislação abolicionista já havia sido passada em diversos estados ao norte dos Estados Unidos durante do século XVIII. O Haiti, no entanto, foi a primeira república do novo mundo a ter a escravidão legalmente abolida de todo seu território.

14 O primeiro evento a alterar radicalmente tal configuração foi a primeira abolição das Américas. De 1791 a 1803 a única revolta escrava de sucesso no Ocidente levou ao fim de Saint Domingue e a fundação do Haiti.2 As portas se abriram para que outras áreas ocupassem o espaço deixado pelo fim da colônia francesa. O Caribe Britânico, candidato maior à nova potência escravista, foi marcado por um processo abolicionista que interrompeu as possibilidades de crescimento das ilhas britânicas. Em 1807, o tráfico Atlântico de escravos era proibido e, em 1837, chegava ao fim o “apprenctice system”, iniciado quatro anos antes em substituição ao sistema escravista do Caribe Britânico. Eliminavam-se, assim, as possibilidades de crescimento econômico do Império Britânico baseado no trabalho escravo. Em torno de meio século depois, três sistemas de plantation escravistas dominavam o mercado mundial. Cuba, Brasil e Estados Unidos eram, respectivamente, os principais exportadores de açúcar, café e algodão no mercado internacional em 1850. Os processos abolicionistas que se iniciaram com Saint Domingue e se estenderam até 1888 no Brasil, marcaram um processo de deslocamento dos centros de poder econômico das zonas tropicais para as zonas temperadas.3 A constituição das “neoeuropas” de Crosby, portanto, não foi um processo espontâneo; a abolição da escravatura jogou um papel central nessas transições. Durante esse período, as zonas temperadas nos dois extremos – Sul do Brasil, Uruguai e Argentina de um lado, e a região Norte dos Estados Unidos de outro –, apresentaram importantes paralelos. Ambas possuíam uma conexão tênue com o tráfico Atlântico de escravos e funcionavam como abastecedoras das zonas exportadoras. O Norte dos Estados Unidos, então ainda parte do Império Britânico, cumprira papel fundamental no fornecimento de alimentos para importantes regiões exportadoras do Caribe Britânico, como Barbados e Jamaica. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, abasteceram plantations exportadoras do Vale do Paraíba e, posteriormente, do Oeste Paulista.. Os processos emancipatórios nas duas partes também apresentaram semelhanças importantes. A abolição do tráfico de escravos gerou movimentos de escravos das áreas menos dinâmicas economicamente para os centros de produção cafeeira, açucareira e algodeira das Américas. No Caribe Britânico, Seymour Drescher mostrou como ilhas recém-incorporadas pelo Império Britânico, como Trinidade e Demerara, absorveram um trânsito de escravos das ilhas menos dinâmicas, como Barbados, Bahamas e Legislação abolicionista já havia sido passada em diversos estados ao norte dos Estados Unidos durante do século XVIII. O Haiti, no entanto, foi a primeira república do Novo Mundo a ter a escravidão legalmente abolida de todo o seu território. 3 ELTIS, David; LEWIS, Frank; SOKOLOFF, Kenneth “Introduction,” in: Eltis, Lewis and Sokoloff (orgs.), Slavery in the Development of the Américas. Cambridge, 2004, pp. 1-27. 2

15 Jamaica, em princípios do século XIX.4 Nos Estados Unidos, senhores nas regiões do nordeste igualmente burlaram leis abolicionistas para fornecer escravos às regiões em expansão no antigo Sul. Posteriormente, um processo de transição tomou conta do próprio sul norte-americano, com áreas menos dinâmicas provendo escravos sem maiores restrições.5 Como discutido aqui, o Paraná e outras províncias menos dinâmicas foram grandes fornecedores de escravos no tráfico doméstico que iria explodir com a abolição do tráfico Atlântico, em 1850, no Brasil. A tênue conexão com o tráfico de escravos e um menor papel da escravidão nestas áreas, ainda que significativos, levaram igualmente à criação de narrativas particulares em relação ao passado escravista. Em New England, durante o próprio movimento de abolição, escravos e negros livres passaram por um processo de invisibilidade enquanto a região se colocava como polo modernizante da nação.6 No Uruguai, Argentina e sul do Brasil, mitos acerca da existência da escravidão (ou sua ausência) também emergiram.7 No Paraná, especificamente, tais ideias foram colocadas em xeque na década de 1970 por Altiva Balhana e Cecília Westphalen. Desde então, o conceito de que a escravidão não existiu no Paraná ou teve papel meramente residual foi paulatinamente abandonado com o aparecimento de sucessivos estudos sobre o tema.8 No entanto, pouco se sabe da história da população de ex-escravos no Paraná após a abolição da escravatura, em 1888. Uma melhor compreensão deste grupo é fundamental para o entendimento das formas de trabalho que se tornaram dominantes, das heranças do sistema escravista e suas particularidades no sul do país, bem como do contexto que propiciou a emergência de discursos modernizantes acompanhados da invisibilidade da população de ascendência africana. O presente trabalho explora tais questões, analisando o destino de libertos no Paraná após tornarem-se livres e toda a 4 DRESCHER, Seymour. Econocide: British slavery in the era of abolition. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1977. Sobre estratégias utilizadas por senhores do nordeste norteamericano, Zilversmit, ARTUR. The First Emancipation: The Abolition of Slavery in the North. Chigado: University of Chicago Press, 1967. 5 TADMAN, Michael. “The Inter-regional Slave Trade in the History and Myth-Making of the US South”. In: Walter Johnson (org.). The Chattel Principle: Internal Slave Trades in the Americas. New Haven, 2004. 6 MELISH, Joanne Pope, Disowning Slavery: gradual emancipation and “race” in New England, 1780-1860. New York: Cornell University, 1998. 7 ANDREWS, George Reid. The Afro-Argentines of Buenos Aires, 1800-1900. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1980; BORUCKI, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA, Natalia. Esclavitud y Trabajo: un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera Uruguaya (18351855). Montevideo: Pulmon Ediciones, 2004; OSÓRIO, H. O Império Português no Sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p.356. 8 Além dos diversos trabalhos citados ao longo deste livro, cf. GRAF, Márcia Elisa de Campos. A População Escrava na Província do Paraná, a partir das listas de classificação para emancipação (1873-1886). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1974, Dissertação de mestrado (mimeo); GRAF, Márcia Elisa de Campos. Imprensa Periódica e Escravidão no Paraná. Curitiba: Grafipar, 1981; GUTIÉRREZ, Horacio. Senhores e Escravos no Paraná, 1800-1830. São Paulo: Universidade

16 rede de relações sociais constituídas pelos próprios. O principal objetivo é uma análise das expectativas que informe as diferentes trajetórias dessas pessoas e uma melhor compreensão dos contextos pelos quais elas transitaram. A história das Américas foi completamente moldada pela escravização e pelo transporte de doze milhões de africanos, mas teve um fim com a abolição da escravatura, que eliminou a legalidade da instituição escravocrata nas Américas. Uma compreensão desta história ao longo do tempo e espaço, para citar o influente esquema de Ira Berlin, é essencial para que se coloque a história da escravidão e emancipação no Paraná no contexto mais amplo da escravidão nas Américas, visto que permanece viva e central para alguns dos principais debates políticos de nossos tempos. A principal fonte do trabalho foi um conjunto de processos criminais compreendendo o período de 1888 a 1898, na cidade de Campo Largo. Com o andamento da pesquisa, percebi a necessidade de agregar outras informações. Nesse sentido, além de processos criminais da cidade de Curitiba, alguns inventários de Campo Largo, listas de classificação para a emancipação de escravos e os recenseamentos de 1872, 1890, 1940 e 1950 serviram de fontes. A historiografia que usou registros criminais como fonte é vasta e o livro de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, é importante precursor no emprego dos processos criminais. A autora utiliza fragmentos dos processos como ilustrativos de uma série de aspectos da sociedade que pretende discutir. Já na introdução, ela esclarece que pretende privilegiar aspectos sociais presentes nos fragmentos sem se preocupar com as situações de tensão. A violência aparecerá como constituidora dessas relações sociais. Franco finaliza argumentando que “não cabe a arguição de que a violência ressaltou porque esquadrinhei uma documentação especializada nela. O contrário é verdadeiro: foi a violência entranhada na realidade social que fez a documentação, nela especializada, expressiva e válida”.9 Tal argumentação é atraente, mas alguns cuidados são necessários. Como aponta Rebecca Scott, registros criminais podem nos levar ao dimensionamento equivocado da frequência destes conflitos. Neles a violência surge como constitutiva destas relações. Franco o mostrou muito bem, de São Paulo, 1986, Dissertação de mestrado (mimeo); GUTIÉRREZ, Horacio. “Crioulos e Africanos no Paraná, 1798-1830”. Revista Brasileira de História. São Paulo 1998;8(16):161188, mar/ago; GUTIÉRREZ, Horacio. “Demografia Escrava numa Economia não Exportadora: Paraná, 1800- 1830”. Estudos Econômicos. São Paulo 1987;17(2):297-314, mai/ago; LIMA, Carlos A. M.; MOURA, A. M. S. Devoção e Incorporação: igreja, escravos e índios na América Portuguesa. Curitiba: Peregrina, 2002. v. 1. 379 p.; WESTPHALEN, Cecília Maria. “A Introdução de Escravos Novos no Litoral Paranaense”, Revista de História. São Paulo: Universidade de São Paulo 1972;44(89):139-154, jan/mar; WESTPHALEN, Cecília Maria. “Duas Vilas Paranaenses no Final do Século XVIII, Paranaguá e Antonina”. Boletim do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. n. 5, junho de 1964. 9 FRANCO, M. S. C. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Unesp, 1997, p. 17.

17 mas qualificar o tipo de violência que motiva a abertura de processos criminais como o centro da vida social é desconsiderar outras formas de violência simbólica. As relações de dominação e violência que sua própria obra revela serão discutidas mais adiante. Os registros criminais são importantes fontes e a forma mais comum de sua utilização não se distancia do modo como Maria Sylvia de Carvalho Franco trabalhou. A busca por fragmentos que sejam a expressão de aspectos da vida social é a maneira como Sidney Chalhoub, por exemplo, trata os processos criminais.10 Alguns outros trabalhos adicionam análises quantitativas baseadas nas informações dadas pelas testemunhas dos processos criminais, como o de Maria Christina Wissenbach ou de Hebe Castro, que combina a análise dos processos criminais com outras fontes, como registros de terras. Outros trabalhos utilizam este processo quantitativo para análises em relação direta com a criminalidade e os tipos de conflitos ocorridos, como os de Boris Fausto e Maria Helena Machado.11 Os inventários foram importantes na reconstituição do ambiente que era Campo Largo no momento da abolição e para o cruzamento com os dados fornecidos pelos processos. No entanto, não utilizei os inventários de forma quantitativa com longas séries. Pego, na verdade, o ano de 1889, e a partir dali procuro observar algumas das características, aproximando-as com trabalhos feitos para períodos anteriores. Utilizo alguns individualmente, pela riqueza de informações que apresentam – alguns casos, com referências a ex-escravos.12 Igualmente importante para “cruzamentos” de dados foram as Listas de Classificação para Emancipação dos Escravos. O Artigo 3 da Lei Rio Branco instituiu um fundo de emancipação buscando libertar escravos através de rendas obtidas com impostos relacionados a escravos, multas, loterias nacionais e outras fontes. Juntas de classificação foram criadas em cada Município para que se pudessem realizar tais listas classificatórias, as quais eram baseadas nas matrículas de escravos e obrigatórias a todos os senhores, sob a pena de liberdade para os escravos que delas ficassem fora. Utilizei aqui especialmente duas: a de Campo Largo, realizada em 1873, e a de Curitiba, de 1875. Por fim, especialmente no último capítulo, utilizei dados dos recenseamentos nacionais realizados a partir de 1872. Boa parte da historiografia CHALHOUB, S. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Brasiliense, 1986. 11 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2ªed. São Paulo: EDUSP, 2001; MACHADO, M. H. P. T. Crime e Escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987; CASTRO, H. M. M. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987; WISSENBACH, M. C. C. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo: Hucitec, 1998. 12 Sobre inventários como fontes históricas, FRAGOSO, J. L. R.; PITZER, R.R. “Barões, Homens Livres Pobres e Escravos: notas sobre o uso de inventários post-mortem na pesquisa histórica”. Arrebaldes, v. 1, nº 2, pp. 29-52, 1988. 10

18 apontou para o caráter problemático desses dados, especialmente o referente a 1890. Optei por tratá-lo em comparação tanto com o de 1872 quanto com os dois posteriores, de 1940 e 1950, tentando, dessa forma, observar disparidades muito grandes ou se seria possível emergir algum tipo de padrão. A estratégia de análise foi, especialmente, a separação entre “brancos” e “não brancos”. A divisão foi muito mais uma tática de pesquisa na medida em que o grupo de não brancos contemplava muitos ex-escravos e seus descendentes.13 O recorte temporal se estende de 1888 a 1950. O grosso da documentação utilizada, no entanto, é da primeira década logo após a abolição. Após essa data, a documentação é especificamente o conjunto de recenseamentos que se estende até o ano de 1950. A opção por esse recorte ficará mais clara ao longo do estudo. Vale dizer que, até esse momento, configurou-se no mundo rural do Paraná um ambiente muito específico relacionado às estratégias de sobrevivência de camponeses, dentre eles, muitos ex-escravos. Muitos autores apontam a década de 1950 como precursora de mudanças substanciais na distribuição das populações em áreas rurais e urbanas, trazendo transformações significativas nas décadas seguintes para elas.

][ Paraná e Campo Largo permitem uma abordagem diferente no estudo do acesso a terra e na análise da escravidão no século XIX. O Paraná, como a maior parte do território brasileiro, era marcado por uma parca relação com a escravidão. Era, nos termos de Moses Finley, uma “sociedade com escravos”.14 Diversos autores vêm mostrando a importância em se estudar tais áreas como uma forma de obter uma melhor compreensão das sociedades escravistas como um todo e suas transformações. O estudo do Paraná, portanto, permite observar de que forma regiões periféricas lidaram com pressões decorrentes de transformações em áreas centrais. O desenvolvimento de um tráfico interprovincial de escravos é um dos exemplos mais evidentes dessas modificações. Wood e Carvalho, lidando com censos de 1950 em diante, argumentam que a pesquisa utilizando a divisão entre “branco” e “não branco” é possível por uma mobilidade muito maior entre a categoria de “pretos” e “pardos” do que aquela relacionada entre “pardos” e “brancos”. WOOD, C. H., CARVALHO, J. A. M. “Categorias do censo e classificação subjetiva de cor no Brasil”. Revista Brasileira de Estudos de População. São Paulo, v. 11, n. 1, jan/jul, 1994, pp. 317. 14 Moses Finley estabeleceu importante distinção entre “sociedades escravistas” e “sociedades com escravos”. Sociedades escravistas tinham a escravidão no centro de sua produção econômica servindo à reprodução de uma elite. A escravidão afetava todas as relações sociais decorrentes de uma clara distinção entre escravos e livres. Sociedades com escravos, por outro lado, não tinham escravidão como seu sistema de trabalho básico. A escravidão nessas sociedades convivia com outras formas de trabalho livre e coercivos. FINLEY, Moses I. Ancient Slavery and Modern Ideology. London: Chatto & Windus, 1980. 13

19 Escravos eram levados de regiões como o Paraná em direção aos centros de produção agrária no sudeste enquanto um movimento inverso e anterior ocorria. Desde fins do XVIII, a região que constituiria o Paraná, bem como áreas ao sul do Estado de São Paulo, recebeu ondas migratórias de exescravos e negros livres. O Paraná apresentou uma parca relação com a escravidão, apresentando uma porcentagem muito maior de negros livres em sua população durante todo o século XIX do que outras áreas do Brasil. Esses fluxos estavam estritamente ligados à possibilidade do acesso a terra. Paraná e Campo Largo, tal como pretendo argumentar ao longo dessa obra, apresentaram uma fronteira aberta ao longo de todo o século XIX. Se, por um lado, portanto, o local apresentava um número pequeno de escravos quando comparada às regiões centrais, por outro, foram áreas como o Paraná que receberam muitos ex-escravos durante e após a escravidão. A região Sul era voltada para o abastecimento interno sob o financiamento do capital mercantil. O Paraná, bem como Santa Catarina e Rio Grande do Sul, possuía uma produção camponesa de alimentos ao lado das atividades pecuárias. A região que hoje compreende o Estado começou a ser explorada por portugueses e mamelucos atrás de ouro já no século XVI. Ao longo do século XVII, com uma queda na mineração, começou a criação de gado nos Campos de Curitiba e nos “Campos Gerais”. Com a fundação da vila de Curitiba, em 1693, houve “o início da definição de uma identidade regional, fundada na pecuária”.15 A região se tornou também um elo entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, com a estrada do Viamão e a integração ao tropeirismo. Diversas vilas começaram a ser fundadas ao longo dos séculos XVIII e XIX. É nesse contexto que o lugar que seria Campo Largo começou a ser povoado já em princípios do século XVIII. A elevação à categoria de Município ocorreu no ano de 1870, com o subsequente desmembramento de Campo Largo em relação a Curitiba.16 No começo do século XIX, Campo Largo, como outras localidades do Paraná, tinha algumas grandes fazendas dedicadas à criação de gado e invernagem. Em fins dos oitocentos a situação era bastante diferente e acentuadamente crítica. Houve uma crise nas atividades de invernagem, uma queda na produção das fazendas e a perda dos mercados de São Paulo e Rio de Janeiro. Como argumenta Brasil Pinheiro Machado: (...) nas últimas décadas do século XIX, a situação era diferente daquela que presidira ao desenvolvimento da criação de gado nas fazendas do Paraná, e caracterizava-se uma crise que se manifestava pela deterioração dos negócios de invernagem.(...) A constante queda da produção das fazendas e a NADALIN, S. O. Paraná: ocupação do território, população e migrações. Curitiba: SEED, 2001, p. 44. 16 Arquivo da Prefeitura municipal de Campo Largo, boletim do Departamento de História da UFPR n. 26, Curitiba, 1984, p. 4; LEÃO, E. A. Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná. p. 282; EL-KHATIB, Faissal. (org.). História do Paraná. Paraná: Grafipar, 1969, v. 4, p. 55. 15

20 perda dos mercados de São Paulo e Rio constituíam talvez o seu primeiro fator, vindo depois o fim dos negócios de tropeirismo e de invernagem pelo aparecimento das estradas de ferro na zona do café paulista.17

Nessa época, a agricultura de alimentos foi priorizada, e a produção de mate era concomitante à produção agrícola, que teve um impulso especial em fins do XIX, com os fluxos migratórios de italianos e alemães, segundo Fragoso. Essa produção camponesa tinha por base: (...) o trabalho familiar, sendo o seu excedente colocado no mercado provincial, podendo chegar aos mercados do sudeste. Nesse tipo de comércio não era o camponês que se beneficiava em primeiro lugar. O comerciante, agindo nas diferentes fases de comercialização, no transporte e financiamento, podia concentrar em suas mãos uma expressiva acumulação de capital.18

A pobreza atravessava lugares como Campo Largo. Não há referência ao tropeirismo no conjunto da documentação levantada para o período aqui discutido, apesar de o mesmo estar ligado à situação de crise dessas atividades. Apesar de toda a pobreza, havia pequenos plantéis de escravos em Campo Largo. Essas escravarias possuíam certas especificidades em face de uma conjuntura de intensificação do tráfico interno, resultado da proibição do tráfico em 1850 e de um processo de concentração de cativos entre os grandes produtores, principalmente na produção cafeeira do sudeste. Uma possível forma de entender quem eram os escravos libertados em 1888 e como era a escravidão em Campo Largo é observar os dados fornecidos pelas listas de classificação. Um bom começo são as ocupações. Tabela 1.1: População escrava de Campo Largo em 1875 por profissão ocupações escravas

número absoluto

%

do engenho/serviços de engenho

4

1,4

artesãos

16

5,7

serviços domésticos

138

48,8

lavoura/lavrador/roceiro

115

40,6

jornaleiro

1

0,4

vaqueiro

1

0,4

ilegíveis

8

2,8

283

100

total

Fonte: Lista de Classificação de Escravos para Serem Libertados pelo Fundo de Emancipação de Campo Largo de 1875. Departamento Estadual do Arquivo Público - DEAP.

MACHADO, B. P. “Formação Histórica”. In: BALHANA, A. P. et. al. Campos Gerais: Estruturas Agrárias. Curitiba: UFPR, 1968, pp. 42-43. 18 FRAGOSO, J. “O Império Escravista e a República dos Plantadores”. In: LINHARES, M. Y. (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 180. 17

21 A maioria esmagadora dos escravos aparecia classificada em serviços domésticos ou na agricultura. Os serviços domésticos apresentam um número superior, mas ainda assim próximos aos designados como lavradores ou roceiros. Na verdade as atividades podiam ser um pouco mais diversificadas do que tais categorias nos apresentam, especialmente a de doméstico. Em um caso que exploro no quinto capítulo, um casal de escravos, o filho e uma escrava recebem terras como herança. A historiografia já demonstrou como tais práticas estavam ligadas ao cultivo de roças por parte dos escravos, como veremos, também, nos outros casos de doações analisados no terceiro capítulo desta obra.19 De acordo com as listas de classificação de Iguaçu, os escravos Gabriel, Vicência e Maria, que receberam a doação, são listados como cozinheiros. Se olharmos as Tabelas 2.1 e 2.2 no segundo capítulo, também verificamos algumas mudanças nas categorias. O escravo Luiz aparece inicialmente como lavrador. Nos depoimentos de 1885 e 1889 declara a profissão de “cangueiro”, um trabalho provavelmente relacionado a animais e montaria.20 Em 1894 passa a ser dono de um botequim. O escravo Manoel aparece na lista de classificação de 1875 como lavrador mas, quando chamado para testemunhar no processo em 1885, apresenta-se como jornaleiro. O mesmo vale para o escravo Leandro, lavrador na primeira listagem e jornaleiro posteriormente. Os “falsos” ex-escravos Getúlio, Pedro e João, a quem veremos no terceiro capítulo brigando com uma italiana, declaram a profissão de “jornaleiros” no auto de qualificação. Por ocasião de abertura de um habeas corpus, os mesmos afirmam ter a profissão de “lavrador”. Existia certa diversificação das atividades desses cativos, ainda que limitada, por se tratar de um ambiente marcadamente rural. A agricultura de alimentos era a atividade de peso em Campo Largo tanto para cativos como para livres, e assim continuava a ser no pós-abolição. Observando a idade desses escravos, também podemos ter algumas pistas sobre a composição dos últimos escravos de Campo Largo. No Gráfico 1.1 a seguir, vemos indicações de que o tráfico interno em vigor durante a segunda metade do século XIX afetou Campo Largo. Há uma grande diferença entre a população feminina e masculina dos cativos, com uma clara predominância das mulheres, especialmente na faixa etária de até 30 anos.

SLENES, Robert. “Histórias do Cafundó”. In: VOGT, C.; FRY, P. Cafundó: a África no Brasil. São Paulo: Cia das Letras e Editora da Unicamp, 1996. Conferir também: LIMA, C. A. M. “Os patrimônios e o declínio da escravidão no Paraná (São José dos Pinhais, 1852-1886)”. In: VI Congresso Brasileiro de História Econômica e 7a Conferência Internacional de História de Empresas – Anais. Conservatória: ABPHE, 2005, v. 1, pp. 1-25. 20 A profissão de cangueiro estava, provavelmente, relacionada à cangalha. Esta, por sua vez, de acordo com um dicionário atual, tem duas definições: 1. triângulo de madeira que se enfia no pescoço dos porcos para que não entrem em hortas; 2. armação que se coloca no dorso das bestas para sustentar a carga dos dois lados. Pode estar ligada, também, à canga, que é um 19

22 Richard Graham, sintetizando as pesquisas que de alguma forma entraram na temática do tráfico interprovincial de cativos, aponta para o fato de que a maioria dos escravos levados a este circuito era composto por homens. Segundo o autor, é possível que a grande proporção de mulheres nos trabalhos domésticos possa ter levado os vendedores a preferir se desfazer dos homens, mas a demanda por trabalhadores agrícolas no Sul é uma explicação mais provável.

Acrescentaria que não apenas mais provável, mas de maior argumentação com o anteriormente exposto acerca das ocupações de escravos e como o trabalho “doméstico” podia ser mais complexo e estar ligado a mais atividades do que a categoria nos leva a pensar. Gráfico 1.1: Porcentagens de sexos por faixa etária na população escrava de Campo Largo (1875)

70 65 60 55 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0
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