Por constitucionalismos que libertam: o legado imperial e as rupturas plurinacionais

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Panteras Negras, 29 de fevereiro de 1969 - Capitólio em Olympia (WA)

CRÍTICA DO DIREITO | 06 de abril a 02 de agosto de 2015 Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 FICHA CATALOGRÁFICA Revista Crítica do Direito nº 5, vol. 65 São Paulo, 2015 Quadrimestral ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

EDITOR RESPONSÁVEL Vinícius Magalhães Pinheiro CONSELHO EDITORIAL Alysson Leandro Barbate Mascaro Clarissa Machado Daniel Francisco Nagao Menezes Júlio da Silveira Moreira Roberta Ibañez Thiago Ferreira Lion Tiago Freitas Vinicius Magalhães Pinheiro

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

SUMÁRIO EDITORIAL ................................................................................ 6 POR CONSTITUCIONALISMOS QUE LIBERTAM: OS LEGADOS IMPERIAIS MODERNOS E AS RUPTURAS PLURINACIONAIS Henrique Weil Afonso................................................................... 7 PROCESSO, IDEOLOGIA E TUTELA DO AMBIENTE Carlos Alberto Lunelli e Jeferson Dytz Marin .......................................... 25 VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS DOS DOENTES MENTAIS INTERNADOS JUDICIALMENTE Suelen de Azevedo.. 46 POLÍTICAS CRIMINAIS AUTORITÁRIAS: Sintomas da presença do conceito de inimigo no sistema punitivo Hugo Leonardo Rodrigues Santos ....................................................................................... 63 O DIREITO À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO SOB A PERSPECTIVA DO “SUJEITO CONCRETO LITIGANTE” – A RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DA TUTELA JURISCIONAL INTEMPESTIVA Valdir de Carvalho Campos e Renan Ramos ............................................................................. 75 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL: HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA DECISÃO DA ADPF 132/ ADI 4.277 Roger Raupp Rios e Lawrence Estivalet de Mello ........................................................ 99 REGULAR A INTERNET/GOVERNAR O CONHECIMENTO: DIREITO DE PROPRIEDADE IMATERIAL E VIGILÂNCIA NO CIBERESPAÇO Thiago Mota .................................................... 122

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A CRISE DE PARADIGMAS: a transição entre o Estado moderno e o Estado social com seu novo modelo de Constituição Edson Vieira da Silva Filho ............................................................................... 136 IGUALDADE, NÃO-DISCRIMINAÇÃO E DIREITOS HUMANOS: são legítimos os tratamentos diferenciados? Fernanda Frizzo Bragato e Bianka Adamatti ....................................................................... 156 PUNIR OS POBRES: ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES ECONÔMICOS E NOS CRIMES PATRIMONIAIS Thadeu Augimeri De Goes Lima ...................... 174 POR UMA NOVA COMPREENSÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS: participação social, correição contra hegemônica, garante das liberdades e conquistas da democracia líbero-social: outra versão da jornada de junho/2013 no Brasil / Maria da Graça Marques Gurgel, Agatha Justen Gonçalves Ribeiro e Flavio Kummer Hora .............. 187 AS IDEOLOGIAS DA MODERNIDADE - COMO PENSAR O FUTURO? José Luiz Quadros de Magalhães ............................... 203 PERTO DO CORA O SELVAGE EU JOANA E OS DI LOGOS CO A IN A AV U L D / Danielly Gontijo .................................................................................... 216 O SER HUMANO, O ESTADO, E O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A PARTIR DOS ENSINAMENTOS DE THOMAS HOBBES. Rodrigo Toaldo Cappellarie Inácio Cappellari ..................................................... 228 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONDENAÇÃO DO BRASIL NO CASO ARAGUAIA: KANT COM SADE - PARADOXOS DA LEI /

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Carolina Machado Cyrillo da Silva, David Leal da Silvae Yuri Felix ............................................................................................... 239 DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO, CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO PENAL Roger Raupp Rios e Lawrence Estivalet de Mello ...................................................... 254 UMA APRESENTAÇÃO DOS DILEMAS DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR PELA LITERATURA DE BERTOLT BRECHT Fausto Santos de Morais e Janaína Hennig Bridi. .................................... 271 POSSIBILIDADE DE LIBERTAÇÃO PELOS CAMINHOS DA AUTOGESTÃO? UMA REFLEXÃO SOBRE O COOPERATIVISMO A PARTIR DA FILOSOFIA DESCOLONIAL / Luciana Souza de Araujo ..................................................................................... 286 A TEORIA DA REDISTRIBUIÇÃO E DO RECONHECIMENTO DE NANCY FRASER NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA DE GÊNERO / Yumi Maria Helena Miyamoto e Aloísio Krohling .......................................... 311

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 EDITORIAL A Revista Crítica do Direito comemora quatro anos de existência com esta edição 65. Há algumas novidades. A primeira, já comunicada aos nossos leitores, foi a mudança do editor de sites. Substituímos o "googlesites" pelo "wordpress" e em definitivo abandonamos o formato "site" da revista. Na edição 64 já esboçamos a experiência de publicação num só documento, em formato .pdf. A atual edição é o amadurecimento dessa experiência e assim será nosso formato. Ainda, a Revista propõe-se a mais firmemente pautar a conjuntura, posicionando-se criticamente à ideologia burguesa e à ordem capitalista. Tempos políticos ainda mais sombrios avizinham-se com crise econômica e uma crescente tendência à fascistização, pipocando desde ondas neofacistas e neonazistas pela Europa aos grupos de direita brasileira chamando golpe de Estado e volta da Ditadura Civil-Militar. Criamos, assim, a seção "Tendências e Debates", na qual veicularemos os artigos de opinião, bem como outra seção, "Lutas e Resistências", nosso canal para todas as formas de enfentamento da opressão. Em tempos políticos desastrosos como os atuais - em que se reforçam a naturalização das violências do capital à resignação como ideologia política - silenciar-se é de uma irresponsabilidade ímpar. Muitos erros nosso Conselho Editorial pode cometer, mas não a omissão do silêncio na batalha das idéias. Boa leitura! Brasil, 6 de abril de 2015 Conselho Editorial

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POR CONSTITUCIONALISMOS QUE LIBERTAM: OS LEGADOS IMPERIAIS MODERNOS E AS RUPTURAS PLURINACIONAIS 1

Henrique Weil Afonso Rascunho

Este trabalho almeja avançar um conjunto de considerações críticas referentes à pretensão de universalidade do constitucionalismo moderno. Para tanto, procura construir argumentação reflexiva pautada na análise da contingência histórico-cultural das experiências legais que restam ocultadas ou distorcidas pela linguagem normativa constitutiva do constitucionalismo convencionalmente entendido. Os promissores arranjos institucionais plasmados em matrizes epistêmicas comprometidas com a diversidade fazem dos Estados Plurinacionais da Bolívia e do Equador indispensáveis pontos de ruptura com a tradição universalista eurocêntrica. Palavras-chave: constitucionalismo, pluralismo legal, Estado Plurinacional

Abstract This paper aims at advancing a set of critical remarks on modern constitutionalism’s self-acclaimed vocation to universality. In order to do so, it seeks to compose reflexive argumentation established upon the analyses of the historicalcultural contingency of legal experiences which have been either occluded or distorted by constitutionalism’s constitutive normative vocabulary. Bolivia and Ecuardor’s promising institutional schemes have been grounded upon epistemic frameworks committed with legal diversity and consist of rupture points against Eurocentric universalism. Keywords: constitutionalism, legal pluralism, Plurinational State

1. INTRODUÇÃO A forma como concebemos a história repercute não apenas em nossa visão do presente, mas lança luz sobre o que é imprescindível ou o que é dispensável na composição do horizonte normativo da disciplina jurídica. Da mesma forma, nosso entendimento histórico pode relegar ao esquecimento eventos, práticas e processos 1

Pós-Doutorando no Programa de Pós Graduação em Direito Agroambiental da UFMT (bolsista PNPD/CAPES). Doutor em Direito pela PUC-MG. Professor e pesquisador. Assuntos de interesse: constitucionalismo crítico, Direito Internacional e TWAIL, póscolonialismo/descolonialismo, ecologia dos saberes. Contato: [email protected].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 que facultariam uma melhor compreensão das vozes, narrativas ou “não-eventos” que se situam às margens do saber científico. Justifica-se, outrossim, o esforço de percepção de possíveis elementos imperiais e coloniais no bojo da teoria constitucional (e internacional) contemporânea, a fim de delinear o grau de abertura dialógica do constitucionalismo moderno vis-à-vis a produção de arranjos constitucionais plurais, diversos e temporalmente contingentes. Para o historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot, as práticas historiográficas dominantes – notadamente o historicismo – instituíram mecanismos de exclusão e de assimilação do outro subalterno nas narrativas em geral. Segundo Trouillot, certos historiadores acenaram para o fato de que “[...] algumas sociedades (não Ocidentais, é claro) não diferenciam entre ficção e história” (TROUILLOT, 1995, p. 6); para a prática historiográfica clássica, isso significa que certos povos e áreas geográficas não se sujeitam às regras da historiografia. Uma vez que a produção da verdade histórica se daria mediante regras que não estão disponíveis universalmente, cria-se um espaço de diferenciação e qualificação de sujeitos e os processos históricos que são ou não relevantes. Em outros termos, enquanto determinados povos e áreas geográficas comprovam o emprego e a compreensão dos mecanismos produtores da história, outros povos e regiões carecem desta compreensão específica. As repercussões de tais colocações não podem ser negligenciadas pelo pensamento crítico. Veja-se, em especial, a formação do que convencionou-se denominar constitucionalismo moderno. Este, seja em sua vertente nacional, seja em arranjos supra ou internacionais, alicerça sua legitimidade em dois imperativos igualmente fundamentais, porém antagônicos. O primeiro é a ideia de que o poder governamental – ou estatal – é gerado pelo consentimento do povo. O segundo consiste na máxima de que, para ser efetivo e sustentado, tal poder deve ser dividido, exercido e restringido por distintas formas institucionais. Martin Loughlin e Neil Walker explicam a relevância desta tensão essencial, ou paradoxal, que exprime a oposição clássica entre democracia e legalismo: O poder que eles [o povo] possuem, assim pode parecer, só pode ser exercido pelas formas constitucionais já estabelecidas ou no processo de serem estabelecidas. Isto indica o que, em sua formulação mais elementar, poderia ser chamado de paradoxo do constitucionalismo. (LOUGHLIN e WALKER, 2007, p. 1). A conciliação do paradoxo em questão parece demandar uma análise de aspectos que não se confinam nas fronteiras do Estado, desafiando a hegemonia da tradição teórica inaugurada em 1789 que “[...] criou um marco e um solo permanente para evoluções culturais”, no entender de Peter Häberle (1998, p. 94). Assim, os citados autores apontam certas tendências globais aptas a conferir ao constitucionalismo moderno novas (ou antigas) versões e significados. É de se notar, neste mérito em específico, temas de repercussão contemporânea a desafiar os arranjos institucionais oriundos da modernidade, tal qual o discurso triunfalista da democracia liberal, as rivalidades étnicas confinadas no espaço geográfico estatal, as

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 múltiplas identidades com suas variadas lutas por autoafirmação cultural, e a emergência de redes transnacionais de governança. Contudo, o reexame da tensão entre poder governamental e poder constituinte, que também é externada pelas dicotomias democracia versus legalismo e transformação versus estabilidade, pode colocar em cheque a fundação contratualista das modernas constituições. De fato, as constituições geralmente conectam suas origens a algum momento edificante da comunidade política que trará definições sobre como direcionar a tensão em tela. Enquanto a defesa da tese do povo como abstração pode resultar na resolução da tensão em favor das formas constitucionais, o urgente reconhecimento de tal momento edificante pode carregar um teor retórico capaz de legitimar a exclusão/assimilação de identidades subalternas, vindo a fortalecer formas de violência simbólica e institucionais (ŽIŽEK, 2008), e, como resultando, mantendo intactas profundas contradições. A compreensão típica acerca da modernidade engendra mecanismos de diferenciação cultural tendo por base de comparação a percepção naturalizada, lógica e inevitável de uma visão particular da mecânica do universo – a própria modernidade – perante a qual todos os demais centros epistêmicos subalternos são classificados e hierarquizados. Em face deste paradigma eurocêntrico, eventuais arranjos normativos precisam ser submetidos a um virtual teste que definirá o nível de aproximação ou distanciamento do modelo ou standard (MIGNOLO, 2000; CHAKRABARTY, 2000). O horizonte histórico-doutrinário do constitucionalismo encontra sua pedra de torque na tradição inaugurada em 1789, consoante sustentam vozes como a de Peter Häberle. Este constitucionalista esboça entendimento favorável à permanente assimilação e deferência aos produtos filosóficos que a Revolução Francesa brindou o Ocidente. O simbólico marco histórico faz mais do que localizar a gênese do constitucionalismo, ou evocar um núcleo material homogêneo: 1789 é, a um só tempo, barreira cultural a impor o não retrocesso diante das inovações alcançadas e garantia cultural do status quo tipicamente constitucional, ambos enunciando conteúdo irrenunciáveis. A despeito das origens Europeias e Anglo saxônicas, Häberle anuncia a universalidade do constitucionalismo moderno para o qual 1789 “segue sendo um mandato para o Estado constitucional como produção comunitária paneuropeia/atlântica e talvez como oportunidade e compromissos universais.” (HÄBERLE, 1998, p. 95). Uma forma válida de abordagem do paradoxo constitucional seria tratar o constitucionalismo não apenas como uma ferramenta a serviço de formas instituídas – hegemônicas – de poder nas sociedades modernas em vários níveis ou enquanto conjunto de elementos atemporais – consoante insiste Häberle –, mas também, e especialmente, como o ponto de partida para releituras contra-hegemônicas. Numa perspectiva histórica emancipante, está-se diante do desafio de identificar os mecanismos epistêmicos responsáveis pela criação e perpetuação da dimensão do poder inerente ao saber histórico-jurídico (TROUILLOT, 1995). Combinar-se-á, para tanto, duas iniciativas, integradas e em constante diálogo. A primeira abordagem pretende revelar certas tensões intrínsecas que a racionalidade dominante oculta ou distorce, isto é, o método procura expor as forças,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 as dinâmicas e os discursos inscritos em uma única visão específica da realidade e que, por força de processos de imposição econômica e cultural, veio a ser referido como modernidade. É uma atividade desconstrutiva. Por sua vez, o segundo engajamento insiste na reconstrução/inovação do constitucionalismo e de seu paradoxo, cultural e temporalmente situado, de modo a contemplar as experiências e manifestações constitucionais desqualificadas ou descaracterizadas pela operação do discurso da colonialidade/modernidade (MIGNOLO, 2000). O foco, neste caso, recai sobre os processos epistêmicos questionadores das matrizes do moderno sistema-mundo, do qual o constitucionalismo plurinacional da Bolívia e do Equador.

2. AS RAÍZES IMPERIAIS DO CONSTITUCIONALISMO MODERNO As experiências constitucionais, em variados níveis – não somente nacional ou global, mas também local, subnacional, regional, ou outras manifestação territoriais –, podem não apresentar os contornos clássicos propostos pela tradição constitucional moderna. O enfoque constitucionalista, consoante a indispensável reflexão de James Tully (1995, 2008a, 2008b), deve sempre trazer consigo significados contextualizados, o que evidencia o inerente caráter contingencial do mesmo. Sendo uma atividade pautada pela contingência e, portanto, localizada em contextos culturais e históricos específicos – porque únicos em suas particularidades –, tem-se que a insistência na adoção de um modelo único e universal, ou seja, a adoção de standards constitucionais universais, consoante advoga parcela das propostas do constitucionalismo global, carrega o risco de descredenciar, deslegitimar ou ocultar práticas constitucionais contextualmente situadas. Deste modo, a identificação de um poder constituído (na construção do Estado-nação na Europa e, posteriormente, em escala global), em franca oposição às formas costumeiras – ditas inferiores, “pré modernas” – de arranjos constitucionais nos demais povos, assim como a necessidade de um soberano ou a presença de técnicas modernas de governabilidade (FOUCAULT, 2011), são componentes exemplificativos do standard constitucional diante do qual, no entender de Tully (2008b, p. 479), “[...] os processos discursivos globais foram predicados simultaneamente na modernização constitucional dos estados e nos seus projetos imperialistas desde o começo do período moderno.” O constitucionalismo, em sua versão convencional/moderna, articula então um processo histórico específico e universal, apoiado em formas descritivas e avaliativas dos diferentes níveis de amadurecimento social, no interior do qual se faz operar um discurso de aparência inclusiva, porém vocacionado à exclusão e assimilação de cosmovisões, identidades e diversidades consideradas inaptas ou atrasadas – e que, em outros contextos, já foram rotuladas de infiéis, bárbaras ou selvagens (ANGHIE, 2004; TODOROV, 2003). A tese segundo a qual o constitucionalismo moderno é avesso ao reconhecimento da diversidade foi sustentada, dentre outros autores (SANTOS,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 2011), pelo filósofo canadense James Tully. Ao indagar se “pode uma constituição moderna reconhecer e acomodar a diversidade cultural?” (1995, p. 6), Tully conduz pesquisa histórico-filosófica que tem início com o exame das obras dos constitucionalistas e filósofos de marcante influência no século XVIII – como John Locke, Immanuel Kant, Emerich de Vattel e os Federalistas Estadunidenses –, o século das Revoluções Liberais. O retorno a este contexto histórico é justificado pelo diagnóstico preocupante acerca das demandas por reconhecimento cultural por parte de movimentos nacionalistas, arranjos supranacionais, minorias étnicas, movimentos feministas e povos originários, demandas estas susceptíveis de apreciação pelo constitucionalismo moderno. Segue, então, a hipótese de que a forma pela qual tais demandas são absorvidas pelo tecido constitucional convencional permite revelar movimentos paralelos de assimilação e de exclusão, estes, em tempo, as duas condutas usuais do constitucionalismo moderno na questão do reconhecimento da diversidade.

2.1. Notas sobre a modernidade/colonialidade Na descrição da modernidade ora adotada, o ato de conhecimento lança determinada luz sobre o objeto cientificamente considerado e que será estudado. Em especial quando esse objeto toma a forma do conhecimento de outro povo, de outra civilização, ou de outra cultura, a modernidade pode ser dotada/há de ser abordada de um ângulo diverso: menos da Europa e seus processos e mais sob os olhos e vozes do outro, primitivo e não civilizado, do índio americano, do negro africano, do oriental investigado pelos Orientalistas – os outros objetivados pelo método moderno das ciências sociais e mensurados por sua racionalidade. A proposta analítica de pensadores pós-coloniais/descoloniais como Aníbal Quijano (2007) ou Walter Mignolo (2000, 2007) incide justamente na intersecção entre conhecimento, modernidade e emancipação. Na esteira das colocações de Boaventura S. Santos (2011) e Enrique Dussel (1993), o pensador peruano Aníbal Quijano postula a tese de que o conceito racional de modernidade coexiste com o mito irracional e violento da mesma. Os desdobramentos racionais e violentos, de forma indistinta, incidem na produção de uma matriz de poder/conhecimento autorreferenciada e que se destina a mediar as demandas por emancipação. Se investigado de forma isolada – tal qual sugere a metodologia que objetifica tudo o que estuda e analisa – o binômio modernidade/racionalidade ofusca, distorce e reencena a dimensão de totalidade do conhecimento moderno. Ao incidir no meio social, a totalidade pavimenta determinada ordem hierárquica que aprisiona a historicidade, o contexto e o saber em uma única lógica possível. Para Quijano, a totalidade não é afastada pelo pensamento moderno/racional; ao contrário, ela estabelece uma relação simbiótica naturalizada, retirada de qualquer contexto contestatório e que evoca cientificamente a verdade: Não é de surpreender, a história foi concebida como um contínuo evolucionário do primitivo ao civilizado; do tradicional ao moderno; do

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 selvagem ao racional; do pré-capitalismo ao capitalismo, etc. E a Europa via a si mesma como o espelho do futuro de todas as sociedades e culturas; como a forma avançada da história de todas as espécies. O que não para de causar surpresa, todavia, é que a Europa sucedeu em impor a ‘miragem’ sobre as totalidades práticas das culturas que ela colonizou; e, muito mais, que esta quimera ainda é muito atrativa para muitos. (QUIJANO, 2007, p. 176). Esta atração “natural”, ou este apelo silencioso e total que conforma o conhecimento e disciplina o mundo, consubstancia o que Quijano denominou colonialidade: é o binômio da modernidade/racionalidade entendido enquanto aprimoramento cultural, linearidade histórica e progresso técnico do não Europeu. Colonialidade remete à poderosa repressão epistêmica decorrente da imposição de padrões específicos de produção do conhecimento e dos significados. Por meio da colonialidade, cria-se uma concepção totalizante do conhecimento quando engendra uma miragem naturalizada/naturalizante do mundo entre dois polos: a subjetividade isolada e o “algo”, o “objeto”, que ela conhece, aprisiona e padroniza. Reconhecer a operação da colonialidade do poder, do conhecimento e do ser pode potencializar os engenhos críticos atentos à reconstrução do saber, das histórias silenciadas e das subjetividades e conhecimentos reprimidos. A modernidade compõe um quadro padronizado para a externalização das demandas por emancipação – movimentos de libertação nacional, desenvolvimento/subdesenvolvimento econômico, independência política, adesão à sociedade internacional, etc – e para a apreciação das mesmas – a linearidade histórica, as ideias de progresso e desenvolvimento, as oposições entre civilização e barbarismo, etc. Em face da força gravitacional exercida pela colonialidade sob a forma dos aparatos que externam e julgam a emancipação, os saberes e as racionalidades outras são sugados pela atração uniformizadora da modernidade. Walter Mignolo desafia: “se a modernidade é entendida essencialmente como um fenômeno Europeu, então a ‘emancipação’ dos povos no mundo não Europeu há de ser planejada, ditada e executada apenas pela Europa ou pelos EUA”. E continua: “[...] em tal cenário, não há possibilidade para uma-outra economia política e teorias políticas. As religiões seriam toleradas desde que elas não interfiram com A política econômica e com A teoria política que rege o mundo.” (MIGNOLO, 2007, p. 457). A colonialidade incorpora o ponto de largada e de chegada das demandas por emancipação no paradigma da modernidade/colonialidade. Uma das estratégias para “desconectar” o saber da colonialidade do poder é o questionamento dos conceitos naturalizados ou dos campos conceituais que totalizam a realidade. De forma simultânea e complementar, a postura crítica descolonial é abastecida pelo constante escrutínio da geopolítica do conhecimento: uma matriz geográfica cujo centro providencia as alternativas de salvação quase messiânicas de periferias historicamente e evolutivamente atrasadas. Isso porque a racionalidade ligou a modernidade à emancipação, a concepção de transição proporciona a reconciliação entre a marcha da história e a realização dos desígnios da modernidade/racionalidade nos espaços pré-modernos. A forma de operação da

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 transição foi captada por Mignolo: “[...] o problema com a ideia de transição é que, uma vez que o novo aparece, o antigo desaparece do presente, que é precisamente o problema com a retórica da modernidade para aqueles que não são sortudos o suficiente para estar no espaço onde o tempo e a história movem-se adiante.” (MIGNOLO, 2007, p. 467). O exercício crítico-reflexivo de resistência epistêmica despertada pela consciência pós-colonial/descolonial reverbera na linguagem constitucional simbolicamente inaugurada em 1789, mas que guarda conexões diretas com a matriz moderna problematizada nos marcos da modernidade/colonialidade. A relação entre história e progresso, quando atrelada à episteme constitucional convencional, fortalece a produção sustentada de formas de violência nem sempre visíveis ou reconhecíveis.

2.2. O constitucionalismo uniformizador O constitucionalismo apto a reconhecer a diversidade cultural em suas múltiplas manifestações é aquele que faz uso de uma linguagem pluralmente construída que permite que todos os grupos, indivíduos ou outras formas de externar a diversidade tenham suas próprias vozes, em seus próprios termos, respeitados e incentivados. A produção de condições que fomentem a dignidade cívica pressupõe a atitude de escutar a voz do outro/outra em seus próprios termos. Se partirmos do pressuposto, conforme o fez Tully (1995), de que o imperialismo/colonialismo integrou-se à linguagem constitucional moderna, uma nova – ou antiga, porque recupera saberes subalternizados – linguagem torna-se indispensável para atender aos chamados pelo reconhecimento. O pluralismo epistemológico adiciona provocações teóricas não negligenciáveis para as propostas de reconstrução do constitucionalismo moderno. Enquanto o desafio de criação de bases normativas sensíveis às múltiplas manifestações ou reivindicações por reconhecimento toca diretamente a matriz jurídica do constitucionalismo, faz-se oportuno notar, na perspectiva que privilegia a proposta do pluralismo epistemológico, que tais bases normativas são convocadas a percorrer trilhas epistemológicas abertas e comprometidas com os saberes ocultados pelo saber científico universalizante/totalizante. O saber jurídico necessita incorporar a indispensável autoconsciência da multiplicidade de saberes derivados de manifestações cognitivas inscritas em contextos valorativos, históricos e culturais únicos, nem mais e nem menos importantes que o saber moderno. (OLIVÉ et al, 2009; MAGALHÃES, 2012). Assim como propôs Tzvetan Todorov (2003) em já célebre estudo sobre a questão da alteridade no contexto da colonização das Américas, a apreciação do constitucionalismo moderno começa por identificar o vocabulário de base para discussões constitucionais a respeito do reconhecimento da diversidade cultural. O binômio assimilação/exclusão atua mediante a possibilidade de assimilar uma dada tradição cultural no âmbito do pensamento constitucional dominante. Isto não implica necessariamente no reconhecimento enquanto manifestação de uma

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 alteridade singular e complexa, mas, frequentemente, na imposição de práticas específicas no lugar das expressões culturais em tese incompatíveis com o desenho constitucional vigente. Já por via da exclusão, os chamados por reconhecimento cultural que forem considerados absolutamente incompatíveis com a identidade constitucional estabelecida serão, inevitável e fatalmente, excluídos. Em contrapartida, o desafio teórico que se lança é a discussão das condições histórico-materiais sobre as quais a visão majoritária acerca do constitucionalismo se sedimentou e se disseminou. Este apanhado desconstrutivo, norteado pela crítica historiográfica pós-colonial (TROUILLOT, 1995; CHAKRABARTY, 2000), integra o marco teórico de uma investigação que se erige em dois eixos: inicialmente, se partimos do pressuposto, que esta abordagem nos auxilia a situar de forma mais justa as demandas por reconhecimento no cenário global, por sua vez articuladas em diferentes vozes e tradições, espera-se, em um segundo momento, refletir sobre possíveis práticas constitucionais aptas a romper as amarras teóricas aplicáveis em qualquer diálogo constitucional. Um possível ponto de partida para a proposição de novas formas de reconhecimento – ou a identificação de antigas formas, mas que foram subjugadas ou ocultadas – é a transformação da linguagem empregada pelo constitucionalismo. A crítica central incide no fato de que, nas palavras de James Tully, “a linguagem empregada no exame de demandas por reconhecimento continua a abafar as diferenças culturais e a impor uma cultura dominante, enquanto disfarça-se de culturalmente neutra, abrangente, ou inevitavelmente etnocêntrica.” (TULLY, 1995, p. 35). Tully identifica três tendências de normatização das demandas por reconhecimento cultural na teoria constitucional moderna. A primeira é contextualizada no surgimento do Estado-nação no século XVI, e envolveu a consolidação de governos independentes, exaltantes da figura do soberano, diante das ameaças Imperiais e Papais, ao lado da gradual construção da igualdade dos indivíduos cidadãos. De forma paradoxal, a oposição ao imperialismo no século XVI foi revertida pelo acréscimo de uma dimensão imperial nas relações internacionais das potências Europeias no século XIX. A segunda tendência foi ditada pelos movimentos de descolonização e fragmentação dos antigos impérios. E a terceira convergência aduz às demandas contemporâneas por reconhecimento da diversidade cultural onde situam-se as lutas de movimentos nacionalistas, lutas de classes, arranjos supranacionais, minorias étnicas, movimentos feministas e povos originários. A extensão da influência da ideologia liberal na delimitação de um vocabulário constitucional avesso ao reconhecimento da diversidade e, portanto, uniformizador, também é examinada. Enquanto vocabulário de base para os debates sobre reconhecimento cultural, o constitucionalismo liberal lança mão de certos termos que vão mediar tanto a forma que determinada demanda por reconhecimento possa estar revestida quanto o sentido a ser atribuído à compreensão do sentido próprio da diversidade. Por exemplo, em sede do Direito Internacional, há o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos, em seu turno associado a uma perspectiva específica

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 sobre o nacionalismo e, corolário do Estado moderno, a delimitação de um poder soberano a comandar um povo discernível em termos identitários e nacionais. As expressões culturais, sob a rubrica do constitucionalismo moderno, são, então, descritos e categorizados de acordo com os parâmetros trazidos por tais termos. Neste particular, um comentador definiu a tendência do constitucionalismo moderno de atribuir às estruturas sociais a problemática condição de “categorias naturais independentes.” A proliferação da ideologia liberal, aliada à rápida expansão do capitalismo global, conduziu à presunção naturalizada de que o constitucionalismo moderno é normativamente superior a qualquer outra forma organização governamental. (BUTLERITCHIE, 2004). O uso destes referenciais pelas instituições oficiais lhes confere a primazia na determinação dos sentidos possíveis para o aludido vocabulário/linguagem constitucional, havendo, assim, um uso instrumental que impede, dificulta ou distorce o diálogo intercultural. A ideia de soberania é um interessante exemplo do funcionamento dos termos de reconhecimento no constitucionalismo moderno. A imagem do povo soberano, em geral, toma três formas de expressão: a noção de uma sociedade de indivíduos indiferenciados, a noção de uma comunidade mantida em conjunto por algum projeto de bem comum, e a noção de uma nação culturalmente homogênea. A teoria constitucional convencional ensina que a Constituição é responsável pela fundação de um povo independente e capaz de se auto-governar por meio de instituições políticas representativas em que todos são tratados igualmente. (HÄBERLE, 1998). O grande ponto a ser destacado neste particular é o tratamento da diversidade cultural nos parâmetros de assimilação/exclusão em meio à afirmação da soberania do povo, o que leva Tully a concluir que “as formas de reconhecimento cultural sobre as quais o povo soberano chega ao acordo omitem e excluem ou assimilam diferenças culturais.” (TULLY, 1995, p. 43). O entendimento tradicional da noção de povo, comunidade e nação tem o efeito de homogeneizar a diversidade, compondo um corpo político virtualmente semelhante e indiferenciado. Note-se, a título ilustrativo, a maneira como o Federalista John Jay constrói a poderosa ideia do “Povo Americano” em The Federalist Papers é revestida de particular notoriedade, e ilustra o argumento de Tully: A Providência esteve contente em dar a este país conectado um povo unido – um povo que descende dos mesmos ancestrais, falando a mesma língua, professando a mesma religião, vinculado aos mesmos princípios de governo, muito similar em suas maneiras e costumes, e quem, por seus conselhos, armas e esforços, lutando lado a lado através de uma longa e sangrenta guerra, nobremente veio a estabelecer sua liberdade e independência. (JAY et al, 2003, p. 32). É, sobretudo, a dimensão histórica o lócus de maior interesse para nossa investigação. Isto se justifica porque a teoria constitucional moderna consagra as peculiaridades das constituições modernas ao compará-las com as constituições antigas ou pré-modernas. A ideia de um povo soberano, inserido em determinada comunidade ou nação, ladeia a representação de uma identidade homogênea e,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 consoante na descrição de John Jay, encarna a superioridade da constituição moderna diante das associações pré-modernas, estas relegadas à inferioridade em termos de estágios de desenvolvimento histórico e institucional. Em Jay et al, a constituição moderna representaria a pedra de torque para o desenvolvimento pleno das faculdades humanas e da garantia da liberdade porque se ampara nas máximas da vontade, da razão e do acordo, ao passo que a constituição pré-moderna ou antiga é associada aos domínios do atraso, da desordem, e onde os costumes frustram os ideais individuais. Em consequência, a constituição moderna é fundada na noção de associação de indivíduos por via do reconhecimento de suas potencialidades e garantia de suas liberdades, ao passo que a constituição prémoderna representa seu anverso, onde se realça a prevalência de modos de vida atrasados. Representante contemporâneo deste segmento doutrinário, Peter Häberle enaltece o ano de 1789 como o momento fundamente do constitucionalismo moderno. Para o jurista germânico, este marco temporal é muito mais do que um simples sustentáculo teórico das práticas constitucionais passadas. Sendo certo que “[...] o Estado constitucional é um amálgama de conteúdos, formas e procedimentos europeu-angloamericanos tanto revolucionários como pré-revolucionários e não revolucionários” (HÄBERLE, 1998, p. 80), segue que a melhor compreensão contemporânea para os eventos de 1789 é aquela que faz valer a vocação cívica universal do conteúdo jurídico atemporal e que dialoga com as Revoluções Liberais os postulados do futuro do Estado Constitucional. Diante de tal quadro, a formas de associação modernas são situadas em posição hierárquica superior às formas rotuladas “pré-modernas”. Estas simbolizam o atraso e a mitigação da liberdade, ao passo que aquelas representam o triunfo da liberdade e das faculdades humanas: A constituição moderna é o ato pelo qual um povo liberta a si mesmo (ou a si mesmos) do costume e impõe uma nova forma de associação em si mesmo por meio de um ato de vontade, razão e acordo. A constituição antiga, em contraste, é o reconhecimento de como um povo já se encontra constituído pela conjugação de leis fundamentais, instituições e costumes. (TULLY, 1995, p. 67). A predominância da constituição moderna, isto é, sua superioridade diante da constituição pré-moderna, também é justificada em termos históricos. Por esta via, um dos efeitos práticos da historicidade constitucional moderna – aqui conectada com a noção de soberania popular – é a deslegitimação de manifestações de vida social e cultural de povos situados às margens dos processos históricos, ou presos no “estado de natureza” pré-contratual, de consolidação do Estado-nação soberano. Nesta faceta do constitucionalismo, a constituição antiga ocupa um estágio de desenvolvimento histórico inferior, o que traz de novamente a lume a doutrina da história em estágios, ou seja, a linearidade histórica movida pelo progresso civilizacional. Finalmente, o constitucionalismo moderno conclui sua narrativa fundante com a naturalização das instituições tipicamente Ocidentais, além de consubstanciar as regras do jogo democrático que pretende, em última análise, conferir legitimidade. O

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 primeiro ponto encontra conexão com o standard civilizatório do Direito Internacional (KOSKENNIEMI, 2001). Para o segundo ponto, o constitucionalismo moderno almeja situar-se como pré-condição da democracia, e não parte dela, ou, conforme a linguagem historiográfica padrão, o momento fundamente da futura comunidade política antecede o marco “zero” da própria comunidade, instituindo um tempo homogêneo e esvaziado. (BENJAMIN, 1987).

3. ROMPER PARA LIBERTAR: AS EXPERIÊNCIAS PLURINACIONAIS DA BOLÍVIA E DO EQUADOR

DOS

ESTADOS

Esta seção final destina-se a um autodeclarado propósito (re)construtivo. Volta-se a atenção para a indispensabilidade de proposição de arranjos normativos comprometidos com a diversidade desde a abertura da dimensão histórica do saber e do direito produzido pelos múltiplos saberes. Cumpre, então, tecer possíveis anotações acerca das recentes experiências constitucionais da Bolívia e do Equador. No constitucionalismo plurinacional destes Estados, a história e a diversidade dialogam continuamente na produção de espaços emancipatórios atentos à multiplicidade de culturas, saberes e projetos de comunidade, operando transformações nas matrizes produtoras do direito e propondo importantes rupturas com os alicerces epistêmicos do constitucionalismo moderno. A manutenção de espaços permanentes de construção de consensos deve constituir-se em prática constante, sob o risco de desintegrar o engajamento e mobilização social e a participação no espaço político. (ŽIŽEK, 2008). Em termos de historicidade jurídica, o engajamento neste desafio está condicionado à reivindicação de tempos e narrativas que podem não se enquadrar nos parâmetros convencionais do Direito (internacional e estatal), porque amparadas em visões do mundo – cosmovisões – relegadas à subalternidade pelo binômio modernidade/colonialidade. O processo histórico-social que culminou na nova Constituição boliviana de 2008 guarda suas origens na própria formação do Estado boliviano. A diversidade de povos e culturas neste país – são 36 povos originários atualmente – foi, desde o período colonial até a segunda metade do século XX, reprimida e situada às margens dos poderes públicos e oligarquias constituídas. Em confirmação das contrastantes dinâmicas de consolidação do Estado-nação ao redor do globo, e percorrendo caminho similar àquele observado em diversos Estados na América Latina, na Bolívia o Estado-nação se assentou sobre a exclusão e uniformização de modos de vida, economia, propriedade e representação política de povos que não se enquadravam no modelo estabelecido, seja nas irradiações européias do Estado liberal do século XIX, seja nas tímidas reverberações do Estado Social já no século XX. Conforme esclarece Luis Tapia, “[existe] uma crise de correspondência entre o estado boliviano, a configuração de seus poderes, o conteúdo de suas políticas, por um lado, e, por outro, o tipo de diversidade cultural entendida de maneira autorganizada [...] dos povos indígenas” (TAPIA, 2007, p. 48). Esta crise de correspondência se desdobra nos paradoxos de uma sociedade multicultural, sendo importante enfatizar (i) a oposição entre a diversidade de preferências dos povos e coletividades e o governo oriundo de um modelo único e (ii) as múltiplas matrizes

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 culturais, em contraste com a rigidez e uniformização das instituições públicas estatais. Deste modo, o desafio do Estado Plurinacional boliviano consiste em harmonizar a diversidade cultural em um contexto de organização estatal instituído e fortemente influenciado pela lógica da modernidade/colonialidade. O Estado Plurinacional apresenta-se como a plataforma de afirmação da diversidade e reconhecimento mútuo de alteridades, e se insere na seara de iniciativas institucionais que procuram rupturas com o constitucionalismo tipicamente moderno – existem povos originários, como o Quéchua, que desconhecem a forma estatal de organização social, o que os historicamente situou na frágil posição de tutelados das instituições consideradas adequadas. O Artigo 1º da Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia estabelece, nestes termos, que a Bolívia “se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico, dentro do processo integrador do país” (ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA, 2008). Na plural sociedade boliviana, os povos originários foram sujeitos constituintes da Assembleia Constituinte cujos trabalhos se iniciaram em 2006, e culminaram na Constituição de 2008. Tal elemento não deve ser menosprezado porque representa, consoante expõe Yrigoyen Fajardo (2012, p. 139), “uma ruptura paradigmática do horizonte do constitucionalismo liberal monista do século XIX e do horizonte do constitucionalismo social integracionista do século XX, e inclusive chega a questionar o fato colonial.” Nos quadrantes da perspectiva liberal, a promoção da igualdade formal através da introdução do moderno marco da cidadania não autoriza a coexistência de alteridades jurídicas desviantes do modelo esperado. Ademais, mesmo sob a influência do marco do Estado Social, as técnicas de tratamento da diversidade partiram do pressuposto de que é necessário integrar os povos originários ao Estado e ao mercado. Nos dois modelos clássicos, o projeto constitucional da tutela alia-se à monocultura nacional e ao monismo jurídico, informando o perfil de Estado soberano moderno. No Estado Plurinacional, o reconhecimento das identidades pré-modernas dos povos originários dá-se desprovido da métrica linear-temporal e da pressuposição de inferioridade destas coletividades e dos seus saberes. Nos termos do Artigo 2º: Dada a existência precolonial das nações e povos indígenas originários campesinos e seu domínio ancestral sobre seus territórios, se garante sua livre determinação no marco da unidade do Estado, que consiste no seu direito à autonomia, ao autogoverno, à sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais, conforme esta Constituição e a lei. (ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA, 2008). Dentre um total de 411 artigos que compõem a Carta Fundamental, nada menos que 80 são destinados à questão indígena. A equivalência da justiça indígena à justiça institucionalizada; a garantia de representação dos povos originários no parlamento; a reorganização territorial do país, o que garante autonomia às frações territoriais reivindicadas por cada coletividade (departamental, regional, municipal e indígena), cada uma delas podendo organizar suas eleições e administrar os recursos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 econômicos; e o reconhecimento dos direitos de família e propriedade de cada povo originário são alguns dos pontos essenciais do novo projeto constitucional. (MAGALHÃES e WEIL, 2010). Na seara do direito, o rompimento com o monismo jurídico em direção ao pluralismo jurídico foi demarcado pela quebra da identidade “Estado-Direito”. O Estado-nação monocultural propagado pelas instituições internacionais oferece espaços de reconhecimento da diversidade pautados pelo binômio exclusão/assimilação. Na Bolívia e no Equador, o campo das possibilidades políticas de formação do bem comum introduzido pelo pluralismo jurídico corrobora a legitimidade mútua da competência das autoridades originárias campesinas e indígenas, a capacidade de produzir suas próprias normas e de administrar sua justiça ou exercer funções jurisdicionais. Diferentemente dos modelos de Estados que oferecem o reconhecimento de direitos dentro de uma matriz monocultural e monojurídica, no Estado Plurinacional “[...] as coletividades indígenas se erguem como sujeitos constituintes e, como tais e junto com outros povos, têm o poder de definir o novo modelo de Estado e as relações entre os povos que o conformam” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 149). Desde sua independência política em 1830, o Equador foi regido por 18 constituições nacionais. Os textos constitucionais do século XIX espelharam as dinâmicas sociais de um país dominado por elites e oligarquias, com forte influência destas na vida política e econômica, em detrimento da participação dos povos e comunidades originárias. A centralização do Estado, dirigido por um executivo forte, foi um denominador comum do período. A questão econômica não era tratada devidamente, prevalecendo o embate entre conservadores e liberais pelo controle da máquina pública. O reconhecimento dos direitos individuais é notado nas primeiras Cartas do século XX. Já no começo deste período, trabalhadores, camponeses e povos originários compuseram forte oposição às práticas oligárquicas. A busca por maior participação na vida política motivou estes grupos a disputarem eleições, ocupando cargos públicos e lutando por reformas sociais, econômicas e políticas. Em retrospectiva, a nova Constituição Equatoriana de 2008 buscou “[...] afirmar os direitos laborais e sociais; fixar o papel econômico do Estado; e promover a responsabilidade social da propriedade privada” (PAZ e PAZMIÑO, 2008, p. 39). De grande significância para o projeto plurinacional, o texto constitucional reconheceu e incorporou no seio político as culturas e comunidades historicamente excluídas, conforme se depreende da leitura dos Artigos 10 e 11: “Os povos e as pessoas indígenas têm direito a pertencer a uma comunidade ou nação indígena, de conformidade com as tradições e costumes da comunidade ou nação que se trate. Não pode haver nenhuma discriminação [...] ao exercício deste direito” (GRIJALVA, 2008, p. 56). A nova Constituição do Equador também instituiu as bases para a consolidação de uma sociedade plural neste país. A participação ativa dos povos indígenas e comunidades originárias no projeto constitucional representa, no entender de Agustín Grijalva, uma completa reformulação das tradicionais categoriais legais e hermenêuticas. Tanto a ênfase quanto o diferencial desta nova formulação estatal

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 repousam na instituição de um sistema de foros de deliberação democrático e plural, com o indistinto reconhecimento de formas constitucionais modernas e pré-modernas: O constitucionalismo plurinacional deve ser um novo tipo de constitucionalismo baseado em relações interculturais igualitárias, que redefinam e reinterpretem os direitos constitucionais e reestruturem a institucionalidade proveniente do Estado Nacional. O Estado plurinacional não é e não deve ser reduzido a uma Constituição que inclua um reconhecimento puramente culturalista, à vezes somente formal, por parte de um Estado em realidade instrumentalizado para o domínio de povos de culturas distintas, senão um sistema de foros de liberação intercultural autenticamente democrático (GRIJALVA, 2008, p. 50-51, destaque no original). A institucionalização do constitucionalismo plurinacional demanda um engajamento profundamente intercultural. Tal constitucionalismo, para ser apto a romper com as bases uniformizadoras do constitucionalismo moderno, deve ser dialógico, uma vez que demanda uma abertura comunicativa e deliberativa permanente para alcançar o melhor entendimento com o outro/outra. À diferença do constitucionalismo moderno, o constitucionalismo plurinacional sustenta uma concepção aberta do direito cujos acordos não são inteiramente fixos ou imodificáveis; fala-se, então, em modelos plurinacionais em constante continuidade histórica e assentados no mútuo reconhecimento de todos os sujeitos e coletividades co-participantes. O constitucionalismo plurinacional é uma atividade, um diálogo intercultural no qual, recuperando a lição de Tully, “[...] os culturalmente diversos cidadãos soberanos das sociedades contemporâneas negociam acordos sobre suas formas de associação ao longo do tempo conforme as convenções do mútuo reconhecimento, consentimento e continuidade” (TULLY, 1995, p. 184). Ademais, o constitucionalismo plurinacional deve ser concretizante, pois se compromete com a busca de soluções específicas e consistentes para situações individuais e complexas; tal fato requer do intérprete constitucional uma abordagem crítica e reconstrutiva. E, por fim, o constitucionalismo em sua vertente plurinacional não dispensa uma postura garantista, porque trabalha diretamente para a construção de sentidos e significados para o rol de direitos fundamentais. Na reflexão de Grijalva, “[...] o direito à identidade e diferença cultural deve inscrever-se em um marco de direitos humanos conforme vão sendo definidos pelo Estado plurinacional.” (GRIJALVA, 2008, p. 53). Por isso, não existe um modelo de Estado Plurinacional, e sim modelos de Estados Plurinacionais; deve superar a dicotomia tradicional/contemporâneo, galgando uma equivalência entre “[...] o que é simultâneo e o que é contemporâneo: cada um à sua maneira, porém contemporâneos ao final” (SANTOS, 2009, p. 209). É com o reconhecimento das multifacetadas percepções da história que se contrasta e se desafia a narrativa linear-progressista do marco moderno/colonial, sua matriz apolítica unidimensional e seu tempo vazio e homogêneo. Portanto: A ideia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 se conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e sistema econômico, entre outros aspectos importantes da vida social. [...] A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato de que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico, pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e, logo, radicalmente excludente. (MAGALHÃES e WEIL, 2010, p. 1718). Enquanto o Estado Plurinacional galga o rompimento com os marcos uniformizadores do constitucionalismo moderno, inovadoras formas de lidar com diferenças culturais emergem. Em uma conclusão aberta e em construção, a plurinacionalidade é fundada na certeza da incompletude de cada cultura, iluminando um diálogo aberto e inclusivo, pautado pelo mútuo reconhecimento em oposição ao encobrimento. Forja-se, ademais, pela consciência dos processos históricos em suas rupturas e continuidades, pela descolonização em oposição à submissão forçada à colonialidade do saber, pela criação de espaços narrativos onde a diversidade explana suas próprias narrativas, as narrativas outras, e, finalmente, pela produção de espaços normativos dentro dos quais a linguagem/idioma constitucional reconheça suas limitações e congregue não uma, mas uma multiplicidade de linguagens constitucionais.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em oposição ao constitucionalismo moderno, no qual os conceitos de povo e soberania popular contribuíram para a uniformização cultural por meio da sobreposição da cultura dominante – dita civilizada ou desenvolvida – por sobre as demais formas de organização familiar, cultural, econômica e política, o constitucionalismo plurinacional está comprometido com as peculiaridades dos processos histórico-sociais de cada Estado (Bolívia e Equador) e de seus povos. Defendeu-se a proposição de bases constitucionais capazes de criar contextos de reconhecimento de manifestações legítimas de organização social e política que se situam fora dos padrões geralmente aceitos pela doutrina jurídica. Sustenta-se que não existe um, mas sim vários constitucionalismos, de modo que as tentativas de uniformização das propostas de constitucionalização – com um único modelo de Constituição, com um único conteúdo atribuível para todas as coletividades – implicam em aproximar o constitucionalismo da racionalidade própria do colonialismo e imperialismo: a uniformização de condutas e modos de vida sob os ditames de um molde central ou ideal. O recurso ao pluralismo jurídico e às experiências constitucionais recentes da Bolívia e do Equador procurou apontar conexões entre os processos constitucionais globais e as inovações do plurinacionalismo. O comprometimento com os espaços

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dialógicos de construção de consensos imprime no constitucionalismo plurinacional o indispensável senso de continuidade emancipatória capaz de provocar rupturas na linearidade temporal constitucional moderna. Ademais, a proposta plurinacional se insere em um panorama de superação de dicotomias excludentes que originaram o mito da missão civilizatória das nações desenvolvidas. Na mesma rubrica, almeja sedimentar as bases para a supressão de hierarquias de saberes, que cede lugar a um diálogo permanente, culturalmente referenciado e pautado pelo mútuo respeito à diversidade. Finalmente, o constitucionalismo plurinacional deve ser concretizante, pois se compromete com a busca de soluções específicas e consistentes para situações individuais e complexas. Tal fato requer do intérprete constitucional uma abordagem crítica e reconstrutiva, haja vista que o legado moderno imprime marcas robustas no vocabulário normativo à disposição das instituições jurídicas. Negligenciar os contornos excludentes e uniformizadores de nossas tradições, assim como insistir na adequação destas últimas como única alternativa para atender as demandas a pressionar a doutrina e o saber jurídico, talvez consistam em algumas das aparentemente inofensivas violências legitimadas pelo direito.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 PROCESSO, IDEOLOGIA E TUTELA DO AMBIENTE Carlos Alberto Lunelli1 e Jeferson Dytz Marin2

Sumário: Introdução. 1. Ideologia e produção do Direito. 2. Proteção do Ambiente: condição de sobrevivência humana. 3. Perspectivas processuais para a efetividade da proteção ambiental. Considerações Finais. Referências.

Resumo: O componente ideológico, imanente à compreensão/aplicação do direito, também reflete decisivamente na atividade jurisdicional. No Direito Ambiental, a cultura mercantilista e o caráter liberal-racionalista identificado no cenário político, econômico e social do mundo pós-moderno influencia a decisão. Nessa esteira, o embate entre o ambiental e o econômico, que, no caso concreto, representa um dos maiores percalsos para a efetiva tutela do bem ambiental, acaba quase sempre por verter a derrocada do primeiro. Para superar a inefetividade da tutela ambiental, constitui alternativa a mudança do paradigma educacional, no sentido de firmar uma autêntica transição na percepção de que se está a cuidar da sobrevivência da própria espécie. Dessa forma, perceber a questão ideológica da proteção do bem ambiental também implica a adoção de conduta rompedora de paradigmas na dimensão epistemológica reflexiva. Palavras-Chave: Ambiente, ideologia, meio ambiente, decisão.

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Advogado. Possui Doutorado em Direito e Mestrado em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atualmente é professor titular da Universidade de Caxias do Sul, no Mestrado em Direito, ministrando a disciplina Tutela Jurisdicional do Ambiente. No Curso de Direito, ministra a disciplina de Direito Processual Civil. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil, atuando principalmente nas seguintes áreas: Direito Processual Civil, Direito Ambiental, Processo Constitucional e Políticas Públicas. LUNELLI, C. A. ; MARIN, J. . O contributo do contempt of court para o processo ambiental. Revista de Processo, v. 218, p. 47-64, 2013. 2 Advogado. Doutor em Direito – UNISINOS. Mestre em Direito – UNISC. Professor da graduação e do Programa de Mestrado em Direito da UCS. Coordenador Adjunto do Programa de Mestrado em Direito da UCS. Pesquisador CNPQ da UCS. Membro Honorário da Academia Brasileira de Processo Civil – ABDPC. Membro do IEM – Instituto de Estudos Municipais. Líder do Grupo de Pesquisa ALFAJUS. Autor dos livros “Jurisdição e Processo: efetividade e realização das pretensões materiais (Juruá, 2008)”, “Jurisdição e Processo II: racionalismo, ordinarização e reformas processuais (Juruá, 2009)”, Jurisdição e Processo III: estudos em homenagem a Ovídio Baptista da Silva (Juruá, 2009), Jurisdição e Processo IV: coisa julgada (Juruá, 2013), dentre outros.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Abstract: The ideological component, immanent to understanding / applying the law, also reflects decisively in court activity. In Environmental Law, mercantilist culture and liberal-rationalist character identified in the political, economic and social landscape of the post-modern world influences the decision. On this sense, the clash between environmental and economic, which in this case represents one of the largest difficulties for the effective protection of the environment as well, almost always ends up by pouring the collapse of the first. To overcome the ineffectiveness of environmental protection, is an alternative to changing the educational paradigm, to establish an authentic transition on the perception that it is to care for the survival of the species itself. Thus, realizing the ideological issue of environmental protection and also implies the adoption of disruptive behavior paradigms reflective epistemological dimension. Key Words: environment, ideology, natural environment, decision.

Introdução Não há como dissociar ideologia, meio ambiente e sociedade pós-moderna. O racionalismo-liberal, irrefragavelmente, dita os rumos do tempo presente, o que compreende, naturalmente, a economia e, também, o direito. Nessa esteira, a prevalência dos critérios econômicos na definição das prioridades na atuação do Estado, da sociedade organizada, dos investimentos privados e, do próprio indivíduo, constitui uma realidade evidente. O direito, como não poderia deixar de ser, é subproduto desse cenário. Identificar essa influência e propor caminhos para superála, na busca do estabelecimento de critérios ambientais para a asseguração da evolução qualitativa da espécie humana, traduz um dos principais objetivos do presente trabalho. Ovídio Baptista da Silva debruçou atenção especial na crítica histórica ao papel que a ideologia racional-liberal desempenhou no direito, tornando-o lógico e distanciando-o das ciências do espírito. No processo, a intervenção permanente do direito romano-cristão teve na ordinarização e na tutela exclusiva dos direitos individuais traços que sempre o moldaram, distanciando-o da tutela dos novos direitos, dentre os quais, se põe o meio ambiente. Alicerçando-se nas conclusões de Baptista da Silva, vertidas especialmente na sua última fase produtiva, busca-se, num passo adiante, enfrentar de forma particular a tutela do ambiente que, mais do que a necessidade de classificação como efetivo direito coletivo, impõe o reconhecimento de seu caráter intergeracional, sistêmico e indispensável à sustentação da própria raça humana.

1. Ideologia e produção do Direito. O componente ideológico, indissociável da produção do Direito, é fator decisivo também na prestação da tutela jurisdicional. Ao realizar a atividade de aplicar a previsão legal ao caso concreto, nem o julgador - nem os demais operadores – poderiam escapar do componente ideológico que permeia o processo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 É verdade que a ideologia conduz a produção do Direito ainda na dimensão legislativa, expressa naquele momento temporal e espacial. A produção legislativa é portadora do conjunto das ideias que, em sua atualidade, se fazem presentes e 3 determinam o texto legal . A obra do jurista é, antes de tudo, obra presa ao seu tempo e espaço e que se perderá, com maior ou menor intensidade, ao longo da história da humanidade. Esse componente ideológico pode ser percebido na atividade do jurista que, dada a dimensão própria da ideologia, muitas vezes sequer percebe que essa produção da ciência jurídica se dá nessa construção. A questão faz lembrar das palavras de Lumia (1973, p. 115), quando diz que “l´ideologia può definirsi come un sistema di idee, di opinioni e di credenze, condivise dai membre di una colletività, relative a certi fini che possiamo chiamare `ultimi´, non perchè siano necessariamente pensati come definitivi ed assoluti, ma perchè non si pongono in relazione di mezzo a fine rispetto a fini ulteriori”. E quando se pensa, por exemplo, na proteção do bem ambiental, é fácil perceber papel que o conjunto de ideias que se formaram na comunidade mundial, nas últimas décadas, acerca da necessidade de proteção desse bem, determinaram intensa produção legislativa dirigida no sentido de produzir essa proteção. Assim, quer pela escassez dos recursos naturais, quer pelos desastres ecológicos que sensibilizaram o mundo, a mobilização de energias em torno da proteção do ambiente conduziram à proteção legal. Primeiro foram os tratados internacionais, dirigidos nesse sentido. Depois, a incorporação pelos diferentes ordenamentos, ainda que em tempos e intensidades diferentes. Vieram as afirmações nos textos constitucionais e a consagração do direito fundamental ao ambiente sadio e equilibrado. Essa produção legislativa foi, certamente, muito positiva, porque permitiu uma evolução na proteção do bem ambiental que, inegavelmente, determinou e determina, ao indivíduo do tempo atual, ações muito diferentes daquelas adotadas há algumas décadas em relação ao ambiente. No entanto, é inegável que a proteção legal do bem ambiental situa-se, ainda, num plano teórico e abstrato, que é o plano da produção legislativa, inclusive constitucional. O simples reconhecimento do direito fundamental ao ambiente, ainda que sustentado por intensa legislação infraconstitucional, é evidentemente insuficiente para produzir a sua efetiva proteção. E, aqui, a legislação apresenta-se como um elemento de produção de tranqüilidade social, na medida em que também produz a falsa ideia de que exista a efetiva proteção do bem ambiental. Nesse raciocínio, Luis Alberto Warat (1996, p. 57) percebe o papel das ciências jurídicas, atribuindo-lhes a 3

Como refere Giuliano Crifò, “E’ vero anzitutto che il giurista è uno scienziato legato all’attualità, e se è così, può anche meglio spiegarsi il fatto, pur esso incontestabile anche nelle dimensioni in cui accade, che le opere del giurista sono scarsamente conosciute fuori del campo, materiale, linguistico etc., del suo operare nel suo proprio tempo e che comunque ben presto vengono dimenticate”, in A proposito del "giurista come scienziato". in "Diritto pubblico" 1/2005. Milano: Giuffrè. p. 144

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 característica de “um conjunto de técnicas de `fazer crer´ com as quais se consegue produzir a linguagem oficial do direito que se integra com significados tranqüilizadores, representações que têm como efeito impedir uma ampla reflexão sobre nossa experiência sócio-política [...] Nesse sentido, a linguagem oficial do direito determina uma multiplicidade de efeitos dissimuladores.” Não há como negar essa cruel constatação, que é justamente a dissimulação que se produz acerca da proteção do ambiente. A inserção constitucional, a edição de textos legais específicos produzem a falsa ideia de que nesse ordenamento efetivamente exista a proteção do bem ambiental. Aqui, retorna-se ao papel que a ideologia cumpre na produção do Direito. Primeiro, esse papel está expresso na produção legislativa. Por si, essa produção conduz à ideia de proteção que, no entanto, ainda não é efetiva, exatamente porque ela não se realiza se não houver a realização no plano concreto. E, mais uma vez, a ideologia que permeia o processo de produção do Direito transparece, agora na atividade jurisdicional que, afinal, representa o poder dever do Estado de garantir a aplicação do texto legal à situação concreta. Essa atividade jurisdicional não dispensa a compreensão hermenêutica que, afinal, é produzida num contexto indiscutivelmente ideológico. Nem poderia ser 4 diferente. O juiz exerce atividade criativa , aplicando a lei ao caso a partir de sua compreensão hermenêutica, em processo indissociável do elemento ideológico. Então, mais uma vez, a proteção ambiental depende da compreensão e interpretação que o juiz dá ao texto legal. A atividade legislativa, na produção do Direito, é atividade que sempre depende da aplicação que lhe será dada. Como diz Larenz (1997, p. 159), o legislador é, por um lado, o criador da lei – não uma simples ‘abreviatura’ com que se designassem os “interesses casuais”, ou uma mera “personificação” –, e está vinculado a conexões de sentido que lhe são dadas, bem como à sua concreta situação histórica; mas a lei, como parte que é da ordem jurídica, participa do seu sentido global e do seu desenvolvimento na História e, além disso, o seu significado é também determinado pelo modo como a compreendem aqueles a quem está confiada a respectiva “aplicação”. A construção de que ao Judiciário cabe unicamente o papel de reproduzir a lei também expressa o compromisso ideológico, tornando o juiz refém do texto legal, como se fosse possível reduzir essa atividade a tal desiderato. Nesse sentido, Ovídio Baptista da Silva (2004, p. 21) afirma que “os dois principais compromissos ideológicos inerentes à nossa compreensão do Direito e da missão do Poder Judiciário revelam-se claramente: a ideia que o juiz somente deve “respeito à Lei”, sendo-lhe vedado decidir as causas segundo sua posição política”. Então, quando se pensa na proteção do bem ambiental, não se revela suficiente a proteção legal, é 4

Refere Paolo Siracusano: “Che il giudice eserciti un’attività di natura creativa è un dato acquisito della cultura giuridica. Lo confermano la riflessione sui principi costituzionali in tema di giurisdizione, le teorie processualistiche sull’azione, il passaggio qualitativo che si ha tra la potenza e l’atto, l’ermeneutica giuridica” in Ruolo creativo del giudice e principio di legalità nella responsabilità civile da illegittimo esercizio del potere discrezionale. in "Diritto Pubblico" 2/2003. Milano: Giuffrè, p. 546.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 preciso também que o juiz esteja disposto a acolher a pretensão do autor, na ação em que se tutela o bem ambiental. A atividade do julgador é inegavelmente ideológica. E, retornando ao pensamento de Warat (1996, p. 69), que afirma “[...] a ideologia pode ser também considerada como uma dimensão pragmática da linguagem. A ideologia não só se encontra presente no discurso natural, como também constitui um sistema de evocações contextuais surgidas no uso pragmático do discurso científico” é fácil perceber que a atividade jurisdicional é indissociável desse elemento. A propósito, Siracusano reconhece que, num círculo hermenêutico, sequer é possível estabelecer quem vem primeiro, se o intérprete que interpreta ou o texto a 5 ser interpretado . Ainda que a atividade jurisdicional registre esses elementos, a atividade interpretativa encontra limites, trazidos pelo próprio texto legal – estão aí as violações literais dos textos legais – bem como aqueles que são o produto do prévio reconhecimento dessa natureza e que se constroem justamente com o propósito de impor, tanto quanto possível, limites à atividade interpretativa. Assim, a interpretação de um texto legal, pelo juiz, haverá de realizar-se em consonância com os princípios orientativos, afirmados no próprio ordenamento e, porque não dizer, em consonância com a Constituição desse ordenamento. É assim que Rescigno afirma que essa interpretação, constitucionalmente orientada, haverá 6 de seguir o critério, óbvio e onipresente no próprio ordenamento . É certo que – como o próprio autor reconhece – essa interpretação constitucionalmente orientada tem os seus limites, limites que decorrem da própria expressão da linguagem que, afinal, é o instrumento de consecução do Direito, feito essencialmente de palavras. As diferentes palavras – e os seus diferentes sentidos –

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Assim, o autor afirma: “L’intima connessione propria della potenza e dell’atto si rinsalda nel circolo ermeneutico tanto che diventa impossibile stabilire cos’è che venga prima, se l’interprete che interpreta o il testo che ha da essere interpretato. Il fatto che l’interprete, con la sua ‘precomprensione’, ponga al testo una domanda latrice di senso non esclude, anzi implica, che un testo gli preesista”. in SIRACUSANO, Paolo. Ruolo creativo del giudice e principio di legalità nella responsabilità civile da illegittimo esercizio del potere discrezionale. in "Diritto Pubblico" 2/2003. Milano: Giuffrè, p. 544. 6 RESCIGNO, Giuseppe Ugo. Comunicare, comprendere, interpretare nel diritto. in "Diritto pubblico" 3/2009. Milano: Giuffrè. p. 691: “Che una legge, come qualsiasi altra disposizione, debba essere interpretata alla luce dell’intera Costituzione, e cioè seguendo il criterio ovvio e onnipresente della interpretazione sistematica, per cui ogni singola frase o proposizione va intesa collegandola con tutte le altre pertinenti, è ovvio, e qualunque operatore ha il dovere di ragionare secondo questo criterio. In questo senso la interpretazione costituzionalmente orientata è espressione altisonante e inutile per ribadire un principio generale mai messo in discussione (e del resto impossibile da mettere in discussione: come si può comprendere un qualsiasi testo fuori del suo contesto?)”.

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produzem também os diferentes efeitos no Direito , nos seus diferentes momentos, com a vagueza própria das palavras. Essa dimensão, própria do Direito, demonstra que a produção do Direito passa por diferentes momentos, todos eles permeados pela ideologia. E, ainda que se possam estabelecer as linhas diretivas de um ordenamento, que o seja através da afirmação constitucional de um direito, ainda assim a sua aplicação não escapa dos enlaces da compreensão e da interpretação, decorrentes naturais do processo lingüístico.

2. Proteção do Ambiente: condição de sobrevivência humana. Como em diversas outras áreas, também em relação à proteção ambiental o fenômeno da judicialização aparece de forma crescente, deslocando-se para o Poder Judiciário a solução dos conflitos que se estabelecem em relação ao assunto. Conquanto existente no ordenamento extensa e vasta legislação garantidora da proteção ambiental, certo é que essa legislação não se revela suficiente para a efetiva proteção do ambiente ecologicamente equilibrado. De um lado, a tensão existente entre os diferentes e antagônicos interesses, de órgãos governamentais e dos setores produtivos. De outro, a natural discussão, que se estabelece na aplicação das previsões legais acerca do trato da questão ambiental. A questão ambiental ganhou foros de intenso debate, quer pelo antagonismo muitas vezes presente em relação aos aspectos econômicos, quer pela própria expressão das dimensões conferidas ao bem ambiental. Como diz Elisa Olivito (2011, p. 575), “le tematiche ambientali offrono un interessante punto di osservazione, che permette di considerare più da vicino la difficoltà di tradurre in concreto legittime aspirazioni e l’ambiguità che sovente circonda tali trasposizioni”. A questão da proteção ambiental, a que o mundo se dedica nas últimas décadas, representa mais do que o simples cuidado com o ambiente. E, ainda que esse processo tenha sido deflagrado pela percepção da finitude dos recursos naturais, certo é que conspira contra milenares concepções, ainda arraigadas no mundo contemporâneo. A passagem do teocentrismo para o antropocentrismo provocou radical transformação filosófica, política e econômica no mundo moderno. Foi essa passagem que permitiu a concepção de estado contemporâneo e que determinou profundas alterações epistemológicas, inclusive nos paradigmas científicos.

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RESCIGNO, Giuseppe Ugo. Comunicare, comprendere, interpretare nel diritto. in "Diritto pubblico" 3/2009. Milano: Giuffrè. p. 712: “In primo luogo, se il diritto è fatto essenzialmente di parole, non tutte le parole hanno lo stesso rango: vi sono le parole del testo costituzionale, quelle del testo di legge formale, quelle del regolamento governativo, quelle del contratto, quelle della sentenza, quelle del giurista, e così via. In secondo luogo il tempo scorre: vi sono parole dette ieri oggi non più attuali (la legge, ad esempio, è stata abrogata), parole dette ieri ancora attuali, parole dette oggi che guardano al futuro, parole non definite che ieri significavano cose non del tutto coincidenti col significato attuale (ad esempio, buon costume).”

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A afirmação, sustentada pelo pensamento cristão, de que o homem é imagem e semelhança de Deus deu à espécie humana status diferenciado entre as demais criaturas. Agora, quando a evolução dos debates em relação ao ambiente torna-se assunto diário, arriscando-se já a delimitação de um biocentrismo, que reconheça a igualdade das criaturas existentes na natureza, inclusive dos vegetais, a discussão ganha foros de maior indagação, como a proposição de que os 8 representantes do mundo verde sejam dotados de inteligência. Ainda que se atribua ao cristianismo a sustentação de práticas que importaram na devastação do ambiente, exatamente pela superioridade que alcança à espécie humana em relação às demais, há sustentações em sentido diverso, como o pensamento de Viola, que distingue o reconhecimento dado pelo cristianismo ao homem, enquanto fim, ele mesmo, da criação. Todavia, o pensamento cristão não 9 sustenta que o fim da criação se destine à sobrevivência física da própria espécie . É exatamente nesse ponto que inicia a discussão acerca da proteção ambiental, quando a humanidade percebe a finitude dos recursos naturais, finitude que ameaça a própria espécie. Nesse ponto, Viola (2013, p. 136) também reconhece que, mesmo restando superado o antropocentrismo, permaneceria a natureza humana, indissociável que é do modo de pensar, porque componente da própria sociedade. Infatti, possiamo rigettare l’antropocentrismo, ma non già l’antropomorfismo, cioè il fatto che il nostro modo di pensare è umano e le nostre società sono abitate da esseri appartenenti alla specie umana. La questione aperta è, invece, in che modo la nozione di natura umana eserciti un ruolo normativo nella teoria sociale e politica. La questione è proprio come la natura diventa norma e non già se in qualche modo lo diventi. Na globalizada sociedade contemporânea, o interesse na proteção do bem ambiental estravasou os limites unicamente científicos, ganhando espaços de discussão na formulação das políticas dos governantes, tornando-se pano de fundo para programas e projetos políticos. A importância dada à temática é percebida por Olivito, que reconhece a superação das históricas tensões que nortearam a 10 implementação das políticas ambientais, nos espaços democráticos . A atenuação 8

Nesse sentido, Stefano Mancuso e Alessandra Viola afirmam que “Gli sviluppi della biologia vegetale permettono oggi di studiare le piante come organismi con una comprovata capacità di acquisire, immagazzinare, condividere, elaborare e utilizzare informazioni raccolte dalll`ambiente circostante. Come queste brillanti creature si procurino le informazioni ed elaborino i dati ottenuti in modo da sviluppare un comportamento coerente, rappresenta il principale intresse della neurobiologia vegetale.” in 9 VIOLA, Francesco. Come la natura diventa norma. in "Diritto pubblico" 1/2011: Milano: Giuffrè. p. 155: “Il cristianesimo è stato accusato di giustificare il dominio e lo sfruttamento della natura a causa della dottrina dell’incarnazione e della salvezza solo per gli uomini. È vero che per il cristianesimo l’uomo è il fine della creazione, ma non è la sopravvivenza física dell’uomo il fine della creazione”. 10 “In particolare le tematiche ambientali, che fino a qualche decennio addietro parevano essere domínio esclusivo degli scienziati o di imparziali tecnocrati, si sono ormai aperte alle procedure e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dessas tensões implica na superação dos abismos, notadamente aqueles que decorrem da conciliação da proteção do bem ambiental com o desenvolvimento econômico. Não é possível, efetivamente, pretender a absoluta inexistência de qualquer impacto sobre o ambiente, decorrente da sofisticada existência humana. Assim, há que se aceitar um nível de impacto razoável, que permita a conjugação da vida humana, em suas naturais expressões, com a tutela do ambiente. Trata-se, como 11 reconhece Gallo , da aceitação de um nível de impacto, que permita a conjugação dessas duas dimensões. O estabelecimento desse nível de impacto aceitável não se constitui em tarefa que dispense maiores construções. Trata-se, ainda, de perceber que o avanço tecnológico – que de um lado pode representar também menores agressões ao bem ambiental – reveste uma dimensão que naturalmente se contrapõe ao já distante estado original do ambiente. E é justamente aqui que se apresenta o maior desafio ao Direito, em promover intervenção eficaz que permita o estabelecimento de relações seguras entre o avanço tecnológico e o ambiente. A incorporação definitiva da temática ambiental pela Ciência Jurídica, torna o Direito Ambiental espaço profícuo de exercício de valores concretos, orientados na garantia da sadia qualidade de vida, mas também da sobrevivência das gerações futuras. O legado que a humanidade contemporânea pode deixar aos que a sucederem, certamente, depende do reconhecimento desse status ao bem ambiental e ao próprio Direito Ambiental, como valor que a humanidade preserva e reconhece 12 hábil e merecedor de tutela . De nada adiantará à humanidade prosseguir na inescusável evolução tecnológica, se essa evolução não se revelar capaz, também, de propiciar a sadia qualidade de vida, que depende intrinsecamente da proteção ambiental. É a questão de estabelecer-se a adequada interrelação entre a tecnologia e os recursos naturais, 13 que Olivito denomina a correspondência entre técnica e ambiente . ai dilemmi propri degli ordinamenti democratici, riuscendo in qualche modo a superare la tensione che storicamente si era creata nel rapporto tra democrazia e politiche ambientali.” in OLIVITO, Elisa. Partecipazione e ambiente. Uno sguardo critico. in "Diritto pubblico" 2/2011. Milano: Giuffrè. p. 563. 11 GALLO, Emanuela. L'evoluzione sociale e giuridica del concetto di danno ambientale, in "Amministrare" 2/2010. Milano:Giuffrè. pp. 268: Il legislatore, ponendo dei parametri specifici di ‘accettabilità’ di impatti ambientali derivanti dalle attività produttive-industriali, ha stimato ed accettato, l’esistenza di un livello di impatto (e quindi di deterioramento dell’ambiente), ritenendolo equilibrato rispetto, alla salvaguardia dell’ambiente e della salute, da una parte, e allá libertà imprenditoriale, dall’altra (beni, come detto, tutti riconosciuti a livello costituzionale). I parametri di accettabilità quindi rappresentano la ‘base line’, diversa dallo ‘stato originario del bene ambiente’ per la stessa individuazione di un danno ambientale”. 12 Nesse sentido, Ferrara afirma que “Il diritto ambientale, infatti, anche a voler toccare un solo, ma fondamentale, profilo del problema è, in primo luogo, un diritto nel quale, ed in virtù del quale, si codificano « valori », valori materiali e concreti, ossia soglie e standards: valori-limite, valoriguida, valori di qualità, ecc.” in FERRARA, Rosario. Emergenza e protezione dell'ambiente nella “società del rischio”. in Foro Amm. Milano: Giuffrè: TAR 2005, 10, 3356. p. 131. 13 OLIVITO, Elisa. Partecipazione e ambiente. Uno sguardo critico. in "Diritto pubblico" 2/2011. Milano: Giuffrè. p. 576: “l’intervento del diritto sulle problematiche ambientali è dettato per lo più

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Enfim, o que se pode perceber, a partir da judicialização da discussão envolvendo a problemática ambiental, é que o Judiciário tem chamado para si uma considerável responsabilidade nas decisões que, ao final, expressam discussões que importam na sobrevivência da própria espécie. Nesse ponto, vale lembrar a indagação de Nalini (2008, p. 70), que faz o questionamento: “Poderá o juiz salvar o ambiente?” E, analisando a judicialização da proteção ambiental no Brasil, o autor (NALINI, 2008, p. 70) afirma que “Houve significativo avanço jurisprudencial na relativização de alguns conceitos dogmáticos, quais a tríplice blindagem fundante – direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Têm sido freqüentes as decisões em que se reafirma a inexistência de direito adquirido a poluir, ato jurídico perfeito exercitável contra a natureza, coisa julgada à luz de uma outra ordem constitucional e hoje superável, pois adversa à proteção ambiental.” No entanto, ainda se enfrentam dificuldades, diante do Judiciário, para afirmação efetiva da proteção ambiental, notadamente pelo caráter inovatório do tema e pelas incertezas que se apresentam. De qualquer maneira, espera-se do Judiciário a adoção de posturas vanguardeiras e corajosas, como bem percebe Andreas Krell (2004, p. 71), quando diz “A esperança de todos é a de que posturas corajosas, aparentemente não dogmáticas, venham a ser reconhecidas como respostas urgentes, necessárias e adequadas a graves questões ambientais, cada vez mais complexas, de compreensão pluralista e sem perspectivas de consenso. Nutre-se a exata consciência de que o estágio atual de comprometimento do ambiente não pode perdurar. Se isso ocorrer, as conseqüências virão muito mais rápidas e muito mais traumáticas do que se possa imaginar.” A esperança depositada na judicialização do direito à proteção ambiental é o último reduto da expectativa de efetiva garantia dos direitos afirmados constitucionalmente, lembrando Garapon (1996, p. 24), quando diz que “O juiz tornase o último guardião das promessas, tanto para o indivíduo como para a comunidade política. Essa atividade jurisdicional haverá de estar orientada pelo princípio da dignidade humana e pela percepção de que o reconhecimento dessa dignidade implica garantir sadias condições de vida. O desafio que se apresenta ao Judiciário, em última análise, é o de implementar, na prática dos tribunais, essa dignidade já afirmada nos ordenamentos, inclusive pelas inserções nos textos constitucionais. E a afirmação dessa dignidade não se dá apenas na exclusão de comportamentos que atentem contra essa dignidade, mas também representa o reconhecimento e garantia dos valores tidos pela humanidade como importantes e essenciais.” Nesse sentido,

dalle spinte di una técnica sempre più pervasiva e dalle conseguenze che uno sviluppo incontrollato delle tecnologie può avere sull’ambiente. Per predisporre discipline utili alla salvaguardia dell’ecosistema diviene, dunque, indispensabile individuare il rapporto di corrispondenza esistente tra ‘tecnica’ e ‘ambiente’, in modo da capire le ripercussioni che l’avanzamento dell’una ha sull’altro. A questo scopo, il diritto intravede nella scienza un interlocutore privilegiato, grazie al quale ottenere risposte esaurienti e trasformare poi le nozioni così acquisite in discipline ‘scientificamente supportate’.”

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Viola percebe que o reconhecimento da dignidade humana é, também, o respeito a esses valores. Um outro aspecto que haverá de ser considerado, na tutela ambiental é a incerteza que se apresenta em relação aos efeitos que a tecnologia e o modo de vida contemporâneo poderão produzir, seja implicando no esgotamento de recursos naturais ou, ainda, na própria precarização da qualidade de vida das futuras gerações. A atuação jurisdicional haverá de informar-se pelo princípio da precaução. Porém, esse próprio princípio não tem – e nem poderia ser diferente – seus contornos precisamente definidos, ora apresentando-se com intensidade débil, ao ponto de nem mesmo permitir sua aplicação, ora constituindo-se num empecilho para realização de atividades comuns. Assim é que Manfredi traz o exemplo de lei local italiana, que impede a prática de atividades agrícolas a determinada distância de estações de rádio 15 de telefonia celular . Enfim, Manfredi (2004, p. 1084) percebe que esse aspecto também determina a formulação de instrumentos que tenham o propósito de coibir os danos que decorrem das inovações tecnológicas, dizendo que “il diritto dell’ambiente, oltre a utilizzare lo strumentario delle discipline giuridiche già esistenti, ha anche elaborato ex novo numerosi strumenti specificamente intesi a evitare i danni derivanti 16 dall’innovazione” . É, assim, reconhecida essa peculiaridade do direito ambiental,

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VIOLA, Francesco. Come la natura diventa norma. in "Diritto pubblico" 1/2011: Milano: Giuffrè. p. 159: “Il riconoscimento costituzionale della centralità della persona umana ha avuto un impatto profondo sul modo di concepire la comunità politica. Lo si comprende facilmente se appena si riflette su ciò che esso implica. Da una parte, il rispetto della persona induce ad escludere comportamenti che sono palesemente una violazione della sua dignità, cioè sono mali assoluti intorno a cui c’è un ampio consenso (omicidio, schiavitù, tortura, persecuzioni, discriminazioni…); ma, dall’altra, implica necessariamente anche che la stessa coscienza della persona sia costituzionalizzata nel senso che, almeno in linea di principio, il diritto dovrebbe rispettare tutto ciò che la persona considera in coscienza come strettamente richiesto non solo per la propria realizzazione, ma anche dalla sua visione del mondo.” 15 Nesse sentido, Manfredi exemplifica: “Il principio di precauzione, o, se si preferisce, di cautela, è argomento che da qualche tempo suscita un crescente interesse, e, al contempo, reazioni nettamente contrastanti. Ad esempio, accanto a chi vede in questo principio uno degli strumenti giuridici più significativi per la tutela dell’ambiente e della salute dei cittadini(1), non manca chi, pessimisticamente, ne denuncia un’attuazione estremamente carente, per cui esso costituirebbe quasi solo una «nobile bandiera al vento. »(2), chi teme che possa sfociare in atteggiamenti «di conservatorismo neo-oscurantista, che addita il progresso come un male da evitare»(3), e ancora chi, in tono semiserio, stigmatizza sapidi episodi di eccesso di precauzione registratisi durante gli scorsi anni soprattutto nell’azione delle amministrazioni locali – riferendo ad esempio il caso di un regolamento comunale in tema di impianti che sono fonte di emissioni elettromagnetiche con cui si vieta qualsiasi attività agricola in una fascia di trenta metri di distanza dalle stazioni radio base per telefonia cellulare” in MANFREDI, Giuseppe. Note sull'attuazione del principio di precauzione nel diritto pubblico. in "Diritto pubblico" 3/2004. Milano: Giuffrè. p. 1075. 16 MANFREDI, Giuseppe. Note sull'attuazione del principio di precauzione nel diritto pubblico. in "Diritto pubblico" 3/2004. Milano: Giuffrè. p. 1084.

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que registra também uma complexidade , inclusive pela interrelação das normais internas dos países, em face das formulações do direito internacional. O reconhecimento da importância que a proteção ambiental representa aos países do mundo contemporâneo termina por determinar influências na prestação jurisdicional, conduzido à formulação de instrumentos processuais que garantam a tutela desse bem. Essa internacionalização da proteção ambiental determina, também, a tendência à produção de normas processuais similares nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como reconhece Taruffo (2000, p. 1061): Comunque, le cose stanno lentamente cambiando: sembra che anche i processualisti stiano diventando consapevoli delle dimensioni transnazionali e transculturali della giustizia civile. Una ragione di ciò è la percezione del fatto che i problemi fondamentali dell'amministrazione della giustizia sono sostanzialmente gli stessi in tutti gli ordinamenti giuridici moderni. Le soluzioni che i diritti nazionali forniscono per questi problemi sono diverse, e le differenze appaiono più rilevanti quando si prendono in considerazione specifiche norme processuali (dato che come si dice - il diavolo è nei dettagli). Tuttavia, se si considerano le varie soluzioni normative come equivalenti funzionali - ossia: come risposte diverse alle stesse domande fondamentali - si può individuare un comune terreno di base. O desafio que se apresenta ao processo contemporâneo, quando se trata de proteger o bem ambiental, é justamente o de formular soluções que compreendam essa proteção em sua dimensão mais ampla e, ainda mais, embuídas do propósito ideológico de conferir à tutela do bem ambiental o status que lhe dá o ordenamento jurídico.

3. Perspectivas processuais para a efetividade da proteção ambiental. A dimensão ideológica, essência da ciência jurídica, determina a formação de um processo não apenas técnico, mas que depende exatamente da compreensão do operador. Então, quando se trata de proteger o bem ambiental, o processo haverá de orientar-se a partir do reconhecimento que esse pensar ideológico ambiental ocupará o lugar central e determinante do próprio iter procedimental. Apenas a partir dessa dimensão é que se poderá garantir a formulação de um processo que atenda à efetividade em matéria ambiental.

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“E di questa perplessità viene considerata una conferma in particolare la varietà delle misure che nel diritto internazionale vengono giustificate ricorrendo ad esso, e che vanno ad esempio dalla fissazione di standard di emissione di sostanze (potenzialmente) inquinanti, alla cosiddetta inversione dell’onere della prova, per cui spetta a chi vuole svolgere un’attività innovativa dimostrarne la non dannosità o pericolosità, sino al divieto assoluto di determinate attività” MANFREDI, Giuseppe. Note sull'attuazione del principio di precauzione nel diritto pubblico. in "Diritto pubblico" 3/2004. Milano: Giuffrè. p. 1088.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Nessa tarefa de dar efetividade ao processo ambiental, o princípio da precaução atua de maneira ampla, especialmente porque não se tem, ainda, seguros indicadores sobre o tema. E é exatamente em situações tais que o princípio da precaução atua plenamente, como reconhece Malagnino (2007, p. 166): “In ambiti come ambiente, energia, alimentazione, commercio, salute e biotecnologie il principio di precauzione acquisisce rilevanza crescente, sollecita a rivedere contenuti e modalità di aplicazione delle norme già vigenti nelle singole materie, ma soprattutto sollecita a studiare per gli stessi ambiti interessati, criteri e parametri nuovi idonei a valutare e a regolare i rischi”. Exatamente nesse aspecto percebe-se o papel da ideologia na formulação e aplicação das normas reguladoras do tratamento do bem ambiental. A construção de uma consciência ambiental, consciência que precisa considerar a própria sobrevivência da espécie, como diz Franz Böckle (1991, p. 66), quando pondera que “La questione decisiva per la ricerca e lo sviluppo non è se noi e i nostri contemporanei possimo vivere meglio e più a lungo. La vera questione della responsabilità e se le generazioni future riusciranno a sopravvivere”. O processo destinado à proteção ambiental reclama tratamento diferenciado no Judiciário, afirmando-se a necessária simplificação procedimental, capaz de garantir a tutela do interesse específico, como reconhece Rossi (2011, p. 93), quando diz que “La natura peculiare dell´interesse ambientale limita l´applicabilità delle forme de semplificazione procedimentale. La scelta dell`ordinamento è nella direzione di rendere insostituibili gli apporti istruttori o decisionali provenienti de tali amministrazioni e, pertanto insopprimibile l´esigenza di ottenere una ponderazione completa ed esauriente dell´interesse ambientale”. Esse interesse ambiental, identificado por Rossi, compreende evidentemente a atuação jurisdicional orientada pelo princípio da precaução, que esteja atenta à necessidade de que a prestação da tutela ambiental revele-se adunada à natural 18 incerteza científica , que afasta a aplicação dos tradicionais princípios epistemológicos da ciência jurídica. A afirmação do princípio da precaução, que deve orientar as demandas de proteção ambiental, representa muito mais do que o princípio da prevenção. A prevenção parte sempre da certeza. No campo da incerteza, é insuficiente o agir preventivo. É preciso mais, o agir cauteloso, que perceba os perigos advindos da tecnologia, nas palavras de Manfredi, um agir que seja baseado num novo modo de perceber os perigos decorrentes do progresso. Nesse sentido, Manfredi também reconhece que a utilização do princípio da

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MANFREDI, Giuseppe. Note sull'attuazione del principio di precauzione nel diritto pubblico. in "Diritto pubblico" 3/2004. Milano: Giuffrè. p. 1085: “Almeno potenzialmente, si tratta di uno strumento di particolare efficacia, dato che il proprium di questo principio, che lo contraddistingue anche dalle altre figure appena richiamate, è di rappresentare una risposta non solo agli inconvenienti del progresso scientifico e tecnologico, ma anche a quelli derivanti dalla stessa incertezza scientifica.”

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 precaução conduz à conclusão da existência do caráter político e ideológico da 19 produção do direito . 20

O interesse mundial na tutela ambiental , que se apresenta na tutela das relações envolvendo os cidadãos e o meio ambiente justifica plenamente o interesse na formulação de um processo ambiental, capaz de realizar a pretensão de tutela desse bem, numa construção que não será apenas de estabelecimento de técnica processual. É que a ideológica dimensão do processo precisa ser compreendida em conjunto com a própria técnica processual, porque é a ideologia que determina os próprios rumos que se dará ao processo, questão que é bem percebida por Taruffo (2009, p. 68), quando afirma: In sostanza, il processo non è pura tecnica e la sua conoscenza non si esaurisce nella cultura tecnica. La tecnica serve a fabbricare lo strumento processuale, mentre l'ideologia determina gli scopi che il processo dovrebbe conseguire. Entrambe sono congiuntamente necessarie e disgiuntamente insufficienti: la tecnica senza l'ideologia è vuota, mentre l'ideologia senza la tecnica è impotente. As discussões que se enfrentam, em relação à temática ambiental, a importância desse bem à toda humanidade e o interesse que é de todos, conduz à aceitação da inexorável conclusão proposta por Ruggiero, capaz de perceber a importância do consenso, que deve permear as decisões judiciais, também na 21 temática ambiental. Nesse passo, ganha importância a percepção de que a garantia da participação popular também constitui um dos instrumentos processuais a serem perseguidos. A tutela jurisdicional ambiental, para garantia da efevidade da proteção do ambiente, também deverá resguardar o espaço da participação coletiva no 19

MANFREDI, Giuseppe. Note sull'attuazione del principio di precauzione nel diritto pubblico. in "Diritto pubblico" 3/2004. Milano: Giuffrè. p. 1086: “A differenza del principio di prevenzione, e degli istituti che ne sono espressione, esso riflette dunque il generale mutamento di ottica e di prospettiva del pensiero giuridico che consegue al venire meno del tradizionale fondamento epistemologico dalla certezza assoluta della scienza – ed è appena il caso di notare che questa nuova ottica non è estranea neppure alle opinioni dottrinali che negano il carattere neutrale e apolitico delle norme tecniche. In altri termini, questo principio si differenzia da quello di prevenzione non solo quantitativamente, perché anticipa la soglia al di là della quale devono scattano le misure preventive, ma, soprattutto, qualitativamente, perché è basato su un modo nuovo di percepire i pericoli derivanti dal progresso.” 20 Nas palavras de Maria Rosaria |Maugeri, representa o “Interesse generale attuale alla preservazione delle condizioni di vitta per le generazioni future e ad una migliore fruizione delle risorse ambientali, in Violazione delle norme contro l´inquinamento ambientale e tutela inibitoria. Milano: Giuffrè. 1997. p. 18. 21 “Il consenso è certamente un antidoto dell´arbitrio: ma si tratta di un antidoto non facilmente reperibile. Non tutte le valutazioni compiute dal giudice nella sentenza possono, infatti, esser confortate o addirittura tratte dal consenso della comunità giuridica. Quanto più aumenta, anzi, il groviglio legislativo e giurisprudenziale, tanto più inestricabili per i profani diventano i problemi giuridici...” in RUGGIERO, Luigi de. Tra Consenso e Ideologia. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene. 1977. p. 191.

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processo decisório. Olivito , nesse ponto, reconhece a validade dos instrumentos participativos, que deverão prestar-se a fazer oposição a um processo decisório engessado, perdido em ritos processuais muito rígidos. 23

O reconhecimento de uma técnica processual ambiental , sensível à importância de garantir-se a tutela do ambiente implica na percepção de que o processo ambiental implica compreensão diversa de outros ramos. Ainda remanescem as incertezas acerca dos efeitos que a atividade humana já produziu no ambiente e, também, sobre aqueles que se apresentarão, a continuar a escala de utilização dos recursos naturais. E, ao invés de arrefecerem, essas incertezas tendem, cada vez mais, a tornarem-se mais expressivas, exatamente pela inegável natureza da pesquisa tecnológica. Assim, vive-se num tempo de insegurança, como refere Alpa (2006, p. 12), “E in un´epoca come la nostra in cui l´insicurezza è divenuta una dimensione strutturale della vita biologica, professionale, pubblica”. Por conta dessa insegurança, também justifica-se a preservação do bem ambiental, a partir do desenvolvimento de mecanismos processuais que se revelem capazes de garantir a tutela efetiva, que garanta a preservação da espécie humana e do meio ambiente. As incertezas que permeiam a questão ambiental soam como fator decisivo na compreensão da tutela jurisdicional. Essa tutela tem, em suas bases, a necessidade de administração do risco, que decorre naturalmente das incertezas em relação às questões que envolvem o trato do ambiente, como afirma Olivito (2011, p. 578), quando diz “il metro di giudizio, sulla base del quale le autorità pubbliche intervengono, è costituito dal rischio ambientale”.

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OLIVITO, Elisa. Partecipazione e ambiente. Uno sguardo critico. in "Diritto pubblico" 2/2011. Milano: Giuffrè. p. 596: “Pertanto, lo sbilanciamento verso limitazioni di tipo procedurale potrebbe paradossalmente ripercuotersi sulla partecipazione, frustandone il proposito di mettere in luce gli aspetti politici e sociali delle questioni ambientali. D’altro canto, non deve sottovalutarsi che la traduzione delle aspirazioni partecipative nella previsione di procedure eccessivamente dettagliate implica di per sé dei costi. Una ‘giuridificazione’ oltre misura degli strumenti partecipativi va, difatti, incontro al pericolo di un forte ingessamento del processo decisionale, con conseguente cristallizzazione della dimensione partecipativa all’interno di schemi troppo rigidi”. 23 Para Taruffo, o processo encerra uma técnica que, todavia, não dispensa a dimensão ideológica. Assim, afirma que “Si può dunque dire che esistano una o più culture "tecniche" del processo civile, ma non credo che sia possibile dire che ciò accade perché il processo civile è in se stesso una tecnica, e null'altro. È certamente vero che esiste una dimensione tecnica del processo civile, e che questa dimensione è assai importante per il funzionamento dei meccanismi processuali e per l'amministrazione della giustizia in generale. È anche vero, di conseguenza, che se un processo è tecnicamente mal congegnato funziona male ed è inefficiente (in Italia vi sono numerosi esempi di ciò, dovuti allo scarso livello tecnico del legislatore), mentre un processo tecnicamente ben congegnato tende a funzionare bene e ad essere efficiente (fuori dall'Italia ve ne sono vari esempi, come in Germania, in Austria e in Spagna). Tuttavia ciò non implica che il processo possa essere ridotto soltanto ad una tecnica, e che quindi la sua conoscenza possa esaurirsi semplicemente all'interno di una cultura tecnica”. in TARUFFO, Michele. Cultura e Processo. Rivista Trimestrale di Diritto Processuale Civile. 2009, 01. Milano: Giuffrè. p. 66.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O resguardo constitucional ao bem ambiental representou, inegavelmente, um passo importante na proteção desse bem. No entanto, mais do que isso, essa afirmação constitucional dos direitos fundamentais também expressa a soberania dos países, como reconhece Ferrajoli (2009, p. 8), quando diz La costituzionalizzazione dei diritti fondamentali, elevando tali diritti a norme dell’ordinamento sopraordinate a qualunque altra, conferisce ai loro titolari – ossia a tutti i cittadini e a tutte le persone in carne ed ossa – una collocazione a sua volta sopraordinata all’insieme dei poteri, pubblici e privati, che al rispetto e alla garanzia dei medesimi diritti sono vincolati e funzionalizzati. È in questa comune titolarità della Costituzione, conseguente alla titolarità dei diritti fondamentali, che risiede a mio parere la «sovranità», nell’unico senso in cui è ancora lecito far uso di questa vecchia parola. A partir dessa dimensão, retorna-se à construção percebida por Taruffo (2009, p. 69), que vislumbra o papel que haverá de desempenhar o direito processual, a partir da constitucionalização do direito, percebendo que a “cultura constitucionalista” exige mais do que a simples tutela dos direitos lá afirmados, exatamente porque implica na realização de tais afirmações, a partir de instrumentos processuais hábeis e efetivos: In un contesto di questo genere, determinato dalla evoluzione sociale e culturale, il compito della cultura tecnica dovrebbe essere quello di costruire strumenti processuali efficienti e funzionali al raggiungimento della finalità consistente nella tutela dei diritti dei cittadini. Come dice la "cultura costituzionalistica", anzi, questa tutela deve essere effettiva, e quindi non può essere affidata solo alle enunciazioni di principio contenute nella Costituzione: è dunque necessario fare in modo che il processo civile sia accessibile a tutti, rapido, semplice, poco costoso e capace di soddisfare in modo adeguato i bisogni di tutela dei cittadini. A fim de garantir tal efetividade, o processualista fará escolhas, perseguindo propósitos, que têm nítida dimensão ideológica. De nada adiantará a técnica se o jurista, no exercício da jurisdição, não operar com um propósito ideológico de proteger 24 o ambiente . As dificuldades em relação à tutela do bem ambiental poderão ser amenizadas a partir do esforço coletivo, da educação ambiental e da percepção de que se está a tratar da sobrevivência da própria espécie. De nada adiantará à 24

Veja-se, nesse sentido: “Il punto, che vorrei qui sottolineare, è che, se ci si pone il problema di stabilire quali sono gli scopi che il processo civile dovrebbe perseguire, ci si colloca su di un piano sul quale la cultura tecnica non è utile, se non in minima parte, e certamente non fornisce i criteri secondo i quali bisogna decidere. Si tratta, infatti, di scelte che si collocano sul piano della politica del diritto e della cultura sociale prevalente nel sistema giuridico in questione. In altri termini, queste scelte sono essenzialmente ideologiche, essendo influenzate dai valori che si ritengono dominanti e degni di essere attuati in un determinato contesto socio-politico, prima che giuridico”. TARUFFO, Michele. Cultura e Processo. Rivista Trimestrale di Diritto Processuale Civile. 2009, 01. Milano: Giuffrè. p. 67

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 humanidade alcançar o máximo desenvolvimento, se as condições de vida no planeta atingirem nível intolerável. Enfim, perceber a dimensão ideológica da proteção do bem ambiental também implica a adoção de conduta diversa, numa dimensão epistemológica reflexiva, como sugere Alegretti (2002, p. 582): Occorrerà dunque rimettere a fuoco l’orizzonte complessivo dell’esistenza individuale, della vita sociale, del perché si sta al mondo. Um supplemento di sforzo di pensiero, che muova dall’orizzonte filosofico o fino ad esso, nel quale è richiesto l’impegno di tutti, e che nel ruolo specifico di coloro che per mestiere riflettono o per posizione dirigono deve trovare una componente di rilievo ma da sola insufficiente. Dessarte, o desenvolvimento de uma técnica processual ambiental, mas principalmente a construção de uma jurisdição pedagógica, firmada na alfabetização ecológica, que reconheça o caráter difuso-coletivo da tutela ambiental, constituem caminhos promissores na busca da construção de uma nova cultura ambiental no âmbito jurisdicional.

Considerações Finais O direito ainda enfrenta o paradigma absolutista de que a lei é depositária de todas as esperanças do Estado e do indivíduo, bem como o sustentáculo que a Ciência Jurídica oferece ao aparato estatal. Logicamente que esse caráter positivista ortodoxo e pernicioso acaba por influenciar o perfil do Estado, que se inclina para uma identidade fulcrada no exercício objetivo e lógico da norma, em descompasso com uma sociedade cada vez mais complexa. O apego às formas do jusracionalismo faz do direito uma ciência que enfrenta um paradoxo constante. De um lado, a espera da segurança jurídica absoluta, o anseio pela uniformidade das decisões judiciais e a sistematização de seus códigos e instrumentos. De outro, a expectativa do mundo contemporâneo, tão diferente daquele do século passado. O paradigma racionalista, dessa forma, representa um compromisso científico com a exatidão e com o rigor lógico: somente a partir de uma racionalidade o direito natural encontrava sustentação, exatamente quando procurava distinguir-se do absolutismo. O movimento de afirmação do antropocentrismo precisou firmar-se em bases que permitissem a sua oposição ao teocentrismo. Decorre daí, então, a sedução pela lógica, que possibilitava a universalidade do direito e justificava o jusracionalismo. A par da exatidão, também constituem marcas do racionalismo a exaltação da segurança jurídica, mencionada anteriormente, e a aparente neutralidade do julgador, esta conferida pela sustentação do dogma da univocidade da norma jurídica. O espectro epistemológico da Ciência Jurídica, portanto, está vinculado a esse paradigma da precisão, que se afasta da compreensão, informada pelo razoável e pelo plausível, consolidando a ideia de univocidade do sentido da norma.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Para a materialização desse desiderato, o direito lança mão das formulações lógicas, comprometidas com princípios metafísicos e que ainda reverenciam a atemporalidade e a supra-espacialidade, propósitos típicos de uma postura que procurou conferir validade universal à Ciência Jurídica, consequência da necessidade de afirmação do antropocentrismo. Esse paradigma que embebe o direito é que precisa ser superado. E, em se tratando de direito ambiental, o rompimento com as amarras desse direito lógico, matematizado e influenciado pelo liberalismo-racional, é decisivo para sua concretização. Nesse sentido, de forma sintética, cabe recuperar as críticas e alternativas propostas no presente trabalho: a) O componente ideológico, indissociável da produção do Direito, é fator decisivo também na prestação da tutela jurisdicional; b) Quer pela escassez dos recursos naturais, quer pelos desastres ecológicos que sensibilizaram o mundo, a mobilização de energias em torno da proteção do ambiente conduziram à proteção legal, importante passo na implementação de uma cultura preservacionista; c) A incorporação definitiva da temática ambiental pela Ciência Jurídica torna o Direito Ambiental espaço profícuo de exercício de valores concretos, orientados na garantia da sadia qualidade de vida, mas também da sobrevivência das gerações futuras; d) A esperança depositada na judicialização do direito à proteção ambiental é o último reduto da expectativa de efetiva garantia dos direitos afirmados constitucionalmente. e) Um outro aspecto que haverá de ser considerado, na tutela ambiental, é a incerteza que se apresenta em relação aos efeitos que a tecnologia e o modo de vida contemporâneo poderão produzir, seja implicando no esgotamento de recursos naturais ou, ainda, na própria precarização da qualidade de vida das futuras gerações. A atuação jurisdicional haverá de informar-se pelo princípio da precaução; f) O interesse mundial na tutela ambiental justifica plenamente o interesse na formulação de um processo ambiental, capaz de realizar a pretensão de tutela desse bem, numa construção que não será apenas de estabelecimento de técnica processual. É que a ideológica dimensão do processo precisa ser compreendida em conjunto com a própria técnica processual, porque é a ideologia que determina os próprios rumos que se dará ao processo; g) A tutela jurisdicional ambiental, para garantia da efevidade da proteção do ambiente, também deverá resguardar o espaço da participação coletiva no processo decisório; h) De nada adiantará a técnica se o jurista, no exercício da jurisdição, não operar com um propósito ideológico de proteger o ambiente. Quando se afirma a univocidade do sentido da norma, sob a justificativa de que é necessário conferir neutralidade à atuação da jurisdição, retira-se do julgador a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 possibilidade de crítica. Retira-se a responsabilidade da jurisdição que é transferida para quem elabora a norma. A norma é que é justa ou injusta, não a sua aplicação ao caso concreto. Então, a missão da jurisdição não encontra relação com a realização da justiça, na medida em que se trata, apenas, de aplicar a norma. Implementar um caráter ideológico no exercício da jurisdição, que implique, de um lado, em romper com a ideologia liberal-racionalista e, de outro, na incorporação de um novo paradigma, que valorize os direitos difusos-coletivos, abandonando a malfadada herança do direito romano-cristão, constitui uma necessidade na garantia da proteção do ambiente.

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VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS DOS DOENTES MENTAIS INTERNADOS JUDICIALMENTE Suelen de Azevedo RESUMO Este artigo científico tratará da análise de uma pesquisa desenvolvida com a finalidade de averiguar a aplicação dos direitos humanos na medida de segurança 1 imposta ao réu Kleiton da Silva , cujo processo é de número 2 00000000000000000000 , acessado em cartório judicial, no dia 29/08/2011. Também se realizou uma visita a Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP), local onde ficam internos submetidos à medida de segurança, e onde ficou o interno Kleiton. Diante da coleta de dados, estes serão analisados à luz dos dispositivos legais que regem o direitos dos inimputáveis, ocasião que se verificará se os direitos humanos foram desrespeitados ou não na aplicação da medida de segurança deste único caso. Palavras- chave: doenças mentais- medida de segurança- internação- direitos humanos- crimes

ABSTRACT This work is the result of a scientific research that addresses how the human rights are applied on the case number 00000000000000000000, the case of the defendant Kleiton da Silva. This case was taken in judicial office in 29/08/2011. A facility for mental illness treatment was visited (Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP)). In this place, Kleiton da Silva spent a long time of his life, where he was subject to security measures. After collecting data, human rights and other legal aspects involving the case will be discussed. Keywords: mental illness- security measures- hospital- human rights- crimes

INTRODUÇÃO Este artigo científico objetiva trazer reflexões sobre a aplicabilidade do disposto em lei sobre as medidas de segurança. Assim, por meio de estudo de caso, será analisado o quanto a lei é aplicada na íntegra, procurando-se verificar que caso seja cumprida parcialmente, existiria violação dos direitos humanos. 1

Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios para se manter o sigilo das informações prestadas em campo. 2 Número fictício para fins de sigilo. Ressalta-se que todos os números que aparecerem no bojo da redação são fictícios para fins de sigilo das informações prestadas em campo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Nesse sentido, será realizada pesquisa qualitativa por meio do estudo de um único caso, este referente ao processo nº 00000000000000000000, que diz respeito à medida de segurança de internação imposta ao réu Kleiton da Silva. A partir da pesquisa, buscar-se-á responder a seguinte hipótese: Houve respeito aos direitos humanos na aplicação da medida de segurança no caso de Kleiton da Silva? A pesquisa, portanto, será realizada por meio de análise documental, por intermédio de acesso ao referido processo a fim se verificar o desenrolar da história material e acontecimentos processuais. Também será realizada uma visita a ATP (Ala de Tratamento Psiquiátrico), local em que o réu chegou a ficar internado por aproximadamente 13 anos de sua vida, a fim de verificar estrutura do local e realizar entrevistas, seja com funcionários, ou com o interno Kleiton. O ponto de vista a ser adotado consistirá em verificar se o básico e o essencial previsto expressamente na lei estiveram presentes na aplicação da medida de segurança.

BREVE RESUMO SOBRE O DISPOSTO EM LEI SOBRE OS DIREITOS DOS INIMPUTÁVEIS Consoante à lógica adotada pela sistemática atual, três são os requisitos essenciais para aplicação das medidas de segurança: prática de fato punível, periculosidade do agente, e ausência de imputabilidade da pena. (BRAGA, Vinícius Gil, 2007, p 618) No Código Penal, a medida de segurança encontra-se disciplinada nos artigos 96 a 99; já o Código de Processo Penal dispõe sobre a insanidade mental do acusado nos artigos 149 a 154; e a LEP aborda a medida de segurança nos seus artigos 171 a174, e a cessação da periculosidade nos artigos 175 a 179. Os direitos das pessoas com transtornos mentais estão estipulados na lei 10.216/01. (MARCÃO, Renato, 2010, página 143) Primeiramente, os artigos mencionados do Código Penal mostram que as medidas de segurança, consistentes tanto em internação quanto em tratamento ambulatorial podem ser estabelecidas por tempo indeterminado enquanto persistir a enfermidade mental do agente, representando ausência de limites máximos, apesar da estipulação de limites mínimos da medida. (BRITO E SOUTO, Ronya Soares de, 2007, página 590) Tais estipulações legais também permitem que o cidadão portador de distúrbio mental que comete delitos não tenha acesso a certos direitos legais como: possibilidade de aplicação de causa de diminuição de pena, saída a qualquer tempo sem ressalvas periculosas, ou redução dos prazos prescricionais aos menores. (BRITO E SOUTO, Ronya Soares de, 2007, página 590 a 598) Nessa situação, substituída a pena privativa de liberdade por internação ou tratamento ambulatorial, o internado irá se tratar em estabelecimento de características hospitalares. Contudo, caso o estabelecimento penal não esteja aparelhado para promover a assistência médica- psiquiátrica necessária, esta pode ser prestada em outro local mediante autorização da direção do estabelecimento,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 conforme colacionado no art. 14, §2º cumulado com o art. 42 da LEP. Esse outro estabelecimento pode ser hospital particular, desde que assegurada a custódia do internado, não permitindo a permanência do sentenciado em cadeia pública ou outro estabelecimento que não lhe seja prestado o devido tratamento. A lei ainda permite que seja contratado pelo interessado médico de sua confiança pessoal a fim de orientar e acompanhar o tratamento. (MIRABETE, Julio Fabbrini. FABBRINI, Renato N., 2011 páginas 98 e 99) Ainda essa linha de raciocínio, o Código de Processo Penal, em seus arts. 149 e 150, afirma que é preciso que a dúvida a respeito da sanidade mental do acusado ou indiciado seja razoável, demonstrativa de efetivo comprometimento da capacidade de entender o ilícito, cabendo então ao juiz, de ofício, a instauração do processo incidente, em que haverá realização de exame, o qual também poderá ser feito ainda na fase do inquérito policial. (NUCCI, Guilherme de Souza, 2008, página 331) Atualmente não existem mais manicômios judiciários, ocasião em que é comum a terminologia Hospitais de Custódia e Tratamento. O exame em réu solto será realizado no local indicado pelos peritos, podendo ser inclusive os referidos hospitais. Os laudos não possuem prazo fatal, pois caso haja necessidade, é possível a prorrogação do prazo. Tais laudos também não poderão ser utilizados em outros processos, pois o que se apura é inimputabilidade penal. Uma vez suspenso o processo, nada impede que os autos sejam entregues aos peritos. (NUCCI, Guilherme de Souza, 2008, página 334) Os artigos seguintes do CPP, ou seja, do 151 a 154, dizem respeito ao prosseguimento do processo, pois uma vez concluída a perícia, podem os expertos concluírem que o acusado ao tempo da infração, era imputável, ocasião em que o processo seguirá normalmente seu curso, contudo, sem a presença do curador. Em caso de superveniência de doença mental após a infração penal, paralisa a instrução, suspendendo-se o processo a fim de aguardar a melhora do agente para este ter condições de se defender com eficácia, consoante o princípio da ampla defesa. Caso a doença mental se instaure durante a execução, há duas possibilidades, dependendo da doença ser transitória ou duradoura. No caso pesquisado, se discutirá doença de caráter duradouro, ocasião em que se converterá a pena em medida de segurança, conforme o disposto no art. 183 da LEP. O incidente de insanidade mental, neste caso, portanto, seguirá a regra do processo incidente, sendo autuado à parte, não se mesclando com o processo principal. (NUCCI, Guilherme de Souza, 2008, página 335) Continuando, cabe destacar também a lei específica que regulamenta os direitos dos doentes mentais, ou seja, a lei 10.216/01. Da elaboração do Projeto até a aprovação da Lei 10.216, houve um longo tempo e uma série de mudanças no contexto sócio-político-cultural que se refletiram na elaboração dos artigos do dispositivo legal. A Lei 10.216 de 06 de abril de 2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Seu título apresenta uma proposta de proteção da pessoa portadora de transtorno mental, estabelecendo os seus direitos e pretende redirecionar o modelo de assistência em saúde mental. (BRITTO, Renata Corrêa, 2004, página 210)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Em seu artigo 1º, já se estabelece que a proteção e os direitos dos portadores de transtorno mental são assegurados a todos, sem a existência de qualquer forma de discriminação. Diante deste quadro, formou-se um novo modelo assistencial em atenção psicossocial alcançando a hipótese de internação compulsória em seu artigo 6º. Assim, ao submeter o agente inimputável à medida de segurança, deve o juiz dar preferência ao tratamento ambulatorial, somente determinando a internação “quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.” (BRITTO, Renata Corrêa, 2004, página 210) Quanto aos direitos das pessoas com transtornos mentais, vejamos assim, o artigo 2º do referido diploma legal, abaixo, in verbis: Art. 2. Lei 10.216/01: Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. (GRIFOU-SE) O artigo 2º, por sua vez, estipula o dever de informação dos direitos estabelecidos para os portadores de doença mental nos estabelecimentos especializados. Em seu parágrafo único, são situados tais direitos, que se referem às condições de realização do tratamento, e riscos possíveis de serem sofridos. Desta forma, o próprio tratamento pode ser considerado um risco para a integridade da pessoa, ocasião em que esta possui direito de conhecê-los e dispor sua opinião sobre eles. (BRITTO, Renata Corrêa, 2004, página 210)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Os parágrafos do artigo 4º regulamentam, por sua vez, a internação e determinam que o tratamento deve primar pela reinserção social do paciente e oferecer assistência integral através de uma equipe multidisciplinar. A humanização do atendimento é regra absoluta, sendo vedada a internação em instituições com características asilares e que não assegurem ao paciente os direitos enumerados no § único do art. 2º da lei 10.216/01. Assim, conforme a norma analisada, resta claro que o doente mental não deve ser alvo de um estrutura de negação dos direitos humanos. O Estado, nesse prisma, tem limites na imposição de sanção penal a inimputáveis. (BRITO E SOUTO, Ronya Soares de, 2007, página 582) Porém, não havendo recursos extra-hospitalares suficientes e uma vez determinada pelo juiz a internação, esta deve observar os limites estabelecidos pela referida lei anti-manicomial, sendo obrigatoriamente precedido de “laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos”.(Art. 2º e 6º Lei 10.216/01) Com relação à alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, prevista no art. 5º da lei, é requerida para sua plena realização, segundo a pesquisadora Dra. Tânia Marchewka, a concretização de um sistema alternativo, composto pela redução dos leitos nos hospitais psiquiátricos, construção de residências terapêuticas, programa de volta para casa, centros de atenção psicossocial (CAPS), centros de convivência, ambulatórios, saúde mental na atenção primária, programas de inclusão social pelo trabalho, centro de convivência e cultura, leitos psiquiátricos no hospital geral, entre outros. O que infelizmente não parece ocorrer. (MARCHEWKA, Tânia Maria Nava, 2009, pp. 187 a 214) Nesse diapasão, analisando-se a Lei de Execuções Penais, ressalta-se que esta dispõe sobre como deve ocorrer o tramite processual desses internos. Vejamos o disposto no artigo 171 da LEP: Art. 171. Lei 7210/84: Transitada em julgado a sentença que aplicar medida de segurança, será ordenada a expedição de guia para a execução. Dessa forma, a expedida guia para execução expedida pela autoridade judiciária, esta só pode ser ordenada após o trânsito em julgado da sentença. (MARCÃO, Renato, 2006, páginas 170, 171) Ressalta-se que tal guia deve ser escrita por quem dispõe de fé pública: o escrivão. Além de assiná-la, o escrivão opõe sua rubrica em todas as folhas da guia. Exige também a lei, para maior segurança, que o instrumento contenha também a assinatura do juiz que determinou a expedição. (MIRABETE, Júlio Fabbrini, 2004, página 628) A seguir o disposto no art. 172 da lei 7210/84: Art. 172. Lei 7210/84: Ninguém será internado em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, ou submetido a tratamento ambulatorial, para cumprimento de medida de segurança, sem a guia expedida pela autoridade judiciária. Assim, quem possui transtorno mental e é submetido à medida de segurança, para ser internado, necessita que seja expedida sua guia de internação, baseada nos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 laudos periciais que comprovem sua periculosidade relacionada ao transtorno mental. Tal medida de segurança, nesse sentido, deve obedecer ao princípio da jurisdicionalidade, já que é meio de providencia jurisdicional, ou seja, é um meio de restrição a bens jurídicos, incluindo a liberdade de locomoção, impossível de ser inserida em medida administrativa. A seguir, vejamos o disposto no art. 173 do mesmo diploma legal: (MIRABETE, Júlio Fabbrini, 2004, página 611) Art. 173. Lei 7210/84: A guia de internamento ou de tratamento ambulatorial, extraída pelo escrivão, que a rubricará em toldas as folhas e a subscreverá com o Juiz, será remetida à autoridade administrativa incumbida da execução e conterá: I - a qualificação do agente e o número do registro geral do órgão oficial de identificação; II - o inteiro teor da denúncia e da sentença que tiver aplicado a medida de segurança, bem como a certidão do trânsito em julgado; III - a data em que terminará o prazo mínimo de internação, ou do tratamento ambulatorial; IV - outras peças do processo reputadas indispensáveis ao adequado tratamento ou internamento. § 1° Ao Ministério Público será dada ciência da guia de recolhimento e de sujeição a tratamento. § 2° A guia será retificada sempre que sobrevier modificações quanto ao prazo de execução. A guia de internação deve apresentar os requisitos formais necessários à execução regular da medida de segurança, sendo eles mencionados no artigo acima. Com vistas a identificação do internado, determina-se que também conste o seu nome e a qualificação, além do número do registro geral do órgão oficial de identificação. Deve conter ainda o inteiro teor da denúncia e da sentença condenatória, bem como certidão do trânsito em julgado desta. Interessa às autoridades administrativas e judiciárias que conheçam todos os fatos pelos quais o internado foi submetido ao processo, a fim de que se facilite a individualização do tratamento a que deve ficar sujeito. Facultativamente, poderá o juiz determinar também a transcrição de peças do processo que repute indispensáveis ao adequado tratamento, ressaltando a importância do laudo de exame juntado aos autos do incidente de sanidade mental. (MIRABETE, Júlio Fabbrini, 2004, página 628) A seguir, o disposto no art. 174 da mesma lei: Art. 174. Aplicar-se-á, na execução da medida de segurança, naquilo que couber, o disposto nos artigos 8° e 9° desta Lei. Tal artigo mencionado diz respeito aos exames criminológico e exame geral de personalidade, que podem ser necessários conforme as circunstâncias do caso da medida de segurança. O exame criminológico é obrigatório quando se trata de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Contudo, tal pressuposto

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 é facultativo em hipótese de tratamento ambulatorial, dependendo da natureza do fato e das condições do agente. (MIRABETE, Júlio Fabbrini, 2004, página 630) Por fim, se cessada a periculosidade, ou findo o prazo mínimo da duração da medida de segurança, a LEP estipula que se procederá com a verificação do estado de periculosidade, a partir de procedimento ex oficio. Ressalta-se que o juiz da execução não pode determinar, de ofício, a antecipação do exame de cessação da periculosidade, pois somente pode argüir se provocado. (MARCÃO, Renato, 2006, páginas 490, 491) Atingida a finalidade da medida, expede-se guia de desinternação condicional, mediante alguns requisitos que devem ser cumpridos pelo desinternado, ou seja, os requisitos do art. 132 da LEP. Assim, deve o sentenciado obrigatoriamente: obter ocupação lícita,se for apto a trabalhar; comunicar sua ocupação; não mudar de comarca sem prévia autorização. Facultativamente, pode também ser impostas outras condições: não mudar de residência sem comunicação; recolher-se a determinada hora; não freqüentar determinados lugares. (MARCÃO, Renato, 2006, páginas 380, 381) Nesse sentido, a decisão judicial será instruída com o relatório da autoridade administrativa, laudo psiquiátrico e diligências. Todos os outros exames sucessivos seguirão a mesma regra, sendo que todas as pesquisas sobre a condição dos internados devem ser estimuladas de rigor científico e desvelo humano, evitando que o interno tenha a perpétua privação de sua liberdade. (MARCÃO, Renato, 2006, páginas 490, 491) Finalmente, analisando-se os direitos humanos, O princípio da prevalência dos direitos humanos é o princípio fundamental que rege o Estado brasileiro nas relações internacionais (Art. 4º Constituição Federal de 1988), conforme está previsto no artigo 4º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, verbis: Art. 4º CF/88: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos Nesse prisma, a constituição brasileira, em seu artigo 5º, também garante a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País, que "III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Além disso, o parágrafo segundo, do mesmo artigo, versa o seguinte: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (Art. 5º Constituição Federal de 1988) Assim, o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem por objetivo concretizar, plenamente, a eficácia dos direitos humanos fundamentais dos quais o homem é dotado, que inerentes à sua personalidade, são reconhecidos pelo Direito Internacional Público, que os coloca sob sua garantia. (QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de, 2006, página 63)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A internacionalização e a universalização do Direito dos Direitos Humanos tiveram como marcos precursores do processo de institucionalização o Direito Humanitário, a Liga das Nações e, também, a Organização Internacional do Trabalho, OIT. Seus princípios básicos cifram-se em torno da proteção da vida, da segurança, da moral, da dignidade e da honra das pessoas, limitando, de certa forma, a soberania dos Estados que se sujeitariam a perder uma parcela de sua soberania em benefício da comunidade de nações. (QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de, 2006, página 64) A Emenda Constitucional de 45/2004 deu nova posição hierárquica aos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos no sistema de fontes do Direito Brasileiro. Os tratados internacionais que não veiculem normas sobre direitos humanos continuam a serem integrados ao ordenamento como normas infraconstitucionais. (QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de, 2006, página 73) Dessa forma, tratados internacionais como o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto de Direitos Civis e Políticos devem ser respeitados consoante a humanização do preso, respeitando-se sua integridade física e psicológica. Em responsabilidade do Estado, nada mais lógico que tais internos sejam tratados de forma a não serem punidos eternamente, respeitando-se seus direitos como cidadão e pessoa humana. Quando se fala em saúde, geralmente as pessoas acreditam que saúde é sinônimo da ausência de doença. Contudo se enganam. Uma das organizações mais importantes no mundo especializada em assuntos de saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS), adverte que não é suficiente a ausência de doenças para que se diga que uma pessoa tem saúde. É preciso que esta goze de completo bem-estar físico, mental e social. Isso quer dizer que a pessoa deve estar com a cabeça tranqüila, podendo pensar normalmente e relacionar-se com outras pessoas sem qualquer problema. (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, Moderna, página 73) Diante disso, também se destaca que é importante a pessoa não ser tratada como um estorvo ou fardo repugnante e que possa conviver em condições de igualdade e respeito. Dessa forma, é importante destacar que o tratamento conferido aos internos submetidos a medida de segurança jamais deve afrontar o disposto na declaração universal dos direitos humanos, que prevê que estas pessoas, na condição de seres humanos, devem receber tratamentos médicos dignos, que lhe assegurem a saúde e bem- estar, e o façam ser reconhecidos como pessoas na sociedade, impedindo uma condição degradante. (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, página 74)

ANÁLISE DOS DADOS Conforme o doutrinador Renato Marcão, a execução penal visa à integração social do condenado ou internado, já que se adota no Brasil a teoria mista ou eclética,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 que além de buscar a prevenção do crime, busca a humanização. (MARCÃO, Renato, 2010, página 31) Assim, o preso e internado tem direito de assistência à saúde, que constitui caráter preventivo e curativo, compreendendo atendimento médico, farmacêutico e odontológico. (MARCÃO, Renato, 2010, página 53) Ao se visitar a ATP, verificou-se que o estabelecimento possui sala de atendimento odontológico, farmacêutico e médico, contudo, carecem de vários profissionais, uma vez que somente possuem um clinico médico, um enfermeiro, um psiquiatra, um terapeuta e um dentista, tanto que quando questionados os entrevistados, houve afirmação de que às vezes é necessário chamar o SAMU, sistema separado da ATP, caso aconteçam certas emergências médicas. Dessa forma, notou-se que os pacientes em cumprimento de medida de segurança não são acompanhados por uma equipe multidisciplinar da área de saúde, pois a equipe necessita ultrapassar os órgãos do sistema penitenciário para melhor atender os internos. Assim sendo, verifica-se que deveriam ter mais profissionais nessas áreas a fim de fornecer maior apoio aos sentenciados, pois estes, além de estarem presos ao sistema, não deveriam estar presos à precariedade de condições adequadas para a sua dignidade. Por vezes, um atendimento médico realizado instantaneamente, com profissionais disponíveis a qualquer momento para o sistema, preveniria a piora dos sofrimentos psíquicos vivenciados por Kleiton. Conforme relato dos entrevistados, a ATP dispunha de somente um psiquiatra, que não freqüenta reiteradamente o local, pois não é funcionário fixo da ATP, já que trabalha no CIR. Ademais, o psiquiatra trabalha em mais três outros locais, não se dedicando exclusivamente à ATP. Inclusive, constatou-se que os internos recebem nova avaliação médica somente uma vez por mês. Imaginemos quão sofrimento os internos deste lugar devem ter passado, pois diante de sua condição mental, sequer tiveram um psiquiatra disponível. Inclusive, é preocupante uma pessoa, em condição de internado, receber avaliação médica uma vez por mês. Tais avaliações deveriam ser contínuas, num espaço de tempo menor. Conforme o estipulado no art. 2º da lei 10.216/01, que demonstra os direitos das pessoas com transtorno mental, resta evidenciado que o sentenciado do caso deveria ter tido acesso ao melhor tratamento de saúde consentâneo a suas necessidades, incluindo presença médica a qualquer tempo, a fim de ser tratado com humanidade para recuperação de seu quadro clínico. (Art. 2º Lei 10.216/2001) Contudo, ao estudar o caso, percebeu-se que Kleiton foi vítima, e infelizmente teve que vivenciar a piora de seu quadro mental ao realizar o tratamento na ATP, após sua transferência do Hospital de Custódia Heitor Carrilho. Pelo analisado nos dados colhidos e pelas informações buscadas no ensinamento de doutrinadores, pode-se perceber que o ambiente destinado ao tratamento do interno Kleiton da Silva demonstrou também grande precariedade em diversos outros aspectos, inclusive também na falta de observância ao estipulado na lei 10.216/01, pois se tratava de lugar pouco ventilado, arejado, uma vez que na cela de Kleiton residiam 26 internos, que dividiam um único banheiro.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Quanto às instalações, notou-se que estas pareciam ser insuficientes para acolher a demanda de segurados, pois conforme constatado em relatório, existem por volta de 26 internos na cela de Kleiton, os quais dividem um único sanitário, num local pouco arejado e mal iluminado. Para se garantir uma boa saúde, deve-se primeiro verificar as condições do meio ambiente, isto é, do lugar onde as pessoas vivem e exercem suas atividades. Para que seja respeitado o direito à saúde é preciso que o ar seja puro, que não haja excesso de barulho, que a iluminação não seja fraca ou forte demais, que as pessoas não sejam forçadas a suportar calor ou frio excessivos, mau cheiro e sujeira. (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, página 74) Quando as pessoas vivem amontoadas em um pequeno espaço, quando não há janelas que assegurem boa iluminação ou ventilação, e tudo o mais que é necessário para se viver com conforto, não está assegurado o direito à saúde. (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, página 74) Portanto, somente com o observado nas celas em que ficam os internos, pôdese ver que se trata de condições não adequadas para o desenvolvimento sadio do tratamento de doenças mentais, pois, conforme abordado no relatório, trata-se de lugares mal cheirosos, mal iluminados, pouco ventilados. Assim, por ser a saúde um bem assegurado pela constituição e tratados internacionais, pôde-se ver que os direitos humanos não foram respeitados nesse aspecto. Quanto à burocracia, também houve ofensas aos direitos humanos, pois esta impediu que o interno do caso tivesse maior contato com familiares, o que lhe teria proporcionado grande melhora do estado clínico. Em princípio, Kleiton foi encaminhado para tratamento no Hospital de Custódia Heitor Carrilho, localizado no Rio de Janeiro, longe de sua família, que muito pobre, sobrevive em Brasília. Após estabilização de seu quadro clínico em ambiente hospitalar, Kleiton foi encaminhado para a Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP), local também de difícil acesso a sua família, pois conforme o relatório processual, sua mãe reside no Goiás e não possui renda suficiente para pagar passagem de ônibus para ver o filho no Gama. Diversas vezes na fase executória se observou pedidos de transferência do interno para o Hospital São Vicente de Paulo (HPAP), ocasião que o sistema tardou substancialmente tal pedido. Tardou tanto que durante os laudos psiquiátricos, constou averiguação de aparência abatida e triste do segurado, que sentia muita falta da família, não respondendo da maneira desejada ao tratamento. Uma das maiores dificuldades analisadas é que realmente houve omissão do Estado, pois este permitiu que a medida de segurança vivenciada por Kleiton não passasse por depositá-lo num ambiente, semelhante ao carcerário, e desestruturado para o tratamento determinado pela lei, desprovido de recursos pessoais e materiais apropriados à finalidade a que se destina. (MARCÃO, Renato, 2010, página 143) No próprio depoimento de Laura Paiva, esta afirmou que às vezes falta medicamento, e que quando não é possível substituí-lo por outro, recorre-se as famílias, quase sempre carentes. Para exemplificar este fator no estudo do caso, observa-se que em vários momentos do processo, Kleiton possuiu dificuldades de estabilizar sua condição

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 mental, ocasião em que a própria ATP, e o CIR oficiaram pedindo sua remoção para outro estabelecimento, pois não possuíam estrutura que desse conta do tratamento individualizado necessitado pelo interno. Ademais, outro fator preocupante é o relato da própria terapeuta ocupacional, que afirmou não existir tratamento mental para os terapeutas e funcionários que convivem com os internos. Segundo seu entendimento, tais profissionais deveriam ser tratados para estarem sãos e em condições de tratar os internos. Provavelmente como isso não aconteceu, também é possível cogitar a hipótese de Kleiton ter tido tratamento mental com funcionários que talvez não estivessem mentalmente sãos, o que de fato atrapalhou a estabilização de seu quadro clínico. Diante disso, não houve observância ao estipulado no art. 9º da lei 10.216/01, que estipula: “a internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.” (Art. 9º Lei 10.216 de 2001) O direito a saúde é um dos direitos fundamentais dos seres humanos, porque sem esse direito, ninguém consegue viver com bem-estar e realizar tudo o que é necessário para que uma pessoa seja feliz. Além disso, a pessoa sem saúde não pode ajudar as outras pessoas a conquistarem o bem-estar. (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, página 75) O doutrinador Renato Marcão afirma veementemente que contra tais abusos, os tribunais tem se posicionado reiteradas vezes, entendendo que: “O Estado só poderá exigir o cumprimento de medida de segurança de internação (detentiva, portanto), se estiver aparelhado para tanto.” (MARCÃO, Renato, 2010, página 143) No estudo do caso de Kleiton, principalmente na visita realizada a Ala de Tratamento Psiquiátrico localizada na colméia dentro da penitenciária feminina do Gama, observou-se diversas irregularidades materiais e estruturais. Mesmo diante dessas precariedades, persistiu a medida de segurança do interno do caso analisado, que permanece a 18 anos no sistema. A ciência consagrou a loucura como um perigo para a sociedade moderna, sobretudo o louco infrator, único do qual se exige, pelo código penal brasileiro, um exame de cessação de sua periculosidade realizado pela psiquiatria, por meio de dois psiquiatras designados pela autoridade judicial. Essa é a condição para que o sentenciado venha conseguir ou não a extinção de sua medida de segurança. (CASTRO, Ulysses Rodrigues de, 2010, página 94) Na análise dos dados processuais, principalmente no tocante ao depoimento de Laura Paiva, chefe do departamento de saúde, pôde-se perceber uma grande irregularidade quanto ao fato de ser possível misturar, na ATP em uma mesma cela, dependentes químicos com indivíduos portadores de doença mental. Segundo sua opinião, tal fato atrapalha substancialmente no tratamento clínico oferecido pelo sistema, pois certos dependentes químicos, ao terem acesso à droga, acabam por fornecê-la aos psicóticos, que ao invés de se curarem, ganham outro problema. Assim, violam-se também os direitos humanos ao se misturar tantos internos, psicóticos e dependentes numa estrutura pouco adequada. Ainda mais quando tal

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 estrutura se parece tanto com o ambiente carcerário, e não com um local terapêutico. As próprias portas dos quartos possuem grades. Quanto à alimentação, destaca-se que a saúde inclui a possibilidade de boa alimentação. O corpo humano necessita de alimentos para se manter vivo e a fim de que a pessoa tenha energia suficiente para desenvolver suas atividades. Durante toda a vida, o ser humano necessita de alimentos, não só em quantidade suficiente para matar a fome, mas também de qualidade boa e variada, pois é dos alimentos que as pessoas retiram o que é necessário para manter e desenvolver sua capacidade física e mental. (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, página 75) Pôde-se observar no relatório do processo várias queixas de Kleiton com relação à comida fornecida pela ATP. Tanto que em certos laudos médicos ficou constatado que chegou a emagrecer e ficar com aparência abatida. Pode ser por conta de não estar se alimentando apropriadamente e não receber o amparo do qual sua mente carecia. Na visita à ATP, observaram-se as caixas de armazenamento de tais alimentos. Segundo relatos da diretora da ATP, a alimentação é fornecida por uma empresa terceirizada, que embala em marmitex o alimento fornecido aos sentenciados. Contudo, disse que tais embalagens possuem um cheiro forte, pois são feitas de alumínio e isopor, que interferem no gosto e qualidade da comida, uma vez que muitas embalagens chegam a abrir e se misturarem no transporte.

CONCLUSÕES Postas as constatações, conclui-se que, como não foi observado tal atitude que buscaria o melhor tratamento possível ao interno em consonância com suas necessidades, houve desrespeito claro ao estipulado pelos direitos humanos. O doente mental que comete delito é sem dúvidas alvo de uma estrutura de estigmatização que pode ser considerada a mais brutal ingerência punitiva de negação a direitos humanos sustentada em nosso sistema. (BRITO E SOUTO, Ronya Soares de, 2007, p 582) O sistema jurídico-terapêutico aparenta-se mais com o sistema punitivo. Não se deveriam misturar tais sistemas. Doentes mentais são inimputáveis, e segundo a lei, não possuem condições de discernimento de delitos criminosos. Por essa razão, não devem ser punidos. O ser humano vai além das necessidades básicas de sobrevivência. A saúde implica também o sadio desenvolvimento mental, e não necessariamente na alimentação. A sociedade só poderá ser considerada justa se todas as pessoas, sem nenhuma exceção, tiverem efetivamente assegurado seu direito à saúde desde o primeiro instante de vida. E no direito a saúde deve estar compreendido tudo o que for necessário para que a pessoa goze de completo bem-estar físico, mental e social. Portanto, também notou-se o desrespeito ao estipulado nos direitos humanos com relação a este fato vivenciado por Kleiton, que além do transtorno mental, teve de sobreviver e procurar tratamento num ambiente pouco arejado, mal iluminado, mal cheiroso, sem muitas atividades para ocupar a mente, cuja comida lhe fazia perder o apetite, e ainda misturado a mais 26 internos, nos quais dividia um único banheiro e um único lavatório numa mesma cela. Quem poderá estabilizar um quadro psicótico sério nessas condições? (DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, página 78)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Também não é de se deixar de ressaltar o vivenciado pelo interno quando recebeu a desinternação condicional pela primeira vez. Ao percebê-la, ficou condicionado pelo juiz que receberia medicação de 30 em 30 dias no Hospital São Vicente de Paulo. Contudo, dados posteriores no relatório do processo demonstraram que o sentenciado apenas recebia tal medicação de 60 em 60 dias, e que num dado momento, tal estabelecimento hospitalar deixou de fornecer o medicamento, ocasião que não tardou a Kleiton a realização de um seqüestro com uma pistola max laser da nintendo num momento de delírio e crise psicótica, expondo-se a condições que afetaram sua saúde mental, tão como a segurança e paz de outros. Finalmente, uma grande crítica realizada é que quando uma pessoa com transtornos mentais comete um crime e recebe medida de segurança, há estabelecimento de seu destino, que pode se tornar um asilo perpétuo em Hospitais de Custódia. A titulo ilustrativo, foi destacado na Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia em 1999, que “esses lugares são o pior do pior.” (CASTRO, Ulysses Rodrigues de, 2010, página 94, 95) O doente mental é punido por ser doente. Nenhuma pena deve basear-se nos princípios da vingança e arbitrariedade. Segundo os tratados internacionais destacados no terceiro capítulo desta monografia, nenhuma pena deve ser degradante, desumana, que submeta o ser humano a tortura e degradação psicológica. Espera-se que os operadores da área do direito que estão envolvidos no caso de Kleiton não deixem que sua medida se torne uma prisão perpétua, ou que o faça piorar do quadro clínico. Tal interno deve ser tratado como ser humano, e diante disso, receber um tratamento humanitário, que permita a estabilização de seu quadro, a fim de permiti-lo vivenciar a convivência social e concluir seu sonho de estudar direito. Será um verdadeiro milagre uma vítima do sistema superar tais obstáculos. Diante do exposto, conclui-se que no caso observado, o indivíduo foi submetido a medida com objetivo curativo, representado no juízo de cessação de periculosidade, e explícito na legislação pátria. Diante desta imposição curativa, notou-se pouco aproveitamento do método terapêutico e, também, violação aos direitos humanos, em especial a garantia fundamental da saúde, protegida por diversos diplomas legais, constitucionais e internacionais. Depois do pesquisado, acredita-se, antes da necessidade de reforma no tratamento de saúde mental, que nenhum tratamento deve ser imposto, devendo haver possibilidade do indivíduo participar dos rumos que serão dados a sua saúde. Inclusive, no caso pesquisado, observou-se que tais medidas impositivas demonstraram pouco resultado, operando inclusive, contra direitos e garantias fundamentais do indivíduo e de sua família. Deveria Kleiton ao menos ter a possibilidade de escolher o estabelecimento médico no qual seria tratado. Resta a necessidade de se refletir para além da anuência do tratamento, sobre a missão curativa dos discursos jurídicos psiquiátricos em relação aos inimputáveis. Suas opiniões também deveriam ser levadas em consideração, até porque, diante das medidas de segurança, são privados de diversos direitos, dentre eles, a sua liberdade de ir e vir.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Espero, portanto, que esta pesquisa possa proporcionar reflexões para num futuro ajudar Kleiton, e outros internos vítimas do sistema punitivo-terapêutico do Estado. Afinal, segundo os relatos nas entrevistas, dos muito internos que adentram a ATP, poucos conseguem a inserção social. Tal sistema precisa ter investimento e qualidade, para o bem dos internos, e da sociedade. Não se deve misturar o método punitivo com o terapêutico, pois se a pessoa é legalmente irresponsável, e possui transtornos mentais, é contraditório absolvê-la para depois puni-la. Deve-se buscar a saúde, direito e garantia fundamental.

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POLÍTICAS CRIMINAIS AUTORITÁRIAS: Sintomas da presença do conceito de inimigo no sistema punitivo Hugo Leonardo Rodrigues Santos1 RESUMO: Parte-se da premissa de que seria possível constatar a utilização do conceito de inimigo no sistema punitivo, por meio da análise das políticas criminais autoritárias que estão sendo praticadas hodiernamente. Nesse sentido, o presente texto ensaia uma apresentação das principais características dessas políticas exageradamente punitivistas, resumidos nos seus traços marcantes de simbolismo, eficientismo e emergencialismo. Como resultado, tem-se uma supressão de direitos e garantias fundamentais dos imputados, que acaba se observando em todas essas políticas criminais antidemocráticas. Conclui-se, ao fim, que essas políticas criminais autoritárias representam a materialização de uma ideia de inimigo no sistema punitivo, sendo portanto absolutamente contrárias a um modelo de Estado democrático de direito.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas criminais autoritárias, simbolismo, eficientismo, emergencialismo, conceito de inimigo.

Dentre as muitas tendências político-criminais verificadas na atualidade (ALMEIDA, 2004), interessa-nos, neste estudo, aquelas de feição autoritária, as quais se coadunam com uma vertiginosa expansão do sistema punitivo. Essas políticas possuem alguns traços distintivos comuns, que são a utilização simbólica do poder punitivo, seu caráter emergencial e a opção por um discurso eficientista. Essas características não podem ser compreendidas como fenômenos isolados, sendo na verdade manifestações conjuntas, inter-relacionadas. São sintomas de uma opção clara pela criminalização dos excluídos e, por essa razão, prenúncios da concretização político-criminal do conceito de inimigo.

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Doutorando e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Pósgraduado em Ciências Criminais pela Universidade do Amazonas - UNAMA e em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior de Magistratura de Pernambuco - ESMAPE. Professor de Direito Penal e Criminologia em cursos de graduação e pós-graduação de Maceió (AL). Membro associado da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Coordenador adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Alagoas. Pesquisador colaborador do Núcleo de Estudos da Violência de Alagoas – NEVIAL. E-mail: [email protected].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Os três caracteres apontados são responsáveis por, conjuntamente, fazer com que essas políticas criminais autoritárias resultem no desrespeito a garantias e direitos estatuídos, fato que sinaliza para um processo de aculturação (desnaturação) do sistema punitivo. Com relação ao traço de simbolismo dessas políticas, podemos afirmar que não é nenhuma novidade a utilização de legislações penais com finalidades meramente simbólicas. Não somente as leis criminais, mas o próprio direito moderno é marcado por esse simbolismo (SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 304). No que tange ao sistema penal, o uso exacerbado desse simbolismo penal é uma consequência da insegurança ontológica, marcante na modernidade recente. Trata-se de mais um reflexo do medo, tão característico da sociedade atual. Segundo Zygmunt Bauman, o medo gera efeitos concretos, independentemente de existir ou não um perigo real. Quando esse sentimento é desvinculado de um perigo real, é chamado de medo secundário (2008, p.9). Esse medo secundário acaba por produzir e orientar o comportamento humano. Resulta de uma sensação de insegurança e vulnerabilidade, podendo ser resumido como “o sentimento de ser suscetível ao perigo” (BAUMAN, 2008, p.9, grifos no original). A insegurança ontológica, por essas razões, seria a pura manifestação do medo. Não o medo determinado, ocasionado pela concretização de um perigo, mas o medo secundário, que é difuso, subjetivo, motivado pela incerteza, pois “o que mais amedronta é a ubiquidade dos medos” (BAUMAN, 2008, p.11). Também tem a mesma opinião Leonardo Sica, quem afirmou que o medo, quando atinge uma coletividade, gera uma enorme angústia, que se incrementa a partir da definição concreta de um objeto determinado, de uma fonte de perigo. Quanto mais claramente identificável o perigo, maior seria a sensação de angústia, a qual resulta em um sentimento global de insegurança (SICA, 2002, p. 80). Cumpre ressaltar que tal medo secundário, de regra, corresponde a uma reação decorrente de perigos imaginados de forma exagerada – ou ainda, em outras situações seria fruto de perigos inexistentes. Isso, porque a sensação de insegurança faz com que um perigo real seja exponencialmente aumentado, na esfera psicológica, resultando em um sentimento de medo desproporcional à realidade objetiva. Não obstante, como já afirmamos, esse medo secundário provoca efeitos reais 2 no sistema punitivo. Com o mesmo entendimento , Juarez Cirino dos Santos afirmou, com base no teorema de Thomas, que

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No mesmo sentido, Zygmunt BAUMAN observa que “uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente, mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a um encontro imediato com o perigo; o medo derivado adquire a capacidade de autopropulsão” (2008, p. 9, grifamos).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 [...] situações definidas como reais produzem efeitos reais. Logo se imagens da realidade produzem efeitos reais, então seria desnecessário agir sobre a realidade para produzir resultados concretos, porque ações sobre a imagem da realidade seriam suficientes para criar efeitos reais na opinião pública (2007, p. 111).

O efeito político-criminal desse medo subjetivo é o de direcionar o sistema punitivo, tão-somente, para servir como resposta simbólica aos anseios generalizados da sociedade por mais segurança. Descarta-se a ideia de que o sistema criminal deveria responder concretamente aos perigos que ocasionam esses sentimentos de temor, pois o perigo é em si mesmo ilusório. A resposta drástica – punitiva – decorre apenas do medo. Dessa maneira, as políticas criminais acabam por assumir funções meramente simbólicas, despreocupando-se com suas finalidades próprias, condizentes com um Estado de Direito. Nesse sentido, afirmou Jesús-María Silva Sanchez que

esta função simbólica das normas penais se caracteriza por dar lugar, mais que à resolução direta do problema jurídico-penal (à proteção de bens jurídicos), à produção na opinião pública da impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido (1992, p. 305, traduzido livremente).

As políticas criminais simbólicas também se explicam como uma consequência da falência do Estado, que seria, conforme o senso comum, incapaz de promover uma igualdade material. Na medida em que não mais se preocupa em resolver definitivamente os problemas sociais – estes sim verdadeiramente criminógeno –, o Estado se utiliza de políticas irracionais, que são não mais que respostas insatisfatórias, soluções paliativas para o medo social. O sistema punitivo sempre se utilizou do simbolismo. Por isso, o maior problema dessas recentes políticas criminais autoritárias não é o fato de se fundamentarem nesse aspecto simbólico, mas sim o fato de desprezarem suas demais finalidades – especialmente a finalidade prevenção da criminalidade. Isso resultou na elevação da função simbólica à categoria de fim exclusivo do sistema punitivo (SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 305, em tradução livre). Essa utilização meramente publicitária, ao relegar para segundo plano as funções preventivas e de proteção de bens jurídicos, é ilegítima, devendo ser descartada em um Estado de Direito (SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 306, traduzido livremente).

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O medo é avesso à racionalidade , e, aliado à angústia (insegurança ontológica), resulta na agressividade (SICA, 2002, p. 80). Logo, as políticas criminais resultantes do medo sempre se caracterizam por uma desproporcional manifestação do poder punitivo, uma espécie de vingança desmedida. Nesse sentido, “o Direito Penal simbólico e o punitivismo mantêm uma relação fraternal” (CANCIO MELIÁ, 2005, p. 65, com grifos nossos). A função simbólica do sistema punitivo está sempre relacionada com a demonização de certos grupos sociais, já que

o Direito Penal simbólico não só identifica um determinado fato, mas também (ou sobretudo) um específico tipo de autor, que é definido não como igual, mas como outro. Isto é, a existência da norma penal (...) persegue a construção de uma determinada imagem da identidade social (CANCIO MELIÁ, 2005, p. 65, grifos no original).

Segundo Carlos Julio Lascano, a partir da demonização, surgiria a ideia de que entidades políticas, sociais ou religiosas seriam essencialmente perversas e nocivas (2006, p. 230). Assim, esse processo, aplicado aos criminosos, faria com que se imputasse aos grupos sociais marginalizados a responsabilidade pela ocorrência do mal, apontando-os como bodes expiatórios, responsáveis pelas mazelas da sociedade. O que significa, claramente, tratar esses grupos sociais como verdadeiros inimigos da sociedade. A demonização se assemelha a uma estratégia de guerra contra os inimigos. Por isso, observou Jock Young que a criação de um inimigo deve levar em conta a necessidade de que as pessoas se convençam de que ele é a origem dos nossos problemas, sendo essencialmente diferentes: os inimigos são o outro, ou seja, que encarnam o mal em pessoa (2002, p. 173, grifos no original). A demonização não se envaidece com argumentos cientificistas, manifestando-se apenas como uma histérica política autoritária. Não se fundamenta em critérios racionais, contentando-se em basear-se em um discurso do ódio. Pode ser compreendida como um essencialismo, agravado pelo seu caráter de irracionalidade. Eugenio Raul Zaffaroni observou que essas políticas criminais simbólicas não têm o interesse de definir criteriosamente os inimigos. Preferem utilizar estereótipos vagos, que são substituídos conforme a conveniência política.

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Eugenio Raul Zaffaroni afirmou, referindo-se ao discurso autoritário latino-americano, que “a irracionalidade é de tal magnitude que sua legitimação não pode provir nem sequer de grosserias míticas – como Rosemberg no nazismo – senão que se reduz a mensagens publicitárias, com o predomínio de imagens” (ZAFFARONI, 2005, p. 24).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Não se sabe quem é o inimigo, pois estes sucedem-se sem somar-se; em lugar de defini-lo fotograficamente projetam-se cinematograficamente, como construções em série dos meios de comunicação, especialmente da televisão. O estado não os define, senão que suas autoridades encontram sitiadas por sucessivas imposições dos discursos críticos. Não há outra corporação que pretenda construir inimigos diferentes e que para isso deva desarmar os mitos anteriores; pelo contrário, a mesma corporação produtora de inimigos os descarta e os substitui (2005, p. 24-25, grifos no original).

Ao fim, é inútil todo esse esforço para eliminar a sensação de insegurança por meio do uso do simbolismo no sistema punitivo. O sucesso em tal desafio exige, pelo contrário, que se abandone o vocabulário bélico para a criminalidade cotidiana, bem como que se elimine o estereótipo do delinquente como representante de uma classe social marginalizada. Isso poderia contribuir para reduzir a insegurança cidadã para patamares mais aceitáveis. Não obstante, não se pode ignorar que a luta pela verdade “tem como inimigo central inconsciente uma opinião pública desprevenida e manipulada” (CASTRO, 2000, p. 268, traduzido livremente). Também devemos destacar, como traço constitutivo das políticas criminais autoritárias hodiernas, o seu caráter de emergencialidade. Segundo Fauzi Hassan Choukr, a emergência significa “aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade” (2002, p. 5). Por isso, as políticas criminais emergenciais correspondem àquelas medidas excepcionais, que fogem à normalidade, utilizando-se de soluções inéditas, com relação ao sistema punitivo ordinário. Dessa forma, ocorre uma inovação na cultura punitiva. Essa declinação da cultura normal não indica apenas a existência de diferenças entre as medidas emergenciais e aquelas ordinárias. Significam a derrogação de direitos e garantias fundamentais (CHOUKR, 2002, p. 6). Frente a uma situação de perigo, a reação normal do direito é utilizar os procedimentos já previstos ordinariamente, para responder à ameaça. Por outro lado, seria possível inaugurar sistemas específicos – com atribuições exclusivas para lidar com a emergência –, que resultariam na suspensão de direitos constitucionais, e na introdução de um regime derrogatório. Essa última escolha política representa a opção por um sistema excepcional (VERGOTTINI, 2004, p. 209). O direito penal de emergência tem um duplo significado: primeiramente, aquela legislação de exceção, tomando-se por base a Constituição (alteração legal

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 das regras do jogo); de outro lado, temos a jurisdição de exceção, contaminada por essas regras excepcionais (FERRAJOLI, 2004, p. 845). Quando nos referimos às políticas criminais emergenciais, estamos indicando ambos os significados, considerando que o conceito de política criminal compreende um aspecto legislativo – no sentido de elaboração de normas jurídicas –, mas também a própria materialização dessas leis criminais – ou seja, o funcionamento concreto do sistema punitivo. As medidas emergenciais têm sido utilizadas com frequência no combate à criminalidade, tendo se banalizado. Por isso Sergio Moccia defende a tese de que, paradoxalmente, as políticas emergenciais acabaram por se perpetuar. Ao deixarem de ser aplicadas apenas em situações de emergência, contraditam o seu alegado caráter de excepcionalidade (1997). O que poderia ser explicado, segundo os defensores de tais políticas, pelo fato de constatação de que as soluções ordinárias não teriam logrado êxito, na prevenção eficaz da delinquência. Com opinião contrária, entendemos que essa utilização ordinária de medidas extraordinárias é deveras preocupante, por promover uma aculturação do sistema punitivo. Ressaltamos uma vez mais a lição de Luigi Ferrajoli, afirmando que é perigosíssimo o uso irrazoável de soluções excepcionais, as quais, após se estabelecerem definitivamente na praxis, provocam como resultado uma desnaturação do sistema punitivo (2004, p. 870). Esse processo de aculturação emergencial também vem produzindo efeitos deletérios no sistema punitivo brasileiro. Quase toda a legislação processual penal extravagante seria regida por essa lógica emergencial, pois “o devido processo legal aplicado em sua integralidade passou a ser considerado como um formalismo incômodo para o direito brasileiro” (CHOUKR, 2002, p. 139). Portanto, as políticas criminais de perseguição de inimigos tendem a se normalizar, na medida em que o próprio sistema jurídico-penal se encontra desnaturado, em virtude da utilização excessiva dessas medidas emergenciais. Com entendimento semelhante, Giuseppe Riccio observou que um dos sinais claros desse fenômeno é o deslocamento do interesse do sistema punitivo, que deixou de se preocupar com a proteção dos bens jurídicos, para assumir uma ideologia correspondente a um direito penal de autor (1982, p. 38). No mesmo sentido, Luigi Ferrajoli também lembrou da personalização, característica da emergencialidade no direito penal, que se torna por esse processo “mais um direito penal do réu que um direito penal do fato criminoso” (2004, p. 858, em tradução livre e com destaques no original). Diante do exposto, não seria exagerado afirmar que essas políticas criminais emergenciais são marcadas por um punitivismo irracional. Representam uma ideologia de desrespeito à liberdade individual e social, descartada em prol de um direito penal excessivamente fortalecido, e consequentemente menos democrático

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 (RICCIO, 1982, p. 46). Por isso, essas políticas seriam sinais claros da presença do conceito de inimigo, no sistema punitivo (FERRAJOLI, 2004, p. 858). O sistema criminal deve oferecer respostas normais ao fenômeno da criminalidade. A banalização de políticas emergenciais deslegitima o sistema criminal, na medida em que reafirma a sua incapacidade de reagir normalmente às ocorrências delituosas, mostrando-o como um mecanismo inútil de controle social. Na lição de Manuel Cancio Meliá,

a resposta idônea, no plano simbólico, ao questionamento de uma norma essencial, deve estar na manifestação da normalidade, na negação da excepcionalidade, isto é, na reação de acordo com critérios de proporcionalidade e de imputação, os quais estão na base do sistema jurídico-penal normal (2005, p. 78, grifos no original).

A última das três características mais marcantes das políticas criminais autoritárias consiste na utilização de uma razão eficientista. Bastante comum nas políticas recentes, segundo Sergio Moccia “o eficientismo penal constitui a última variante do direito penal da emergência, uma degeneração que desde sempre tem acompanhado a vida do direito penal moderno” (2006, p. 304, em tradução livre). O eficientismo é resultado do ceticismo com relação à capacidade do Estado de prevenir eficazmente a delinquência. Conforme essa ideologia, bastante difundida no senso comum (everyday theories), se o direito penal se mantiver fiel a seus princípios liberais, não será capaz de cumprir com as suas funções de repressão e prevenção da violência. Seria necessário, portanto, um relaxamento dos seus princípios (HASSEMER, 2003, p. 59). Tal característica corresponde à lógica de desmonte do Estado de bem-estar, relacionando-se com a implementação de políticas econômicas que contribuíram para o agravamento do quadro de exclusão social (MOCCIA, 2006, p. 305). O eficientismo não se confunde com a eficiência. Ou seja, a eficiência de uma política criminal não se relaciona o autoritarismo punitivista. Muito pelo contrário, afirmamos que as políticas criminais devem sempre ser eficientes, no sentido de que precisam cumprir com suas finalidades com uma contrapartida mínima de custos econômicos e sociais. A eficiência, portanto, é sempre desejada em uma política criminal. Nossa crítica se dirige, mais precisamente, ao eficientismo, conceito que se relaciona com o pensamento (muito em voga na modernidade recente) de que a eficiência de uma política criminal seria incompatível com o respeito a direitos e garantias estatuídos. O eficientismo, desta maneira, reveste-se de um significado bastante distinto do de eficiência, e equivale à ideia de que “os princípios do Direito Penal em conjunto

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 são contemplados como sutilezas que se opõem a uma solução real dos problemas” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 69). Com relação ao tema, o problema central seria, exatamente, identificar se o cálculo da eficiência contempla os princípios e garantias penais (SILVA SÁNCHEZ, 2004, p. 58). A razão eficientista advoga que certos direitos e garantias seriam um entrave para a implementação de políticas criminais com resultados satisfatórios. Nas palavras de Alessandro Baratta,

[...] no interior desse processo, o eficientismo penal tenta tornar mais eficaz e mais rápida a resposta punitiva, limitando ou suprimindo garantias substanciais e processuais que tem sido estabelecidas na tradição do direito penal liberal, nas Constituições e nas Convenções internacionais (2004, p. 180, traduzido livremente).

Como, segundo o senso comum, o Estado seria incapaz de conter a criminalidade apenas por meio de políticas criminais lato sensu (políticas sociais) – as quais teriam como foco os verdadeiros problemas criminógeno –, termina-se por lançar mão de políticas criminais meramente retributivas (punitivas). Essas limitam-se a um punitivismo simbólico, e desrespeitam alguns dos princípios cardeais do sistema criminal, relacionados a direitos e garantias individuais. Por esse motivo, o eficientismo corresponde a uma utilização do sistema punitivo como prima ratio, “uma panaceia com a qual se quer enfrentar os mais diversos problemas sociais” (BARATTA, 2004, p. 179, em livre tradução). De modo que o eficientismo justificaria a utilização desmesurada do poder punitivo, em virtude, notadamente, da premissa de que a reação penalógica seria a única resposta eficaz, oferecida para o problema da criminalidade. Assim, ao invés de ensaiar outras possíveis soluções para o problema da violência – deixando a sanção criminal como ultima ratio – o eficientismo se esforça por tornar mais eficaz a reação penal, recrudescendo o exercício do poder de punir em contrariedade ao modelo constitucional de um Estado de direito (MOCCIA, 2006, p. 305). É, notoriamente, um claro desvirtuamento das finalidades do sistema criminal. No âmbito de um Estado de direito, não poderia o poder punitivo fundamentar-se na lógica, demasiado simplista, de que os fins justificam os meios. Por isso, é inconsistente (inválido) o pressuposto de que os direitos individuais e garantias poderiam ser sacrificados, em prol de uma busca incessante por condenações criminais meramente simbólicas. Nesse sentido, “o privilégio do critério pragmático no controle do desvio acarreta, necessariamente, um abandono dos pontos de vista éticos, cuja consideração resulta problemática, ainda que sob o prisma da legitimidade” (MOCCIA, 1997, p. 23, tradução livre com destaques nossos).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Em nossa opinião, o eficientismo não se justifica, precisamente pelo fato de não considerar que os parâmetros para mensurar a eficiência do sistema punitivo devem, necessariamente, levar em conta o respeito aos direitos individuais e garantias – que, afinal, se constituei como objetivo maior de um Estado de Direito. Por isso, concordamos com Sergio Moccia, quando observa que não haveria uma antítese entre garantias e eficiência. Segundo esse renomado jurista italiano,

garantia e eficiência, em um Estado social de Direito, longe de serem antitéticos, representam conjuntamente os elementos essenciais de referência os quais devem informar o direcionamento das legítimas instâncias de controle social. Na realidade, o Estado social de direito, feliz síntese de componentes liberais e sociais, sob o compromisso de proteção dos direitos individuais, tende a assegurar garantias formais e materiais, tornando-as efetivas (1997, p. 1, traduzido livremente).

Os direitos fundamentais são verdadeiros limites para a consideração da eficiência das políticas criminais (SILVA SÁNCHEZ, 2004, p. 65). Se o asseguramento das bases constitucionais do direito penal são objetivos precípuos do Estado de direito, não se poderia falar em política criminal eficiente, quando verificada uma incompatibilidade com tais fundamentos. Para concluir, essas três características das político-criminais referidas (emergencialidade, simbolismo e eficientismo) não são fenômenos isolados. Muito pelo contrário, estão relacionadas entre si, e somente podem ser compreendidas conjuntamente. Nesse sentido, é sabido que “o emergencialismo deu origem ao uso simbólico do direito penal, por presumidas exigências de eficiência, que terminaram por suplantar a busca de soluções de política social geral muito mais eficazes” (MOCCIA, 2006, p. 311, em tradução livre). As políticas criminais autoritárias, que apresentam tais traços definidores, promovem uma supressão de direitos e garantias, e esse é precisamente um dos indicadores da utilização do conceito de inimigo no sistema punitivo. Por isso, afirmou Günther Jakobs que o inimigo não teria asseguradas as mesmas prerrogativas que o cidadão, já que não poderia se beneficiar do conceito de pessoa (2005, p. 36). Na modernidade recente, existe um ceticismo com relação à importância (utilidade) das instituições sociais, incluindo-se os direitos individuais e garantias. Como consequência, esses princípios são, simplesmente, ignorados. Segundo Ulrich Beck, haveria um estágio mais avançado (e conturbado) da modernidade, no qual os perigos da sociedade industrial (dentre os quais incluiríamos a criminalidade) começariam a dominar os debates e conflitos públicos. A partir desse

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 momento, o próprio funcionamento do judiciário (e das políticas criminais) seria corrompido pelas preocupações inerentes a uma sociedade de riscos (1995, p. 15). Esse fenômeno já está ocorrendo, conforme se constatou a partir da análise dessas novas características das políticas criminais. Nesse atual momento, “a roda-viva dos efeitos da modernização revela-se alheia à racionalidade moderna, modifica seus pressupostos e, assim, coloca em xeque as bases e a legitimação histórica das instituições fundamentais da própria modernidade” (MACHADO, 2005, p. 153). Estaríamos vivenciando um descarte daqueles princípios e instituições constitutivos do direito penal liberal, sob o argumento precipitado de que esses não mais atenderiam eficazmente aos atuais clamores sociais. Não obstante as tendências verificadas, não são admissíveis as políticas criminais que promovem uma relativização de direitos individuais e garantias, por serem absolutamente ilegítimas. Considera-se essencial o respeito aos princípios de um direito penal liberal – os quais devem sempre servir como bússola para o funcionamento do sistema punitivo). Por isso é completamente descabida essa nova postura político-criminal, pois o respeito a esses postulados garantistas consiste em uma das finalidades primordiais do Estado de direito, confundindo-se com a sua própria razão de ser. O desrespeito a essas garantias, por parte de políticas criminais autoritárias, materializa a diferenciação radical entre os indivíduos na sociedade, destacando-se dois grandes grupos arbitrariamente definidos: de um lado, os cidadãos, os quais seriam merecedores de gozar dos direitos estatuídos; e, de outro lado, aqueles indivíduos perigosos, os outros, entendidos como inimigos, e cujos atos não lhes seriam imputados por meio de um processo legal devido. Tais políticas criminais utilizam-se do paradigma do inimigo em suas formulações, e exatamente por isso devem ser refutadas, em um Estado de direito.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O DIREITO À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO SOB A PERSPECTIVA DO “SUJEITO CONCRETO LITIGANTE” – A RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DA TUTELA JURISCIONAL INTEMPESTIVA Valdir de Carvalho Campos1 e Renan Ramos2

1. INTRODUÇÃO 3

Hamlet confrontou a lentidão dos processos judiciais ao tormento de um amor traído. Numa linguagem menos poética, a questão envolvendo a efetividade do direito 4 está longe de tonar-se algo factível em terrae brasilis , neste particular, convém lembrar aos operadores do direito, que a imortalidade é para os deuses e não para os humanos. Hodiernamente, o papel do Magistrado, assume contornos dramáticos, posto ignorar por completo os “sujeitos concretos litigantes”, em homenagem a um formalismo exacerbado (ou formalismo excessivo nas palavras do saudoso Professor Carlos Alberto Álvaro de Oliveira), eternizando os conflitos de interesses, desautorizando, assim, a tutela jurisdicional efetiva. Ou dito de outra forma, a letargia na prestação da tutela jurisdicional é uma espécie de omissão do Estado o qual detém o seu monopólio.

1

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru – ITE. Pós Graduando em Direito Constitucional e Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Pesquisador e integrante do Grupo de Pesquisa Democracia e Direitos Fundamentais do Mestrado em Ciência Jurídica do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP. 2 Graduando em Direito pela Universidade Paulista – UNIP. 3 Hamlet, Príncipe da Dinamarca, peça escrita provavelmente em 1600/2, é seguramente a tragédia de Shakespeare mais representada em todos os tempos e a que mais se prestou a interpretações de toda ordem. Praticamente todos os escritores e pensadores importantes nos últimos quatro séculos deixaram suas impressões sobre o impacto que lhes causou a história do infeliz príncipe da Dinamarca, constrangido a fazer, sem nenhuma vocação para tal, uma terrível vingança. 4 Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011 p. 245

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Cumpre ressaltar, que a ideia de processo, sob o paradigma dos “sujeitos concretos litigantes”, prende-se a noção de tempo, contrapondo-se ao conceito formalista adotado por nosso sistema processual, ou seja, o “procedere” judicial, o qual pujantemente é defasado ante a corrente neoconstitucionalista e neoprocessualista, movimento doutrinário este que não admite a “legislação dita simbólica”, como bem alerta Marcelo Neves e nem o mero “garantismo” constitucional. Imperioso se faz reconhecer, que a estabilidade buscada pelos Magistrados brasileiros, quando da prestação da tutela jurisdicional, numa visão obtusa das coisas, cinge-se à natureza das estruturas, porém, não se pode deixar de reconhecer que os seres de que elas são feitas não são estáticos. Sábias as reflexões de Giacoia Jr. (2013, p. 28): as ciências humanas não comportam a matematização dos seus objetos, elas não podem aspirar ao regime de certeza e objetividade que há nas ciências formais e físicas. A cientificidade das ciências humanas exige a instituição de critérios e metodologias de pesquisa próprios, sob pena de tornar inviáveis seus corpos teóricos como conhecimento objetivo. Outro obstáculo à equação “tempo versus processo” é o fato de que nossos Juízes mostram-se distantes da realidade fática processual, ou porque não dizer, ignoram a subjetividade que emana do caso concreto. Por mais absurdo que possa parecer, carregam em sua toga, uma concepção narcisista e romântica do devido processo legal, o que resulta numa prestação jurisdicional mecanicista, formatada num modelo industrial, fazendo com que o litígio se arraste por anos, décadas, aflorando a ideia de ser a autotutela a solução mais adequada. A inoperância e a letargia dos Juízes brasileiros, salvo honrosas exceções, 5 encontra-se distante da “Vida Como Ela é” , aliás, a lição de Dinamarco (1994, p. 28), leva-nos a reflexão sobre tema: É preciso ver o processo pelo ângulo do consumidor do serviço jurisdicional, já alertava Mauro Cappelletti. È indispensável analisa-lo pelo ângulo externo, de modo crítico e com postura teleológica para que ele se legitime como instrumento de pacificação das pessoas e eliminação dos conflitos com justiça.

Revela-se hoje, que o exagero formal advindo do normativismo, é o pilar que sustenta a dogmática de que a prestação da tutela, só se alcança por meio e uma cognição exauriente, emoldurada num procedimento que “deve” eternizar-se no tempo. A obrigatoriedade da via jurisdicional na solução de todas as contendas advindas do convívio social, sem sombra de dúvidas, implica numa prestação social elevada, pois além do fato de que o acesso à justiça, na maioria das vezes, alcançar apenas uma pequena parcela da sociedade, tem-se, ainda, que superar obstáculos 5

A Vida Como Ela É traz histórias dos melhores contos de Nelson Rodrigues.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 como a demora na solução do conflito, o qual gera um sentimento de descrédito “no consumidor” do serviço jurisdicional, não resultando, quase sempre, num custo/benefício razoável a ambas as partes e ao Estado Juiz. Nas palavras de Ovídio A. Baptista da Silva (2006, p. 27/28): O chamado ‘processo de conhecimento’ na verdade processo somente ‘declaratório’, vocacionado para demandas plenárias, é o instrumento dessa ideologia. É através do ‘processo de conhecimento’, ordinário, que o sistema retira do magistrado o poder de império de que se valia o pretor romano, ao conceder a tutela interdital. É por meio dele que o sistema pretende manter a neutralidade – melhor, a passividade – do juiz durante o curso da causa, para somente depois de haver descoberto a ‘verdade da lei’ (Chiovenda) autorizar lhe a julgar, produzindo o sonhado juízo de certeza. Ao contrário desta ingênua ilusão, o juiz começa a formar seu convencimento desde de o momento que a causa lhe é atribuída. Se o julgamento muitas vezes esta formado, já na momento que se encerra a fase postulatória.

Não se pode perder de mira, ainda, o fato de que o positivismo e monopólio jurisdicional resultam em discriminação e exclusão social, pois inegável a incidência de aspectos econômicos, culturais, somados a um Poder Legislativo corrupto, comumente sujeito à lobby, e a um Judiciário que faz jus a concepção da palavra “inerte”, data venia. É cediço que os direitos de um modo geral e, os fundamentais em especial, exigem pronta, imediata e efetiva prestação jurisdicional, diante do surgimento de “novos conflitos”, advindos da sociedade pós-moderna, na qual vivemos, fazendo-se necessário, uma justiça acessível e célere, apta a restaurar a paz social, por meio do paradigma da jurisdição. Já foi dito pelo saudoso doutrinador Rui Barbosa – “Justiça tardia nada mais é do que Justiça Institucionalizada”! Ora, de outro lado, se levarmos a efeito o modelo processual do “sujeito concreto litigante”, aqui proposto, como referencial de toda a processualística, tem-se que a razoável duração do processo deve ser moldurada como espécie do gênero direto fundamental e também requisito inerente a efetividade dos “direitos fundamentais materiais” já que não há como estes bens incorpóreos se materializarem sem um instrumento hábil. Conclusão mui próxima chegou a consagrada Professora Teresa Arruda Alvim Wambier ao ressalta a função das ações constitucionais em estudo elaborado pelo Nobre Jurista Fredie Didier Jr: De fato, absolutamente ineficaz é a previsão de um direito considerado como direito material, se este não puder, pela via processual, ser feito valer contra quem quer que seja que o pretenda violar ou que efetivamente o viole, inclusive o próprio Estado. (DIDIER JR. Fredie, In Ações Constitucionais. ed. 4. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 25)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Aliás, o tema em questão não passou despercebido por Leonardo Greco, ao afirmar ser a morosidade da justiça um dos fatores que a torna inócua a proclamada eficácia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, Augusto do Amaral Dergint (1994, p. 196): A demora no andamento dos processos sucede em virtude de mau aparelhamento do serviço judiciário ou por desídia do magistrado, senão pela rara conjugação de ambos os fatores. Ou o juiz age culposamente, por desídia, Ou, fazendo tudo quando pode humanamente fazer, não vence a passividade do Estado em remover obstáculos à pontual prestação da tutela jurisdicional. Como descreve Alcântara (1988, p. 48) a demora da entrega da tutela jurisdicional é causa de perecimento de direitos e, consequentes lesões ao patrimônio particular. Com efeito, a lentidão do Poder Judiciário é uma realidade que provoca uníssono reclamo e descontentamento social, sendo causa que até mesmo desencoraja o recurso à via judicial, semeando-se o gérmen do descrédito e da sensação de impunidade no meio social. Tendo o Estado tomado para si o monopólio da justiça, a prestação da tutela jurisdicional representa o único meio legítimo de se estabilizar definitivamente qualquer direito conflitado. Destarte, cumpre ao poder Público “zelar por um certo grau de perfeição na prestação do serviço judiciário, de modo que seu funcionamento tardio gera, como consequência lógica, seu dever de responder pelos danos que eventualmente causar”. (DERGINT, 1994, p. 196). Refletindo sobre o assunto, Fachin (2001, p. 209): Se o Estado arrecada tributos e taxas judiciárias com a finalidade específica de executar essa modalidade de serviço público, deve prestá-lo com certo grau de qualidade. Ele deve fazer bem os serviços que presta. E entrega-los dentro do prazo razoável é corresponder ao que é seu dever e anseio dos jurisdicionados

Forçoso é concluir que a sociedade não deve arcar com o ônus assumido pelo Estado, pois este ao assumir o monopólio jurisdicional, deve prestar essa modalidade de serviço público com certo grau de qualidade, conferindo segurança jurídica a sociedade. Deste modo, é causa que autoriza a propositura de demanda 6 indenizatória contra o Estado, que poderia funcionar com uma forma de cobrança para o solucionamento dos graves problemas que geram o emperramento da máquina judiciária. Ora, pensando numa relação contratual entre jurisdicionado e Poder Jurisdicional (pacto fruto do “contrato social”), o raciocínio é simples não cumprida a prestação obrigacional à contento não há outro caminho se não a compensação do 6

Muito embora, lamentavelmente, não tem este o entendimento dos Tribunais superiores, inclusive do Supremo Tribunal Federal, nos quais essa tese encontrado resistência. (FACHIN, Zulmar, Responsabilidade patrominial do Estado por ato jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 328).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 credor (administrado lesado) as “perdas e danos” – é um risco que assume o Estado e um poder/dever moral que, no Brasil, se apoio nos princípios que norteiam todo o Estado Democrático de Direito, tais como a cidadania e a dignidade da pessoal humana. Com efeito, o tema aqui proposto, confere uma visão constitucional do direito processual. Tanto é verdade, que a Corte Europeia de Direitos Humanos contempla diversas condenações de Estados, a indenizar seus cidadãos diante da excessiva demora dos processos judiciais: “article 6 para. 1 (art. 6-1) obliges Contracting States to organise their judicial systems in such a way that their courts can meet each of its 7 requeriments” . O Estado Italiano, signatário da Convenção, cujo parágrafo 1º do artigo 24 de sua Constituição assegura que “tutti possono agire in giudizio per la tutela dei propri diritti e interessi legittimi (99 c.p.c), foi condenado por exceder esse reasonable time (tempo razoável) como refere Cruz e Tucci (1997 p. 69-75). Em terrae brasilis, Marco Félix Jobim (2012, p. 77), noticia fato que chegou a Corte Interamericana, tendo por pressuposto a intempestiva tutela jurisdicional: Trata-se de caso ocorrido com Damião Ximenes Lopes, doente mental morto em 04 de 1999 na Casa de Repouso Guatararapes, no município de Sobral, Estado do Ceará. Após o trâmite devido da demanda proposta perante a Comissão, em 1999, pelos familiares da vítima, o processo foi recebido na Corte em 2004. A família, representada pela Organização Justiça Global, recebeu da Corte americana o reconhecimento de que o Brasil violou os direitos humanos ao não fiscalizar devidamente a referida Clínica, onde ocorreram os maus-tratos e a morte, com isso causando danos materiais, morais e psicológicos aos familiares da vítima que, além de terem perdido ser ente querido, não tinham recebido do Judiciário brasileiro a decisão em relação aos pedidos de punição dos culpados e de reparação de danos morais. Na hipótese, a Corte Interamericana considerou o atraso por mais de seis anos do processo penal e do processo civil de reparação de dano moral, ambos em curso no Judiciário do Estado do Ceará, sem que até a data da sentença da Corte tivesse havido conclusão no juízo de primeiro grau com sentença prolatada, tudo em decorrência de demoras injustificáveis por culpa do aparelho judiciário. Além de ter recebido outras sanções imateriais, o Estado brasileiro foi condenado a indenizar os pais e os irmãos da vítima em mais de cento e trinta e cinco mil dólares americanos, a serem entregues diretamente aos beneficiários.

Pode-se asseverar, hodiernamente, que esta previamente garantido pelo Estado a garantia de acesso à Justiça, entretanto, na contramão da história, não garante-se sua saída. Destarte, em algumas demandas, como se verá logo abaixo,

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Tradução: Casos Schoten e Meldrun vs. Holanda (nºs 48/1993/444/553, julgados em 22/11/1994) Em tradução livre, “ o artigo 6 para. 1 (6-1) obriga os Estados Partes a organizar seus sistemas judiciais de forma a que suas Cortes possam realizar cada um de seus requerimentos (compreenda-se: provimentos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 passam-se anos, décadas, e, por incrível que pareça, um século, e o indivíduo, ou melhor sucessor processual, sem qualquer resposta a sua postulação. Exemplificando a morosidade judiciária brasileira, salta nos olhos, a demora na tramitação de um processo, que, seria cômico senão fosse trágico, sua tramitação esta ao longo dos 70 anos. O caso em questão é referente a um inventário de Maria Eduarda Correa Simas, falecida em 31 de agosto de 1935, cuja abertura ocorreu em 29 de agosto de 1938, pelo inventariante Justino Correia Simas. O processo nº 039/1.03.0032437-6, tramita na 2ª Vara da Comarca de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. Com a demora no tramitar do processo, as consequências foram enormes, tendo os herdeiros diretos falecidos, os bens foram todos alienados, ou cedidos onerosamente, ocorreu o esbulho de [área rural de terceiros, o que determinou, por parte dos prejudiciados, pedidos de providências policiais, bem como a abertura de processo criminal. Situação pior aconteceu em Rio Grande. O processo de inventário do Comendador Domingos Faustino Correa é, com certeza, o feito que mais tempo demandou na Justiça do Rio Grande do Sul. O Comendador, no leito de morte, mandou redigir seu testamento em 11 de junho de 1873, vindo a falecer 18 dias após. O inventário deu entrada em Juízo em 27 de junho de 1874. O processo tramitou em Juízo por 107 anos, gerando uma verdadeira corrida atrás do “ouro” deixado pelo inventariado. O processo somente foi concluído a partir da designação do juiz Carlos Roberto Nunes Lengler, especialmente para presidir, sanar e julgar o feito. Todos os mais de 1.200 volumes processuais foram levados a Porto Alegre no início dos anos 80, e, seis meses depois, o processo teve a sentença (SPENGLER, 2008). [grifo nosso] O direito processual carece ser compreendido a partir de uma premissa da “humanização” da realidade, ou seja, deve-se trazer o juiz ao mundo concreto, para participar das angústias, sofrimentos, amor, ódio, fome e frio, experimentados pelo “humano litigante”, que na maioria das vezes, é esquecido à margem do Estado Democrático de Direito, em face da letargia agonizante enfrentada pela espera de uma sentença. Na contramão da história, antigos precedentes do Supremo Tribunal Federal, contrariam a sistemática da processualística aqui sustentada. No Recurso Extraordinário nº 32.518-RS, ao qual foi negado provimento, o Supremo Tribunal Federal afirmou que “a atividade jurisdicional do Estado, manifestação de sua soberania, só pode gerar responsabilidade civil quando efetuada com culpa, em 8 detrimento dos preceitos legais reguladores na espécie” . Posteriormente, O Tribunal Pleno, por maioria, definiu que “o Estado não civilmente responsável pelos atos do Poder Judiciário, a não ser nos casos expressamente declarados em lei, porquanto a administração da justiça é um dos privilégios da soberania. Assim, pela demora da decisão de uma causa responde civilmente o Juiz, quando incorrer em dolo ou fraude, ou ainda, sem justo motivo

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Jurisprudência: Supremo Tribunal Federal, RE n° 32.518-RS, Segunda Turma, Rel. Min. Aliomar Baleeoro, data do julgamento. 21/06/1996

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 recusar, omitir ou retardar medidas que deve ordenar de ofício ou a requerimento da 9 parte (artigo 121 do Código de Processo Civil)” De forma poética sintetiza Cecília Meireles, o sentimento desprezível da Corte Suprema, para com o tema da “razoabilidade duração do processo”: “Há pessoas que nos falam e não escutamos, Há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam”.

2. HIPÓTESE DE REFLEXÃO

A promulgação da Emenda nº 45 de 2004, inseriu em nosso sistema jurídico a ideia de prazo razoável do processo, através do inciso LXXVIII, do artigo 5º de nossa Constituição Federal, advindo daí diversas modificações na seara processual, com o intuito de conferir maior celeridade a prestação jurisdicional. Ou dito de outra forma, os poderes da República Federativa do Brasil, pretendem exercer de forma mais célere o monopólio da jurisdição. Para tanto, em 13 de abril de 2009, os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, assinaram o II Pacto Republicano por um Sistema de Justiça mais 10 acessível, ágil e efetivo”. É certo, que dentre os objetivos consignados no referido pacto, o denominado “objetivo II” revela a preocupação do Estado brasileiro em buscar instrumentos que permitam uma prestação jurisdicional mais célere. 11

Nas palavras de Cássio Schneider Bembenuti : “preocupação com a celeridade do processo passa a ser um vetor da atuação do judiciário brasileiro. O tempo aqui, visto como uma construção social permeia a atuação do judiciário que precisa se adaptar a ideia de celeridade. Ao assumir a necessidade de aprimorar a prestação jurisdicional efetivando o principio constitucional esculpido pela Emenda Constitucional 45, que versa acerca da razoável duração do processo, o Estado brasileiro, estabeleceu como verto de seu poder judiciário, a preocupação de dar maior celeridade a resolução de demandas que chegam ao mesmo”.

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Recurso Extraordinário nº 70.121 – MG , Rel para o acórdão Min. Djaci Falcão, in RTJ 64/689. I – acesso universal à Justiça, especialmente dos mais necessitados; II – aprimoramento da prestação jurisdicional, mormente pela efetividade do princípio constitucional da razoável duração do processo e pela prevenção de conflitos; III – aperfeiçoamento e fortalecimento das instituições de Estado para uma maior efetividade do sistema penal no combate à violência e criminalidade, por meio de políticas de segurança pública combinadas com ações sociais e proteção à dignidade da pessoa humana. 10

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Cássio Schneider Bembenuti. Artigo escrito na Revista Academia Brasileira de Direito Processual Civil: “A previsão Constitucional da “Razoável Duração do Processo” e o artigo 4º do Projeto de Lei 166/2010 – A Celeridade Como Vetor da Jurisdição no Brasil”)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Não se pode negar o caráter inovador da Emenda Constitucional de nº 45, quando equiparada, a um Poder Judiciário anacrônico, de uma política social ineficaz, reminiscência do Brasil colônia, que trasladou para o Império, perpetuando-se na República, gerando uma crise de identidade na prestação da tutela jurisdicional.

Não obstante o novel dispositivo constitucional, contemporânea também deve ser sua interpretação, especialmente antenada ao neoconstitucionalismo, o qual, grosso modo, excluíra uma abstinência Estatal em prol da celeridade processual, mas sim que este ente exerça com a Eficiência o Poder Jurisdicional que se reservou, o que, data venia se mostra longínquo neste momento. 12

O Ministro Joaquim Barbosa , hodiernamente, Presidente do Supremo Tribunal Federal, em seu discurso de posse, afirma: “o juiz é um produto do seu meio e do seu tempo", condenando seu nefasto isolamento numa "torre de marfim" da lide. Nesta mesma ocasião, reconhece o Ministro à existência de "um grande déficit de Justiça entre nós", defendendo a clareza de critérios para ascensão de juízes na carreira, para evitar que magistrados se tornem devedores de políticos. Aliás, esta perniciosa “troca de favores”, data dos tempos do Império. Não se desconhece que a busca por uma jurisdição mais célere deve ter como paradigma a observância das garantias fundamentais conquistadas ao longo de séculos pela história da humanidade. Com efeito, deve-se buscar o equilíbrio entre a realização da justiça, monopólio da jurisdição por parte do Estado e sua efetivação. Tomando-se por base o artigo 5º, inciso LXXVIII, este deve ser alvo de muita reflexão pela processualística contemporânea, entre eles a resposta sobre questões como qual o real alcance da expressão “razoável”, ou ainda, o que significam “os meios que garantam sua celeridade” no contexto colocado no referido inciso. E mais, realmente, a duração razoável do processo e a celeridade processual podem ser considerados como um mesmo princípio, como aponta a parte da doutrina nacional? Se sim, qual o motivo que levou o constituinte a incluir no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal a partícula aditiva e entre as expressões em evidência (interpretação gramatical)? Será um mero descuido legislativo? Seria razoável a fixação de um limite temporal à concretização do processo e celeridade processual uma forma de interpretação das normas processuais e/ou procedimentais? Ainda neste contexto, quiçá o mais intrigante, é o questionamento que o jurisdicionado (sujeito concreto litigante) não deixa de fazer, é se ele, que já com um 12

Partes extraídas do discurso proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa, quando de sua posse a Presidência do Supremo Tribunal Federal – através do sítio eletrônico: ttp://exame.abril.com.br/brasil/politica/noticias/barbosa-assume-stf-e-diz-o-juiz-e-um-produto-doseu-meio.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 processo em andamento no Poder Judiciário há vários anos, depois de ser efetivamente catalogado como direito fundamental na Constituição Federal, o princípio da duração razoável do processo, pode aqui entendido, em caráter preliminar, como titular do direito de ação, aquele se sente prejudicado pela intempestiva tutela jurisdicional, ser indenizado pelo demasiado tempo processual? 13

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Seria o projeto de Lei nº 7.599 de 2006 , o qual pretendia regular a indenização da parte pela intempestividade processual, uma solução adequada para nossa processualística contemporânea? Tais reflexões deságuam no enfrentamento da hipótese sobre a indenização auxiliará ou não no combate à intempestividade do processo?

3. OBJETIVOS

Com efeito, o presente trabalho buscará promover a abertura de um novo paradigma sobre a necessidade de se caminhar rumo a um “direito novo”, fruto de um “novo Poder Judiciário”, que privilegie a humanização do direito, que seja menos formal e mais preocupado com a concreta pacificação social, que seja mais plural, descentralizador e propiciando maior adequação entre o litígio e a sua efetiva solução. Cumpre trazer a baila, a critica feita por Greco, em face da hodierna performance do Poder Judiciário: “No controle dos atos administrativos, o Judiciário, sem qualquer planejamento e sem qualquer estratégia, interfere em políticas públicas e, a pretexto de tutela de direitos fundamentais, substituí os juízos de conveniência e oportunidade da Administração” (2012, p. 282). Mostra-se de todo razoável a fixação de um limite temporal para a concretização da tutela jurisdicional, responsabilizando de forma objetiva o Estado e, se for o caso, de maneira subjetiva, o Magistrado, se e quando por sua desídia na condução do processo, ocorrer o perecimento do direito, deixando de aproveitar ao Estado e ao próprio juiz, argumentos vagos como o de que o Poder Judiciário encontra-se sobrecarregado, ou ainda, há falta de juízes, ou ainda, a estrutura é precária, o que se afasta da ideia de uma Sociedade Fraterna, mas se aproxima do egocentrismo. Em relação aos pretextos e desculpas proferidas pelo Judiciário brasileiro, para 15 “tentar” justificar a tutela jurisdicional intempestiva, João Ubaldo Ribeiro , através de

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O presente projeto visa garantir os seus recursos necessários à implementação do disposto no artigo 5º, inciso LXXXVIII, da Constituição Federal, que assegura a todos a razoável duração dos processos que sejam parte, fixando, ainda, a regra da responsabilidade objetiva nesses casos e o valor máximo das indenizações a serem concedidas. 14 Projeto de lei de autoria do Deputado Federal Carlos Souza do Partido Progressista – PP. 15 João Ubaldo Ribeiro é escritor e colunista do Jornal “Estadão”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 seu personagem Jacob Branco, resumem: “são apenas bolodório vaselinório para o 16 enfiatório de mais um sesquipedal supositório no sofrido subilatório dos suplórios” . Nem se diga alhures, que “o processo eletrônico” dará ensejo a um processo mais humano, já que tornará, ainda mais, distante o prestador da tutela jurisdicional do sujeito concreto litigante. Não se desconhece a máxima de Montesquie, “bouche de la loi (o juiz deve ser a boca da lei), com a obrigação de ao proferir decisões “verbalizar sentimentalidade”, efetivando os valores humanistas, ou dito de outra forma, subjetivando a norma, conferindo-lhe alma. Em terrae brasilis, o “processo eletrônico”, não terá o condão de produzir a tão sonhada celeridade processual, já que falta-lhe o pressuposto indispensável, a conscientização do magistrado de que sua atividade funcional é externar um direito “vivo”, real e não meramente formal.

4. REFERENCIAL TEÓRICO

O presente trabalho busca vislumbrar novos horizontes teóricos e práticos na construção de alternativas que levem os cidadãos/jurisdicionados a alcançarem uma verdadeira justiça. Por meio de estudos transdisciplinares e de uma metodologia diversificada (pela utilização dos métodos hipotético-dedutivo, indutivo, comparado e crítico), põe-se em evidência a necessidade de se enfrentar a crise vivenciada atualmente pelo Poder Judiciário, cujo mal maior reside na morosidade processual, fonte de incertezas, angústias, injustiças e instabilidade social. O direito a uma razoável duração processual, considerado como um genuíno direito fundamental instrumental, é o meio pelo qual todos os demais direitos de índole substancial, fundamentais ou não, materializam-se no plano da vida. Dessa forma, a inefetividade desse direito pode acarretar a negação de todos os demais direitos largamente positivados no ordenamento jurídico brasileiro, bem como propiciar um retorno progressivo à autotutela (em virtude da crescente litigiosidade contida no seio social). Segundo Carmona (1989, p. 24), quanto à realidade brasileira, observa-se: (...) o que se vê hoje no Brasil é a inadequação dos instrumentos colocados à disposição daqueles que se dispõem a iniciar uma peleja judiciária: o processo é lento e caro, o rito inadequado, os poderes do juiz são insuficientes ou, o que é pior, não são utilizados pelo magistrado de forma dinâmica (como seria desejável). Por outro lado, os próprios cidadãos não estão devidamente conscientizados da respeito de seus direitos: muitos relutam em propor demandas por ignorância, por comodismo ou por motivos econômicos (e isto não é “privilégio” exclusivo dos brasileiro). 16

João Ubaldo Ribeiro. Embargando cá, embargando lá. Artigo escrito no Jornal “Estadão”, no dia 22/09/2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Para além desse aspecto, como facilmente se denota da situação brasileira, a longa tramitação dos processos judiciais acarreta não somente o inacesso à justiça (em sentido lato), mas constitui um terrível fator de injustiça social. Isso porque a resistência de pessoas hipossuficientes aos efeitos deletérios da intempestividade da prestação jurisdicional é muito inferior se comparada a de pessoas da classe dominante. Nesse sentido, o processo judicial evidencia um jogo de poder em todos os níveis (econômico, intelectual, social, cultural), no qual prevalece o poder do capital. Frise-se novamente, que “o processo eletrônico”, implantado em alguns estados brasileiros, não é sinônimo de celeridade e de tutela tempestiva, ou, ainda, contribuirá para um processo mais humano. Observa-se, através de um outro ângulo, o distanciamento ainda maior, que resultará entre o prestador da tutela jurisdicional e o sujeito concreto litigante. Neste aspecto vale o alerta de Dallari (1996, p. 145): Em relação aos juízes esse processo de distanciamento do comum do povo é bem evidente. Ele esta presente na linguagem rebuscada e no tratamento cerimonioso, falsamente respeitoso, previsto na própria legislação e que tem efeito real de criar mais temor do que respeito. Quem presenciar um interrogatório de uma pessoa simples numa audiência judicial vai verificar que o juiz e o depoente, muita vezes, tem dificuldade para responder as perguntas do juiz, em grande parte porque não consegue entender o que lhe esta sendo perguntado e, por vergonha ou temor, não revela essa dificuldade.

Consequência inafastável desse fato é a restrição ao exercício da cidadania causada pela morosidade processual a essa parcela da sociedade, que se encontra às margens do Direito e da Justiça, uma vez que impossibilitada ou, no mínimo, desestimulada a lutar por seus direitos, até mesmo por aqueles inerentes à própria dignidade humana, que de forma frequente são ameaçados e violados. Nesse grave cenário de desigualdades, a pesquisa visa questionar criticamente os rumos tomados pelo Estado brasileiro para a solução desse problema social, bem como desvelar novos caminhos e possibilidades para a efetivação do direito fundamental à razoável duração do processo (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal) e, de forma mais ampla, para uma pretensa revolução democrática da justiça. Como interpretar uma norma segundo os “fins sociais a que ela se dirige” (artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) se o Magistrado não conhecer efetivamente e realmente a Sociedade e os cidadãos que a compõe? A resposta é inarredável, NÃO É POSSÍVEL! Deve-se ainda ater ao fato de que o Poder Judiciário possui o dever de prestar a tutela jurisdicional, atento para as realidades sociais, ou dito de outra forma, colocarse na posição do sujeito concreto litigante, pois, a demora na concessão de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 determinada pessoa, implica, sem dúvida alguma, na negação da condição de humano, para quem busca a solução de um conflito. Neste sentido, PELLIZZARI (2006, p. 27) esclarece: É visível, atualmente, o predomínio do Direito positivo muitas vezes afastado da realidade que se apresenta. Assim, torna-se utopia a ideia de que o Direito deve buscar Justiça: leis são criadas de acordo com os interesses de uma classe restrita de pessoas. O Poder Judiciário encontra-se afastado do anseio da coletividade; sua neutralidade e formalidade se sobrepõem à proteção do Direito e, acima de tudo da Justiça, deixando de lado as reais necessidades e desejos da sociedade brasileira.

Não se pode perder de mira, que sociedade contemporânea é detentora de um amplo acesso às informações, e por isso sua evolução é rápida, sem que o amparo legal consiga alcançar os anseios da população, oferecendo respostas rápidas e ideais aos problemas e conflitos decorrentes de referidas transformações. Esclarece ainda Eduardo Cambi, que “o tempo presente é marcado por muitas mudanças. A sociedade tecnológica e de consumo transforma tudo rapidamente. O direito vive uma crise existencial, tendo dificuldades de promover valores essenciais como a segurança e a justiça” (2009, p. 18). Neste diapasão, Cárcova (1998, p. 175): Desenvolvimento tecnológico que habilita outras formas da comunicação humana; comunicação que acelera e transforma os fluxos, produzindo impactos nas percepções e nos processos cognitivos; circulação do poder e do controle; risco e possibilidade, eis que aqui outra dimensões da complexidade na qual estamos imersos e que supõe desafios de natureza muito diversa, entre outros, desafios para as conhecidas estruturas institucionais de regulamentação das relações sociais; desafios, por conseguinte, para a teoria e os teoria e os teóricos do direito. E, para não perder o rumo, desafios, por último, para a compreensão de tão sofisticados processos e das normas de legalidade que lhes dizem respeito, que se tornam, por razões estruturais, progressivamente mais opacas.

Assim é que, novos sujeitos litigantes surgem a cada dia, as relações sociais não são estáticas, ao revés, são dinâmicas, fronteiras são rompidas, novos postos de trabalho são criados, outros são eliminados, a criatividade humana se destaca e cria novas comunicações entre os seres humanos, a medicina descobre novas doenças e novas curas, impondo, que se reviste institutos do direito, até então intocáveis e inatingíveis, com por exemplo, a questão da paternidade, diante da filiação sócio afetiva. De outro ângulo, observa-se, que na seara jurídica, impera um tradicionalismo anacrônico e sufocante que afasta o direito da realidade que se apresenta. A Justiça como ideal é ignorada e a lei parece estar em descompasso com os novos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 acontecimentos, com as novas comunicações e fatos sociais, prejudicando sobremaneira o acesso pleno à justiça. Sobre a atuação do Poder Judiciário, nos abrilhanta o célebre jurista Edinilson Donizete Machado: “Não se quer com isso afirmar que o Judiciário é a “boca da lei” somente, de forma, alguma. Na verdade, a sua função é muito nobre e essencial na atualidade, em que promove a aplicação do direito estabelecido pelas normas constitucionais” (2011, p. 143). Cumpre trazer a baila, os apontamentos de Bezerra Santos (2001, p. 101), de que as leis são feitas a determinado grupos sociais, e desta forma, excluindo outros: O ordenamento nacional carece de uma abertura maior e de flexibilidade de suas normas. Mostra-se extremamente fechado, rígido. As leis são feitas de forma a beneficiar grupos, coarctando o acesso à justiça aos menos privilegiados. Principalmente as leis processuais, extraordinariamente complexas e permissivas de mecanismos de protelação de decisões, tem transformado a justiça num sonho longínquo e inacessível às camadas mais pobres da população. O próprio ordenamento encaminha o jurisdicionado para a via judicial como quase única via de solução de seus conflitos, impedindo um verdadeiro acesso à justiça.

No mesmo sentido, os ensinamentos de Miguel Reale (1999, p. 426): Enquanto a sociedade correspondeu, em sua realidade viva, às regras contidas nos Códigos, foi natural que o juristas se satisfizesse com o problema da vigência das normas de Direito. Quando, porém, o mundo ocidental passou a ser atormentado por novas exigências – resultantes do crescimento da população, das conquistas de natureza geográfica, do quase repentino impacto de poderosas forças técnicas e econômicas -, estabeleceu-se uma ruptura entre a lei e o fato social, impondo outras soluções interpretativas, já anunciadas pelo gênio de Rudolf Von Ihering reclamando atenção para o problema do fim, como criador de todo o Direito, e o valor da luta, das energias vitais no desenrolar da experiência jurídica.

Enfim, as reflexões e ideias trazidas na pesquisa apresentam um referencial teórico inovador, capaz de fundamentar uma mudança de atitude na prestação da tutela jurisdicional, afastando-se do positivismo que mostra inadequado e desproporcional, em outro termos, as soluções dos conflitos sociais, devem ocorrer de maneira efetiva e concreta e não de maneira mecanizada, robotizada, divorciada da realidade social de nosso país.

Por derradeiro, lembre-se que importante conclusão do Jurista Brasileiro Humberto Ávila que ressalta:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade dos direitos fundamentais.” (ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Ed. 15, São Paulo: Malheiros, 2014, p. 227 e 228).

Nota-se que o Ilustre Doutrinador ressalta, em suma, que adequado é o que atinge o seu fim sem sacrificar os direitos fundamentais e é este a ratio pretendida pela razoável duração do processo e a celeridade processual, acrescido, também, a tal preocupação considerarmos que estes princípios são em verdade requisitos de eficácia de quaisquer direitos fundamentais materiais, sendo que a proteção do formalismo exacerbado processual é chacina à adequação e proporcionalidade sob qualquer prisma. Dessa forma, procurar-se-á fugir do senso comum teórico, do comumente aceito no universo jurídico, para que novos debates sejam travados, novos rumos sejam vislumbrados e, afinal, outros caminhos sejam tomados, evitando-se com isso, uma justiça “fabricada” em “tubos de ensaio”.

5. JUSTIFICATIVAS

Com efeito, todas as pessoas deveriam estar vivendo num Estado capaz de solucionar prontamente os conflitos sociais, entregando o direito substancial ao jurisdicionado por meio de uma tutela eficaz e tempestiva. Ao se conhecer as nuances tortuosas e burocráticas do Judiciário, é evidente que tais colocações só existem no papel, por abstração. O Poder Judiciário, assim como o positivismo jurídico de uma maneira geral, vive uma profunda crise de identidade, seu arquétipo não consegue solucionar os conflitos advindos de uma sociedade de massa, heterogênea e desigual, já que sempre foi pensado sobre o paradigma da igualdade formal. Sobre o tema, são lucidas as palavras de Wolkmer (1997, p. 67), ao tratar da crise do paradigma do positivismo jurídico, afirma que:

A crise do monismo jurídico estatal enquanto paradigma hegemônico reside no fato de que suas regras vigentes não só deixam de resolver os problemas, como ainda “não conseguem mais fornecer orientações, diretrizes e normas capazes de nortear” a convivência social. Ora, não tendo mais condições de oferecer soluções, o modelo jurídico dominante apresenta-se como a própria fonte privilegiada da crise e das incongruências. O reconhecimento de que os pressupostos essenciais do

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 arcabouço jurídico estatal de inspiração liberal-burguesa estão se tornando cada vez mais inadequados e pouco eficazes, vem comprovar que estamos vivendo uma fase de transição paradigmática [...]

É notório que o Judiciário não acompanha a dinâmica social e, por isso, permanece impotente diante das novas exigências sociais, o que gera uma privação coletiva de direitos e, consequentemente, uma massificação de conflitos sem uma solução adequada, trazendo a tona a falsa sensação de que a solução adviria da autotutela, exemplo claro, são as recentes e violentas manifestações de rua pelas principais capitais. Dessa forma, pode-se afirmar, sinteticamente, que a excessiva demora na prestação jurisdicional é uma das grandes fontes de injustiça e de exclusão social encontrada na realidade contemporânea, razão pela qual urge a necessidade de estudos constantes, atualizados e aderentes aos problemas vividos pela sociedade (principalmente pela parcela mais desfavorecida economicamente) em relação a toda essa problemática. De nada adianta construir um enorme arcabouço jurídico tecnológico (processo digital), que abarque largamente os direitos materiais, se os magistrados tem por compreensão que o direito é aquilo que se subsume a norma positivada. Tal raciocínio, pode ser visualizada com uma “pérola no pescoço de um cisne”. Ademais, assim como o processo deve ser tido como um instrumento em relação ao direito substancial tutelado, o direito à razoável duração do processo deve ser considerado como um direito fundamental instrumental, porquanto sua inefetividade implica a inefetividade de todos os outros direitos fundamentais. Negar a sua realização faz com que todos os outros direitos conquistados duramente ao longo da história também sejam negados. Evidente que a morosidade forense é inadmissível, vez que impede a concretização dos direitos fundamentais, de forma efetiva. Logo, a razoável duração do processo instrumentaliza aspecto de direito fundamental. Assim, a presente pesquisa buscará mecanismos necessários a instrumentalizar o necessário equilíbrio entre o decurso do tempo e as técnicas procedimentais garantidoras dos direitos fundamentais. Forçoso é concluir, a necessidade de inovações e uma reestruturação do sistema de justiça, para que seja adequado às demanda contemporâneas, de modo a assegurar mais eficiência ao próprio sistema de justiça e maior eficácia às dinâmicas de inclusão e participação popular. A proposito, lúcidos os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos (2007, p. 42/43): A morosidade sistemática é aquela que decorre da burocracia, do positivismo e do legalismo. Muitas das medidas processuais adaptadas recentemente no Brasil são importantes para o combate à morosidade sistêmica. Será necessário monitorar o sistema e ver se essas medidas estão a ter realmente a eficácia, mas há morosidade

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 activa, pois consiste na interposição, por parte de operadores concretos do sistema judicial (magistrados, funcionários ou partes), de obstáculos para impedir que a sequência normal dos procedimentos desfechem o caso.

Referendando o entendimento acima, ensina Marinoni (2007, p. 17):

É chegado o momento do “tempo do processo” tomar o seu devido lugar dentro do direto processual civil, uma vez que o tempo não pode deixar de influir sobre a elaboração dogmática preocupada com a construção do processo justo ou com aquele destinado a realizar concretamente os princípios contidos na Constituição Federal.

Vê-se, pois, que a duração razoável do processo é tema relevante a ensejar a atenção de juristas e demais operadores do direito, pois transforma a prestação da tutela jurisdicional em utopia, além de impedir o ideal do Estado Democrático de Direito, qual seja, a realização da justiça (HOFFMAN, 2008). Neste aspecto, a lição de Dinamarco (1999, p. 232) alerta: [...] o tempo é inimigo do processo e que contra ele, para evitar os males que pode causar, o juiz deve estar em estado permanente de guerra entrincheirada, e ainda, à boa técnica processual incumbe o estabelecimento do desejado racional e justo equilíbrio entre as duas exigências opostas, para que não se comprometa a qualidade do resultado da jurisdição por falta de conhecimento suficiente, nem se neutralize a eficácia social dos resultados bem concebidos, por importunidade decorrente da demora.

Infere-se da leitura do inciso LXXVIII do artigo 5º, que a Constituição Federal se preocupou em demasia no que tange à questão envolvendo a razoável duração do processo, por trazer relevantes consequências às garantias fundamentais – ainda que não expressas – necessárias à concretização de tal direito no plano. Destarte, o dispositivo retromencionado deve ser interpretado como um direito de todos a uma demanda em tempo justo (administrativa e judicial), garantida a utilização de todas as técnicas necessárias à celeridade na tramitação dos mesmos (alteração e abreviação de procedimentos, supressão de formalidades, aproveitamento de atos processuais, emprego de técnicas de coerção e sub-rogação, concessão de tutelas de urgência, ampliação dos efeitos da coisa julgada, vinculação das instâncias inferiores às decisões das cortes superiores, represamento e restrições aos recursos, etc.). Roga-se, também, do Poder Legislativo leis hábeis à abreviar adequadamente e proporcionalmente a marcha processual, com cunhos mais “utilitarista”, ou seja,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 normas verdadeiramente “instrumentais” (instrumentos ao instrumento do direito material) ao bem-estar do jurisdicionado litigante. Com efeito, imperioso se faz tecer algumas considerações sobre o direito de acesso à justiça, ou de acesso à ordem jurídica justa, como analisado, deve ser entendido como um verdadeiro direito fundamental, positivado no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. Contudo, apesar de possuir um caráter de fundamentalidade, o direito de acesso à justiça deve ser encarado como um direito de importância ímpar na ordem constitucional brasileira. Isso porque esse direito deve ser visto como um verdadeiro “direito fundamental instrumental”, uma vez que visa garantir efetividade e força normativa aos demais direitos fundamentais e, de forma ampla, a todos os direitos fundamentais. Destarte, a negação do direito fundamental de acesso à justiça pode ser encarada como a negação a todos os demais direitos fundamentais insculpidos no ordenamento jurídico pátrio, pois uma vez ameaçados ou violados tais direitos, sem a possibilidade de se efetuar o acesso à justiça (nos moldes do que foi visto no tópico supra), seus detentores quedariam inertes e sem meios de promover a sua defesa, já que, em regra, é vedada a utilização da autotutela. Eis o porquê de o direito de acesso à justiça ser considerado um direito fundamental instrumental. Além dessa importante constatação, crê-se que o direito fundamental de acesso à justiça pode ser visto de forma ainda mais ampla, relacionando-o ao próprio exercício da cidadania. Mauro Cappelletti (1988, p. 10-12), de certa forma, corrobora com o que aqui foi exposto ao expor que: O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos. Esses novos direitos humanos, exemplificados no preâmbulo da Constituição Francesa de 1946, são, antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, quer dizer, realmente acessíveis a todos, os direitos antes proclamados. Entre esses direitos garantidos nas modernas constituições estão os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Dessa forma, o processo visto pelo prisma do instrumentalismo, deve ter como foco o direito material, razão pela qual deve o ordenamento pátrio prever mecanismos hábeis a promover uma real tutela dos direitos, de acordo com o caso concreto levado à apreciação do Judiciário. O processo, portanto, deve ser estruturado com vistas ao direito substancial tutelado, e não o contrário. Dessa forma, por ser a sociedade altamente dinâmica, na medida em que se passa a exigir novos mecanismos processuais, o Estado necessariamente deve aparelhar-se de instrumentos capazes de satisfazer tais exigências, sob pena de obstaculizar o acesso à justiça. Logo, deve o sistema processual atentar-se para o surgimento de novos direitos, propiciando meios e instrumentos para a sua efetivação. Ao se somar esses fatores ao fenômeno da explosão de litígios judicializados, gerado principalmente pela ação de determinados entes ligados ao próprio Estado, chega-se à realidade brasileira contemporânea: um Poder Judiciário moroso, com altos custos (não somente de taxas e emolumentos, de honorários advocatícios, mas, principalmente, os relativos aos custos para a manutenção do estado de litispendência), distante da realidade social, de índole privatista (ligado principalmente a lides interindividuais e patrimoniais) e, no mais das vezes, incapaz de proporcionar a adequada e tempestiva solução aos litígios submetidos à sua apreciação. Por tais razões, chega-se à consideração de que os direitos fundamentais de acesso à justiça e à razoável duração do processo são negados a quase toda a população, o que significa dizer que a maior parcela do povo brasileiro não consegue exercitar ou defender seus direitos, ou ainda, como visto, nega-se aos cidadãos brasileiros o direito de exercitar a própria cidadania. É necessário, destarte, rever conceitos e valores, procurando efetivar a garantia de acesso à justiça pela busca de novos caminhos para que todos possam ter seus direitos discutidos e apreciados judicialmente, se o caso, ou de outra maneira, por meios descentralizados de resolução de controvérsias, se estes se mostrarem como o melhor caminho. Dessa maneira, é possível sustentar que a particularidade da realidade brasileira, assim como ocorre na maior parte dos países latino-americanos, apresenta sintomas que indicam a necessidade de reformas para a promoção de um efetivo e mais democrático acesso à justiça. E, realmente, muitas são as tentativas empreendidas no sentido de resolver, ou ao menos amenizar, a crise sofrida pelo Poder Judiciário. Como será visto adiante, são inúmeras as reformas legislativas tendentes a proporcionar uma maior eficiência e agilidade dos processos judiciais. Algumas reformas estruturais, ainda que em menor número, também vêm sendo implementadas com a mesma finalidade, contudo sem alcançarem os seus reais escopos. Dessa forma, pode-se afirmar, sinteticamente, que a excessiva demora na prestação jurisdicional é uma das grandes fontes de injustiça e de exclusão social encontradas na realidade contemporânea, razão pela qual urge a necessidade de estudos constantes, atualizados e aderentes aos problemas vividos pela sociedade (principalmente pela parcela mais desfavorecida economicamente) em relação a toda essa problemática.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 De nada adianta construir um enorme arcabouço jurídico, que abarque largamente os direitos materiais, se não existirem instrumentos efetivos para a sua concretização no seio social, ou melhor, se não possibilitarem o exercício dos direitos substanciais por todas as camadas sociais, de forma igualitária. Ademais, assim como o processo deve ser tido como um instrumento em relação ao direito substancial tutelado, o direito à razoável duração do processo deve ser considerado como um direito fundamental instrumental, porquanto sua inefetividade implica de todos os outros direitos fundamentais. Negar a sua realização faz com que todos os outros direitos conquistados duramente ao longo da história também sejam negados. Dessa forma, para que se possa futuramente propor uma possível solução (ou simplesmente uma ação) para os problemas aventados, necessário fazer uma abordagem específica sobre os problemas em destaque, trabalhando os temas da crise do Poder Judiciário (relacionado à própria estrutura do Judiciário) e do descesso à justiça (ligado à morosidade processual). É o que se põe em evidência nos próximos tópicos. Cabe ainda ressaltar que as normas que tratam dos direitos fundamentais têm aplicação imediata, isto é, comportam aproveitamento mesmo que desacompanhadas de integração infraconstitucional. Eventuais omissões do ordenamento jurídico não impedem concretização dos direitos fundamentais, valendo o operador do direito, em casos, dos princípios constitucionais. A declaração de direitos sociais deve ser acompanhada da criação de mecanismos que, na prática, lhe outorguem aplicabilidade e efetividade, conforme 17 preleciona Eduardo Cambi “a efetividade concerne à implementação do programa finalístico que orientou a atividade legislativa ou a concretização do vínculo meio fim [...]”. È certo que o Poder Executivo e o Poder Legislativo encontram-se comprometidos com uma tutela jurisdicional em um menor tempo possível, e, na eventual falha de um desses poderes, cabe ao Poder Judiciário a máxima efetividade possível e, ainda, de não aplicar atos normativos que violem os direito fundamentais. Desta forma, a atuação do Poder Judiciário deve sempre estar atenta à necessidade de harmonização das normas constitucionais, mas, em última análise, sempre há de prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana. Forçoso é concluir que prazo razoável para duração do processo pode ser obtido, entre outros, pela fiscalização do comportamento processual dos sujeitos concretos litigantes, sancionando-os quando pratiquem condutas abusivas de seu direito, como por exemplo, pleitos abusos ou de protelações indevidas. Revela notar ainda, que a demora na prestação jurisdicional ocasionada pela conduta da parte que não foi devidamente sancionada ou reprimida pelo juiz pode

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CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário.P. 18.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 ensejar a responsabilidade - objetiva do Estado já que excede o chamado tempo razoável do processo (reasonable time) e afeta a própria crença da sociedade na tutela jurisdicional. Como já bem disse CALAMANDREI (1996, p. 73): Debaixo da ponte da justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações, todas as opiniões públicas, todos os interesses sócia is. E seria bom que o juiz fosse capaz de reviver em si, para compreendê-los, casa um desses sentimentos: experimentar a prostração de quem rouba para matar a forme ou o tormento de quem mata por ciúme; ser sucessivamente (e, algumas vezes, ao mesmo tempo) inquilino e locador, meeiro e proprietário de terras, operário em greve e indústria.

Por fim, não restam dúvidas de que os juízes, no momento da prolação de uma tutela jurisdicional, devem-se ater principalmente na condição social da parte, ou seja, colocar-se diretamente na posição do “sujeito concreto litigante”, para que posse refletir sobre a demanda, levando em consideração a posição social do agente, bem como, compreender suas dores e angustias, para estar realmente pronto a conceder a efetiva tutela num mínimo tempo possível. Deste modo, em decorrência de vivermos em uma era de assaz velocidade e transformações, e o Poder Judiciário ainda contar com seus processos intermináveis, sem salvaguardar, qualquer direito a duração razoável do processo, é sem sobra de dúvidas, logica a afirmação de que o Estado é responsável pela intempestividade do processo, frente ao seu Judiciário. Deve este responder processo autônomo de indenização pelos danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes do dissabor sofrido pelo tempo desnecessário suportado pelo sujeito concreto litigante. Destarte, é ilógico e irracional negar, sem reflexão alguma, que o Estado é responsável pela irrazoável duração do processo, em que pese, nossos tribunais, inclusive, a Corte Suprema, ser acanhada para imputar a responsabilidade decorrente da letargia da tutela jurisdicional. Cumpre trazer a baila, julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, demonstrando a omissão do Judiciário em face da responsabilização em faze da tutela jurisdicional intempestiva: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. PRELIMINAR REJEITADA. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO PROCESSO REFORMADA. AUSÊNCIA DE PROVA DA OMISSÃO. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. PRELIMINAR - Rejeitada a preliminar de suspensão do processo enquanto tramita no STF recurso sobre o mesmo tema. - SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO PROCESSO Ao contrário do decidido, a causa de pedir é mais ampla, abrangendo todo o andamento processual. Tanto é assim que a parte refere-se à data do ajuizamento da ação como marco do prazo atribuído à demora na prestação jurisdicional. Analisa-se, portanto, a demora na prestação jurisdicional, sob a ótica do princípio da duração

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 razoável do processo, o que compreende o momento desde a distribuição da ação até o consequente pagamento do precatório. Sentença de extinção do processo por ilegitimidade passiva do Estado reformada. Aplicação do art. 515, § 3º, do CPC. RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR OMISSÃO - Tratando de responsabilidade civil do Estado por omissão, aplica-se a teoria da responsabilidade civil objetiva, segundo a qual deve o cidadão comprovar a omissão, o dano e o nexo causal. A omissão capaz de gerar o dever de indenizar está relacionada com o descumprimento de um dever jurídico de agir. Exigibilidade de conduta, examinada a partir do princípio da proporcionalidade e das situações do caso em julgamento. - SITUAÇÃO DO CASO CONCRETO - Quando se fala em razoável duração do processo, não se pode perder de vista que deverão ser observadas as peculiaridades de cada caso, assim considerado o grau de complexidade da demanda, a necessidade de instrução e o devido contraditório. Neste sentido, a razoável duração do processo é um princípio que deve ser buscado na relação entre questão de direito e questão de fato. Na situação dos autos, entendo que não ficou demonstrada a demora injustificada por desídia na condução do processo. A ação movida pela ré contra o Município de Canoas foi proposta no ano de 1999. Após todos os trâmites, no primeiro e segundo graus, o processo foi baixado no ano de 2002. Examinando o período de tramitação do feito, com seus incidentes normais, bem como considerando a necessidade de sempre salvaguardar o contraditório, não vislumbro violação da duração razoável do processo. Ocorrências normais da tramitação processual, sem nenhum elemento que possa caracterizar o alegado atraso atribuído ao órgão jurisdicional estadual. Em consulta junto ao site desta Corte, igualmente foi possível verificar que a apresentação do Precatório nº 57088 ocorreu em 15.12.2005, com orçamento correspondente ao ano de 2007. O Município de Canoas valeu-se do regime especial de pagamento. O depósito foi efetuado no mês de maio de 2010. O pagamento ocorreu em data de 28.06.2011, por conta da observância da ordem cronológica, cuja regra tem assento constitucional e aplica-se ao regime especial de pagamento, destinado para aqueles municípios que em 09.12.2009 tinham precatórios em atraso. Por este regime o município devedor deveria efetuar o pagamento de suas dívidas em até quinze anos. Ausência de ato ilícito por parte do Estado do Rio Grande do Sul. Ação indenizatória julgada improcedente. PRELIMINAR REJEITADA APELAÇÃO PROVIDA PARA REFORMAR A SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO PROCESSO. AÇÃO 18 JULGADA IMPROCEDENTE . Logo, nos parâmetros constitucionais, o Estado deve indenizar os danos decorrentes de atividades desempenhadas por seus agentes, competindo-lhe, após regularmente indenizar o lesado, voltar-se contra a pessoa causadora do dano, via direito de regresso, na qual procurar-se-á aferir eventual dolo ou culpa deste, com o que, restando mencionados elementos anímicos comprovados, estará o agente obrigado a ressarcir aos cofres públicos o que foi gasto com a indenização da vítima. Antes de justificarmos a negligência jurisdicional por intermédio do princípio da “esfera do possível”, há que se coroar a dignidade da pessoa humana donde se provêm todos os outros direitos fundamentais. 18

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - Apelação Cível Nº 70048722722, Nona Câmara Cível, Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Julgado em 30/05/2012

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Finalmente, não se pode olvidar que os atos do magistrado representam, primordialmente, atos do próprio Estado, em nome de quem age, de tal sorte que eventual agir doloso ou culposo dá ensejo à responsabilização do ente estatal de forma objetiva, a ser fundamentada ou na teoria do risco administrativo ou na teoria da falha do serviço. A culpa ou dolo do Magistrado deve ser aferida por ocasião do exercício do direito de regresso, a ser levado a efeito após a devida indenização dos danos sofridos pela vítima, com o que referida perquirição deve ser relegada a um segundo momento.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL: HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA DECISÃO DA ADPF 132/ ADI 4.277 Roger Raupp Rios1 e Lawrence Estivalet de Mello2 RESUMO

Este artigo analisa a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 132/ADI 4.277, sob a perspectiva do enfrentamento da discriminação por motivo de orientação sexual no direito brasileiro. A partir do exame dos conceitos de homofobia e heterossexismo, investiga os efeitos da ênfase no direito de família como caminho para a afirmação de direitos sexuais no Brasil, tomando como referência os fundamentos da decisão judicial proferida na ADPF 132/ ADI 4.277. Considerando os fundamentos desenvolvidos nos votos que mais se dedicaram às noções de homofobia e de homoafetividade, a análise conclui pela deficiência do enfrentamento à discriminação por orientação sexual, em virtude da do conteúdo assimilacionista do conceito de homoafetividade, veiculado na justificação do julgado. Palavras-chave: direito da antidiscriminação - discriminação por orientação sexual - direitos sexuais -– direito de família – homofobia – homoafetividade – ADPF 132/ ADI 4277

ABSTRACT

This paper analyses the Supremo Tribunal Federal ruling on ADFP 132/ADI 4.277, focusing on the sexual orientation discrimination issue in the Brazilian legal system. Taking into account the concepts of homophobia and “homoaffectivity” in the reasoning of the decision, it considers the consequences of locating the debate on sexual rights in the field of Family Law in the Brazilian experience. Examining the opinions in which the notions of homophobia and “homoaffectivity” are more 1

Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Juiz Federal e Professor do Centro Universitário Ritter dos Reis, no Mestrado Stricto Sensu (Direitos Humanos) e na Graduação. 2 Mestrando em Direito pelo PPGD/UFPR (Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná), área de concentração Direitos Humanos e Democracia. Bolsista de Mestrado do CNPq. Bacharel em Direito pela UFPEL (Universidade Federal de Pelotas).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 developed, it concludes that the reproval against sexual orientation discrimination provided by the ruling is deficient, considering the assimilationist ideology embedded in the notion of “homoaffectivity”. Keywords: sexual rights – family law – homophobia – homoaffectivity – ADPF 132/ ADI 4277

INTRODUÇÃO Desde a década de 1980, o Estado brasileiro é terreno de movimentações políticas em prol da diversidade sexual e dos direitos daqueles que se denominam 3 LGBTs . Os movimentos não foram em vão: na Constituição Federal de 1988 foram consagrados, como princípios fundamentais da nossa República Federativa, dentre outros, os da igualdade geral, da proibição de discriminação por motivo de sexo, da liberdade geral e da liberdade sexual. Diante disso, colocou-se o desafio da adequada interpretação destes princípios, apta a enfrentar a discriminação por motivo de orientação sexual, promovendo a concretização da igualdade geral em igualdade sexual, da liberdade geral em liberdade sexual e, em especial, da proibição de discriminação por motivo de sexo em proibição de discriminação por motivo de orientação sexual. Promulgada a Constituição de 1988, a partir de meados da década de 1990, iniciam-se de forma significativa os primeiros precedentes judiciais afirmando a proibição de discriminação por orientação sexual. Desde então, na experiência jurídica brasileira, o desenvolvimento de direitos sexuais vinculados à orientação sexual registra a adoção de duas vias: demandas acerca de direitos relativos à seguridade social e demandas no direito de família. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal firma precedente histórico neste campo. Na decisão judicial proferida conjuntamente na Arguição de Descumprimento de 4 Preceito Fundamental nº 132 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 , o tribunal enfatizou, dentre vários argumentos, a força dos direitos fundamentais da igualdade (compreendida como igualdade sexual) e da liberdade (também compreendida como liberdade sexual), ao mesmo tempo em que salientou a reprovação constitucional da discriminação por motivo de orientação sexual, lançando mão da noção de homofobia. Ao mesmo tempo, o julgado valeu-se, de modo explícito e recorrente, da ideia de homoafetividade, a fim de legitimar o enfrentamento da discriminação homofóbica, assim concretizando os direitos de liberdade e de igualdade sexuais, bem como o respeito à dignidade humana. Este artigo analisa os fundamentos presentes nos votos onde foram articuladas de modo mais explícito e extenso as noções de homofobia e homoafetividade (Ministros Ayres Britto, Celso de Mello e Marco Aurélio), voltando sua atenção e preocupação com a concretização dos direitos invocados objetivando o 3

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, segundo classificação adotada pela ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). 4 Neste trabalho, referir-se-á ao julgado como “ADPF 132/ ADI 4.277”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 enfrentamento à homofobia. Por mais relevante que possa ser, não se trata de investigar o conteúdo deste precedente histórico do ponto de vista do direito de família, mas sim de perguntar-se sobre a adequação da categoria “homoafetividade” em face do enfrentamento da homofobia. A reflexão ora desenvolvida desemboca na conclusão pela insuficiência e inadequação da ênfase na homoafetividade como estratégia argumentativa para o enfrentamento da discriminação por orientação sexual e para a concretização da igualdade e da liberdade sexuais, em virtude do conteúdo assimilacionista a ela inerente. Superar posturas assimilacionistas ao concretizar as normas constitucionais é tarefa urgente e necessária, na medida em que continuam alarmantes os dados da violência homofóbica em nosso país (como 5 atestam, por exemplo, aqueles veiculados pelo Grupo Gay da Bahia ). Para tanto, o artigo divide-se em duas partes, tendo cada um delas duas seções. O primeiro capítulo apresenta os conceitos a partir dos quais serão analisados os votos indicados no julgamento da ADPF 132/ADI 4.277. Na primeira seção deste capítulo, examinam-se o conceito de homofobia e a repercussão no debate sobre direitos sexuais e direito de família. Na segunda seção, apresenta-se uma tipologia das decisões judiciais favoráveis a direitos sexuais, mediante a identificação das mais importantes tendências presentes nas respectivas fundamentações, quadro que permitirá a análise do julgado. A segunda parte examina os votos onde as categorias “homoafetividade” (Ministro Ayres Britto) e “homofobia” (Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello) foram mais abordadas (primeira seção). A seção seguinte conclui pela deficiência no enfrentamento da homofobia, decorrente da ênfase na homoafetividade como categoria justificadora e legitimadora da proteção antidiscriminatória.

1. HOMOFOBIA, DIREITOS SEXUAIS E DIREITO DE FAMÍLIA NA JURISPRUDÊNCIA Pois a política, dado que é constituída graças a esse discurso de inteligibilidade, exige que assumamos uma posição a favor ou contra o casamento gay; mas a reflexão crítica, que com certeza é parte de qualquer filosofia e prática

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O Grupo Gay da Bahia (GGB) divulga, anualmente, relatório acerca de assassinatos de homossexuais, a partir de sistematização de notícias de jornal a respeito do tema. Segundo a entidade, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos fundados em homofobia no mundo. Foram 266 assassinatos em 2011, seis a mais do que 2010 e 118% a mais do que em 2007, quando o número total de assassinatos foi de 122. Ainda que os dados sejam passíveis de questionamento acerca de sua cientificidade, é inegável que um mesmo método, repetido em diversos anos, aponta ao menos tendências de crescimento dos índices de homofobia. Recomenda-se a análise das tendências de crescimento por ano das tabelas apontadas pelo GGB, conforme os links a seguir. No ano de 2004: ; no ano de 2009: ; e em 2010: .

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 política seriamente normativa, exige que se interrogue por que e como isso se transformou no problema, o problema que define o que irá ou não se qualificar como discurso político significativo. Por que, sob as condições presentes, a própria perspectiva de “se tornar política” depende da nossa habilidade de operar dentro da lógica binária instituída discursivamente e não se interrogar, e se empenhar em não saber, se o campo sexual é violentamente restrito pela aceitação desses termos? (BUTLER, 2003, p. 228)

Perguntar-se sobre o adequado enfrentamento da homofobia pela ADPF n.º 132/ ADI n.º 4.277 requer identificar qual a compreensão desenvolvida acerca desta modalidade de discriminação, bem como contrastá-la com o estado da arte sobre o tema. Como se constata pela leitura do julgamento como um todo, no que não diferem os votos referidos, a noção de homofobia é veiculada sob as perspectivas dos direitos sexuais e o do direito de família, a começar, pelo fato de o julgamento cuidar de hipótese (reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo) que intersecciona estas áreas. Deste modo, serão analisados, de modo destacado mas relacionado, os conceitos de homofobia e a relação entre os direitos sexuais e o conceito jurídico de família, objetivando a compreensão do julgamento sob a perspectiva do enfrentamento da homofobia.

1.1 HOMOFOBIA, DIREITOS SEXUAIS E DIREITO DE FAMÍLIA O conceito de homofobia surge no cenário científico e político no séc. XX, acionado para denunciar o preconceito e a discriminação arbitrários contra homossexuais (BORRILLO, 2009:15). Antes disso, desde o séc. XIX, tratava-se de associar à homossexualidade, considerada em si mesma e no contexto maior das variações da sexualidade humana, um juízo positivo ou negativo. Nesse sentido, a ideia mesma de homofobia propõe um determinado modo na compreensão da homossexualidade. Isso porque, em matéria de sexualidade, as aproximações científicas e políticas não foram desenvolvidas de modo respeitoso ou neutro, muito menos com posturas livres de preconceito. Numa perspectiva histórica, percebe-se que a sexualidade nem sempre exigiu a cristalização de papeis, sendo muito comum ser entendida enquanto prática, e não enquanto identidade. Sobre as práticas sexuais, Foucault diferencia dois procedimentos que historicamente foram viabilizados para a produção de verdade 6 sobre a sexualidade. Por um lado, a ars erotica , típica de regiões como China, Japão, 6

“Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma (...). Dessa forma constitui-se um saber que deve permanecer secreto, não em função de uma suspeita infâmia que marque seu objeto, porém pela necessidade de mantê-lo na maior discrição, pois segundo a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgado” (FOUCAULT, 2007, pp. 65 e 66).

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Índia e nações árabes-muçulmanas; por outro, a scientia sexualis , que virá a serviço de uma espécie de controle da sexualidade, a partir de diferentes mecanismos. Assim é que, com o advento do cristianismo, somado à teoria neoplatônica acerca do corpo e do uso dos prazeres, restaram cristalizados, cada vez mais, identidades sexuais, inicialmente em decorrência da moralidade cristã. Como afirma Funari (2002, p. 52), a sexualidade foi culpabilizada e passou a ser percebida como uma esfera da realidade a ser submetida a um processo de confissão. Mais do que isso, contudo, diferentes mecanismos de controle foram deslocados sobre este campo da vivência humana, associando-se à moralização procedimentos de vigilância e de controle da sexualidade. É como se manifesta a scientia sexualis, instituindo procedimentos de produção de verdade sobre o corpo, excluindo dos padrões de normalidade tudo o que não fosse adstrito ao aceito hegemonicamente. Assim, a percepção e o tratamento da sexualidade, nos diversos níveis e esferas de organização e de constituição da vida individual e social, são desenvolvidos em consonância com a heterossexualidade, instituindo o heterossexismo, sendo este entendido como conjunto de normas e padrões sociais que afirmam a heterossexualidade como forma de sexualidade “natural” na sociedade contemporânea. Com base neste padrão social, tudo que se desvia da “heterossexualidade compulsória” (BUTLER, 2003) é considerado errado, anormal, bizarro, inaceitável, pecaminoso, doente. A homofobia, neste contexto, designa o tratamento discriminatório e arbitrário que corresponde ao heterossexismo. Assim, diferem-se o heterossexismo e a homofobia por ser aquele o conjunto de padrões sociais, de diferentes mecanismos de controles e produção da verdade, a partir do qual se ordena a sociedade em que a heterossexualidade é compulsória, enquanto a homofobia, em outro sentido, trata-se da dinâmica excludente, de formas de violência ocorridas contra aqueles que desviam do padrão heterossexista hegemônico. O campo do direito de família, a partir dos papeis cristalizados de gênero e de determinada moralidade sobre a sexualidade, acabou por legitimar e naturalizar um único modelo de família. Mais que simplesmete uma determinada comunidade dentre outras, esta família foi afirmada como a base da sociedade. No seio desta comunidade determinada, que é a família heterossexual monogâmica, não há lugar para o respeito à diversidade de práticas sexuais e à não-cristalização dos papeis gênero, uma vez que incompatível com tudo o que dissociado na norma heterossexista. Do ponto de vista das relações de gênero, é nesta estrutura familiar que se produz a cristalização de determinados papeis sociais ao homem e à mulher, a partir

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“Nossa civilização, pelo menos à primeira vista, não possui ars erotica. Em compensação é a única, sem dúvida, a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral, que é a confissão” (FOUCAULT, 2007, p. 66).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 de uma visão binária; assim são instituídas a masculinidade e a feminilidade, atributos tidos como índices de normalidade encontráveis apenas em relacionamentos heterossexuais. Esta dinâmica é alimentada e reproduz o heterossexismo, ao estabelecer padrões de sexualidade, de gênero, em determinadas formas de conjugalidade. Ainda que haja, como denomina Butler, “fronteiras variáveis” nesta configuração heterossexista, elas não são senão manifestações de sexualidades nãohegemônicas, resistentes no interior de papeis sociais desempenhados de forma 8 artificial . Elas revelam a tensão presente no interior do padrão heterossexista hegemônico. Estas fronteiras variáveis não comportam, de fato, aqueles que são inequivocamente excluídos do padrão de normalidade heterossexual binário. É o caso de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, cujas práticas são tidas como ilegítimas socialmente, moralmente inaceitáveis. Neste espaço entre práticas ilegítimas e práticas legítimas, Butler identifica o heterossexismo compulsório, que leva os excluídos pela norma hegemônica a buscarem legitimar suas práticas sexuais mediante a aceitação dos papeis designados à sexualidade na família. Daí a serem avaliadas como problemáticas, por exemplo, algumas defesas do casamento gay, a depender de seus fundamentos e objetivos (BUTLER, 2003, p. 228). Com efeito, percebe-se a busca de legitimidade por parte de alguns identificados como moralmente inaceitáveis, por meio do adaptar-se à configuração hegemônica da família heterossexual. Se este movimento, por um lado, pode aparentar fortalecer a legitimidade destes, por outro, acaba por intensificar a ilegitimidade daqueles que rejeitam adaptar-se. De fato, o que resta àqueles que não se adaptam aos padrões conjugais hegemônicos, nem tampouco o desejam, é uma região, nas palavras de Butler, duplamente desprotegida e excluída:

Exigir e receber reconhecimento, segundo normas que legitimam o casamento e deslegitimam formas de alianças sexuais fora do casamento, ou normas que são articuladas em uma relação crítica ao casamento, é deslocar o espaço de deslegitimização de uma parte da comunidade gay para outra ou, mais ainda, é transformar uma deslegitimização coletiva em uma deslegitimização seletiva (BUTLER, 2003, p. 240).

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Mesmo no campo da sexualidade inteligível, descobrimos que os pólos binários que ancoram suas operações possibilitam zonas intermediárias e formações híbridas, sugerindo que a relação binária não exaure o campo em questão. De fato, existem zonas intermediárias – regiões híbridas de legitimidade e ilegitimidade – que não têm nomes claros e onde a própria nominação entra em crise produzida pelas fronteiras variáveis, algumas vezes violentas, das práticas legitimadoras que entram em contato desconfortável e, às vezes, conflituoso, umas com as outras (BUTLER, 2003, p. 229).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Neste movimento de legitimação familista da sexualidade, acirra-se a desqualificação de tudo que não é higienicamente voltado a um sexo reprodutivo, e incluído na conjugalidade heterossexista, como sujo e pecaminoso, convertendo-se em objeto de confissão e de correção (FOUCAULT, 2007). Há algumas décadas, contudo, começam a surgir estudos acadêmicos que contrariam esta perspectiva. No lugar da origem dos hábitos e da solidificação de identidades, estuda-se a origem da violência sobre os hábitos e a construção das identidades. No lugar da origem da diferença, estuda-se a origem do controle sobre o que seja a normalidade. No lugar dos estudos sobre homossexualidades, o olhar volta-se para a homofobia. Após diferentes formas de controle sobre a sexualidade, faz-se necessário deslocar o centro da análise, numa atitude ao mesmo tempo epistemológica e política. Como afirma Borrillo:

A recente preocupação com a hostilidade para com gays e lésbicas muda a maneira como a questão vinha sendo problematizada. De fato, em vez de se dedicar ao estudo do comportamento homossexual, a atenção se volta agora para as razões que levaram essa forma de sexualidade a ser considerada, no passado, desviante. Esse deslocamento do objeto de análise sobre a homofobia produz uma mudança tanto epistemológica quanto política. Epistemológica porque não se trata exatamenet de conhecer ou compreender a origem e o funcionamento da homossexualidade, mas sim de analisar a hostilidade provocada por esse forma específica de orientação sexual. Política porque não é mais a questão homossexual, mas a homofobia que merece, a partir de agora, uma problematização particular (BORRILLO, 2009, p. 16).

Nesta encruzilhada entre a diversidade sexual e o heterossexismo, onde as perspectivas se bifurcam entre a justificação/reprovação da homossexualidade e o enfrentamento da homofobia, é preciso ter presente o conteúdo da jurisprudência nacional diante dos direitos sexuais (com atenção especial àquela que veicula a noção de “homoafetividade”), possibilitando o avançar desta investigação.

1.2. DIREITOS BRASILEIRA

SEXUAIS

E

HOMOFOBIA

NA

JURISPRUDÊNCIA

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A evolução jurisprudencial brasileira referente aos direitos sexuais , como também a ADPF 132/ ADI nº 4.277, tornam inequívoca a conexão entre os campos do

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Vejam-se RIOS, Roger Raupp. A Justiça e os Direitos de gays e lésbicas: Jurisprudência Comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003; e RIOS, R. R. (Org.); Leivas, P (Org.); GOLIN, C. (Org.). Homossexualidade e direitos sexuais: reflexões a partir da decisao do STF. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011.

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direito de família, direitos sociais, sexualidade e heterossexismo . O exame desta relação revela que o campo do direito de família é historicamente impregnado de heterossexismo, sendo-lhe comum e tido como natural a manutenção de que não sejam incluídos no seu rol de legitimados aqueles e aquelas que constituem relações homossexuais. Roger Raupp Rios e Rosa Oliveira (2012) propõem uma classificação das decisões judiciais de direitos sexuais em quatro categorias, quais sejam, (i) conservadorismo judicial e heterossexismo explícito; (ii) abstencionismo judicial e heteronormatividade implícita; (iii) assimilacionismo familista e homoafetividade; e (iv) diversidade sexual e afirmação dos direitos sexuais. Busca-se, com essa classificação, evitar uma postura celebratória do avanço dos direitos sexuais, desvelando-se um viés crítico acerca dos fundamentos das decisões, a partir da precisão do que sejam tais direitos, identificando-se tensões e tendências no desenvolvimento deste campo. Isto é, perceber que todo discurso jurídico possui uma visão de mundo e elementos conceituais ao fundo, que deve ser desmembrado para que consigamos perceber em que medida, e com quais limitações, a dita “inclusão” da pauta da diversidade sexual vem, efetivamente, combatendo a homofobia e o heterossexismo. É como problematizam:

É o que sugere, por exemplo, a leitura de precedentes judiciais que defenderem direitos ao argumento de que, afora a igualdade dos sexos, os partícipes da relação reproduzem em tudo a vivência dos casais heterossexuais – postura nitidamente nutrida na lógica assimilacionista. Nesta, o reconhecimento dos direitos depende da satisfação de predicados como comportamento adequado, aprovação social, reprodução de uma ideologia familista, fidelidade conjugal como valor imprescindível e reiteração de papeis definidos de gênero. Daí, inclusive, a dificuldade

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Roger Raupp Rios identifica duas tendências na evolução jurisprudencial brasileira. A primeira tendência, de reconhecimento via direitos sociais, principalmente previdenciário, é seguida de uma segunda tendência das decisões judiciais acerca de direitos sexuais, a saber, a que os reconhece mediante o direito de família. Segundo Rios, “não é difícil perceber que, em muitos casos, a inserção de conteúdos antidiscriminatórios relativos à orientação sexual valeu-se de argumentos de direito de família” (RIOS, 2011, p. 296). Essa segunda tendência, entretanto, traz junto de si conservadorismos importantes, como o autor menciona a seguir: “Ainda nesta linha, a formulação de expressões, ainda que bem intencionadas, como ‘homoafetividade’, revela uma mentalidade homonormativa. Conservadora, na medida em que subordina os princípios de liberdade, igualdade e não-discriminação, centrais para o desenvolvimento dos direitos sexuais (Rios 2007) a uma lógica assimilacionista; discriminatória, porque, na prática, distingue uma condição sexual ‘normal’, palatável e ‘natural’ de outra assimilável e tolerável, desde que bem comportada e ‘higienizada’. Com efeito, a sexualidade heterossexual não só é dizível como tomada por referência para nomear o indivíduo ‘naturalmente’ detentor de direitos (o heterossexual, que não necessita ser heteroafetivo), enquanto a sexualidade do homossexual é expurgada pela ‘afetividade’, numa espécie de efeito mata-borrão” (RIOS, 2011, p. 296).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 de lidar com temas como prostituição, travestilidades, liberdade sadomasoquismo e pornografia (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p. 13).

sexual,

Assim, o sugerido pelos autores é que se deve perceber a que modelo de conjugalidade se estão associando as sexualidades não-hegemônicas, bem como de que forma prosseguem à margem aqueles que não escolheram nem desejam escolher a conjugalidade monogâmica institucional como forma de expressar sua sexualidade. É quaternária a tipologia propostas pelos autores, proposta a partir de padrões discursivos que revelam diversos graus entre posturas heterossexistas e valorações positivas ou negativas da homossexualidade (OLIVEIRA E RIOS, 2012, P. 15). Entre essas possibilidades, há que se destacar, especificamente, duas tipologias, quais sejam, a do “Conservadorismo Judicial e heterossexismo explícito” e a do “Assimilacionismo familista e homoafetividade”. Elas são, de fato, as duas grandes correntes de pensamento presentes nos votos da ADPF n.º 132/ ADI n.º 4.277, como se demonstrará abaixo. A linha decisória que acompanha o padrão do “Conservadorismo Judicial e heterossexismo explícito” está presente nas decisões em que o raciocínio judicial expõe manifestações negativas quando à homossexualidade, havendo ou não sucesso na decisão judicial por parte dos proponentes da ação. Assim classificam os autores: “trata-se de modalidade de raciocínio judicial informada por uma classificação hierárquica das diversas manifestações da sexualidade, subordinadas à matriz heterossexual todas demais expressões” (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p.16). A ADPF 132/ ADI 4.277 poderia incorrer nesta modalidade caso os Ministros, ao pronunciarem seus votos, expusessem entendimento de que os homossexuais não poderiam ter o objeto de sua ação reconhecido, eis que seu relacionamento, ontologicamente, é inferior aos relacionamentos heterossexuais. Isso, como se sabe, não ocorreu, ainda que tenha havido, no voto do Ministro Lewandowski, o traçado de uma distinção entre o que seria uma “união estável homossexual” e uma “união homossexual estável”. De fato, essa modalidade discursiva pode ser também identificada quando os Ministros, no decorrer das fundamentações, reconhecem o objeto da ação, ressalvando, contudo, não se tratar do mesmo tipo de relacionamento, eis que desadaptado, desabrigado, diferente enfim do relacionamento heterossexual, devendo ter as consequências jurídicas do reconhecimento discutidas. Esse padrão discursivo pode ser identificado nos votos dos Ministros Ricardo 11 12 13 Lewandowski , Gilmar Mendes e César Peluzo , que se sustentam sob o 11

“Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto [grifo nosso], segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico” (LEWANDOWSKI, 2011, p. 719).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 argumento de que as entidades familiares previstas pela Constituição Federal são determinadas pelos papeis de gênero, não cabendo flexibilizar a leitura estrita do trecho “entre homem e mulher” do art. 226 da CF/88, mas sim pensar como visualizar 14 a técnica da analogia . Em diferentes sentido e grau, encontra-se outra modalidade de discurso judicial que, embora não explicitamente conservadora, como a supramencionada, é em alguma medida também heterossexista, ao reafirmar padrões de sexualidade, limitando-a e higienizando-a. Trata-se do que tais autores denominam “Assimilacionismo familista e homoafetividade”. Essa tendência, predominante também em decisões locais e regionais que asseguravam direitos civis desde antes da decisão judicial da ADI nº 4.277, tem como duas marcantes características o assimilacionismo e o familismo. O primeiro, conforme definem, “onde membros de grupos subordinados ou tidos como inferiores adotam padrões oriundos de grupos dominantes, em seu próprio detrimento”; o segundo, “entendido como tendência a subordinar o reconhecimento de direitos sexuais à adaptação a padrões familiares e conjugais institucionalizados pela heterossexualidade compulsória” (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p.16). A conjugação desses dois conceitos, mais do que mera coincidência, funciona como um mecanismo de resposta ao que seja a legitimação estatal das relações entre 12

O Ministro Gilmar Mendes percorre um caminho de complexificação do que seja a união homossexual, insinuando que deve ser examinada com cuidado, e não meramente reconhecida como o é a entidade familiar heterossexual. Contudo, a união estável é uma modalidade de entidade familiar que reconhecidamente busca desburocratizar e tornar menos formal os procedimentos de constituição de família, em evidente contraposição ao instituto do casamento civil. O Ministro, portanto, nutre-se de lógica claramente heterossexista, que impõe dificuldades desnecessárias, de controle, sobre o que venha a ser o reconhecimento da união estável entre pares não-heterossexuais. Sobre as consequências do reconhecimento, ainda, podemos perceber mais explicitamente a diferenciação realizada pelo Ministro Gilmar Mendes, ao citar que as famílias não-heterossexuais foram, em diversos países, regulamentadas em leis próprias: “Me pus a pensar sobre questões que afligem os próprios cultores do Direito Comparado, eu me lembro de que estava em Portugal quando foi promulgada a lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, e lá saiu a restrição quanto à adoção. Sistemas diversos têm dado disciplinas específicas ao tema. Eu vejo aqui, por exemplo, a lei recente da Argentina, que contém – claro que trata de todo tema do matrimônio, com as modificações – nada mais, nada menos, do que quarenta e dois artigos” (MENDES, 2011, pp. 745 e 746). 13 "E se deve preenchê-la [a lacuna], segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da similitude – não da igualdade [grifo nosso] –, da similitude factual entre ambas as entidades de que cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo. E essa similitude entre ambas situações é que me autoriza dizer que a lacuna consequentemente tem que ser preenchida por algumas normas. E a pergunta é: por que classe de normas?" (PELUZO, 2011, p. 874) 14 Sobre a lacuna normativa, também afirma Peluzo: “E a segunda consequência é que, na disciplina dessa entidade familiar recognocível à vista de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, não se pode deixar de reconhecer – e esta é o meu fundamento, a cujo respeito eu peço vênia para divergir da posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam nesse passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa ser preenchida” (PELUZO, 2011, p. 874).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 pares do mesmo sexo. É o que Butler (2003) chama de “heterossexualidade compulsória”. No decorrer do processo, são diferenciados valores e padrões tidos como positivos e negativos e, se antes todas as relações não-heterossexuais eram negativas, algumas delas, desde que adaptadas, passam a ser aceitas. Desse modo, então, é que a afetividade passa a ser um conceito chave para o heterossexismo. Se observarmos o histórico da estrutura familiar, a afetividade só passa a ser considerada central a partir da época moderna, entendendo-se ela como um elemento constitutivo que se contrapõe ao formalismo anteriormente essencial a estruturas mais rígidas, como o casamento. Nesse sentido, embora recente, ela funciona como o elemento “legitimador” da homossexualidade nas decisões judiciais. É como afirmam Rosa e Rios:

Neste contexto, a identificação do “afeto” como fator distintivo dos relacionamentos e identificador dos vínculos familiares cumpre função anestésica e acomodadora da diversidade sexual às normas da heterossexualidade compulsória, na medida em que propõe a “aceitação” da homossexualidade sem qualquer questionamento mais intenso dos padrões sexuais hegemônicos. Isto porque a “afetividade” acaba funcionando como justificativa para a aceitação de dissonâncias à norma heterossexual servindo como um mecanismo de anulação, por compensação, de práticas e preferência sexuais heterodoxas, cujo desvalor fica contrabalanceado pela “pureza dos sentimentos”. Desta forma, opera-se uma assimilação ao mesmo padrão que se buscava enfrentar, produzindo a partir daí um novo rol de exclusões (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p. 19).

Com isso, podemos perceber que o debate tido na Corte Constitucional brasileira enfrenta conceitos complexos, com diferentes perspectivas, cuja falta de precisão terminológica pode traduzir um combate deficiente à homofobia. Não se trata apenas de identificar o conservadorismo explícito, presente em alguns votos, mas de buscar entender em que medida se diferenciam os discursos com presença mais forte de elementos de combate à homofobia, por um lado, e os que se sustentam sob o argumento da necessidade de reconhecimento da homoafetividade, por outro. Estes, como será visto, possibilitam uma discussão circunscrita ao direito de família, ignorando a necessidade de situar o panorama dos direitos sexuais e de combate ao heterossexismo e à homofobia.

2. A DECISÃO DO STF NA ADPF 132/ ADI 4.277 E O ENFRENTAMENTO À HOMOFOBIA: HOMOAFETIVIDADE E PROTEÇÃO DEFICIENTE

A decisão judicial proferida na ADPF 132/ ADI 4.277 tem importância histórica incontestável. Com efeitos ex tunc, passa a reconhecer entidades familiares antes mantidas à margem do ordenamento legal brasileiro. Reconhece constitucionalmente,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 ademais, princípios caros aos direitos sexuais, como a igualdade sexual e a liberdade sexual. Nesta, passa a entender-se protegido também o direito à intimidade sexual e à privacidade sexual. É nesta decisão, ainda, que finalmente é consagrada pela ordem constitucional brasileira a proibição de discriminação por orientação sexual no interior da proibição de discriminação por motivo de sexo. Trata-se de mecanismo não apenas de reconhecimento dos direitos sexuais, mas efetivamente de postura explícita de combate à homofobia e à transfobia. O reconhecimento dos direitos sexuais mencionados pode fazer avançar nosso país como um daqueles aptos a desenvolver um sistema de enfrentamento da 15 homofobia na América Latina . Entretanto, a avaliação de quão robusta pode ser este enfrentamento depende da compreensão que seê à homofobia e ao heterossexismo, o que exige uma análise da fundamentação do precedente jurisprudencial em questão, verificando-se em que medida seu conteúdo efetivamente é capaz de apreender os fenômenos da homofobiae e do heterossexismo. Desse modo, proceder-se-á à descrição dos votos que possuem mais centralmente elementos de combate à homofobia e de fundamentação da homoafetividade. Após, ao exame de que medida a fundamentação desenvolvida, ao enfatizar a categoria da homoafetividade, revela-se apta para o enfrentamento da homofobia.

2.1 HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA ADPF 132/ ADI 4.277

Podem ser identificados, na decisão do Supremo Tribunal Federal, três votos centrais para a investigação sobre a compreensão da homofobia e da homoafetividade. De um lado, aqueles que se debruçam de modo mais específico sobre o que seja a homofobia e a necessidade de seu combate. De outro, aquele que se dedica mais à idéia de homoafetividade. Trata-se, respectivamente, dos votos dos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio e do voto do Ministro Ayres Britto. Com efeito, o voto do Ministro Britto é aquele com maior aprofundamento a respeito do princípio da liberdade, que consagra os já referidos direitos à igualdade 15

Observa-se um avanço mais nítido dos direitos reprodutivos e sexuais, na América Latina, em alguns países. Na Argentina, por exemplo, desde 2004 a Cidade de Buenos Aires reconhece as uniões civis homossexuais; na Nicarágua, a Lei n. 423 de 2002, no Código Geral de Saúde, incorpora o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos; no Equador, a Constituição Federal de 1998, no artigo 23, item 03, explicitamente protege a liberdade de orientação sexual e a nãodiscriminação; nas Bahamas, a Lei n. 26 de 2003 prevê que a vida sexual como âmbito de privacidade dos indivíduos; na Colômbia, a Lei n. 599 de 200 proíbe e penaliza a discriminação por orientação sexual (BUGLIONE, 2007, pp. 97 e 98). Por outro lado, há países onde o avanço dos direitos sexuais encontra barreiras mais firmes, como Costa Rica, Cuba, El Salvador, Chile e Porto Rico. Nesses, podemos observar desde criminalização da prática homossexual até retrocesso de reconhecimento de direitos civis. Afirma Buglione: "O que se observa na América Latina e no Caribe de forma geral é que ainda não há uma perspectiva que integre os diversos direitos relacionados à sexualidade, quando muito há uma visão sobre a existência de alguns direitos referentes à saúde e à reprodução. O que há são previsões pontuais de reconhecimento e garantia de direitos" (BUGLIONE, 2007, p. 99).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 sexual e à liberdade sexual, bem como à intimidade sexual e à privacidade sexual. É nele, além disso, que está presente a proibição de discriminação por orientação sexual como decorrência da proibição de discriminação por motivo de sexo. No entanto, a manifestação do Ministro Relator volta-se com maior ênfase à noção de homoafetividade.

2.1.1. O voto do Ministro Ayres Britto: direitos sexuais e homoafetividade

A manifestação do Ministro Relator toma como ponto de partida direitos fundamentais enumerados na Constituição Federal, em especial os direitos à liberdade (concretizada em liberdade sexual) e à igualdade (concretizada em igualdade sexual). Ela busca descrever o domínio dos direitos sexuais, quando da fundamentação da proibição da discriminação por motivo de sexo, por meio da 16 17 caracterização do que seja sexo e também do que seja sexualidade , contextualizando-os em dados biológicos. A sexualidade, no seu raciocínio, é “natural”, isto é, faz parte do mundo da vida. Essa descrição, todavia, emcontraste com as dinâmicas do heterossexismo e da homofobia, mostra-se fragilizada. Ela efetivamente distancia-se das dinâmicas sociais e culturais do heterossexismo, na medida em que sua argumentação tende a afirmar, com base neste argumento, uma equivalência entre as práticas não-heterossexuais e aquelas hegemônicas, afastando valorações inferiorizantes. Nesta esteira, o voto propõe uma leitura do caput do art. 226, nele incluindo as uniões entre pessoas do mesmo sexo, ao que vincula determinadas concepções de família, homoafetividade, sexualidade e homofobia. Assim, partindo da constatação de que vivemos em uma sociedade em que “nada incomoda mais as pessoas do que a

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“O órgão a tomar o nome do ser em que anatomicamente incrustado. Mas "sexo" ou "aparelho sexual" como signo linguístico de um sistema de órgãos cumpridores das elementares funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica. Três funções congênitas, como sabido, e que, por isso mesmo, prescindentes de livres, escola, cultura ou até mesmo treinamento para o seu concreto desempenho” (BRITTO, 2012, pp. 633 e 634). Neste trecho, encontra-se assentado o conceito de sexo de Britto, que pode ser lido como biologicista, o que dificulta ou impossibilita a extensão do direito de antidiscriminação, fundado no sexo, a transexuais e travestis. 17 “Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vita. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma repriumenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano. (...) Nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte. Ostensiva. Tendendo mesmo a um tipo de mescla entre instinto e sentimento que parece começar pelo primeiro, embora sem o ortodoxo sentido de pulsão. O que já põe o Direito em estado de alerta ou de especiais cuidados para não incorrer na temeridade de regulamentar o factual e axiologicamente irregulamentável. A não ser quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra” (BRITTO, 2011, p. 637).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade” (BRITTO, 2012, p. 627), afirma ser necessário que se perceba e se aceite a homoafetividade, entendida nos seguintes termos:

“Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos” (BRITTO, 2012, p. 630).

Assentado isso, passa a explicitar sua compreensão da comunidade familiar. A percepção que demonstra acerca da homofobia, longe de ser dimensionar suas diversas dimensões (como faz, por exemplo, Borrillo, ao elencar as dimensões psicológica, social e institucional (2009)), acaba por enfatizar a homofobia no contexto do “não aceitar que homossexuais possam constituir família”,. Daí extrai um conceito não-reducionista de família, a fim de evitar um discurso homofóbico:

Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico (BRITTO, 2011, p. 649).

Registre-se que este é o único momento, na argumentação desenvolvido pelo voto do relator, onde há menção ao termo homofobia, vinculado à comunidade familiar e à afirmação da homoafetividade.

2.1.2. O voto do Ministro Marco Aurélio: homofobia e diversidade sexual

Com foco bem diverso, o voto do Ministro Marco Aurélio prima pela ênfase no conceito de homofobia. Ele registra:

Em 19 de agosto de 2007, em artigo intitulado “A igualdade é colorida”, publicado na Folha de São Paulo, destaquei o preconceito vivido pelos homossexuais. O índice de homofobia é revelador. Ao ressaltar a necessidade de atuação legislativa, disse, então, que são 18 milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam-se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas preferenciais de preconceitos, discriminações, insultos e chacotas, sem que lei específica coíba isso. Em se tratando de homofobia, o Brasil ocupa o primeiro lugar,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 com mais de cem homicídios anuais cujas vítimas foram trucidadas apenas por serem homossexuais (AURÉLIO, 2011, p. 809).

Diante da idéia de família, o Ministro acentua sua historicidade e conexão com os interesses de classe de cada época:

A união de pessoas com o fim de procriação, auxílio mútuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural. Como esclarece Maria Berenice Dias (Manual de direito das famílias, 2010, p. 28), no passado, as famílias formavam-se para fins exclusivos de procriação, considerada a necessidade do maior número possível de pessoas para trabalhar em campos rurais. Quanto mais membros, maior a força de trabalho, mais riqueza seria possível extrair da terra. Os componentes da família organizavam-se hierarquicamente em torno da figura do pai, que ostentava a chefia da entidade familiar, cabendo aos filhos e à mulher posição de subserviência e obediência. Esse modelo patriarcal, fundado na hierarquia e no patrimônio oriundo de tempos imemoriais, sofreu profundas mudanças no tempo da revolução industrial, quando as indústrias recém-nascidas passaram a absorver a mão de obra nos centros urbanos. O capitalismo exigiu a entrada da mulher no mercado de trabalho, modificando para sempre o papel do sexo feminino nos setores públicos e privados. A aglomeração de pessoas em espaços cada vez mais escassos nas cidades agravou os custos de manutenção da prole, tanto assim que hoje se pode falar em família nuclear, em contraposição à família extensa que existia no passado (AURÉLIO, 2011, p. 813).

Ao longo de suas razões, em alguns momentos, recorre à idéia de homoafetividade a fim de legitimar a qualificação das uniões homossexuais à 18 categoria de união estável , problematizando o tema considerando a 19 constitucionalização do direito civil, que passa do plano do ter para o plano do ser .

18

“A homoafetividade é um fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade. Como salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da situação patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar” (AURÉLIO, 2011. p. 817). 19 “O Direito Civil, sabemos, restringia-se ao ‘ter’. O titular da propriedade era o grande destinatário das normas do Direito Civil, e a propriedade era o direito por excelência. O direito de família oriundo do Código de Bevilácqua concernia a questões patrimoniais. O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma ‘virada de Copérnico’, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Neste contexto, a maior ênfase dada pelo Ministro é referente ao caráter 20 contramajoritário dos direitos fundamentais , à fundamentação histórica das estruturas familiares e à necessidade de combate à homofobia, bem como à defesa 21 da não-discriminação e da liberdade de orientação sexual . Isso faz com que, sem dúvida, seu voto se aproxime do que seja o padrão de decisões judiciais definido por Oliveira e Rios como “Diversidade sexual e afirmação dos direitos sexuais”.

2.1.3. O voto do Ministro Celso de Melo: homofobia, direitos humanos e democracia constitucional

O Ministro Celso de Mello, por sua vez, discorre sobre a homofobia, inicialmente, em perspectiva histórica, salientando a experiência nacional de repressão às práticas homossexuais. Fundamenta a existência de heterossexismo nas instituições sociais, exemplificando, inclusive, a partir da tipificação da prática de relações homossexuais ainda vigente no Código Penal Militar:

Vê-se, daí, que a questão da homossexualidade, desde os pródromos de nossa História, foi inicialmente tratada sob o signo da mais cruel das repressões (LUIZ MOTT, “Sodomia na Bahia: O amor que não ousava dizer o nome”), experimentando, desde então, em sua abordagem pelo Poder Público, tratamentos normativos que jamais se despojaram da eiva do preconceito e da discriminação, como resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje, por legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de relações homossexuais no âmbito das organizações castrenses (CPM, art. 235), o que tem levado alguns autores (MARIANA BARROS BARREIRAS, “Onde está a Igualdade? Pederastia no COM”, “in” “Boletim IBCCRIM, ano 16, nº 187, jun/2008; CARLOS FREDERICO DE O. PEREIRA, “Homossexuais nas Forças Armadas: tabu ou indisciplina?”, v.g.) a sustentar a inconstitucionalidade material de referida cláusula de tipificação penal, não obstante precedente desta Corte em sentido contrário (MELLO, 2011, pp. 832 e 833).

dando lugar principal à pessoa. É o direito do ‘ser’, da personalidade, da existência” (AURÉLIO, 2011. pp. 817 e 821). 20 “(...) ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República” (AURÉLIO, 2011, p. 820). 21 “Há, isso sim, a obrigação constitucional de não discriminação e de respeito à dignidade da pessoa humana, às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais” (AURÉLIO, 2011, p. 821).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O Ministro destaca, em sua fundamentação, a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no Estado Democrático de Direito, bem como o direito à busca da felicidade, derivado do princípio da dignidade da pessoa humana:

Parece-me irrecusável, desse modo, considerado o objetivo fundamental da República de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, art. 3º, IV), que o reconhecimento do direito à busca da felicidade, enquanto idéia-força que emana, diretamente, do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, autoriza, presente o contexto em exame, o rompimento dos obstáculos que impedem a pretendida qualificação da união civil homossexual como entidade familiar (MELLO, 2011, p. 861).

O voto em exame também lança mão da idéia de afetividade, todavia como mais um argumento à equiparação das uniões estáveis entre pares do mesmo sexo em relação às uniões estáveis entre pares de sexos distintos, e não como um fator central ou determinante para a legitimidade dessas relações. Com peso argumentativo diverso, a “homoafetividade” é citada em apenas um dos nove tópicos em que o Ministro Celso de Mello fundamenta seu voto, em específico no capítulo de número sete. Perceba-se que, nos outros oito capítulos, o Ministro trata diretamente da importância da intervenção da sociedade civil em julgamentos deste tipo (capítulo 1), do histórico da repressão da sexualidade nas instituições brasileiras (capítulo 2), do imperativo constitucional do reconhecimento da união estável homoafetiva (capítulos 3 e 4), da função contramajoritária do STF (capítulo 5), do direito à busca da felicidade como derivado da dignidade da pessoa humana (capítulo 6), dos Princípios de Yogyakarta, derivados de conferência internacional realizada na Indonésia em 2006 (capítulo 8) e da colmatação de omissões constitucionais (capítulo 9). A menção à afetividade, portanto, é mais um argumento, e não o central, no que concerne à fundamentação do que seja entidade familiar para Celso de Mello, cujo voto solidifica terreno fértil para novos debates constitucionais, como aquele acerca da desconformidade constitucional do art. 235 do Código Penal Militar, explicitamente mencionado.

2.2 ADPF 132/ ADI 4.277: HOMOAFETIVIDADE E ENFRENTAMENTO DEFICIENTE DA HOMOFOBIA Assim sumariado o percurso argumentativo e o modo como as noções de homofobia e de homoafetividade foram apresentadas nos votos referidos, coloca-se a pergunta a respeito do adequado enfrentamento da homofobia, acaso adotada uma ou outra via argumentativa, em especial diante da ênfase com que se registrou a ideia

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 de homoafetividade. Como dito, não se trata de menosprezar a importância da presença ou não de laços afetivos para a experiência familiar, muito menos de olvidar de que se tratava de uma questão de direito constitucional de família. O que se indaga é o conteúdo e o peso que se associaram à noção de homoafetividade, considerando que o não-reconhecimento decorre, precisamente, da homofobia. Com efeito, a interpretação constitucional deve primar pela via argumentativa que mire o cerne da questão (a homofobia), afastando soluções que se mostrem deficientes, diante do ordenamento jurídico, para o combate a este tipo de discriminação.

Considerando o exposto nas seções anteriores, em especial o papel capital que desempenham os direitos fundamentais da liberdade e da igualdade, há que se evitar que a legitimação das práticas e das identidades sexuais esteja associada a uma categorização onde a noção de gênero submeta-se a um pretenso binarismo radicado na natureza biológica, olvidando-se que a homossexualidade, enquanto categoria identitária, passa a existir apenas no séc. XIX, no quadro político e epistemológico então vigente. De fato, em sentido diverso, a contemporaneidade nos chama atenção para a sexualidade como dispositivo de poder e de controle, o que coloca a questão numa perspectiva diversa da investigação pelas quais uma ou outra orientação sexual deva ser, naturalmente, admitida ou rejeitada. O caminho que conduz à enumeração de determinadas orientações sexuais enquanto identidade social, historicamente, é resultado de hierarquização e padronização das práticas e desejos sexuais, lógica que não colaborando para a construção de uma sociedade que respeite o direito à liberdade e à igualdade sexuais, conforme a própria decisão do STF salienta ser imperativo constitucional. Assim sendo, é necessário problematizar se está sendo trilhado um caminho constitucional adequado, por meio do Supremo Tribunal Federal, à compreensão dada aos direitos sexuais na sua decisão e, em especial, aos fenômenos discriminatórios engendrados pelo heterossexismo e pela homofobia. A fundamentação da decisão, longe de ser etapa secundária em relação à decisão em si, tem efeitos de alta relevância para o desenvolvimento do direito constitucional, por meio da afirmação e consagração de determinadas concepções sobre os direitos fundamentais em jogo e a percepção das realidades discriminatórias, o que certamente tem efeito no exame de outros casos onde esteja em questão discriminação por orientação sexual. A afirmação do direito ao reconhecimento de uniões estáveis homossexuais, acaso calcada basicamente à análise dogmático-jurídica de direito de família, com especial ênfase à categoria da homoafetividade, retira do sistema constitucional de direitos fundamentais força e conteúdos decisivos para o adequado combate à homofobia. Como referido, observa-se a existência de duas tendências na fundamentação dos direitos fundamentais sexuais, presentes na decisão do STF. Uma primeira, aquela que dá ênfase à categoria da homoafetividade para concluir pelo reconhecimento das uniões estáveis homossexuais como entidades familiares. Uma

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 segunda, aquela que dá ênfase no combate à homofobia para daí extrair conseqüências em face do direito de família. A fundamentação da decisão com base na categoria homoafetividade acaba por fragilizar a compreensão dos direitos fundamentais envolvidos e apontar para uma lógica deficiente no combate à homofobia. Com efeito, no único momento em que cita o termo “homofobia”, como já descrito na seção precedente, fá-lo de modo rápido e superficial, o que não responde adequadamente aos desafios encetados pela homofobia. Parece claro que não é o reconhecimento da família para pares nãoheterossexuais, por si só, que será capaz de enfrentar a raiz da discriminação, verificada pontualmente no direito de família, que se expressa pela homofobia e pelo heterossexismo. Nesta linha, não causa surpresa que a supervalorização da noção de família, informada pela idéia de homoafetividade, acabe por induzir a uma legitimação da liberdade e da igualdade, no campo da sexualidade, de modo mais fraco. Tudo como se, em detrimento da defesa aberta dos direitos fundamentais, fosse suficiente e adequada uma resposta conservadora à problemática, de jaez familista e assimilacionista. É o que se revela no jugaldo, na medida em que o relator aponta para a necessidade de reconhecimento de um tipo específico de família (“homoafetiva”), assimilando-a ao padrão estabelecido historicamente, ao invés de fundamentar o reconhecimento na necessidade de combate à discriminação, ocorrida em torno justamente da constituição desta estrutura familiar, com suas fundamentações morais, interesses econômicos e cristalização de papeis de gênero. O reconhecimento da legitimidade da homoafetividade não garante a defesa da liberdade e da igualdade sexuais, de modo forte e apto para enfrentar outras manifestações homofóbicas, como, por exemplo, podem sofrer outras identidades e práticas vitimadas pela homofobia. A fundamentação deveria ter ocorrido em sentido inverso: o reconhecimento da liberdade e da igualdade sexuais, que não se circunscrevem ao direito de família, garantem a defesa, inclusive e não apenas, da homoafetividade, cuja presença não é, por si, razão de justificação dos direitos de liberdade e de igualdade. De fato, a legitimação das relações e do desejo por pessoa do mesmo sexo, mediante a categoria da homoafetividade, não faz menção à necessidade de proteção constitucional à discriminação que ocorre também em outras situações da vida em que a sexualidade se faz central, como a prostituição, a transexualidade, o acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho, assim caracterizando o combate à homofobia como circunscrito ao reconhecimento da família, o que obviamente é insuficiente. Saliente-se que não se trata de ignorar que o objeto do controle difuso de constitucionalidade, demandado no julgado, era concernente ao reconhecimento da entidade familiar constituída por pessoas do mesmo sexo, isto é, ao reconhecimento de um direito sexual em tese referente ao direito de família. Pelo contrário, trata-se de perceber que o direito de família, após a Constituição Federal de 1988, não está auto-

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 referenciado, devendo rumar a um sentido transformador, e não meramente adaptativo aos padrões historicamente constituídos. A decisão do Supremo Tribunal Federal supervaloriza, em sua fundamentação, a ênfase à proteção à homossexualidade desde que manifestação de afeto e assimilada aos padrões familiares desenvolvidos em uma cultura heterossexista, em vez de alicerçar-se na necessidade de proteção da liberdade e da igualdade sexuais ameaçadas peloa homofobia. Sublinha-se, portanto, o modo como a sexualidade homossexual homoafetiva será protegida e valorizada, e não a existência de desvalorização e vulnerabilidade de sexualidades historicamente discriminadas, o que vai bem além da dimensão afetiva ou familiar. A questão, portanto, é superestimar a fundamentação afetivista sem o cuidado suficiente no enfrentamento das raízes (homofobia e heterossexismo) que põe em risco a efetividade dos direitos fundamentais que a própria decisão veicula. Trata-se de um percurso que, partindo de uma ideologia familista, protege deficientemente da violência (física, simbólica, econômica e institucional) a que estão expostos aqueles que não experimentam suas vivências homossexuais fora do padrão familiar gestado no heterossexismo. Longe de ser pacífico o entendimento sobre de que forma deve ser buscada a efetiva proteção à liberdade e à igualdade sexuais, fica claro, todavia de que forma essa proteção não é suficientemente desenvolvida com tal ênfase afetivista e familista, de cunho assimilacionista.

CONCLUSÃO O julgado da ADPF 132/ ADI 4.277 representa um avanço no panorama constitucional brasileiro. Consolida, em decisão unânime, o caráter contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, bem como a proteção de direitos fundamentais, na esfera da sexualidade, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos de liberdade e de igualdade. Estes, de fato, ganharam especial destaque, concretizados como princípios de liberdade sexual e de igualdade sexual, bem como os princípios da não-discriminação em razão de orientação sexual, da intimidade sexual e da privacidade sexual. O campo dos direitos sexuais no Brasil, antes uma tendência desenvolvida em alguns tribunais de justiça isoladamente, passa a ser uma realidade nacional, do ponto de vista institucional, dada a decisão do Supremo Tribunal Federal. No entanto, há que se evitar certos riscos, em especial a tendência à interpenetração entre os campos dos direitos sexuais e do direito de família. Persiste o desafio da concretização do ordenamento jurídico brasileiro de modo a produzir respostas mais fortes diante da homofobia e do heterossexismo, como demonstra a ênfase em tendências familistas e assimilacionistas. A homoafetividade, como elemento legitimador das sexualidades tidas como desviantes, anormais, à margem, não responde satisfatoriamente à necessidade de combate à homofobia e de respeito à diversidade sexual. De fato, a fundamentação da decisão judicial da ADPF 132/ ADI 4.277 recorreu, de maneira central, à afetividade como elemento higienizador de uma sexualidade que, na sua forma livre,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 prossegue não insuficientemente protegida. O paradoxo reside, justamente, no reconhecimento da liberdade e da igualdade sexuais, por um lado, e de tendências assimilacionistas, de outro, para a legitimação de direitos sexuais. Ainda assim, há que se destacar que também na decisão há avanços importantes a serem salientados. Os votos dos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, principalmente, traduzem a preocupação central com a dignidade da pessoa humana e com o combate à discriminação, em um primeiro plano, deixando a legitimação mediante a afetividade apenas como elemento acessório. Com nuanças, são votos fortes do ponto de vista do desenvolvimento dos direitos sexuais no Brasil e apontam perspectivas importantes do fundamento dos princípios que norteiam este campo. É neste terreno de tensões de fundamentação que se encontra, após tão histórico julgamento, o campo dos direitos sexuais. Restam necessários maiores delimitações deste campo em relação ao campo do direito de família. Os direitos sexuais encontraram, em suma, momento marcante na evolução jurisprudencial nacional com o julgamento da ADPF 132/ ADI 4.277, mesmo que tais tensões e tendências desafiem uma compreensão mais adequada para um eficiente enfrentamento da homofobia e do heterossexismo.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 REGULAR A INTERNET/GOVERNAR O CONHECIMENTO: DIREITO DE PROPRIEDADE IMATERIAL E VIGILÂNCIA NO CIBERESPAÇO Thiago Mota1

RULE THE INTERNET/GOVERN KNOWLEDGE IMMATERIAL PROPERTY LAW AND SURVEILLANCE IN THE CIBERSPACE

Resumo

A fim de garantir a expansão do capital, os direitos da propriedade imaterial protegem os interesses de grandes corporações e de Estados centrais. Enquanto isso, desarticulados nas periferias das metrópoles e do mundo globalizado, os reais produtores, pesquisadores, escritores, compositores, diretores, são privados de suas próprias criações. É assim no Brasil, é assim no mundo. Todavia, o desenvolvimento das tecnologias da informação revolucionou o capitalismo de tal modo, elevou a produtividade a tal ponto, que novas formas de produção, circulação e consumo, de caráter “para-mercadológico”, acabaram sendo gestadas. A produção biopolítica no seio do próprio capitalismo cognitivo parece agora exceder a axiomática geral do capital. Outras formas de agenciamento com os outros e consigo, outras formas de vida tornaram-se possíveis. A questão é saber o que podem esses novos agenciamentos. Mas o fato é que o ciberespaço constitui um plano abstrato territorializado e desterritorializado: por processos de poder – o “ciber-poder” imperial, de que a guerra contra a pirataria é um exemplo – e por ações de resistência – como a “ciber-resistência” alter-globalizada caracterizada pelo ativismo hacker. Neste contexto, pode o direito cumprir algum papel além da criminalização do ciberespaço?

1

Doutorando em Mídia & Comunicação pela European Graduate School (Suíça). Mestre em Filosofia, com diploma outorgado conjuntamente pela Université de Toulouse II – Le Mirail (França), pela Ruhr-Universität Bochum (Alemanha) e pela Université catholique de Louvain (Bélgica). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. É autor de Conflits: l’agonistique langagière chez Lyotard. Sarrebruck: Éditions Univesitaires Européennes, 2013. Ensina e pesquisa nas áreas de Filosofia, Direito, Política e Tecnologias da Informação. URL: http://lattes.cnpq.br/3709819551356420. E-mail: [email protected].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Palavras-chaves: Normalização. Propriedade imaterial. Internet. Governo. Criminalização.

Abstract

In order to guarantee the expansion of capital, immaterial property rights protect the interests of large corporations and central States. Meanwhile, disarticulated in the peripheries of the metropolises of the globalized world, the real producers, researchers, authors, composers, directors, are dispossessed of their own creations. It is so in Brazil; it is so around the world. However, the development of information technologies has transformed capitalism in such a way, has elevated its productivity in such a scale, that new forms of production, circulation and consumption, with a noncommercial feature, have been finally generated. The biopolitical production in the very core of cognitive capitalism has finally exceeded the general axiomatic of capital. Other forms of life, other forms of assemblage with others and with oneself were produced. It is now clear that the cyberspace, in fact, constitutes an abstract plan territorialized and deterritorialized by processes of power – the imperial “cyber-power”, whose war on piracy is just an example – and processes of resistance – as the alterglobalized “cyber-resistance” emphasized by the activism hacker. In this context, can the law play any role beyond that of the criminalization of cyberspace?

Keywords: Criminalization.

Normalization.

Immaterial

property.

Internet.

Govern.

1. Capitalismo Cognitivo e Normalização do Ciberespaço

Em nosso tempo, a Internet tornou-se essencial para a troca de informações e para a produção de conhecimentos. Ela possibilita o compartilhamento instantâneo de vasta quantidade de dados, altamente variados, entre milhões de pessoas situadas a enormes distâncias. A Rede vem criando novas relações sociais e novos modos de relacionamento, bem como transformando os modos de subjetivação. Pensemos, por exemplo, no papel que redes sociais, como Facebook, Twitter ou Instagram cumprem hoje no nosso dia-a-dia. Podemos dizer que a introdução da Internet em nossas vidas implicou a constituição de uma dimensão inexistente há algumas décadas: o ciberespaço. Apesar de sua novidade, o ciberespaço jamais escapou de uma lógica que precede seu próprio nascimento. Trata-se da lógica colonial da axiomática geral da produtividade e do lucro que estabelece uma nova fronteira ao conquistar um “novo mundo”, o mundo virtual. Esta lógica privilegia certas indústrias, que se tornam cada vez mais poderosas no contexto do capitalismo cognitivo (HARDT; NEGRI 2001), isto é, as indústrias dos campos das ciências e das artes: a indústria editorial, a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 fonográfica, a cinematográfica e até mesmo a indústria do conhecimento tout court, a “indústria-universidade”. A relevância que essas indústrias adquiriram na sociedade contemporânea explica-se pelo fato de que, nas últimas décadas, o conhecimento e a informação passaram a ser os principais fatores de produção, preponderando sobre outros fatores, como os recursos naturais, a maquinaria, o trabalho e o capital financeiro. Um novo capital, de caráter imaterial, um capital epistêmico, composto de conhecimentos e informações (textos, imagens, áudios e vídeos), tornou-se a fonte básica da riqueza. Daí falar-se em um capitalismo cognitivo como fase que sucede o capitalismo industrial (MOULIER-BOUTANG, 2008). A informatização da produção, da circulação e do consumo – a revolução informática – representa, assim, uma ruptura em relação ao processo de industrialização. Daqui em diante, a propriedade de conhecimentos e informações, ou seja, a propriedade imaterial – noção que inclui tanto a de propriedade industrial (patentes, licenças, marcas), quanto a de propriedade intelectual (direitos autorais) –, passa a cumprir o papel de fundamento da ordem econômica capitalista cumprido pela propriedade privada dos meios de produção na sociedade industrial. O marco do neocapitalismo em que vivemos reside, precisamente, na informatização, ou imaterialização, de um meio de produção que se torna, a cada dia, mais essencial: o conhecimento. Um silogismo muito antigo ensina que não há sociedade sem direito: ubi societas, ibi jus, diziam os romanos. Os conflitos de interesses característicos da vida social, que podem ser extremamente destrutivos, são governados pelo direito, que é um dos principais mecanismos de integração da sociedade moderna. Embora isso não seja necessariamente um elogio, é certo que, em grande medida, sem o direito, o mundo seria ingovernável. Ao lado de outras ciências e práticas, de outros poderessaberes, ao direito cumpre normalizar, disciplinar e governar o comportamento dos 2 indivíduos e das populações , aí compreendido, é claro, aquele comportamento 2

A noções de normalização, assim como as de disciplina e governo, é tomada de empréstimo aqui de Michel Foucault (1977, 1997 e 2008), embora este não a restrinja ao direito. Com efeito, Foucault introduz uma distinção entre a “lei” e a “norma”, associando a primeira ao poder soberano, que se exerce através do direito, e a segunda ao poder disciplinar, que se exerce através do saber e das práticas científicas. Nesse sentido, Foucault entende que cumpre precisamente à ciência estabelecer a “norma” que pauta os comportamentos e trançar a linha que separa os corpos “normais” (e premiáveis) e dos “anormais” (e puníveis). Estes últimos são aqueles que precisam ser “normalizados”, isto é, postos na linha. Para se tornar normalizador, o poder deixa de se fundar no direito soberano (na razão de Estado) e passa a se legitimar por meio de um discurso considerado científico. Pensamos que há, de fato, uma transição da lei soberana – e do direito – para a norma disciplinar, todavia é preciso compreender esta transição nos devidos termos. Não é que o direito não tenha função normalizadora na sociedade moderna, mas que o direito já não se funda em si mesmo. Na passagem soberania à disciplina, o poder deixa de legitimar por si próprio (razão de Estado) porque, doravante, ele recorre à ciência para fazê-lo, tornando-se assim um poder “científico”. Por conseguinte, o direito também precisa se tornar científico, e os juspositivistas não se cansarão de mostrar que o direito se funda no fato ou na lógica ou no que quer que seja, mas não na soberania. Logo, dizemos que o direito cumpre sim uma função normalizadora na sociedade pós-moderna, embora tenha deixado de agir pela

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 individual ou populacional que se desempenha no cenário virtual da Internet. A vontade de ordem e a aversão ao desgoverno explicam a proliferação de normas jurídicas que regulam o uso das tecnologias informacionais e criminalizam certos comportamentos, isto é, tornam penalmente típicas condutas como: a transferência de dados entre computadores (download/upload), a reprodução de arquivos e informações, a utilização e modificação de códigos e procedimentos, etc. Do contrário, asseguram os mais alarmistas, correríamos o risco de que a Internet se tornasse ingovernável e acabasse “implodindo” o Estado democrático de direito. Em grande parte devido à sua novidade, o ciberespaço não havia sido dragado, a rigor, pela enorme máquina normalizadora do capitalismo até antes da segunda década do século XXI. Hoje, o avanço da tipificação de condutas online, isto é, o surgimento dos chamados “cibercrimes” (COLLI 2010) e o nascimento da ciberdelinquência evidenciam um processo de criminalização do ciberespaço. O ciberespaço foi transformado em território perigoso, zona fora da lei que demanda a intervenção de forças de segurança não só estatais, mas também privadas. Vale a pena insistir neste ponto: um dos efeitos da concepção neoliberal de governo que se faz sentir nitidamente na criminalização da Internet é a quebra do monopólio do uso legítimo da força; este se tornou, ele mesmo, objeto de negócio. Além disso, constatamos que, de modo geral, as propostas de criação de um marco regulador para o uso da Rede resguardam interesses injustificáveis do ponto de vista do Estado democrático de direito. Esses interesses tentam se impor por meio de leis que bloqueiam a produção e a circulação de informações e de conhecimentos, 3 de maneira gratuita ou comum , de todo modo, “para-mercadológica”, através da Internet (LESSIG 2005). Assim, expõe-se a contradição básica do capitalismo cognitivo, que reside no fato de que, para se manter, ele tem de limitar a produção daquilo que ele mesmo erigiu em fonte da riqueza: o conhecimento e a informação. Em suma, podemos dizer que, a fim de garantir a reprodução do capital, os direitos da propriedade imaterial (patentes, licenças, marcas e direitos autorais) beneficiam grandes corporações e Estados centrais. Enquanto isso, os reais produtores, pesquisadores, escritores, compositores, diretores etc., desarticulados nas periferias das metrópoles e do mundo globalizado, são privados de suas próprias criações. É assim no Brasil, é assim em todo o planeta, como procuramos mostrar, embora de maneira muito sumária, nos tópicos a seguir.

2. A guerra global contra a ciber-pirataria, em três atos

lei e passado a agir pela norma, pois ele precisa fundamentar cientificamente. Em suma, a transição por que passa o poder – de soberano a normalizador (primeiro disciplinar e depois governamental) – também se dá com o direito, que tornou-se normalizador (fundado na ciência) e deixou de ser soberano (fundado em si mesmo) com o advento da modernidade. 3 Compreendemos, com Antonio Negri e Michael Hardt (2001), o comum como uma riqueza de livre acesso e autogerida.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 1º ato: SOPA

O Stop Online Piracy Act, conhecido como SOPA, de origem norte-americana, foi o primeiro projeto de lei a visar especificamente a normalização do uso da Rede, 4 ao pretender proibir a veiculação digital de material protegido por direitos autorais. Proposto pelo Deputado Lamar Smith à Câmara dos Representantes dos EUA – órgão equivalente à Câmara dos Deputados brasileira –, o SOPA resulta de um lobby poderoso, fomentado, sobretudo, pelas indústrias cinematográfica e fonográfica norteamericanas, que têm amargado a redução de suas expectativas de lucro nos últimos anos devido ao vasto compartilhamento de arquivos, tais como textos, imagens, áudios e vídeos, de forma gratuita, pela Internet. De modo geral, o projeto objetiva ampliar a proteção de conteúdo registrado, fornecendo a base legal para a persecução cível e criminal de sites e provedores de acesso à Internet que disseminem, ou facilitem, de qualquer forma, a quebra de direitos de autor. E isto seria valido até mesmo para sites hospedados fora da jurisdição norte-americana. Além da persecução judicial, esses sites poderiam ser alvos de sanções comerciais, sendo impedidos de negociar com empresas norteamericanas. Evidencia-se já aí, claramente, o traço imperial da normalização do ciberespaço: trata-se de um processo global, que já não se retém às fronteiras do convalescente Estado-nação. Nisso, mas não só, a guerra contra a pirataria (war on piracy) funciona de acordo com a mesma lógica que governa as outras guerras democráticas contra o que Assange (2013) chama de os cavaleiros do “infoapocalipse”, que assombram as profundezas da Deep Web: a guerra contra o terror (war on terror), a guerra contra as drogas (war on drugs) e a guerra contra a pedofilia (war on pedophilia). Caso o SOPA fosse implementado, mecanismos de busca online, como o do Google, seriam obrigados a filtrar sites que franqueassem acesso a conteúdo registrado e lista-los como inexistentes. Todo arquivo virtual que fizesse referência, explícita ou não, a material protegido por direitos autorais teria de ser removido da Web peremptoriamente e os responsáveis por sua publicação, hospedagem ou pesquisa estariam sujeitos a persecução criminal, além de responsabilidade civil. De início, portanto, subjetividades coletivas, como sites, provedores e empresas, foram visadas pelo processo de criminalização e normalização da Web. Contudo, após dezenas de protestos de gigantes da Internet como Wikipédia, Facebook, Twitter e Google, entre outros, o SOPA foi considerado uma afronta à liberdade de expressão, que é um civil right fundamental, e teve sua tramitação suspensa no Congresso norte-americano.

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A este respeito, ver o verbete da Wikipédia dedicado ao SOPA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Stop_Online_Piracy_Act. Acesso em 28 mai. 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 2º ato: PIPA

Elaborado em 2011, o projeto de lei norte-americano conhecido como PIPA (Protect IP Act – Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Act) consiste em uma proposta de lei encabeçada pelo Senador Patrick Leahy no intuito de vigiar e punir sites que promovam o livre compartilhamento de arquivos protegidos por copyright, isto é, “pirataria”. Os sites visados pelo PIPA, que se encontram hospedados principalmente fora dos EUA, seriam obrigados a cessar a distribuição de conteúdo resguardado por direitos autorais. Com o PIPA, fica evidente que o combate à pirataria tem como objetivo principal proteger, sobretudo, o interesse de corporações detentoras de direitos de propriedade industrial ou intelectual. Estabelecendo a censura no ciberespaço, o PIPA exigiria a restrição do acesso a sites que, embora espalhados pelo mundo, promovam a reprodução de produtos de marca ou licenciados. De modo semelhante ao SOPA, o projeto possibilitaria o bloqueio de domínios ditos “criminosos” através dos provedores norte-americanos e a persecução judicial de sites de busca ou ferramentas similares que levassem a resultados contendo domínios infratores. O PIPA criminalizaria, ainda, o aporte financeiro gerado pela publicidade para esses sites. Porém, além de sites como You Tube, Facebook e outras redes sociais, os usuários comuns também passam a poder serem condenados por publicações que envolva material protegido por copyright. Nesse sentido, o PIPA representa um avanço importante no processo de normalização do ciberespaço através da tipificação penal condutas praticadas por indivíduos na Rede. Com efeito, temos aqui um processo de criminalização da vida digital, que incide diretamente sobre o ciberdelinquente, ou seja, o internauta. Todavia, o projeto foi alvejado por uma série de protestos, em especial oriundos de corporações como Amazon, Google e Twitter, que contestaram seu caráter restritivo do direito fundamental da liberdade de expressão no contexto da Internet. Em virtude de tais protestos, a proposta de lei, que seria apreciada pelo Senado norte-americano no início de 2012, teve sua votação adiada, sem previsão de nova data.

3º ato: ACTA

Segundo o jornalista australiano Julian Assange, o ACTA foi criado com base em negociações iniciadas sigilosamente, em 2007, pelos EUA, União Europeia, Japão e Suíça. Em um artigo divulgado no site Wikileaks, Assange também acusa o ACTA

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 de beneficiar grandes corporações em detrimento de direitos fundamentais, em 5 especial, a privacidade individual e a liberdade de expressão. De fato, o ACTA – Anti-Counterfeiting Trade Agreement ou Acordo comercial anticontrafação – é um tratado internacional que compromete os países signatários a elaborar normas comuns acerca dos direitos de propriedade industrial e de 6 propriedade intelectual. Em poucas palavras, o tratado propõe a criação de um sistema de vigilância que invade a privacidade dos usuários, uma vez que prevê a inspeção de todo arquivo virtual enviado ou recebido, para detecção da existência de conteúdo protegido por direitos autorais que possa ter sido pirateado. Deste modo, o ACTA tem de ser compreendido como parte de uma iniciativa global de estabelecer o que podemos chamar, com a licença de Michel Foucault (1997), de “ciber-panóptico”. Em grande medida, o ACTA constitui um marco da era da vigilância digital. Com ele, até mesmo o usuário doméstico torna-se objeto de investigação. A presunção de inocência (in dubio pro reo) e a atribuição do ônus da prova quem alega, preceitos universalmente aceitos, juntamente com o princípio do devido processo legal, restam assim são invertidos: o internauta será considerado culpado, e, portanto, sujeito a revista, até que prove o contrário. A lógica securitária que prevalece aqui não difere muito daquela que se encontra, por exemplo, nas zonas alfandegarias de aeroportos internacionais. Do mesmo modo que, por razões de segurança, supõese que cada passageiro é um potencial terrorista, supõe-se também que cada internauta é um pirata virtual em potencial. O controle já não incide sobre o corpo material, mas sobre o “corpo virtual” ou sobre a “alma digital” do sujeito que navega no ciberespaço, o “ciber-sujeito”: presumidamente, ele é também um “ciber-pirata”. Embora ainda não se encontre em vigor, o tratado já foi assinado pelos EUA, União Europeia, Japão, Suíça, Canadá, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Singapura, México e Marrocos. A diplomacia brasileira negocia nossa adesão. Em todo caso, os efeitos mais drásticos, sobre nós, de uma eventual ratificação deste tratado pelo Brasil seriam a censura da Internet, a restrição à liberdade de expressão, a invasão à privacidade, o abandono do princípio da neutralidade (tratamento igualitário de todo dado que trafegue na Rede), em suma, a vigilância integral do uso da Web.

3. Antinomias jurídicas e paradoxos virtuais no direito brasileiro

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Conforme consta em um artigo de Julian Assange intitulado ACTA Trade Agreement Negotiation Lacks Transparency. Disponível em: http://www.wikileaks.org/wiki/ACTA_trade_agreement_negotiation_lacks_transparency. Acesso em 28 de mai. 2014. Neste sentido, ver ainda: ASSANGE et ali 2013. 6 Conferir, a propósito, o verbete da Wikipédia dedicado ao ACTA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_Comercial_Anticontrafa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 28 mai. 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Recentemente, o Brasil participou de um episódio de espionagem digital protagonizado pela Agência Nacional de Segurança norte-americana – espécie de divisão da CIA especializada no combate ao terror, criada pós-11/09 – que envolveu alguns chefes de Estado, incluindo a presidente Dilma Rousseff, conforme se constata em documentos secretos que foram vazados pelo ex-agente Edward Snowden em 2013. Entre nós, a consequência imediata disso foi a retomada, a pedido da 7 Presidência da República, da discussão em torno do Marco Civil da Internet , que vinha parada no Congresso há mais de três anos. Originalmente elaborado em 2009, o projeto do Marco Civil foi concebido como uma “constituição da Internet”, a que competiria a tutela dos interesses dos usuários domésticos e das pessoas jurídicas em atividade no setor. Depois de ter tramitado em regime de urgência, o texto foi aprovado e entrou em vigor a Lei nº 12.965/2014, que define os princípios, garantias e obrigações relativos ao uso da Internet no Brasil. O direito à privacidade é assegurado no Marco Civil da Internet pela condenação da violação, por parte de provedores de acesso, da intimidade e da vida privada de seus usuários. Isto significa que estão proibidos o monitoramento, o armazenamento e a transferência de dados enviados ou recebidos pelos usuários, salvo se tais procedimentos atenderem a ordem judicial específica, de validade restrita ao prazo máximo de um ano. A liberdade de expressão também é protegida pelo Marco Civil, que reconhece aos usuários o direito de se exprimir livremente, sendo todavia considerados autores e responsáveis por todo o conteúdo que publiquem. Os provedores não são responsáveis pelas postagens de seus usuários, no entanto, são obrigados a retirar informações da Rede, caso haja ordem judicial expressa neste sentido. O descumprimento de tal mandado é, obviamente, sancionado pela lei. O Marco Civil da Internet consagra ainda o princípio da neutralidade da Rede, que implica a obrigação de os provedores de acesso tratarem todo dado em tráfego na Internet de forma igualitária, garantindo que navegue à mesma velocidade que qualquer outro dado. A lei resguarda, assim, o direito dos usuários de efetivamente conectaremse à velocidade que contrataram. A exceção ao princípio da neutralidade é a permissão para que os provedores deem preferência ao tráfego de certos dados, desde que isso seja estritamente necessário à fruição adequada de serviços e aplicativos ou, ainda, em situações de emergência. Desta maneira, somente em situações extraordinárias é permitido aos provedores alterar a velocidade do tráfego de dados, devendo as empresas informarem a seus usuários, com clareza técnica, sem descrições genéricas ou resumidas, os motivos da priorização do tráfego de algum tipo de dado. Ainda a respeito da neutralidade da Rede, polêmica considerável se produziu em torno do § 1º do Art. 9º da Lei nº 12.965/2014, que delega a regulamentação da matéria relativa à “discriminação” – interrupção de atividade, serviço, transmissão ou conexão – e à “degradação” – diminuição da velocidade de conexão – do tráfego ao Comitê Gestor da Internet no Brasil. Deste modo, fica a critério exclusivo do Poder 7

A esse respeito, ver o verbete da Wikipédia dedicado ao Marco Civil da Internet no Brasil. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Civil_da_Internet. Acesso em 28 mai. 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Executivo a regulamentação do princípio da neutralidade da Rede, o que, por certo, como já ensinava Montesquieu, constitui invasão da competência precípua do Poder Legislativo. Todavia, esta exceção é a regra entre nós há muito tempo. Em suma, influenciado pelo contexto estratégico geopolítico trazido à tona contingentemente pelo caso Snowden, o Marco Civil da Internet brasileiro parece destoar, de modo geral, da tendência global do processo de normalização do ciberespaço. Com efeito, quando de sua publicação, a lei brasileira chegou a ser considerada por alguns, talvez demasiadamente entusiasmados, como uma “lei anti8 ACTA”. Por outro lado, existem no ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos, duas leis em clara discordância com o espírito Marco Civil da Internet. Trata-se da Lei nº 12.737/2012 – chamada de “Lei Carolina Dieckmann”, em referência à atriz que foi vítima de chantagem por parte de criminoso que havia se apropriado na surdina de 9 fotos íntimas dela – e da Lei nº 12.735/2012 – conhecida como “Lei Azeredo”, por haver sido proposta pelo deputado federal Eduardo Azeredo (do PSDB de Minas 10 Gerais) . Ambas tipificam delitos informáticos e foram apelidadas já em 1999, quando ainda eram apenas propostas, como o “SOPA brasileiro”. Não custa nada lembrar que, em conformidade com um princípio hermenêutico acolhido em todo o mundo dito civilizado, em virtude de ser a norma mais recente, o Marco Civil deve prevalecer sobre essas leis. Ainda vamos ver como o Poder Judiciário encaminhará a matéria in specie, mas é certo que vai ser preciso lidar com alguns conflitos normativos. A Lei Azeredo, por exemplo, prevê a criação de órgãos policiais especializados no combate a crimes cibernéticos, portanto, uma “ciber-polícia”, a “polícia” da Rede, e possibilita a exclusão, pela via judicial, de certos tipos de conteúdo em virtude de seu teor. Em sua proposta inicial, a Lei Azeredo incluía a obrigação “ciber-panóptica” de os provedores de acesso fiscalizarem e armazenarem os registros de seus usuários, bem como a criminalização do compartilhamento de arquivos resguardados por direitos autorais, isto é, a pirataria online. Estes dois últimos itens foram excluídos do texto definitivo da lei por serem considerados violadores do direito dos internautas à 9 privacidade e da liberdade de ir e vir no ciberespaço. Cabe, todavia, perguntar: esta ciber-polícia não está em contradição com o Marco Civil da Internet? De que modo este Marco Civil limita sua atuação?

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É o que pensam, por exemplo, os editores site Techdirt. Para uma ideia de sua posição, ver o interessante artigo Brazil Drafts An ‘Anti-ACTA’: a Civil Rights-Based Framework for the Internet, disponível em: http://www.techdirt.com/articles/20111004/04402516196/brazil-drafts-anti-actacivil-rights-based-framework-internet.shtml. Acesso em 14 mai. 2014. 9 Para mais informações, ver o verbete da Wikipédia acerca da Lei Carolina Dieckmann. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Carolina_Dieckmann. Acesso em 28 mai. 2014. 10 Conferir, a propósito, o verbete da Wikipédia sobre a Lei Azeredo. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Azeredo#Projeto_de_lei_de_crimes_cibern.C3.A9ticos. Acesso em 28 mai. 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 4. Digitalização da Vida Ordinária e Ciber-panóptico

A Rede tornou-se imprescindível em diversos aspectos da vida contemporânea. A cada dia, novos agenciamentos se estabelecem em todos os espaços sociais através do uso da Internet, que revolucionou não só a produção das informações (www), mas também o mercado (.com). As transformações introduzidas pela tecnologia informacional no cotidiano das pessoas em geral são, agora, indeléveis. Como consequência da incorporação da Rede à vida cotidiana – a digitalização da vida ordinária –, nasceu um processo ambivalente de normalização das condutas das pessoas físicas e jurídicas na Web, os “ciber-sujeitos”. Este processo de normalização estabeleceu limites e interdições sob vários aspectos, mas também vem promovendo e estimulando a inovação e a produção sob outros tantos. Dentro disso, o novo direito da informática, o “ciber-direito”, foi e ainda será motivo de muitas disputas acirradas. Atrelada à lógica da produtividade e do lucro, a grande indústria detentora de patentes, licenças, marcas e direitos autorais, identifica na crise dos mecanismos de retenção da produção e da circulação de conhecimentos e informações sua maior ameaça. A garantia da segurança através de ampla proteção jurídica à propriedade industrial e intelectual passa a ser uma de suas principais estratégias de manutenção e expansão. Com a virada do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo, o direito de propriedade imaterial, que inclui interesses monopolistas sobre invenções, procedimentos e protocolos, passa a cumprir o papel outrora exercido pela propriedade privada dos meios de produção. Assim, explica-se o processo de criminalização do ciberespaço que decorre da digitalização da vida ordinária. A segurança da propriedade imaterial, fim precípuo do Estado neoliberal na era da produção informacional, implica a construção de um imenso aparelho, ao mesmo tempo rígido (em termos de hardware) e flexível (em termos de software), de vigilância digital. Em outras palavras, a ciber-produção, isto é, a produção de conhecimentos por meio das tecnologias da informação, tem como correlato, no contexto do capitalismo cognitivo, um dispositivo de segurança ciber-panóptico que 11 vigia, ou pretende vigiar, a totalidade do ciberespaço. No entanto, as normas produzidas nesse sentido são catracas enferrujadas de uma máquina capitalista que, apesar de nova, já envelheceu. O desenvolvimento das tecnologias da informação revolucionou o capitalismo de tal modo, elevou sua produtividade a tal ponto, que novas formas de produção, circulação e consumo, de caráter “para-mercadológico”, acabaram sendo gestadas. A produção biopolítica no seio do próprio capitalismo cognitivo acabou por exceder a axiomática geral do capital. Outras formas de agenciamento com os outros e consigo, formas de vida livres (da lógica capitalista) se tornaram possíveis. A questão é saber o que podem 11

Convém ressaltar a inspiração foucaultiana das ideias contidas nesta passagem (FOUCAULT 1997 e 2008).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 esses novos agenciamentos. Parafraseando Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996), podemos dizer que o ciberespaço, de fato, constitui um plano abstrato territorializado e desterritorializado por processos de poder – o “ciber-poder” imperial, de que a guerra contra a pirataria é apenas um exemplo – e por processos de resistência – como a “ciber-resistência” alter-globalizada exercida pelo ativismo hacker mostra. Além disso, do ponto de vista biopolítico, mais do que promovidas, essas formas de vida diferentes vêm sendo, em geral, bloqueadas ou restringidas pelas novas leis do ciberespaço – que, sob este aspecto, não têm nada de novas. A despeito de sua positividade e de sua efetividade, estas são leis, no mínimo, paradoxais porque são antinômicas em relação ao próprio direito, de acordo com a tradição do Estado democrático de direito. Mais do que o interesse de escritores, artistas, pesquisadores e seus públicos, elas preservam os interesses de grandes corporações, editoras, gravadoras, produtoras e, inclusive, de algumas universidades. Estes interesses são, todavia, inconciliáveis com os valores da liberdade de expressão e da privacidade individual, tais como constitucionalmente consagrados, ao menos no papel, em todo o Ocidente.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A CRISE DE PARADIGMAS: a transição entre o Estado moderno e o Estado social com seu novo modelo de Constituição Edson Vieira da Silva Filho

INTRODUÇÃO

A discussão acerca do estado social de direito em um país de modernidade tardia como o Brasil precisa ser construída a partir de uma leitura crítica que vá além de uma hermenêutica clássica. Para tanto escolhemos a perspectiva da Hermenêutica Filosófica heideggeriana definindo o modelo constitucional de 1988 como sendo marco de validade a tendo em vista os conceitos de horizontes autênticos de Gadammer. Assim, no presente estudo, A discussão sobre a desconstrução (ou destruição na expressão de Heidegger) do paradigma fundamentador do Estado moderno é parte do caminho a se trilhar para a composição do modelo de Estado (Social) Democrático de Direito. Assim procedendo os fundamentos do Estado Social são construídos a partir do necessário resgate do mundo concreto, perdido durante desde o início da modernidade. A ruptura de paradigmas e a sua superação são trabalhadas na perspectiva de Thomas Kuhn, o que finalmente nos levará aos novos olhos, preparados para ver (e compreender, consequentemente efetivar) o novo. Assim a proposta da interpretação do constitucionalismo contemporâneo “à brasileira”, fruto de uma democracia recente com expressa opção pelos valores plurais, sociais garantistas e humanista nasce e começa a desenvolver-se em uma crise de efetividade. O fato é que a Constituição não tem constituído efetivamente. É o que chamamos de crise de efetividade. A má interpretação do novo modelo constitucional faz com que o grau de satisfação de novas demandas seja baixo. A releitura adequada da constituição é imprescindível para que as perdidas promessas da modernidade seja enfim cumpridas.

A RUPTURA DE PARADIGMAS O Estado moderno, nascido no iluminismo e racional por excelência, é assim desde sempre, e suas razões são tão claras que sujeitam o(s) Deus(es) que sempre governaram o mundo. Acreditávamos nisso, e muitos acreditam até hoje, e hereges são só os que se insurgem contra a dogmática de um modelo de Estado e de Direito assentados na razão. As questões sobre o Direito e o Estado tornam-se delicadas por ser assunto pacificado por muito, muito tempo. O fato de tratarmos de algo tão certo como a legitimidade do Estado moderno e da racionalidade sobre a qual ele se funda

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 nos faz buscar uma justificativa na resistência da mudança, tirando a óbvia comodidade. É em Thomas Kuhn e em sua teoria sobre a dificuldade da superação de paradigmas (que vivemos hoje) que achamos fundamento para justificar o turbilhão de ideias e ideais em que nos encontramos, em que pretensões de verdade tentam superar-se e, em um processo complexo, lutam entre si e contra o modelo anterior. A resistência justifica-se na perspectiva de Kuhn, quando notamos um antagonismo, uma séria relutância e estranheza no trânsito entre a proposta do novo paradigma, fundado no pluralismo, e o antigo, monista por excelência. Nesse giro paradigmático, parte-se dos estudos de Kuhn, que critica, a princípio, a forma do historicismo científico. Segundo ele, deveria haver uma tendência de se partir de fatos individuais para conjecturais, dividindo a ciência em ciência normal e ciência revolucionária. Assim, esse autor tem sua primeira base firmemente cravada em paradigmas incontestáveis, já que foram aceitos pela comunidade científica dominante e descartam a experiência como elemento de refutabilidade . Vale ressaltar que Kuhn ainda defende a existência de um paradigma dominante em uma época, o qual, a partir do momento em que não se torna mais possível a manutenção da crença então vigente, a altere. Chega-se ao extremo de conceber a possibilidade de descartarem-se elementos de “menor importância”, pondo em xeque uma tese, até que tais contestações se dêem de forma tamanha, ou tão incisiva, que gerem uma revolução científica, fato inconstante e inusitado, sendo exceção à regra dos paradigmas. Kuhn centra a ciência em paradigmas, os modelos perfeitos e formais ideais, eternos e imutáveis de Platão, com bases históricas, que formam, com o tempo, um conjunto no qual a sociedade científica se baseia. Mesmo em Platão não se elevam os paradigmas à eternidade, mas se lhes atribui status semelhante, já que “sugerem tradições compartilhadas por membros da comunidade científica”, que, faccionando-se, procuram evitar a todo custo qualquer ameaça de contraprova para o contexto vigente, por eles criado, aprovado ou adotado. Uma vez que um grupo (qualquer que seja) assume uma postura paradigmática e não vê na refutabilidade elemento essencial da ciência, tem nele uma ameaça, já que os questionamentos das correntes são questionamentos da pessoa. O conjunto de circunstâncias gera retardos dramáticos em avanços, ou desgastes pessoais exacerbados, já que abandonar o grupo em detrimento de novo paradigma exige perfeita sincronia conjuntural, pois, feita em momento errado, antecipado ou posterior, coloca o membro aventureiro em posição delicada perante os demais. O individualismo sucumbe e, consequentemente, a busca de novas ideias torna-se uma aventura pouco desejada para quem se encontra como membro de grupo estável. Sob essa ótica, o fato novo constitui uma ameaça ao membro do grupo, a não ser que ele pretenda arriscar-se a participar de uma revolução científica

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 e, dessa forma, alterar a regra única de transformação de paradigmas: “a competição entre seguimentos da comunidade científica”. A ciência normal trabalha, então, com paradigmas vigentes em decorrência de sua aceitação e adoção pela comunidade científica, ou por facções dela, formando linhas e normas de condutas, procedimentos e pesquisas, consolidando bases comuns de aceitação. Portanto, a estrutura paradigmática atende aos interesses de um grupo que pretende manter o domínio de certa área de conhecimento. Quando sua quebra é ameaçadora a ele, a estrutura do paradigma é, por vezes, flexibilizada, para que tal “verdade” permaneça vigente pelo período mais prolongado possível, até que, via de regra, por meio da revolução científica, dê-se a alteração, indesejada, mas imperativa. O momento da quebra do paradigma dá-se agora, com a delação do discurso moderno, reinante até então, e a nova proposta, pós-moderna, deslocando o enfoque dado ao antropocentrismo tradicional. O pluralismo deve assumir definitivamente o centro do palco em que o homem contemporâneo deve ser a personagem principal. O apego ao antigo, seguro por nos ser familiar, faz com que o fenômeno aqui descrito nos deixe mais confortáveis em relação ao paradigma anterior, relutando para que as alterações necessárias se dêem e para que o novo paradigma seja implantado, superando seu antecessor. Aqui reside a resistência da quebra da forma de pensar (e de agir) pela qual passamos neste momento de transição. Acontece que a transformação não se dá aos poucos, em etapas, especialmente em períodos de mudança paradigmática, em que no limite da transição se faz necessária a opção clara e definida de qual forma de pensar será assumida como norteadora da nova forma de pensar o mundo, entender as coisas, praticando a aplicattio, em que em um único ato, nas palavras de Streck, se interpreta e age (aplica) em uma dinâmica complexa. A crise de paradigmas por que passa o Direito é em última análise a crise do modelo de Estado, que surge em 5 de outubro de 1988, quando nossos representantes se reuniram em Assembléia para constituir um novo Estado democrático de direito, tendo como objetivo primordial estabelecer princípios fundamentais à dignidade da pessoa humana. Considerada esta de natureza plural, cria-se, assim, uma união fraterna, que tem por base a solução pacífica dos conflitos, surgindo então uma nova ordem posta.

O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO Direitos sociais, liberdade e igualdade tratadas, até então, em poucas palavras passaram a constituir o norte do Brasil contemporâneo. O ideal estava lançado. Nada de pronto e acabado, mas tão somente um projeto de longa duração. Metas e programas deveriam ser criados, e adequações às novas propostas seriam imperativas para que as expectativas não se frustrassem em um curto espaço de tempo. Nesse sentido podemos citar Maia quando afirma que a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Constituição “não é mais um texto que sirva como um esboço orientativo que deve ser simplesmente respeitado pelo legislador, mas sim um programa positivo de valores que deve ser atuado pelo legislador”, o que lhe dá um caráter transformador . Com ela surgem os direitos sociais e disposições programáticas que dificilmente chegam a um bom termo, pois, sob a escusa da falta de recursos, ou reserva do possível, a administração pública sonega aos marginalizados seu direito fundamental ao mínimo existencial.

A partir de 1920, na Europa, é que se tornou possível o controle judicial de constitucionalidade das leis, contrastando com a realidade norte-americana. Pode-se falar em neoconstitucionalismo, nas palavras de Carbonell, já há algum tempo: “(...) probablemente se pueden rastrear postulados neopositivistas desde los años 30 de siglo XX” . Ainda podemos dizer, a respeito dos textos constitucionais e seu surgimento, que el neoconstitucionalismo pretende explicar a un conjunto de textos constitucionales que comiezan a surgir dispués de la Segunda guerra mundial y sobretodo a partir de los años 70 de siglo XX. Se trata de constituciones que no se limitan a establecer competencias y a separar a los poderes públicos, si no que contienen altos niveis de normas materiales o substantivas que condicionan la atuación del Estado por medio de la ordenación de ciertos fines y objetivos. Además estas Constituciones contienen amplios catálogos de derechos fundamentales, lo que viene a suponer un marco de relaciones entre el Estado y los ciudadanos muy renovado, sobretodo por la profundidad y grado de detalle de los postulados constitucionales que recogen tales derechos.

Um velho modelo, uma velha racionalidade e uma nova proposta de vida. Na metade do século XX, consolidou-se o entendimento de que as normas constitucionais são normas jurídicas dotadas de superioridade hierárquica, são imperativas e estão à disposição de todos os jurisdicionados. O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamental em todo o mundo ocidental contemporâneo, é o novo paradigma. O novo papel da Constituição é ser menos normativa e mais dirigente, senhora de metas e ideais, sem mecanismos próprios para efetivação de suas metas. A carta que funda o novo Estado cria e recria as bases que estabelecem metas utópicas, inatingíveis, mas nortes perfeitos a serem seguidos. O direito e seus bens tutelados são dinâmicos, e as necessidades mudam constantemente, com a sociedade, que deve ser vista sempre em um contexto histórico, geográfico e temporal. Na verdade as mudanças ou necessidades mundiais poderiam receber ajuda do legislador ordinário e não do constituinte. Importante frisar que a Constituição nasce com o fito de limitar a atuação estatal, no interesse da liberdade e dos direitos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dos indivíduos, tudo isso graças a um substrato filosófico e ideológico: o humanismo, no qual está contido, dentre outras coisas, o direito a um mínimo existencial. No século XX, devido à total subversão dos valores a partir da nova perspectiva do papel do homem frente ao Estado, as Constituições foram ignoradas ou manipuladas em seu aspecto positivo-formal, como, por exemplo, valendo-se de meios nada ortodoxos para justificar o nazismo. O fim da Segunda Guerra Mundial trouxe um espectro da banalidade do mal, produzindo diversos efeitos na humanidade. O maniqueísmo chega ao seu apogeu, e o mundo divide-se em dois: bom e mau, certo e errado, dominadores e dominados ou excluídos, fazendo crescer a marginalização. A busca da superação de tal visão simplista, gerada em boa parte pelo positivismo jurídico ortodoxo, leva-nos ao retorno à ideia de valores, com ideais de justiça e humanidade entre os povos. O positivismo antropocentrista, com início no século XVI, com Bacon, Galileu e Descartes, teve seu apogeu no século XVIII, com Augusto Comte e, posteriormente, em meados de do século XX, com a escola de Frankfurt, representada por Adorno, Hokerheimer e outros expoentes em que o positivismo, sinônimo de previsibilidade e de calculabilidade, promessas maiores da modernidade começam a demonstra sinais de fraqueza, sendo lançada a semente do pós-moderno caminhando para a conclusão de que “o velho já morreu e o novo ainda não nasceu”, o que se traduz na máxima pós-moderna: “Sabemos o que deixamos, o que não queremos, mas não sabemos o que vamos construir”. Com isso foi introduzida nas Constituições a ideia desses valores como fundamentais, bem como para a organização dos Estados para atingirem tal finalidade, passando a ser as ideias centrais das cartas constitucionais. A Constituição brasileira também se insere nesse contexto histórico, por causa dos períodos ditatoriais, “os anos de chumbo (...)” quando “militares e golpistas (...) de uma forma ou de outra se negavam ao bom combate com as armas limpas da democracia” . Os resíduos da ditadura militar de 1964, da carta semioutorgada de 1967 e dos atos institucionais subsequentes, dos quais se sobressai o AI-5, com os olhos focados na ordem e segurança interna , precisavam ser abolidos a todo custo no novo diploma, com o resgate da dignidade, liberdade, direitos políticos e individuais, fato que o marcou. Além disso, um novo norte foi posto. Os direitos sociais passam a integrar a meta do novo Estado. A nova ideia de Estado acabou consagrando como fundamento principal o homem e sua dignidade, mediante a persecução do bem-estar humano, porque é desejável que as pessoas tenham condições dignas de sobrevivência. Ao conformar-se ao Direito, por meio de princípios, a Constituição coloca a seu serviço o instrumento jurídico do Direito Constitucional, retirando-o do debate meramente político, e tal instrumento é dividido em duas grandes frentes: a existencial e a operacional.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Com a cláusula pétrea, retirando do legislador ordinário a possibilidade de alteração, do ponto de vista existencial, houve uma proteção dos princípios. Do ponto de vista operacional, a jurisdicização constitucional atribuiu eficácia jurídica e, portanto, alguma forma de sindicabilidade judicial aos efeitos práticos que esses princípios dotados de superioridade hierárquica possam produzir, tornando-os mais consistentes e eficazes. A introdução baseada no preâmbulo tem por base a ideia de que o ordenamento é “...operacionalmente importante para a dogmática; nele se incluem elementos normativos (as normas) que são os principais, e não normativos (definições, critérios classificatórios, preâmbulos etc.) (grifo nosso). Caso tal frustração efetivamente se desse, o projeto de uma sociedade fraterna sucumbiria ao peso da prática divergente do discurso fundante. Ainda sob o prisma da fraternidade e da igualdade, temos a proposta implícita de uma oferta de um mínimo existencial, como prioridade absoluta no novo Estado. Uma meta, um programa, um princípio a ser regrado. A igualdade e as garantias do caput do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988 mostraram-se formais. A materialização dos preceitos constitucionais deu-se de forma mais imediata no tocante a direitos costumeiramente violados no estado de exceção do qual recentemente saíamos. A palavra liberdade e o conceito de novos direitos, principalmente de ordem social, saem do esquecimento para assumir o paradigma novo, ou seja, de um recémformado Estado de democrático de direito. Tortura, liberdades, informações, prisões, penas e outros congêneres foram rapidamente materializados, resumidos em princípios de ordem mais tendente ao normativismo do que ao caráter programático, constituindo regras, em última análise. Isso não é efetivamente novidade no sistema jurídico instituído durante os períodos de regimes de exceção, uma vez que o fim, manutenção do poder, hoje substituído pelo fim, manutenção de uma pretensa ordem social, seja justificador dos meios. Colabora com esse fenômeno o fato de que “...em países marcados pela ausência de sólidas tradições democráticas, é com a instituição policial que a comunidade identifica a própria atividade judicial.” As novidades de ordem formal, naturalmente, foram de pronto acolhidas como sendo características do novo modelo adotado, até que pouco a pouco se descobriu que os direitos têm custos e que um novo modelo formal, com um grande volume de normas de caráter programático, está distante das condições materiais, havendo em um curto espaço de tempo a instalação de uma crise. O espaço dado aos direitos sociais ficou quase como que em segundo plano, restando pouco ou nenhum recurso para a satisfação dos direitos mais fundamentais. Os que permitem uma existência da pessoa humana em níveis mínimos de tolerância. O limite da linha da miséria não poderia ser quebrado e, se fosse, deveria ser restaurado de pronto pelo Estado com obrigações prestacionais positivas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Assim que a considerável distância entre o discurso e a realidade foi notada e nenhuma solução ligada à implementação de mecanismos que viessem a equalizá-la foi proposta para minimizar a crise, houve uma sensação de vazio e de impotência. O novo e o velho, em existência concomitante, trazem a crise do discurso (e do Direito, que se manifesta em especial) que se revela incapaz de garantir a vida digna e o direito ao mínimo existencial à maioria de seus cidadãos, nem mesmo pela atuação do Estado. Mecanismos representativos que buscavam soluções em interpretações, em especial dos princípios, esbarraram no fato de que não há na hermenêutica o propósito da construção, mas sim de uma nova avaliação do construído. Infelizmente a relutância na implementação dos direitos sociais e do acesso à justiça são véus que pesam muito e que devem ser puxados com toda força, pois a novidade existe e não pode ser ignorada. A forma do Estado assistencialista anteriormente vigente deixou profundas marcas no novo Estado constituído e, consequentemente, o recurso paliativo, pelo qual se trata mais dos sintomas do que do mal, passa a ser uma vertente que busca acalmar a inquietude trazida pela crise. O ideal não pode suplantar o real. Forma e matéria não se igualam por palavras, a sociedade fraterna e igualitária deve sair do princípio constitucional, migrando para os ramos infraconstitucionais, agregando-se a eles, quando o lume vindo do claro, da clareira, indicar tal exigência . A relação entre o Direito posto e a realidade vivida pelos destinatários da norma, seus reais constituintes, deve ser de movimento, de vir a ser, de superação e da superação, que em uma busca contínua de legitimação, mesmo que utópica, corresponde a uma pretensão inafastável. Assim, cultiva-se a permanente crise do Direito e seu trato. Se entendermos o Direito como algo em movimento contínuo, podemos crer em uma permanente crise, o que pode ser bom ou ruim. A leitura do posto nos dirá se a crise faz com que a norma seja constantemente revista e reconstruída ou está fada à estagnação, fazendo com que haja uma obstrução no curso do movimento, com as consequências mais danosas que possamos imaginar. Nova visão obtida sob os caminhos de uma velha sistemática é uma repetição do posto, com novas palavras. Dessa forma, a crise mantém-se, mas o rótulo e a embalagem são mudados, com o mesmo cerne, em assincronia com a realidade social. O novo princípio gestor, atrelado às amarras do método hermenêutico antigo, agrava a crise já instalada. O momento é de mudança de paradigmas e esta não ocorre sem “ranhuras”; totens, ícones e dogmas têm de ser questionados e, se for o caso, quebrados para abrir o novo caminho que viabiliza a Constituição brasileira de 1988.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO “À BRASILEIRA” A elaboração de uma Constituição em regra é fruto de reações a situações indesejadas, superadas pela evolução social com o tempo e a prática de cidadania, guardando uma certa rigidez que só se altera quando se (re)constitui, blindando-a contra interesses políticos eventuais . Assim, o perfil político de uma Constituição mostra uma forte reação a uma situação anterior, indesejada e superada, devendo ser compreendida mediante uma aprofundada pesquisa dos acontecimentos políticos. Consequentemente, forma-se um amálgama que a blinda contra a reprodução dos fatos que a fizeram surgir e que se perdem no tempo e na memória, impedindo que regras adotadas em determinadas épocas e situações sejam identificadas e impedidas de serem reutilizadas, uma vez que foram condenadas pela moral dos homens e repudiadas pelo processo civilizador . Um dos pilares pós-modernos é a premissa de que o homem, agora repensado, não é mais aquele do “individuocentrismo” do século XVIII, mas sim um ser social e plural. Portanto, quando os representantes do povo brasileiro se reuniram em 5 de outubro de 1988, em Assembleia Nacional Constituinte, com a finalidade de fundar um Estado, dentre outras características, destacaram como fim supremo a formação de uma sociedade fraterna, plural e democrática . De acordo com a mais pura vertente pós-moderna, esqueceram-se, porém, de que a norma, “devir”, não altera a realidade, mas apenas a regula. O primeiro pós-guerra trouxe fundamentais alterações na estrutura das Constituições, em especial das ocidentais, formadas com base no Estado de direito legislativo, que de uma certa forma se separou da sociedade pela ciência jurídica positiva. O retrato do novo modelo constitucionalista trazia um formato de Constituições longas e densas, menos direcionadas à forma de constituir o Estado e mais voltadas à construção de um projeto civilizatório e com finalidade transformadora, nas quais direitos fundamentais buscam o resgate de promessas não cumpridas da modernidade . O novo modelo não conseguia sustentar o juspositivismo, nem o já superado jusnaturalismo, e tinha em seu corpo a clara superação do projeto liberal, sendo marcado pelas mais diversas pretensões sociais, afastando-se do modelo das leis aglutinadas em códigos e aproximando-se do modelo de princípios, formadores de um vetor de sentido do Estado criado sob a forma democrática de direito. Fica claro que o novo constitucionalismo rompe com a filosofia da consciência objetiva, aproximando-se de um modelo que funciona dentro da filosofia da linguagem intersubjetiva, naturalmente incompatível com o positivismo construído sobre a pretensa neutralidade e abstração inerente à ciência moderna. A ruptura ou superação do paradigma jurídico formal positivista, por ser condição de operacionalidade do diploma que, pelo menos nos países de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 modernidade tardia, surge com baixa constitucionalidade, é o maior problema a ser enfrentado, pois falsas promessas da modernidade, como a de ofertar segurança jurídica, funcionam como ameaça à adoção do novo. Com isso, a subversão na racionalidade normativa e, consequentemente, no princípio da legalidade “(...) mediatizado, agora, desde a supremacia da Constituição (...)”, aparece (e é alardeada por muitos) como uma ameaça à segurança jurídica, trazendo assim um reflexo no que diz respeito a concretudes das propostas constitucionais e causando necessariamente uma tensão entre poderes, já que, diante da omissão do executivo ou da falha do legislativo, cabe ao judiciário em controle de constitucionalidade preservar a operacionalidade (e, consequentemente, a densidade) da Constituição. Entre o modelo liberal, de natureza não-intervencionista, e o modelo social, com metas assistencialistas, surge o Estado democrático de direito, que com o neoconstitucionalismo dá à Carta Magna forte poder normativo, atribuindo-lhe uma força criadora/transformadora, que se não concretizados levam a um esvaziamento de suas propostas. É importante lembrar Streck, quando afirma que, “no momento em que o mundo é varrido por uma fustigante onda neoliberal, é inexorável que a questão da função do Estado e do Direito seja (re)discutida, assim como as condições de possibilidade da realização da democracia e dos direitos fundamentais em países recentemente saídos de regimes autoritários...” . A legitimidade de todo o processo encontra-se no reconhecimento e no respeito ao disposto na Constituição, como sendo efetivamente os valores eleitos para servirem de norte na construção de um projeto civilizatório, chamado de tradição, que se materializa em princípios constitucionais. O novo perfil de Constituição reclama sua autoaplicabilidade, já que, além da função diretiva, possui função constitutiva, que se deve preservar por meio do exercício da jurisdição constitucional, em especial em condições de emergência. Isso porque as necessidades decorrentes dos direitos fundamentais não podem esperar a ação legislativa, que, com sua esfera reduzida, amplia a esfera de ação do judiciário, o que sempre faz com que reste uma tensão entre poderes. De forma reacionária surge a discussão sobre a autoaplicabilidade dos princípios, superada . A atual Constituição foi forjada com bases democráticas que implicaram a construção de um Estado democrático de direito, como resposta a outra que abrigava em seu texto normas de caráter repressivo. Ocorre, porém, que “o tempo amortece as consciências, ou elas deliberadamente não querem lembrar (...)”, havendo o risco de que, por “equívoco ou por decisão (...)”, seja colocado o “cavalo de Tróia da ilegalidade no meio democrático que avidamente já se chamou platina tenra” . Das promessas constitucionais à construção do direito existe uma elite ainda mantida por um discurso falacioso, marcado por inversões de valores, promovidas por “uma sociedade produtora de mercadorias, essa organização social engendra a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 ‘coisificação de pessoas’ (força de trabalho como mercadoria) e a ‘personificação de coisas’ ” . O paradigma anterior é construído sobre a ideia de que o liberalismo individual burguês do Estado moderno busca no conservadorismo a manutenção dos ideais de vida nele estruturados e ameaçados com o advento do novo estado de coisas, proposto pelo novo paradigma originário do Estado democrático de direito de natureza social. Um discurso maniqueísta, elaborado sobre dicotomias naturais (paradigma sujeito-objeto), disseminado pela mídia de massa, vale-se de recursos diversos como o da promoção da pressão social e a propagação do caos e promessas de uma pacificação social trazida por propostas contidas nas teorias da lei e da ordem e da tolerância zero, partindo-se da premissa de que “estatutos legais de natureza preventiva e repressiva constituem elementos fundamentais da manutenção da ‘ordem e progresso’ ” . O novo Estado democrático de direito, ao contrário do esperado (desejado), acaba por aguardar uma presença mais marcante do governante, não pelo cumprimento dos direitos fundamentais, mas pelo combate aos desordeiros , clamando por (re)pressão, pedindo por mais polícia, mais presença do Estado, mais prerrogativas investigatórias e menos direitos e garantias individuais. Quando o próprio povo, pressionado, pede menos liberdade em um Estado democrático de direito em prol de mais segurança, existe uma falsa impressão de legitimidade respaldando arbitrariedades estatais. Aliás, alerta Zaffaroni , a respeito dos riscos advindos dos operadores do Direito e de seus eventuais excessos em nome do controle social, exercidos sobre grande parcela da população e clamado por outra. É a insegurança social, retrato de um novo paradigma em que a Constituição revela uma baixa constitucionalidade, demonstrando grandes dificuldades na concretização de projetos e propostas (compromissória e dirigente que é) e que aos poucos vai perdendo sua finalidade máxima para atender aos anseios e necessidades individuais e coletivos de uma nova sociedade plural. O Estado torna-se, assim, o órgão repressor arbitrário ou discricionário, detentor de instrumentos repudiados e execrados pelos que são por ele excluídos. A necessidade da retomada (ou da busca) das promessas da modernidade muda o perfil da Constituição, que passa a ser mais do que um mero instrumento de estruturação e regulação do Estado e sim um mecanismo de efetivação de direitos fundamentais e de concretização das promessas não cumpridas da modernidade . Com o passar dos “gloriosos 30” , do século XX, as contas não tiveram o resultado esperado no balanço final da proposta da modernidade, havendo reduzido superávit (de bem-estar social) na Europa central e um significativo déficit no resto do mundo, o que, somado à queda da União Soviética e à ruptura do paradigma bipolar vigente no mundo e característica da modernidade, fez com que a máxima que assumia o fracasso da modernidade, com a quebra de suas promessas, desse lugar a um mundo diferente, a um mundo global, o que nos conduziu ao momento atual.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Acontece que “(...) já que tais promessas não se realizaram, a solução que o establishment apresenta, por paradoxal que possa parecer, é o retorno ao Estado (neo)liberal. Daí que a pós-modernidade é vista com a visão neoliberal. Só que existe um imenso déficit social em nosso país . O fracasso moderno pode realmente ser comprovado considerando-se o malogro das propostas científicas e da pretensão de categorização de tudo que existe, como se pudéssemos enquadrar toda realidade em teorias e métodos abstratos. O fato é que “as promessas da modernidade só são aproveitadas por um certo tipo de brasileiros (...) pesquisa recente mostra que os excluídos são 59% da população do país (...) e que” a aceitação da exclusão social é cotidianamente reforçada/justificada pelos meios de comunicação . Por outro lado, no que concerne à satisfação de direitos fundamentais, observamos uma grande lacuna, que ainda pode e deve ser objeto de retomada e, sob a perspectiva de nosso estudo, tal resgate deve dar-se a partir do Direito. Obviamente não de um direito caracterizado pelos modelos do Estado liberal ou do Estado social, paradigmas já esgotados, mas sim do Estado democrático de direito, no qual uma nova perspectiva de criação jurídica e aplicação do direito deve ser concebida a partir de um novo modelo de Constituição, que só poderá ser pensado quando efetivamente o modelo positivista, que também deverá ser superado, tiver um substitutivo adequado. Isso deve ocorrer especialmente para os países periféricos ou de modernidade tardia, onde a modernidade enquanto carga compromissória passou ao longe, mas que funcionou com perfeição como uma bomba teórica que fez enraizar em toda cultura, sobretudo a jurídica, um modo de pensar fundado no paradigma sujeitoobjeto, ignorando a viragem linguística e o atravessamento do direito pela linguagem e da linguagem pela filosofia. Assim, em democracias tardiamente instaladas e em países cujo bem-estar social passou ao longe vem a resposta por meio de um neoconstitucionalismo de natureza principiológica, no qual princípios possuem força normativa e a Constituição é dotada de função transformadora na sociedade, mediante o resgate das promessas não cumpridas da modernidade que nos legou apenas parte de seu conteúdo, inegavelmente rico e proveitoso, mas superado e de difícil operacionalidade. Isso porque o homem de hoje, reconhecido como plural e igual em suas diferenças, não pode ter suas necessidades e direitos fundamentais enquadrados como direitos e necessidades de um gênero, mas sim de um ente único, individual e individuável, que não pode ser contido, compreendido ou ter seus direitos satisfeitos por métodos e/ou idealizações que afastem o mundo concreto de sua existência.

DEMANDAS E CRISE DE EFETIVIDADE: A CONSTITUIÇÃO DEMORA A CONSTITUIR

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O novo modelo constitucional tem o papel de modificar as estruturas sociais no sentido de proporcionar um ideal de “vida boa”, elencado em uma pauta de valores, objetivos e finalidades sociais que constituem o novo Estado criado para cumprir promessas, não mais as da modernidade, mas feitas por nós, para nós mesmos. É claro que ainda existe o caráter estruturante do Estado e de seus órgãos, bem como regulador de seus mecanismos de ação administrativa, mas como mecanismos operacionais para que se obtenha o fim principal de construção de um projeto civilizatório e de um modelo de sociedade idealizada em um Estado democrático de direito. Não se trata de um diploma que regulamenta ações de forma exaustiva, mas que oferece diretrizes, compostas de princípios e regras, trabalhados agora sob nova perspectiva como visto anteriormente. Diante da nova Constituição nasce um novo Estado, que, diferentemente do anterior, se vê atravessado pela sociedade civil e busca ocupar espaços públicos. O novo constitucionalismo, entretanto, encontra-se preso a paradigmas que regiam o constitucionalismo moderno, de raízes positivistas e de cariz liberal individual burguês, que reduz em muito a concretização (operacionalidade), dando ao diploma um baixo grau de constitucionalidade. O problema de ordem pragmática nasce do baixo grau de compreensão do novo constitucionalismo e da necessária superação do paradigma positivista, que obstaculiza a plenitude operacional do conteúdo constitucional. Entre o modelo liberal, de natureza não intervencionista, e o modelo social, com metas assistencialistas, surge o Estado democrático de direito, que com o neoconstitucionalismo dá à Carta Magna forte poder normativo, atribuindo a ela uma força criadora/transformadora, que se não concretizada a levam a um esvaziamento de suas propostas. A legitimidade de todo o processo encontra-se no reconhecimento e respeito ao disposto na Constituição como sendo efetivamente os valores eleitos para servirem de norte na construção de um projeto civilizatório, que pode ser chamada de tradição, que se materializa em princípios constitucionais. O novo perfil de Constituição reclama sua autoaplicabilidade, já que o texto constitucional tem além da função diretiva a constitutiva, que se deve preservar mediante o exercício da jurisdição constitucional, em especial em condições de emergência, já que as necessidades decorrentes dos direitos fundamentais não podem esperar a ação legislativa, uma vez que com sua esfera reduzida amplia a esfera de ação do judiciário, o que sempre faz com que reste uma tensão entre poderes. Os regimes militares que antecederam a formação dos Estados democráticos de direito nos países de modernidade tardia necessitavam de um discurso técnico (pseudo)científico, com bases teóricas confiáveis para se preservarem, por meio da proteção das elites classistas que geraram (e sustentaram) um esquema de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dominação que, mesmo fadado ao fracasso, precisaria construir um sistema de retroalimentação preservacionista . A crise de entendimento do novo paradigma nasce de um novo projeto civilizatório, nascido de um pacto formal em busca de mecanismos de concretude, traçando compromissos a serem cumpridos desde já e com intenção perene, tendo como meta a formação e consolidação de um Estado destinado a promover o bemestar social. A vontade de ruptura com o modelo individual não basta para operar mudanças em um passe de mágica, pois o modelo plural, fruto do Estado democrático de direito, encontra obstáculos no constitucionalismo firmado no paradigma do Estado moderno. A crise de efetividade do modelo democrático associa-se, conforme visto, à crise da modernidade, do Estado nacional em seus modelos tradicionais e da própria democracia. O papel da doutrina, enquanto mera reprodutora de ideais burgueses, mostrase elementar na crise, por procurar demonstrar a adequação da racionalidade moderna ao paradigma do Estado democrático de direito. Dos dualismos que marcam a modernidade, mais um vem somar-se aos entraves para a efetividade constitucional. O que diz respeito à natureza prática dos cursos de direito, cursos preparatórios para concursos e tendência dos manuais práticos a doutrina utilizada para a formação dos novos profissionais do direito acaba sendo o produto da retroalimentação da cultura a ser superada. Vale dizer, usamos do mesmo, travestido de novo, para superar-se. Assim, o direito acaba reduzido a um saber técnico racional instrumental. A separação do prático e do teórico, como se o último fosse um exercício meramente especulativo e de pouca (ou nenhuma) valia norteia os profissionais do direito no sentido de apegarem-se mais e mais aos dualismos, próprios do esquema sujeito-objeto, inadequado ao modelo constitucional posto . Dessa forma, um dos obstáculos da prática constitucional adequada encontrase na estrutura de formação teórica inadequada. A intersubjetividade, elementar ao modelo democrático, é abandonada. A prática do direito vale-se de (de)formadores de opinião e de (re)construtores de doutrina por meio de uma interpretação inadequada do texto constitucional, objetificado e assujeitado ao intérprete ainda apegado à filosofia da consciência, que não permite que a Constituição se desvincule operacionalmente do modelo positivista. Os mecanismos de ação constitucional acabam prejudicados, por serem incompreendidos ou por não possuírem (segundo o modelo de racionalidade inadequado à sua operacionalidade) mecanismos que permitam sua concretude. Bolsan firma que é necessário que texto e contexto se retroalimentem . Ao contrário disso, textos se retroalimentam (tautologicamente) de textos, indo de encontro aos contextos, perdendo os horizontes. Não percebemos um processo de contínua reconstrução (imprescindível), mas tão somente uma constante reprodução do modelo liberal vigente até então.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Uma Constituição com alto grau de efetividade é imperativa para que sua força transformadora se faça sentir, impulsionando assim o atual projeto social adotado pelo Estado brasileiro. O problema reside no fato de a adoção do novo modelo não implicar automaticamente o descarte do anterior, ainda presente na racionalidade jurídica. As mudanças não se operam (nem deveriam operar-se) com a simples edição do texto novo. Mecanismos inadequados (de ação e de compreensão) implicam baixa constitucionalidade, retratando claramente a resistência do antigo frente o surgimento do (não tão) novo, (pro)posto desde 1988. A crise instalada faz-se sentir com mais força nos países de modernidade tardia, ou países marginais , até por não haverem provado dos frutos dos “gloriosos 30” . Os direitos fundamentais são qualidades de expressões de valores e necessidades consensualmente reconhecidas pela comunidade histórica , positivadas no texto da Carta Magna. Sua reconhecida prevalência sobre outros direitos lhes dá, na Constituição Federal brasileira de 1988, um status privilegiado, estando eles inseridos em locus determinado, ganhando o status de cláusulas pétreas, por serem a “base da base” do projeto civilizatório contido na pauta de valores que instituem o Estado. Torna-se evidente que a Constituição brasileira não trabalha com um sistema fechado e terminado, permitindo a abertura para direitos de conteúdo homogêneo , com uma uniformidade de conteúdo. A Constituição Federal de 1988 optou pelo critério formal de agregação dos direitos fundamentais, sem que isso viesse a prejudicar a classificação de direitos fundamentais na esfera material, ou seja, mediante a análise de sua essência. Nessa linha de raciocínio deve-se ressaltar que a Constituição Federal de 1988 passou por um processo histórico e político que lhe deu características peculiares tendo um caráter compromissório, programático e uma natureza plural apresentando naturalmente uma proposta transformadora e buscando o resgate das promessas incumpridas da Modernidade . O novo paradigma surgiu assim, como fruto de um momento histórico, marcado pelo paradoxo que nasce com o Estado social proposto pela Constituição Federal de 1988, com bases plurais e índole liberal, confrontando-se com a antiga ordem, de matiz liberal individual burguesa. Vale citar Marrafon dizendo sobre o novo modelo constitucional e da tarefa dos juristas frente a ele: Enfim, a superação da crise do estado brasileiro e da crise de efetividade dos preceitos programáticos constitucionais deve passar pela formulação desse pacto, compromissado com uma intensa “vontade de constituição”, com vistas a realizar o modelo de bem-estar comprometido e não cumprido, ao invés de se apagar ao reformismo neoliberal inconstitucional, o qual coloca em xeque a estabilidade

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 institucional brasileira, e torna irrealizável uma Constituição que, nas condições históricas atuais, urge defender.

Sem a adoção de um novo paradigma intersubjetivo em que percebamos e tratemos a Constituição como mecanismo de transformação, teremos um texto constitucional longo, vago e de difícil concretização, pois o instrumento depende de quem o opera e responde à destreza de seu operador. Somente se entendermos que a atual Constituição de natureza dirigente, compromissória e transformadora necessita, para que funcione, de um mecanismo de concretude de direitos fundamentais que efetivamente constituam o projeto civilizatório formalizado em 1998, extrairemos algum fruto da proposta de Estado sob a qual vivemos. Portanto, (...) se puede afirmar que toda Constitución incorpora un ingrediente utópico que sirve de marco de referencia de lo que una sociedad entende como deseable para si misma en el futuro, de aquello que se comprende como metas que se tienen que ir logrando a partir de una nueva organización jurídica-política tambien como un parámetro de legitimación del poder público.

Em suma, só se obterá a concretude (constitucionalidade) da Constituição Federal de 1988, se de fato forem criadas uma nova teoria das fontes e das normas e uma hermenêutica adequada ao novo constitucionalismo que quer nascer. No novo modelo o catálogo de direitos fundamentais da Constituição Federal de 88 foi elaborado de forma ampla e possibilitando ainda mais sua extensão, quando menciona a inclusão de outros direitos de natureza assemelhada, contendo normas de aplicação imediata, contida e limitada em seu corpo. Como exemplo, pode-se mencionar o princípio da dignidade humana, que, com certeza, não é passível de delimitação expressa em virtude de sua amplitude, constituindo assim uma categoria aberta e em construção contínua, de caráter irrenunciável e inalienável, não podendo consequentemente ser objeto de restrição ou supressão , dando à categoria um caráter quase metafísico . Na perspectiva do Estado democrático de direito há ofensa à dignidade da pessoa humana sempre que ocorre uma reificação dela, priorizando o aspecto material ao pessoal. Sua natureza implica uma leitura que leve à maior abrangência, visto que é impossível positivar-se toda a amplitude que lhe é inerente. Assim, a interpretação do catálogo de direitos fundamentais deve se dar de forma extensiva e nunca restritiva, pois só assim e Estado democrático de direito, na forma proposta por nossa Constituição realiza-se com plenitude. Os direitos fundamentais estão diretamente ligados à ideia de uma democracia legítima sendo essenciais para o exercício de liberdades e garantia da igualdade de chances, o que nos leva de volta ao primado dos fundamentos da legitimidade de nosso Estado: a liberdade, igualdade e fraternidade (lida aqui como tolerância).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Assim, esses direitos não são “...mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas premente necessidade...”, e sua (so)negação implica ferir de morte valores elementares como vida, liberdade e igualdade . A crise do direito no Brasil é a crise trazida pela não superação do modelo liberal no qual o sujeito, proprietário de mercadorias tem o Estado como mecanismo destinado à consecução de seus interesses enquanto classe burguesa. Na verdade o Estado e o Direito devem ter suas funções rediscutidas no que diz respeito à realização da democracia e dos direitos fundamentais, já que até hoje sempre serviram para atender generosamente às elites e camadas médio-superiores da sociedade as quais negando os princípios da re-pública, vem de colonizador a colonizador perpetuando a miséria da grande massa de excluídos . Não se pode esquecer, entretanto que o Estado, condição de possibilidade para a realização dos direitos fundamentais e da democracia ganha novos contornos com a virada neoconstitucionalista. De mero reprodutor da ordem social passa a transformador de realidades, mas a resistência quanto ao novo que efetivamente faria romper com o processo de produção, reprodução e aperfeiçoamento das relações de poder/dominação vigentes, frutos do paradigma liberal individual burguês próprios do modelo constitucionalista ordenador e regulador. Assim a linguagem aparentemente científica positivista, cheia de categorias pseudo-explicativas, encobre os valores que de fato têm como objetivo a reprodução da ordem instalada e a resistência à mudança . A reprodução a que nos referimos efetivamente passa pelo caminho da construção de um direito instituído com a finalidade quase exclusiva de resolver/regular relações de conflitos interindividuais. A transição está no papel ordenador, próprio de Estado liberal em confronto com o do papel transformador do Estado democrático de direito . O fato é que o modelo antigo não dá mais conta de responder aos anseios e nem tão pouco as necessidades de uma sociedade complexa, que assume uma vocação plural e humanitária trabalhando apenas com as codificações positivistas e com a pretensão de exaurir toda a demanda social. O salto entre as necessidades contemporâneas nascidas especialmente da opção pelo modelo de Estado democrático, e o modelo anterior dá-se na escolha da Constituição como “espaço de mediação ético, político da sociedade e condição de refundação do pacto/contrato social” . Assim, como defende Barroso, temos no Estado democrático de direito o caminho indicado para a “superação de uma perspectiva autoritária onisciente e não pluralista do exercício do poder, timbrada na intolerância e na violência” e conforme afirmamos, com o objetivo maior de retroalimentar a sociedade de classes fundada no modelo de exploração e dominação. No caso do Brasil, o processo de transição do modelo anterior para o neoconstitucionalismo ocorreu mediante uma transição política sem uma abrupta ruptura com o passado. A passagem pacífica ou não conflitual da lógica autoritária para a lógica democrática acontece com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte que efetivamente opta pelo novo modelo de Estado, o democrático de direito e pela nova forma constitucional, a promotora de garantias e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 direitos fundamentais, transformadora de realidades e não limitada ao rearranjo de condições sociais. O adjetivo “democrático” passa a qualificar o Estado igualitário e social, fundado na dignidade da pessoa humana . Bolzan ressalta, ainda, que a virada neoconstitucionalista transcende o Estado simplesmente legal que pode se basear no liberalismo, adotando a forma social, assim o novo fim do Estado encontra-se na promoção do indivíduo garantindo-lhe os direitos fundamentais desde sempre sonegados e tendo como instrumento para operar as transformações a lei (inclusive, e principalmente, a Constituição Federal) .

CONCLUSÃO De uma sociedade em busca de identidade passamos a uma sociedade com vocação clara e definida pela promoção social. Resta agora, no entanto, a mudança de comportamento que permitirá a efetiva adoção de mecanismos promotores da vocação assumida. Dessa forma, a crise do direito e da dogmática jurídica encontram suas raízes em uma crise maior e mais antiga, a crise de identidade social que reflete em todos os ramos do direito adaptando-se melhor, ou seja, ao novo paradigma de acordo com suas especificidades, e, mesmo reconhecendo a superação da clássica divisão do direito em público e privado, afirmamos que os traumas são sentidos de maneira menos drástica quando tratamos de direitos disponíveis e que não tratam da privação de liberdade. A perda de identidade da sociedade no Direito traz consequencias de proporções inaceitáveis, principalmente no paradigma do Estado (Social) democrático de direito, que desvirtuado funciona inadequadamente por estar desalinhado com o projeto civilizatório contido de maneira expressa da forma pactuadas na Carta Magna. Só o resgate do sentido da constituição é capaz de configurar uma proposta de um modelo jurídico dotado do plus normativo próprio das constituições do segundo pós guerra e que marcam o constitucionalismo contemporâneo. Agora o direito não só regula. Ele também transforma, altera realidades e promove um modelo de Estado social e plural, desejado e, por quer não dizer, necessário, nessa virada de século.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 IGUALDADE, NÃO-DISCRIMINAÇÃO E DIREITOS HUMANOS: são legítimos os tratamentos diferenciados? Fernanda Frizzo Bragato e Bianka Adamatti

Sumário

Resumo. 1. Introdução. 2. A não-discriminação na normativa interna e internacional: discriminação direta e indireta. 3. Raízes da discriminação e formação dos grupos vulneráveis. 4. Dimensões do tratamento igualitário: perspectiva antidiferenciação (igualdade formal) e perspectiva anti-subordinação (igualdade substancial). 5. Conclusão.

Resumo

Este artigo discute a não-discriminação como um conceito que exige a compreensão da igualdade para além da dimensão formal do igual tratamento de todos perante a lei. A não-discriminação encontra-se amplamente reconhecida na normativa internacional como uma premissa de igualdade, resultando na legitimidade de tratamentos diferenciados. Ao introduzir a preocupação com a não-discriminação, o direito internacional dos direitos humanos abandonou a postura de neutralidade quanto à condição social, econômica, política e cultural dos seres humanos, para admitir que certos indivíduos e grupos encontram-se em situação de vulnerabiliade e desigualdade que reclama uma profunda revisão em conceitos jurídicos tradicionais atualmente insustentáveis. Assim, objetiva-se verificar de que forma se articulam os princípios da igualdade e da não-discriminação como instrumentos de concretização dos direitos humanos.

Palavras-chave: Não-Discriminação; Igualdade; Direitos Humanos.

1. Introdução

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Ao introduzir a preocupação com a não-discriminação, o direito internacional dos direitos humanos abandonou a postura de neutralidade quanto à condição social, econômica, política e cultural dos seres humanos, para admitir que certos indivíduos e grupos encontram-se em situação de vulnerabilidade e desigualdade que reclama uma profunda revisão em conceitos jurídicos tradicionais atualmente insustentáveis. Neste sentido, o presente artigo discute a não-discriminação como marco conceitual que exige a compreensão da ideia de igualdade para além da dimensão formal do igual tratamento de todos perante a lei. A não-discriminação encontra-se amplamente reconhecida na normativa internacional como uma premissa de igualdade, resultando na legitimidade de tratamentos diferenciados. Assim, objetiva-se verificar de que forma se articulam os princípios da igualdade e da não-discriminação como instrumentos de concretização dos direitos humanos, discutindo-se em que medida tratamentos diferenciados podem ser legítimos e tratamentos aparentemente igualitários podem ser ilegítimos. Essa reflexão parte do pressuposto de que a igualdade é uma ideia incompleta se considerada do ponto de vista meramente formal. Compreender o que seja um tratamento igualitário em face da não-discriminação requer o reconhecimento da dinâmica das relações de poder, que produzem a opressão e a dominação de grupos e indivíduos historicamente em desvantagem. Assim, promover a igualdade no acesso a direitos humanos – que são aqueles básicos e necessários para uma vida digna passa pelo tratamento diferenciado, que só se justifica diante da consideração crítica dos fatores que desigualam e colocam indivíduos e grupos em situações de vantagem ou desvantagem na sociedade. Situações históricas de desvantagem de certos indivíduos e grupos podem ser tanto fruto da discriminação como também e, ao mesmo tempo, fatos geradores de tratamentos discriminatórios. O racismo, por exemplo, colocou em situação de vulnerabilidade pessoas de cor negra que, por sua vez, sofrem preconceito e discriminação por serem negros. A discriminação, além disso, pode ser direta ou indireta, o que impõe formas diversas de se lidar com o problema do acesso igualitário a direitos e de fazer-se observar o princípio da não-discriminação. Não discriminar passa não somente pela proibição da respectiva ação de discriminar, como no caso das lutas anti-apartheid, mas também pela promoção de ações que compensem as desvantagens históricas destes grupos no acesso a bens, como é o caso das ações afirmativas. Para discutir esses problemas, o texto divide-se em três partes. Na primeira, a não-discriminação na normativa interna e internacional será analisada a partir da distinção conceitual entre discriminação direta e indireta, considerando a discriminação tanto pelo propósito com que a ação é praticada como pelo efeito que gera. Na segunda, ao tratar do princípio da igualdade associado ao da nãodiscriminação revela importante, como dado essencial, a existência de certos indivíduos ou grupos vulneráveis, que obstaculiza a possibilidade de acesso igualitário aos bens necessários a uma vida digna, expondo as falhas da compreensão do princípio da igualdade associado à dimensão meramente formal. Na última parte, o diálogo se pauta pelas dimensões do tratamento igualitário em suas perspectivas de antidiferenciação (igualdade formal) e anti-subordinação (igualdade substancial) e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 suas influências para um tratamento antidiscriminação, culminando em uma leitura mais afinada ao significado contemporâneo dos direitos humanos.

2. A não-discriminação na normativa interna e internacional: discriminação direta e indireta

A ideia de igualdade não é uma preocupação recente no Direito. Esteve, desde a construção da democracia grega, no centro das discussões sobre justiça entendida como a expressão da igualdade. Segundo Aristóteles,

A igualdade pressupõe no mínimo dois elementos; o justo, então, deve ser um meio termo, igual e relativo (por exemplo, justo para certas pessoas), e na qualidade de meio termo, ele deve estar entre dois extremos (respectivamente, menor e maior); na qualidade de igual, ele pressupõe duas participações iguais; na qualidade de justo ele o é para certas pessoas. O justo, portanto, pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as pessoas para as quais ele é de fato justo são duas, e as coisas nas quais ele se manifesta – os objetos distribuídos – são também duas. E a mesma igualdade existirá entre as pessoas e as coisas envolvidas, pois da mesma forma que as últimas – as coisas envolvidas – são relacionadas entre si, as primeiras também o são; se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas, mas isto é a origem de querelas e queixas (quando pessoas iguais têm e recebem quinhões desiguais ou pessoas desiguais recebem quinhões iguais). (ARISTÓTELES. EN, V, 1131b).

O que é recente – ou melhor, moderno - é a concepção liberal de igualdade, concebida para combater os privilégios por motivo de origem de nascimento que sustentavam o absolutismo político da primeira modernidade europeia. Embora não se tenha notícia de alguma sociedade pré-moderna que operasse sob o princípio da igualdade baseada na dignidade inerente a todo ser humano, mas, em geral, se tratassem de sociedades ordenadas em formas hierárquicas, com direitos e deveres atribuídos de acordo com o status social dos indivíduos e grupos, a concepção de igualdade da modernidade liberal, por sua vez, não se mostrou capaz de ir além de sua feição formal. O conceito de igualdade que triunfou no Direito moderno ocidental foi o de idêntico tratamento da lei a todos. Embora seja uma concepção essencial para refutar discriminações injustificadas perante a lei, que se estabelecem a partir de privilégios, é também insuficiente, pois restringe a igualdade ao formalismo, ao não só ignorar a desigualdade histórica das pessoas, mas pressupor uma igualdade inexistente entre elas. Com a afirmação do direito internacional dos direitos humanos na segunda metade do século XX baseado no princípio da mesma dignidade dos seres humanos,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 que reconhece e celebra a diversidade de cada ser humano, a igualdade e a nãodiscriminação tornaram-se seus elementos fundamentais . O princípio da mesma dignidade de todos os seres humanos não significa pressupor que se esteja diante de um grupo de seres humanos homogêneos e idênticos entre si, como parece supor a ideologia liberal, mas, ao contrário, a existência concreta de seres humanos diferentes entre si, cujas diferenças, ao invés de inferiorizá-los, devem ser reconhecidas e valorizadas. Por essa razão, o respeito aos direitos humanos implica, como corolário do igual tratamento das leis, a proibição da discriminação como uma ação ou omissão que decorre justamente da existência destas diferenças. Segundo Rios (2008, p. 21), a discriminação implica a violação do princípio isonômico de formas variadas. Porém, no conceito jurídico de discriminação não se enquadram as hipóteses de diferenciação legítima, decorrentes da elaboração e aplicação de normas jurídicas em face de situações desiguais. No direito internacional dos direitos humanos, existem quatro tratados de direitos humanos que contêm definições explícitas da discriminação (BAYERSKI, 1990, p. 8). A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial estabelece:

Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou etnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública (BRASIL. Decreto nº 65.810, 1969).

O conceito é similar na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher:

Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A Convenção n° 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1958, relativo à Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação foi o primeiro documento internacional a conceituar discriminação e estabelece:

Para os fins da presente convenção o termo “discriminação” compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão (BRASIL. Decreto nº 62.150, 1968).

A Convenção da UNESCO relativa à luta contra as Discriminações no campo do Ensino, de 1960, ainda estabelece:

Para efeitos da presente Convenção, entende-se por discriminação toda a distinção, exclusão, limitação ou preferência que, com fundamento na raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição económica ou de nascimento, tenha a finalidade ou efeito de destruir ou alterar a igualdade de tratamento no domínio de educação (PORTUGAL. Decreto n.º 112, 1980).

Nenhuma das convenções citadas exige o propósito ou intenção como requisito essencial para a configuração da discriminação, sendo que a Convenção nº 111, da OIT, sequer a menciona, conceituando discriminação com referência apenas aos efeitos. Adicionalmente, o Comentário Geral nº 18 sobre a não-discriminação, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, também menciona as definições de discriminação constantes das Convenções contra a discriminação racial e referente à mulher, com o fim de esclarecer as obrigações dos Estados-parte em relação a inúmeros artigos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Pólíticos, que determina igualdade perante a lei e igual proteção da lei a despeito de inúmeros fatores:

Embora essas convenções lidem apenas com casos de discriminação por motivos específicos, o Comitê considera que o termo "discriminação" como usado no Pacto [Pacto Internacional de Direitos Civis e Pólíticos] deve ser entendido como implicando qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em qualquer motivo, designadamente, raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, e que tem por propósito ou efeito anular ou restringir o reconhecimento,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 gozo ou exercício por todas as pessoas, em pé de igualdade , de todos os direitos e liberdades.

Outros marcos legais de proteção do direito à igualdade e à não-discriminação, além dos definidos anteriormente, podem ser encontrados em outros documentos legais do sistema global de proteção de direitos humanos da ONU e no do sistema interamericano de direitos humanos, embora neles não se encontre o conceito de discriminação. Como exemplos, citam-se o Artigo 2 º da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, os artigos 2º, 24 e 26 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o artigo 2 (2) do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o artigo 2º Convenção sobre os Direitos das Crianças, o artigo 7º da Convenção para proteção de trabalhos migrantes e o artigo 5º da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. No sistema interamericano, constam no artigo 2º da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 e nos artigos 1, 22 (8) e 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, tratados sobre direitos humanos que permitem que os Estados suspendam direitos mediante sua derrogação em caso de emergência nacional incluem o requisito de nãodiscriminação nas disposições pertinentes. É o caso, por exemplo do art. 4º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do artigo 27 da Convenção Americana de Direitos Humanos. A União Europeia prevê a igualdade no Título III de sua Carta de Direitos Fundamentais, o art. 22º exalta a diversidade cultural, religiosa e linguística; o art. 23º prevê a igualdade de gênero; há também a proteção dos direitos das crianças, idosos e das pessoas com deficiência. (MACHADO, 2010, p. 265). Portanto, a proibição da discriminação implica uma distinção de qualquer tipo (exclusão, preferência, limitação ou restrição) entre pessoas ou grupos que se encontram em situações similares, a menos que exista uma justificação objetiva e razoável e o grau da distinção seja proporcional ao objetivo (SHELTON, 2008, p. 22). Ainda com base na estrutura do conceito de discriminação e na sua consequente proibição, é possível distinguir entre duas modalidades discriminação: a direta e a indireta . As duas modalidades de discriminação podem ser diretamente inferidas dos termos do seu conceito jurídico, partindo-se das expressões “propósito” e “efeito”. Como explica Rios (2008, p. 21), a discriminação é qualificada seja pelo propósito com que a ação é praticada, seja pelo efeito que gera. Ela alcança não apenas práticas intencionais e conscientes (que é o caso da discriminação direta), mas realidades permanentes que se reproduzem e se reforçam ao longo do tempo por meio da manutenção de medidas aparentemente neutras, mas efetivamente discriminatórias (que é o caso da discriminação indireta) . No último caso, medidas (leis, políticas públicas etc) aparentemente neutras e não direcionadas a nenhum grupo específico acabam por reforçar as situções de vantagem e desvantagem já existentes na sociedade e que são ligadas a diversos fatores, como raça e sexo, por exemplo . A discriminação direta ocorre quando qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, fundadas em qualquer forma de diferenciação proibida (raça, cor, sexo etc), têm o propósito de anular ou prejudicar o reconhecimento, o gozo ou o exercício

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou qualquer campo da vida pública. O seu elemento distintivo, portanto, é a intencionalidade, que se configura quando há um tratamento desigual, menos favorável, e endereçado a indivíduo ou grupo, motivado por um critério de diferenciação juridicamente proibido (RIOS, 2008, p. 89) . Cite-se, como exemplo, o caso Lustig-Prean e Beckett versus Reino Unido (COUNCIL OF EUROPE, 1999) julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos, onde esta considerou que a demissão dos denunciantes das Forças Armadas Britânicas por motivo de orientação sexual (ambos eram homossexuais) constituiu uma interferência no direito à vida privada. Isso porque tal interferência justificar-se-ia apenas se as condições do parágrafo 2º do art. 8, da Convenção Europeia de Direitos Humanos fossem satisfeitas, ou seja, se a interferência fosse “de acordo com a lei” e motivada por um objetivo legítimo e “necessário numa sociedade democrática”, considerando como tal a sociedade dotada de expressões de pluralismo, tolerância e abertura mental. A discriminação direta constitui, portanto, o oposto de privilégio, que é um tratamento diferenciado com o propósito de beneficiar ou potencializar o gozo de direitos para a indivíduos ou grupos que se já se encontram em situação de vantagem, ou seja, para grupos e indivíduos de parcelas dominantes da sociedade. Exemplo disso é a chamada “Lei do Boi” (Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, atualmente revogada pela Lei nº 7.423, de 17 de dezembro de 1985), que, em seu artigo 1º , estabelecia vagas em cursos públicos federais brasileiros voltados para as ciências agrícolas para agricultores ou seus filhos, independentemente da situação socioeconômica destes. Todavia, há leis ou medidas que, embora criem distinções, ao restringir o exercício de direitos baseada em critérios a priori proibidos, são legítimas. Shelton (2008) menciona que talvez nenhum dos direitos humanos esteja realmente garantido em plena igualdade de condições a todos os seres humanos em todo momento. Trata-se de uma afirmação um pouco exagerada, considerando-se ao menos o direito de não ser escravizado e de não ser torturado, os quais não admitem exceções legítimas, mas o fato é que muitos direitos as admitem. Neste sentido, a autora refere que o fator idade é restritivo para o direito a contrair matrimônio e o direito ao voto; o acesso à justiça está restrito por normas processuais, incluídas as de prescrição; e a garantia dos direitos políticos costuma estar limitado aos cidadãos (SHELTON, 2008, p. 1). Neste caso, é preciso atentar para o fato de que o conceito de discriminação exige, para sua configuração, que a ação tenha por propósito ou efeito anular ou prejudicar o reconhecimento, o gozo ou o exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. Quando não se verifica esse telos, em princípio a distinção é legítima, porém não é uma tarefa fácil distinguir entre tratamentos diferenciados legítimos e discriminações condenáveis. Segundo Bayefski (1990, p. 12), uma distinção não-discriminatória deve: “(a) tener una justificación objetiva y razonable; esto es, debe perseguir una finalidad legítima; y (b) debe existir una relación razonable de proporcionalidad entre la finalidad y el medio empleado para lograrla”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Porém, a discriminação não se dá somente pela via direta. A discriminação indireta tem lugar onde uma lei, decisões ou práticas, aparentemente neutras, têm um impacto desigual sobre um grupo específico, causando ou reforçando a discriminação da parte afetada. Mesmo que formalmente exista um tratamento equitativo e a proibição de discriminação direta, alguns grupos populacionais podem ficar à margem de outros, tendo em vista a relação de desvantagem em que vivem . Para sua configuração, é prescindível a existência da intencionalidade, ao menos em sua forma explícita. Assim, o enunciado do conceito de discriminação indireta será o mesmo do de discriminação direta, substituindo-se apenas a expressão “tem o propósito” por “tem o efeito” (RIOS, 2008, p. 117). Trata-se do caso em que um empregador emprega dois trabalhadores, sendo um deles deficiente físico e usuário de cadeira de rodas e o outro não. A porta de entrada do local de trabalho situa-se ao final de um lance de escadas. Mantê-la não intencionalmente nestas condições, oferecendo, portanto, o mesmo tratamento para os dois contratados, implica tratamento discriminatório indireto contra o usuário de cadeiras de rodas, de modo que um tratamento igualitário entre ambos os contratados só ocorreria se o empregador instalasse uma rampa de acesso. Outro exemplo de discriminação indireta ocorre na França, cuja polêmica lei do véu, aprovada em 2011, que proíbe o uso de véus que cubram o rosto em locais públicos, embora pretensamente neutra e de aplicação geral, afeta diretamente mulheres que professam a religião muçulmana, já que são elas as principais usuárias deste tipo de acessório. Em ambos os casos, está-se diante de grupos vulneráveis, ou seja, não dominantes nas sociedades em que vivem e, por isso, atingidos, a despeito das mencionadas leis, com o acesso precário a bens. O fundamento da proibição da discriminação indireta insere-se, portanto, em um debate mais amplo que remete à compreensão da realidade social, política, histórica, cultural e econômica de determinada sociedade. Isso porque medidas, ações e leis que têm como efeito a discriminação indireta, via de regra, seguem o princípio da igualdade formal, que determina que a lei trate a todos de forma igual. Porém, desconsideram que, ao fazê-lo, atuam para reforçar situações condenáveis, mesmo que não intencionais, de desigualdade e de preconceito que resultam na privação de direitos a indivíduos e grupos que não fazem parte da parcela dominante da sociedade.

3. Raízes da discriminação e formação dos grupos vulneráveis

Ao tratar do tema da igualdade ligado ao da não-discriminação é preciso partir de uma constatação inicial: a existência de grupos vulneráveis (ou vulnerabilizados ) em uma dada sociedade. Este é um dado essencial, pois expõe as falhas da compreensão do princípio da igualdade associado à dimensão meramente formal. A vulnerabilidade define-se pela falta ou debilidade de poder econômico, cultural e/ou político de certos indivíduos ou grupos que obstaculiza a possibilidade de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 acesso igualitário aos bens necessários a uma vida digna. Portanto, constituem-se como a contraface necessária para a existência dos grupos dominantes, caracterizados por sua adequação aos padrões de excelência social e historicamente construídos e, portanto, por sua situação de empoderamento. Quando a modernidade europeia assentou o fundamento da dignidade na racionalidade humana e construiu o conceito de raça e racismo , produziu-se, historicamente, a construção de um padrão de humanidade encarnado na figura do indivíduo masculino, branco, proprietário, ocidental, heterossexual e cristão. Como padrão unitário, superior e cientificamente orientado de comportamento, a racionalidade tornou-se um atributo culturalmente centrado (ou etnocêntrico) e, portanto, ausente em diversos exemplares da espécie humana, como é o caso das mulheres, dos estrangeiros, dos colonizados, dos negros, dos deficientes e assim por diante (BRAGATO, 2012, p. 131). Como observa Fredman (2011, p. 5):

Contudo, mesmo assim a promessa de igualdade era ambígua e exclusiva. De fato, um olhar sobre o quadro jurídico nos séculos seguintes a Locke revela uma paisagem marcada por desigualdades. Numerosos grupos, incluindo as mulheres, os escravos, as minorias religiosas, clack people, ciganos, e as classes não-proprietárias foram excluídos da promessa da igualdade liberal. A exclusão foi alcançada pelo argumento aparentemente lógico de que os direitos básicos à liberdade e à igualdade apenas pertencem aos indivíduos em virtude de sua racionalidade. O conceito de racionalidade poderia, então, ser facilmente manipulado de modo exclusivo. As mulheres , escravos e outros foram caracterizados como irracionais e emocionais e, portanto, não admitidos à igualdade de direitos devida aos seres racionais. Assim, o princípio da igualdade recém ascendente coexistiu com relações contínuas e não contestadas de dominação. A escravidão não foi proibida, o colonialismo floresceu e às mulheres foram negados direitos básicos. Locke não viu nenhuma inconsistência entre a sua proclamação da igualdade e sua descrição da família como “um mestre... com todas essas relações de subordinação da mulher , crianças, servos e escravos”.

Ao processo de vulnerabilização de diversos indivíduos e grupos humanos subjaz um discurso de desumanização ou de relativização da humanidade. Assim que negros, índios, mulheres, homossexuais, não-cristãos e outros, experimentam muito mais obstáculos no acesso a seus direitos humanos que indivíduos e grupos que se adequam aos padrões dominantes. Isso porque “o que determinou a sua inferioridade foi um discurso de gradação e hierarquização da humanidade, que sobrevive até hoje. Ou seja, para justificar que alguns não tinham direitos, antes foi necessário afirmar que eles não eram seres humanos integrais” (BRAGATO, 2012, p. 135). Os motivos proibitivos da discriminação – seja direta ou indireta – encontramse expressamente consignados na normativa internacional e tem relação direta com

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 os fatores que servem para definir a pertença de um indivíduo ou grupo ao padrão dominante. O artigo 2º da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, de 1948 consigna, assim: raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento e qualquer outra situação. Os mesmos motivos que ensejam proibição de tratamento discriminatório estão incluídos no artigo 2 º do PIDESC, no art. 26 do PIDCP e no art. 1, 1 da CADH. É importante notar que as razões enumeradas nestas disposições são meramente ilustrativas e não exaustivas. De modo que a expressão “outra situação” remete a um significado em aberto, contemplando alguns motivos não mencionados explicitamente, como idade, gênero, deficiência, nacionalidade e orientação sexual, que também podem ser considerados fundamentos proibidos (SHELTON, 2008, p. 5). Nesta linha, estudo recente em matéria de discriminação do Conselho de Direitos Humanos da ONU estabeleceu que determinados grupos encontram-se em situação de subproteção: grupos religiosos, refugiados, solicitantes de asilo, apátridas, trabalhadores migrantes, pessoas deslocadas dentro do país, comunidades baseadas na ascendência, povos indígenas, minorias e pessoas submetidas à ocupação estrangeira (SHELTON, 2008, p. 24). A realidade dos grupos vulneráveis no Brasil reforça a noção de que determinadas categorias de pessoas encontram-se em situação de maior vulnerabilidade a justificar tratamentos diferenciados no sentido de potencializar o seu acesso aos direitos humanos.

O mais recente relatório do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU emitido em 2009 para analisar a situação do Brasil diante da obrigação assumida de respeitar o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais refere inúmeros motivos de preocupação. Dentre esses, destaca-se a menção à existência de “persistentes desigualdades nas condições econômicas e injustiça social vigente no Estado Parte entre as diferentes regiões, comunidades e indivíduos”, complementado com a constatação de que há “discrepância significativa entre a expectativa de vida de populações brancas e negras, apesar do aumento da esperança média de vida de 65,6 anos, no início de 1990, para 71,6 anos em 2004”, além de “diferença significativa entre os níveis de pobreza da população branca e negra”. O relatório salienta, ainda, a diferença entre as taxas de alfabetização, que são desiguais entre a população branca e negra, e a “persistência de disparidades raciais no acesso ao emprego”, que afeta particularmente os afrobrasileiros e os indígenas. Sobre a situação das pessoas com incapacidade, o Relatório aponta que estas pessoas continuam a enfrentar discriminação no acesso ao emprego. (NACIONES UNIDAS, 2009) Os dados apontados no Relatório de 2009 são corroborados pelo último Censo Demográfico do IBGE de 2010. De acordo com o IBGE, a população brasileira é de 190.755.799 pessoas. Considerando o critério raça/cor, os números são os seguintes: Brancos: 90.621.281 (47,5%); Pardos: 82.820.452 (43,41%); Pretos: 14.351.162 (7,5%); Amarelos: 2.105.353 (1,1%); Indígenas: 821.501 (0,4%); Sem declaração:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 36.051. Ou seja, a população afrodescendente é a maioria da população brasileira, atingindo o percentual de 50,91%. O Censo Demográfico detalha diversos dados sociais e econômicos, apontando a quantidade de pessoas classificadas pelo critério raça/cor. Em relação ao número de brasileiros sem instrução e ensino fundamental incompleto, o número totaliza 65.043.145 pessoas. Destes, 26.392.262 são brancos, 6.204.534 são pretos, 31.424.616 são pardos, 641.559 são amarelos, 350.064 são indígenas e 30.111 são compostos das pessoas sem declaração. Os afrodescendentes (pretos e pardos), representam 57,33% dos brasileiros nesta condição, sendo que, dentre a população afrodescendente, 38,7% não têm instrução ou tem ensino fundamental incompleto, contra 29% de indivíduos da população branca. A proporção de brancos e afrodescendentes brasileiros com ensino superior completo, no entanto, inverte-se de forma alarmante. São 13.463.757 brasileiros nesta situação, sendo 9.871.362 brancos, 507.583 pretos, 2.802.456 pardos, 265.372 amarelos, 16.918 indígenas e 66 sem declaração. Portanto, 73,3% dos brasileiros com ensino superior completo são brancos e 33,5% são afrodescendentes. A mesma discrepância observa-se na composição das formas de ocupação e renda. Segundo o IBGE, há 1.703.130 de empregadores no Brasil, sendo 1.292.369 brancos contra apenas 326.644 pardos e 42.961 pretos. Isso representa uma proporção de 75,8% de empregadores da cor branca. Se observarmos os números de empregados sem carteira de trabalho assinada, os números mostram que, nesta situação desfavorável, encontra-se um total de 17.418.119 brasileiros, dos quais 7.048.966 (40,46%) são brancos e 10.119.896 (58%) são afrodescendentes. No que se refere a rendimentos mensais, o IBGE aponta diferentes faixas. Verifica-se que dentre aqueles que auferem entre ¼ até 1 salário mínimo, há 44.493.993 brasileiros; destes a maioria também é composta por afrodescendentes (59,6%) e por 38,9% de brancos. À medida em que os rendimentos aumentam, aumenta o número de brasileiros brancos nestas faixas. Em relação à faixa de rendimento mensal de mais de 30 salários mínimos, por exemplo, existem 270.451 brasileiros, sendo 227.808 (84,2%) brancos contra 4.437 (0,8%) pretos e 32.666 (12%) pardos. Os números revelam o desequilíbrio na forma como diferentes grupos – apesar de serem todos inequivocamente cidadãos brasileiros – acessam bens que configuram condições materiais essenciais para o gozo dos direitos humanos e apontam para o fato de que esse desajuste está ligado justamente àqueles fatores que geram tratamento discriminatório, como sexo, raça, cor e condição física e/ou mental. É de notar, ainda, que o fato de o Brasil ostentar a 7ª posição dentre as maiores economias do mundo, em razão de seu Produto Interno Bruto (PIB) , mas em contrapartida a 84ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e 45ª posição em termos de PIB per capita , demonstra que a vulnerabilização e a subjugação de certos grupos é condição necessária para a manutenção de uma estrutura que favorece historicamente os grupos dominantes no Brasil.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 4. Dimensões do tratamento igualitário: perspectiva antidiferenciação (igualdade formal) e perspectiva anti-subordinação (igualdade substancial)

O reconhecimento explícito do princípio da não-discriminação, como mandamento de concretização dos direitos humanos, tem confrontado a compreensão liberal do conceito de igualdade de todos perante a lei. Deste modo, as discussões sobre igualdade substancial têm recebido cada vez mais atenção no debate jurídico contemporâneo. Neste sentido, Rios (2008, p.32) propõe as perspectivas da antidiferenciação e da anti-subordinação como centrais para o chamado direito da antidiscriminação. Segundo o autor (RIOS, 2008, p. 33), a perspectiva da antidiferenciação reprova tratamentos diferenciados (prejudiciais ou benéficos) em favor de quem quer que seja, considerados os critérios proibidos de discriminação, pois se preocupa com a neutralidade das medidas tomadas por indivíduos e instituições. Esta perspectiva rejeita a validade das ações afirmativas em favor de certos grupos, considerando-as discriminatórias em relação aos grupos não-beneficiados por estas medidas. Trata-se de uma manifestação da igualdade formal, gerando um direito à indiferença. As críticas às ações afirmativas são, portanto, devidas ao fato de contrariarem a noção estritamente formal de igualdade. A visão formal do princípio da igualdade apresenta dificuldades com o tratamento das diferenças pois é cega à necessidade de medidas específicas, que são sempre vistas como espécie de “direito especial”. Restringe-se apenas aos casos de discriminação direta (intencional) e, portanto, não oferece respostas à discriminação indireta (não-intencional) (RIOS, 2008, p. 34-35). No entanto, conforme Shelton (2008, p. 24), a noção de discriminação evoluiu desde sua percepção como um trato principalmente desfavorável dirigido a um segmento da comunidade até um conceito mais amplo que inclui tanto a diferenciação não-intencional e, em épocas mais recentes, o reconhecimento de que a discriminação pode ser indireta, em casos nos quais o trato igual tem efeitos desproporcionalmente adversos para os membros de um grupo em particular. Mais adequada a esta realidade é a perspectiva da anti-subordinação, que reprova tratamentos que criam ou perpetuam situações de desvantagem de certos grupos. Portanto, admite tratamentos diferenciados com base em critérios proibidos de discriminação, desde que estes objetivem combater justamente as situações que geram a discriminação, assim como considera discriminatórios tratamentos neutros que reforcem a subordinação de quem quer que seja. Como consequência, admite ações afirmativas, sempre que forem necessárias e eficazes no combate à situação de desvantagem, não as considerando discriminatórias em face dos grupos privilegiados (RIOS, 2008, p. 36). A maioria dos tratados e da jurisprudência permite ou exige que a situação de desvantagem de grupos vulneráveis ou desfavorecidos seja o objetivo das medidas de ação afirmativa (SHELTON, 2008, p. 12). Neste sentido, estabelecem o artigo 4º (1) da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Mulher e o artigo 1º (4), (4) da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial . Ao contrário de conceber as medidas específicas para combater a situação de subordinação de certos grupos como privilégios ou direitos especiais, a perspectiva anti-subordinação as vê como exigências de igualdade. A omissão diante destas realidades, sob a aparente igualdade formal de todos, configura ofensa ao princípio da igualdade, pois vislumbra neste um mandamento de igual proteção especialmente aos grupos em desvantagem social, econômica, religiosa, cultural, sexual, racial, etc. A perspectiva da anti-subordinação explica a dinâmica do princípio da igualdade preocupada com as circunstâncias históricas se comparada à perspectiva formal da antidiferenciação (RIOS, 2008, p. 37). Deste modo, nem todas as medidas de diferenciação que atingem os grupos vulnerabilizados são discriminatórias, o que só pode ser caracterizado atentando-se para o efeito que produzem. Assim, a perspectiva antisubordinação não condena a segregação racial porque ela viola o princípio abstrato de mesmo tratamento a todas as raças, mas porque atua no sentido de reforçar a vulnerabilidade de determinados grupos raciais (RIOS, 2008, p. 39).

Neste sentido é a reflexão de Conolly (2011, p. 11):

A igualdade substantiva sugere que a responsabilidade pela discriminação não repousa apenas no sujeito que a comete intencionalmente e pode ser demandado em um Tribunal, mas no grupo dominante como um todo, que é beneficiado com a estruturação da sociedade baseada em questões raciais, de gênero e outras. Isso significa que o grupo dominante deve arcar com os custos da mudança. Isso surge, por exemplo, quando indivíduos brancos inocentes e do sexo masculino perdem para minorias ou mulheres aparentemente menos qualificadas em programas de ações afirmativas no emprego, educação ou habitação. Igualdade substantiva sugere também que o Estado tem um papel. Se ele não faz nada, perpetua a discriminação. Assim, ele tem o dever positivo de intervir.

Portanto, nem toda distinção ou diferença de tratamento configura discriminação. O princípio da igualdade pode exigir do Estado que adote ações afirmativas, a fim de diminuir ou eliminar as condições que causam ou contribuem para perpetuar a discriminação, mesmo que isso resulte em perdas imediatas para os grupos dominantes historicamente favorecidos. Assim, este princípio não requer um tratamento idêntico e permite diferenciações razoáveis entre indivíduos ou grupos de indivíduos fundadas em razões pertinentes e significativas (SHELTON, 2008, p. 11). Neste sentido, manifestou-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua opinião Consultiva n º 4, em seus itens 55/57:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 La noción de igualdad se desprende directamente de la unidad de naturaleza del género humano y es inseparable de la dignidad esencial de la persona, frente a la cual es incompatible toda situación que, por considerar superior a un determinado grupo, conduzca a tratarlo con privilegio; o que, a la inversa, por considerarlo inferior, lo trate con hostilidad o de cualquier forma lo discrimine del goce de derechos que sí se reconocen a quienes no se consideran incursos en tal situación de inferioridad. No es admisible crear diferencias de tratamiento entre seres humanos que no se correspondan con su única e idéntica naturaleza. Sin embargo, [...] no todo tratamiento jurídico diferente es propiamente discriminatorio, porque no toda distinción de trato puede considerarse ofensiva, por sí misma, de la dignidad humana. Existen, en efecto, ciertas desigualdades de hecho que legítimamente pueden traducirse en desigualdades de tratamiento jurídico, sin que tales situaciones contraríen la justicia. Por el contrario, pueden ser un vehículo para realizarla o para proteger a quienes aparezcan como jurídicamente débiles. Mal podría, por ejemplo, verse una discriminación por razón de edad o condición social en los casos en que la ley limita el ejercicio de la capacidad civil a quienes, por ser menores o no gozar de salud mental, no están en condiciones de ejercerla sin riesgo de su propio patrimonio. […] De ahí que no pueda afirmarse que exista discriminación en toda diferencia de tratamiento del Estado frente al individuo, siempre que esa distinción parta de supuestos de hecho sustancialmente diferentes y que expresen de modo proporcionado una fundamentada conexión entre esas diferencias y los objetivos de la norma, los cuales no pueden apartarse de la justicia o de la razón, vale decir, no pueden perseguir fines arbitrarios, caprichosos, despóticos o que de alguna manera repugnen a la esencial unidad y dignidad de la naturaleza humana (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Opinión Consultiva Oc-4/84, 1984).

Porém, as medidas, ações e leis que criam tratamentos diferenciados visando a reversão dos processos de vulnerabilização de certos grupos oprimidos devem observar certos critérios que lhe dão legitimidade. No direito internacional geral, uma violação do princípio da não-discriminação surge se: a) casos iguais são tratados de uma maneira diferente, b) uma diferença de tratamento não tem uma justificação objetiva e razoável, ou c) se não houver proporcionalidade entre o objetivo visado e os meios empregados. (BAYERSKY, 1990, p. 33).

Considerando-se portanto que o princípio da não-discriminação é incompatível com a leitura formal do princípio da igualdade, pode-se vislumbrar diferentes situações em que tanto tratamentos iguais quanto diferenciados podem ser considerados legítimos e que, sem considerar fatores sociais, econômicos, culturais e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 outros, não se pode estabelecer, a priori, quando esta condição de legitimidade é alcançada. Neste sentido, pode-se concluir que há leis, ações e medidas que: - distinguem por meio de fatores discriminatórios, mas são legítimas, porque não prejudicam o acesso a direitos (por exemplo, restrição ao voto por motivo de idade); - distinguem com base em fatores discriminatórios, mas com o propósito de potencializar/beneficiar indivíduos e grupos vulneráveis e, por isso, são legítimas (cotas no ensino superior público para população afrodescendente) ; - são aparentemente neutras, pois se aplicam indistintamente a todos, mas têm efeito discriminatório e, portanto, são ilegítimas (lei do véu de 2001, na França); - distinguem com base em fatores proibidos e são ilegítimas, pois reforçam privilégios (chamada “lei do boi”); - distinguem com base em fatores proibidos e são ilegítimas, pois reforçam desvantagens (leis de apartheid com base em critério racial).

5. Conclusões

Avaliar a legitimidade dos tratamentos diferenciados sob a lógica da igualdade formal, conceito construído na modernidade ocidental, é inviável por tratar-se de um elemento importante do projeto moderno homogeneizante e excludente que concebeu a sociedade ideal, como sendo aquela onde reinaria a unidade e onde não existiriam diferenças. Trabalhar com o princípio da igualdade como se a sociedade fosse um corpo homogêneo composto de pessoas iguais tem como resultado a instituição de leis aparentemente neutras que instituem tratamentos idênticos, mas que, finalmente, servem para reforçar desigualdades e vulnerabilidades de determinados grupos e indivíduos que estão efetivamente à margem do gozo de seus direitos humanos. A compreensão mais geral do Direito deve reconhecer que estamos lidando com sociedades verdadeiramente plurais e desiguais, marcadas pela existência de grupos culturalmente dominantes, grupos vulneráveis (ou minoritários), multiculturalismo e outros fenômenos discutíveis. Esta análise necessita, portanto, considerar uma visão crítica de alguns aspectos do legado moderno, em que o princípio da igualdade formal mostrou-se mais um artefato ideológico de dominação das parcelas historicamente beneficiadas da sociedade do que um mecanismo de justiça. Não se pode mais pensar em igualdade como um princípio que exige apenas considerações formais. O jurista precisa reconhecer a dinâmica das relações de poder e compreender de que forma o Direito, atento apenas à dimensão formal, reforça a opressão e a dominação de grupos e indivíduos historicamente em desvantagem.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Em face do significado contemporâneo dos direitos humanos, a igualdade requer mesmo respeito e consideração advinda da dignidade, ao contrário da adoção de tratamentos iguais e homogêneos. Consequentemente, um resultado isonômico ou igualitário pode, em determinados casos, depender de tratamento diferenciados.

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BRAGATO, Fernanda Frizzo. Direitos humanos no segundo pós-guerra: entre as respostas racionalistas da modernidade e o desafio das vulnerabilidades. In: STRECK, Lenio Luiz, ROCHA, Leonel Severo, ENGELMANN, Wilson. (Orgs.). Constituição sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de PósGraduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, v. 9, pp. 125/136 BRASIL. Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969.

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PUNIR OS POBRES: ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES ECONÔMICOS E NOS CRIMES PATRIMONIAIS / Thadeu Augimeri De Goes Lima PUNISH THE POOR: CRITICAL ANALYSIS OF THE SUPREME FEDERAL COURT AND THE SUPERIOR COURT OF JUSTICE'S JURISPRUDENCE ABOUT THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE ON ECONOMIC CRIMES AND PATRIMONIAL CRIMES

SUMÁRIO: Introdução; 1. Princípio da insignificância: lineamentos e questionamentos; 2. A diferente aplicação do princípio da insignificância nos crimes econômicos e nos crimes patrimoniais: análise crítica da jurisprudência do STF e do STJ; Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O artigo traça uma análise crítica da jurisprudência prevalecente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicação do princípio da insignificância nos crimes econômicos e nos crimes patrimoniais, enfatizando a extrema diferença de tratamento entre eles, que culmina por fazer recair o poder punitivo estatal preferencialmente sobre os mais pobres. Utiliza os métodos hipotético-dedutivo, indutivo, comparativo, dialético e histórico-evolutivo, bem como a pesquisa jurisprudencial, e parte de marcos teóricos essencialmente críticos e de inspiração constitucional.

PALAVRAS-CHAVE: princípio da insignificância; crimes econômicos; crimes patrimoniais; Supremo Tribunal Federal; Superior Tribunal de Justiça.

ABSTRACT: The paper traces a critical analysis of the Supreme Federal Court and the Superior Court of Justice’s prevailing jurisprudence about the principle of insignificance’s application on economic crimes and patrimonial crimes, emphasizing

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 the extreme difference of treatment between them, which ends up making the State's punitive power to preferentially fall over the poorer people. It uses the hypotheticaldeductive, the inductive, the comparative, the dialectical and the historical-evolutionary methods, as well as the jurisprudential research, and starts from essentially critical theoretical frameworks, mostly inspired in Constitutional Law.

KEYWORDS: principle of insignificance; economic crimes; patrimonial crimes; Supreme Federal Court; Superior Court of Justice.

INTRODUÇÃO

O presente artigo, em seu título, presta singela homenagem ao notável livro do sociólogo Loïc Wacquant (2003), e tem por objetivo traçar uma análise crítica da jurisprudência prevalecente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no que tange aos diferentes modos de aplicar o princípio da insignificância, conforme se trate de crimes econômicos ou de crimes patrimoniais. Com efeito, enquanto nos primeiros, cujos sujeitos ativos comumente gozam de situação econômico-financeira e de posição social privilegiadas, observa-se tendência bastante liberal e ampliativa, nos últimos, cujos agentes em regra ostentam parco ou quase nulo poder aquisitivo e ocupam posições sociais inferiores, ao revés, verifica-se orientação oposta, isto é, conservadora e restritiva. A imediata consequência dos entendimentos díspares é fazer recair o poder punitivo estatal preferencialmente sobre a parcela mais pobre da população, perpetuando as desigualdades de classe na esfera criminal e o estereótipo de que, no Brasil, o sistema penal é incapaz de alcançar os abastados. São preferencialmente utilizados, na consecução da tarefa proposta, os métodos hipotético-dedutivo, indutivo, comparativo, dialético e histórico-evolutivo e a pesquisa jurisprudencial. Com efeito, a hipótese levantada já no próprio título e reproduzida linhas acima, posicionando-se no sentido de que a jurisprudência majoritária do STF e do STJ implica na punição de pobres e no favorecimento aos white-collar criminals, é submetida a falseamento mediante o seu cotejo com as teses consagradas naquelas Cortes, obtidas indutivamente a partir do exame de número significativo de acórdãos suficientemente representativos e devidamente comparadas entre si. Antes, porém, não se pode olvidar o exame das origens e do desenvolvimento histórico dos conceitos e institutos abordados, bem como devem ser confrontadas e criticamente avaliadas as diferentes orientações de respeitados juristas e tribunais que se debruçaram sobre os assuntos, procurando organizá-las em uma síntese superadora de suas possíveis contradições.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Outrossim, o presente estudo parte de referenciais teóricos essencialmente críticos, de inspiração constitucional, em contraste com a dogmática tradicional. Serão primeiramente verificados os lineamentos e questionamentos do princípio da insignificância, abordando-se, logo após, os modos diferenciados de sua aplicação na jurisprudência do STF e do STJ relativamente aos crimes econômicos e aos crimes patrimoniais, com as críticas que lhes forem pertinentes, e encerrando-se com a conclusão obtida no trato da matéria.

1. PRINCÍPIO QUESTIONAMENTOS

DA

INSIGNIFICÂNCIA:

LINEAMENTOS

E

O Direito Penal, como ramo eminentemente sancionador (BATISTA, 2005, p. 88-89) e estabelecedor de severas consequências aos que infringem suas normas, necessita se submeter, em um Estado Democrático de Direito, a rígidos limites, que permitam a harmonia entre a liberdade individual e os interesses da coletividade. Destarte, ao comportamento humano só deverá ser cominada a reprimenda máxima do ordenamento jurídico quando evidentemente nocivo ao corpo social e inábeis os demais ramos do sistema para coibi-lo de maneira eficiente. Hão que se prestar as leis penais à indispensável proteção de bens jurídicos essenciais, constituindo a ultima ratio para o resguardo da sociedade (GOMES, 2002, p. 45-54; LUISI, 2003, p. 39; PRADO, 2003, p. 65-70; ROXIN, 2007, p. 7-8). Eis porque, hodiernamente, doutrina e jurisprudência são concordes em reconhecer a existência de princípios, explícitos ou implícitos, cerceadores do poder punitivo estatal já em seu momento primeiro, quer-se dizer, o concernente à definição legal das ações ou omissões delituosas. Tais cânones têm por função restringir a seletividade dos tipos penais, modelos abstratos que descrevem atuações humanas e a elas relacionam certa sanção, às inequivocamente perniciosas. Mencionam-se a cumprir tal papel, dentre outros, os princípios da intervenção mínima, da subsidiariedade, da fragmentariedade, da lesividade ou ofensividade e da proporcionalidade, todos consagrados, de forma expressa ou não, na Constituição Federal de 1988 (BATISTA, 2005, p. 84-97; LUISI, 2003, p. 38-46; PRADO, 2006, p. 137-150; RIPOLLÉS, 2005, p. 144-154). Erigidos os atos humanos à categoria de infração penal, desde que atendidos os critérios da dignidade do bem jurídico e da carência de tutela penal, ainda incumbe ao aplicador do Direito verificar, em cada caso concreto, a efetiva ocorrência de lesão ou perigo relevantes ao interesse ou estado valioso normativamente defendido. É exigência que impõe o chamado princípio da insignificância ou da bagatela, pelo qual só há ilícito penal em sentido substancial quando, praticada a conduta prevista em lei, ocorrer agressão ou risco de certa monta que permitam concluir ter sido atacado ou desestabilizado o bem jurídico. Baseia-se no milenar aforismo de minimus non curat praetor. Ausente o sério comprometimento do objeto protegido, inexiste a tipicidade material, subsistindo apenas a formal (GOMES, 2010, p. 23). E apenas diante da presença de ambas é possível a repercussão sancionadora (ROXIN, 2000, p. 46-48; TOLEDO, 1991, p. 133).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Luigi Ferrajoli (2006, p. 433) defende como primeiro e mais elementar critério para uma política penal orientada à tutela máxima de bens, com o mínimo necessário de proibições e castigos, o de justificar as proibições somente quando se dirigem a impedir ataques concretos a bens fundamentais de tipo individual ou social e, em todo caso, externos ao Direito Penal, entendendo por ataque não somente o dano causado, senão, também – por ser inerente à finalidade preventiva do Direito Penal –, o perigo causado. Entre os bens externos ao Direito Penal, cuja lesão é necessária, ainda que não suficiente, para a justificação das proibições penais, estão, por razões óbvias, todos os direitos fundamentais, compreendendo não só os clássicos direitos individuais e liberais, como ainda os coletivos e/ou sociais, tais o direito ao meio ambiente ou à saúde. Também hão de se incluir bens que não são direitos, como o interesse coletivo e certamente fundamental a uma Administração Pública proba. Em qualquer caso, deve se tratar de um dano ou perigo verificável ou avaliável empiricamente, partindo das características de cada concreta conduta proibida, e não apenas considerando em abstrato o conteúdo da proibição. Claus Roxin (2000, p. 46-47) assevera que, sob o ângulo do princípio da legalidade (nullum-crimen), há que se adotar interpretação restritiva dos tipos penais, que realize a função garantista e a natureza fragmentária do Direito Penal e que mantenha íntegro somente o campo de punibilidade indispensável para a proteção do bem jurídico. Para tanto, são necessários princípios regulativos, como a adequação social, introduzida por Hans Welzel, que não é elementar do tipo, mas certamente um auxílio de interpretação para restringir formulações literais que também abranjam comportamentos socialmente suportáveis, assim como o princípio da insignificância, que permite excluir logo de plano lesões de bagatela da maioria dos tipos. Maurício Antonio Ribeiro Lopes (1997, p. 51-65, 78) elenca como fundamentos do princípio da insignificância os princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da fragmentariedade, da subsidiariedade e da proporcionalidade, vinculando-o ainda a critérios hermenêuticos de razoabilidade e de interpretação dinâmica. Outrossim, o autor o define como regra de determinação quantitativa material ou intelectual no processo de interpretação da lei penal para confirmação do preenchimento integral do tipo, contrapondo-o ao princípio da intervenção mínima, que considera uma regra de determinação qualitativa abstrata para o processo de tipificação das condutas. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2009, p. 483-485) inserem o princípio da insignificância em sua teoria da tipicidade conglobante, que reconhecem como corretivo da tipicidade legal. Para os juristas, a irrisória afetação do bem jurídico tutelado exclui a tipicidade penal da conduta, mas somente pode ser estabelecida por meio da consideração conglobada da norma, isto é, à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa e, por conseguinte, à norma em particular, que indica que essas hipóteses estão excluídas de seu âmbito de proibição, o que não pode ser definido sob a mera perspectiva de sua visão isolada. Luiz Flávio Gomes (2010, p. 84) concebe o princípio da insignificância como um critério interpretativo, de cunho restritivo e teleológico, que deve operar quando se constata ínfimo desvalor da conduta, do resultado, ou mesmo de ambos, dando azo ao reconhecimento do que denomina infração bagatelar própria (2010, p. 21-23). Esclarece, ademais, ser dogmaticamente incorreto introduzir na análise da

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 insignificância dados referentes aos aspectos subjetivos do agente (2010, p. 24). Estes, somados a outros fatores, tais como as circunstâncias do episódio ou eventual comportamento pós-delitivo (v.g., reparação do dano, colaboração com a Justiça), apresentam importância para o reconhecimento do que chama infração bagatelar imprópria, decorrente da aplicação conjugada dos princípios da desnecessidade da pena e da irrelevância penal do fato (2010, p. 29-32). Luiz Regis Prado (2006, p. 148-150) afirma que o princípio da insignificância é tratado pelas modernas teorias da imputação objetiva como critério para a determinação do injusto penal, quer-se dizer, como instrumento para a exclusão da imputação objetiva de resultados, ostentando a natureza de máxima de interpretação típica restritiva orientada ao bem jurídico protegido. Tece-lhe contudo severas críticas, enfatizando sua imprecisão, sua insegurança aplicativa e o amplo arbítrio que proporciona ao julgador. Ao seu turno, Cezar Roberto Bitencourt (2000, p. 19-20) alerta se dever ter presente que a seleção dos bens jurídicos tuteláveis pelo Direito Penal e os critérios a serem utilizados nessa seleção constituem função do Poder Legislativo, sendo vedado aos intérpretes e aplicadores do Direito invadi-la. Assim, a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade. Por outro lado, não se pode olvidar que a aplicação descriteriosa do princípio da insignificância traz inegável afrouxamento da atuação estatal no combate à criminalidade e suscita inegável risco de revolta de vítimas prejudicadas e de busca da autotutela, em justiça com as próprias mãos, o que tem passado despercebido nas discussões doutrinárias e nas decisões dos pretórios e mereceria maior atenção (LIMA; SANTIN, 2012). O princípio da insignificância, portanto, revela os caracteres de uma diretriz exegética, ou de um verdadeiro postulado normativo aplicativo, que, na lição de Humberto Ávila (2009, p. 124), consiste em uma norma imediatamente metódica que institui os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação, qualificando-se portanto como metanorma ou norma de segundo grau. Ressalte-se que, de acordo com as mais modernas correntes da hermenêutica jurídica, as normas “são os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.” (ÁVILA, 2009, p. 30) Cabe advertir que toda interpretação é desde logo sistemática, posto que implica a consideração do sistema jurídico como um conjunto coerente, isto é, “comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios, de regras e de valores componentes da totalidade do Direito” (FREITAS, 2010, p. 73), ou, em outras palavras, não se interpreta o Direito aos pedaços, em tiras (GRAU, 2009, p. 44). Também merece ser enfatizado que interpretação e aplicação constituem um processo unitário e incindível, que toma os elementos do texto normativo e os do mundo empírico para a formulação da norma jurídica (GRAU, 2009, p. 35).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O princípio da insignificância encontra ampla acolhida na jurisprudência pátria, inclusive na do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Sua aplicação nestas Cortes, todavia, tal qual se exporá a seguir, atrai justificadamente as censuras que se costumam dirigir ao cânone, referentes à insegurança, à imprecisão e ao arbítrio judicial proporcionados, devido à inquestionável diferença de tratamento constatada entre os crimes econômicos e os crimes patrimoniais. De fato, os vetores identificados para balizar o emprego do critério interpretativo em apreço têm servido a manipulações retóricas tendentes a negá-lo no que concerne a muitos crimes patrimoniais, em especial os furtos, ao passo que têm sido nitidamente amenizados no tocante a determinados crimes econômicos, como a apropriação indébita previdenciária, o descaminho e a sonegação de contribuição previdenciária. Aludida disparidade suscita indagações sobre os “condicionamentos históricos e objetivos ocultos com os quais o sistema penal de uma sociedade dividida em classes nega cotidianamente os princípios idealisticamente transcritos nos livros de direito penal” (BATISTA, 2005, p. 9), bem como torna fundada a incisiva crítica de Alessandro Baratta (2002, p. 175), segundo quem o sistema penal realiza funções seletivas e classistas de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contraestímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores.

2. A DIFERENTE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES ECONÔMICOS E NOS CRIMES PATRIMONIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ

De início, cumpre explicitar os parâmetros empregados na pesquisa jurisprudencial sobre a aplicação do princípio da insignificância no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a fim de possibilitar a compreensão dos resultados que serão a seguir submetidos à análise crítica. Em primeiro lugar, buscaram-se, em cada uma das categorias de crimes objetos de comparação, isto é, os econômicos e os patrimoniais, e sem rigor estatístico, os tipos penais de maior incidência acerca dos quais tenha sido expressamente abordada a temática. Tal corte metodológico qualitativo e quantitativo se fez necessário para separar aquilo que pode ser considerado propriamente como jurisprudência, ou seja, conjunto de decisões judiciais reiteradas em determinado sentido, dos casos isolados ou de pequena repetição, ainda que consubstanciassem preciosos precedentes. Ademais, tendo em conta o caráter dinâmico que marca os entendimentos jurisprudenciais sobre certos assuntos em tempos recentes, os quais vêm se modificando e novamente se sedimentando com relativa rapidez, procedeu-se a uma delimitação temporal do universo de acórdãos ou decisões monocráticas pesquisado, abrangendo com preferência, mas não exclusivamente, os anos de 2010 a 2014. Finalmente, excluíram-se do exame os recursos e as ações impugnativas autônomas (massivamente representadas pelo habeas corpus) que, embora trouxessem referência ao princípio da insignificância, hajam sido barrados no seu

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 juízo de admissibilidade, por ensejarem supressão de instância ou por qualquer outra causa formal. Pôde-se verificar a imensamente maior incidência, entre os delitos contra o patrimônio nos quais se invocou o caráter bagatelar, do crime de furto (art. 155 do Código Penal), em suas formas fundamental e qualificada, consumada e tentada. Os crimes de roubo, apropriação indébita, estelionato, receptação e violação de direito autoral (artigos 157, 168, 171, 180 e 184 do Código Penal) também tiveram alguns relevantes registros, porém em proporção bastante inferior. Por outro lado, os delitos econômicos numericamente mais expressivos encontrados em relação ao tema foram os de apropriação indébita previdenciária, descaminho e sonegação de contribuição previdenciária (artigos 168-A, 334 e 337-A do Código Penal). O contrabando (hoje previsto no art. 334-A do Estatuto Repressivo), por implicar ofensa a outros bens jurídicos além da arrecadação tributária, tais como a saúde coletiva e a regularidade da atividade empresarial interna, não se beneficia da aplicação do princípio da insignificância nos moldes do descaminho, conforme decidiu o STF, dentre outros, no julgamento do HC 100.367/RS, 1ª. T., Rel. Min. Luiz Fux, j. 09.08.2011, p. DJe-172, 08.09.2011. Em segundo lugar, os dados colhidos restaram submetidos a procedimentos indutivos, no escopo de sintetizar as concepções e ideias principais e constantes que permeavam a jurisprudência sobre a aplicação do princípio da insignificância relativamente a cada grupo de infrações penais, assim viabilizando a etapa posterior, qual seja, a do cotejo de ambos. O Supremo Tribunal Federal, no que foi seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, elencou quatro vetores fundamentais orientadores do reconhecimento concreto da insignificância: a) ausência de periculosidade social da ação; b) mínima ofensividade da conduta do agente; c) inexpressividade da lesão jurídica causada; e d) falta de reprovabilidade da conduta. No STF, vejam-se: HC 108.872/RS, 2ª. T., Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06.09.2011, p. DJe-183, 23.09.2011; HC 107.674/MG, 1ª. T., Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 30.08.2011, p. DJe-176, 14.09.2011; e HC 100.367/RS, 1ª. T., Rel. Min. Luiz Fux, j. 09.08.2011, p. DJe-172, 08.09.2011. No STJ, confiram-se: HC 173.543/SP, 5ª. T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 20.09.2011, p. DJe, 27.09.2011; e HC 211.929/RJ, 6ª. T., Rel. Min. Og Fernandes, j. 13.09.2011, p. DJe, 26.09.2011. Luiz Flávio Gomes (2010, p. 34-36) assevera ser equivocado inserir nessas diretivas exigências relacionadas ao desvalor da culpabilidade, que implica na reprovação da conduta, posto que a insignificância toca ao âmbito do injusto penal, afetando apenas o desvalor da ação, o desvalor do resultado, ou ambos conjuntamente. Para ele, portanto, somente os três primeiros critérios se mostrariam corretos para subsidiar o reconhecimento da infração bagatelar própria. Todavia, ditos vetores têm se prestado a manipulações retóricas e servido notadamente para negar a aplicação do princípio da insignificância a muitos dos crimes patrimoniais levados a julgamento no STF e no STJ, em especial os furtos. Ao revés, têm sido nitidamente atenuados quando se trata dos crimes econômicos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 citados alhures, isto é, apropriação indébita previdenciária, descaminho e sonegação de contribuição previdenciária. Com efeito, para estes se tem empregado critério o mais objetivo possível: o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais), insculpido no art. 20 da Lei n. 10.522/2002 como limite máximo até o qual devem ser arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como dívida ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ou por ela cobrados. No STF, consultem-se: HC 100.942/PR, 1ª. T., Rel. Min. Luiz Fux, j. 09.08.2011, p. DJe-172, p. 08.09.2011; HC 96.852/PR, 2ª. T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 01.02.2011, p. DJe-049, 16.03.2011; HC 96.412/SP, 1ª. T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.10.2010, p. DJe-051, 18.03.2011; e HC 102.935/RS, 1ª. T., Rel. Min. Dias Toffoli, j. 28.09.2010, p. DJe-223, 22.11.2010. No STJ, observem-se: AgRg no REsp 1.166.145/SC, 6ª. T., Rel. Min. Vasco Della Giustina, j. 15.09.2011, p. DJe, 26.09.2011; AgRg no REsp 1.226.727/SC, 6ª. T., Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 01.09.2011, p. DJe, 19.09.2011; AgRg no REsp 1.226.745/PR, 6ª. T., Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 01.09.2011, p. DJe, 19.09.2011; e AgRg no REsp 957.936/RS, 6ª. T., Rel. Min. Vasco Della Giustina, j. 23.08.2011, p. DJe, 08.09.2011. Sustenta-se que, se tal quantum é considerado irrisório para o ajuizamento ou o prosseguimento de demanda executória fiscal, a fortiori o será para efeito da configuração da tipicidade penal material das infrações. Note-se que sequer a reincidência do agente parece se colocar como óbice, nos moldes em que expressamente declarou o STJ no julgamento do AgRg no REsp 1.226.745/PR, 6ª. T., Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 01.09.2011, p. DJe, 19.09.2011: “A reincidência, em crimes de descaminho, não afasta a incidência do princípio da insignificância”. Nos crimes patrimoniais, porém, há enorme diversidade de valores tomados em consideração, que contudo não exorbitavam de R$ 200,00 (duzentos reais) (STF, HC 105.974/RS, 2ª. T., Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 23.11.2010, p. DJe-20, 02.01.2011 - furto tentado em que a res furtiva foi restituída à vítima) e aos quais se costumam agregar outras exigências definidas casuisticamente e enquadradas argumentativamente nos já mencionados vetores. Nega-se aplicação ao princípio da insignificância, por exemplo, tratando-se de reiteração ou habitualidade criminosa, ainda que não caracterize tecnicamente a reincidência (STF, HC 104.348/MS, 1ª. T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19.10.2010, p. DJe-215, 10.11.2010; HC 107.138/RS, 1ª. T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26.04.2011, p. DJe-102, 30.05.2011; e HC 107.067/DF, 1ª. T., Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 26.04.2011, p. DJe099, 26.05.2011); se presente alguma qualificadora no furto (STF, HC 105.922/RS, 2ª. T., Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08.02.2011, p. DJe-146, 01.08.2011; HC 107.772/RS, 2ª. T., Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.05.2011, p. DJe-104, 01.06.2011; e HC 109.081/RS, 1ª. T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13.09.2011, p. DJe-187, 29.09.2011); havendo prejuízo considerável à vítima, ainda que o objeto material tenha inexpressivo valor econômico (STF, HC 104.403, 1ª. T., Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 02.12.2010, p. DJe-020, 01.02.2011; e HC 106.215/MG, 2ª. T., Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 07.12.2010, p. DJe-074, 19.04.2011); ou sendo o agente reincidente (STF, HC 100.240, 2ª. T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 07.12.2010, p. DJe-043, 02.03.2011; e HC 97.007, 2ª. T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 01.02.2011,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 p. DJe-061, 31.03.2011). Outrossim, recusa-se peremptoriamente a aplicação nos crimes patrimoniais cometidos com violência ou ameaça contra a pessoa, sem indagar o grau, a natureza ou a intensidade destas (STJ, HC 105.066/SP, 5ª. T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 16.09.2008, p. DJe, 03.11.2008; e STJ, HC 52.936/SC, 5ª. T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 04.04.2006, p. DJ 15.05.2006, p. 265). Algumas situações vislumbradas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça são emblemáticas e merecem destaque. Já se negou o reconhecimento do caráter bagatelar à receptação simples de um singelo toca-fitas portátil (walkman) (STJ, REsp 836.892/RS, 5ª. T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 22.05.2007, p. DJ 18.06.2007, p. 298); ao estelionato perpetrado contra a União para recebimento da quantia de R$ 135,00 (cento e trinta e cinco reais) do programa federal “Bolsa Família” (STJ, HC 85.739/PR, 5ª. T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 28.11.2007, p. DJ 07.02.2008, p. 357); e ao furto qualificado por abuso de confiança cometido por empregada doméstica contra seu patrão, tendo por objeto bens avaliados em R$ 120,00 (cento e vinte reais) (STJ, REsp 1.179.690/RS, 6ª. T., Rel. Min. Og Fernandes, j. 16.08.2011, p. DJe, 29.08.2011). Assim, para os crimes patrimoniais, em regra praticados por pessoas oriundas das camadas mais pobres da sociedade, o Direito Penal continua sendo a prima ratio, mesmo quando o ordenamento jurídico preveja outros eficientes e menos gravosos mecanismos de reação (v.g., os deveres de restituir, ressarcir ou reparar preconizados pela legislação civil e a demissão por justa causa contemplada na legislação trabalhista). Não se perseguem com o desejável afinco o retraimento do poder punitivo estatal, a diversificação das respostas sancionadoras e a instituição de formas alternativas ou comunitárias de resolução dos conflitos, cabíveis diante da grande disponibilidade inerente ao bem jurídico tutelado, que é o patrimônio, desde que as condutas não envolvam violência ou ameaça relevantes contra a pessoa. Para os crimes econômicos, cujos autores usualmente ocupam os mais altos estratos da pirâmide social, entretanto, além das muitas benesses legais já existentes, tais como a “suspensão da pretensão punitiva” pelo parcelamento dos débitos fiscais e previdenciários e a extinção da punibilidade decorrente do integral pagamento de tributos ou contribuições sociais e seus respectivos acessórios (art. 9º da Lei n. 10.684/2003), ou as hipóteses de perdão judicial ou imposição isolada de pena de multa nos delitos de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária (art. 168-A, § 3º, e art. 337-A, § 2º, do Código Penal), a jurisprudência dos Tribunais Superiores ainda cria ou desenvolve outras. Relembrem-se a exigência de exaurimento da via administrativa para o ajuizamento de ação penal relativamente a determinados crimes tributários e a ora abordada expansão do princípio da insignificância para um patamar nada insignificante, tendo-se por base a situação econômica nacional, em especial a renda mensal média da ampla maioria das famílias brasileiras. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, como de resto as instâncias judiciais em geral, salvo honrosas exceções, devido a certo conservadorismo, continuam presas a um ultrapassado modelo liberal-individualistapatrimonialista-normativista de compreensão e produção/reprodução do Direito, ignorando a revolução paradigmática representada pela ascensão dos interesses

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 supraindividuais (STRECK, 2002, p. 18). Não parecem perceber, por isso, que a ordem tributária e o sistema previdenciário, aspectos parciais, autônomos e específicos do bem jurídico categorial ordem econômica (PRADO, 2007, p. 38), têm sua tutela penal legitimada e exigida pelas necessidades do Estado Democrático e Social de Direito de auferir receitas para custear suas múltiplas atividades de cunho social e distributivo (PRADO, 2007, p. 303; RODRIGUES, 2000, p. 181) e de arrecadar as contribuições imprescindíveis à manutenção e ao funcionamento da Previdência Social (DIAS, 2006, p. 20). E prosseguem, por conseguinte, direcionando o aparato do Direito Penal à delinquência comum, mormente de caráter patrimonial, e lançando as redes repressivas sobre a tradicional clientela do sistema penal, ao invés de procurarem coibir lesões de mais intensa magnitude a bens jurídicos macrossociais e chamar à responsabilização criminal aqueles que a ela se acham imunes.

CONCLUSÃO

Resta claro que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça traz marcantes diferenças nas maneiras de aplicar o princípio da insignificância, conforme se trate de crimes econômicos ou de crimes patrimoniais. Não obstante bons avanços na ampliação do reconhecimento do caráter bagatelar relativamente a muitas infrações, é certo que, quanto aos primeiros, realmente se observa tendência bastante liberal e expansiva, ao passo que, nos últimos, ao contrário, constata-se orientação oposta, conservadora e restritiva. Com efeito, um exame atento e crítico das decisões daquelas Cortes permite aferir que os vetores identificados para balizar o emprego do critério interpretativo em apreço têm servido a manipulações retóricas tendentes a negá-lo no que concerne a muitos crimes patrimoniais, em especial os furtos. Por outro lado, têm sido nitidamente amenizados no tocante a determinados crimes econômicos, como a apropriação indébita previdenciária, o descaminho e a sonegação de contribuição previdenciária. A consequência direta dessas disparidades é fazer recair o poder punitivo estatal com maior ênfase sobre a parcela mais pobre da população, perpetuando as desigualdades de classe na esfera criminal e a difundida crença de que, no Brasil, os ricos são imunes ao sistema penal, bem como tornando este um locus privilegiado de cumprimento de funções seletivas e classistas de reprodução/manutenção das relações sociais estruturadas verticalmente e de criação de obstáculos à integração das camadas mais carentes e marginalizadas, quando não mesmo dos próprios fatores de marginalização. O quadro, portanto, é trágico e preocupante e necessita ser celeremente revertido, para que se possam concretizar as descumpridas promessas emancipatórias trazidas no art. 3º da Lei Maior, de construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (inciso II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III);

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV). Em síntese, há que se buscar um Direito Penal solidamente alicerçado nos valores da democracia e da igualdade substancial, absolutamente comprometido com a dignidade da pessoa humana e conscientemente refratário à sua utilização como superestrutura ideologicamente legitimadora de relações de dominação.

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POR UMA NOVA COMPREENSÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS: participação social, correição contra hegemônica, garante das liberdades e conquistas da democracia líbero-social: outra versão da jornada de junho - 2013 no Brasil / Maria da Graça Marques Gurgel, Agatha Justen Gonçalves Ribeiro e Flavio Kummer Hora RESUMO: O trabalho faz uma clivagem para localizar a questão das mobilizações sociais de protestos e de suas criminalizações no plantel das discussões sobre as democracias latino-americanas e do seu novo constitucionalismo. Destaca alguns fatos ocorridos nas jornadas de protestos de junho/2013, como suporte empíricodocumental à discussão sobre a relação do Estado com os movimentos sociais concernente ao sistema democrático. Constata a existência de significativas fragilidades na efetivação das democracias latino-americanas. Aponta aspectos positivos dos movimentos sociais na otimização da política e na mensuração da democracia concreta, a qual pugna por um direito emancipador e construtor de habilidades nas relações entre o Estado e os movimentos sociais. Palavras-chave: Movimentos Sociais; Criminalização; Novo Constitucionalismo Latino-americano; Direito Emancipatório.

1 Introdução

Pertence ao senso comum a ideia de que a democracia chama à si discursos agregadores de participação popular, principalmente a democracia forjada nas lutas e conquistas populares vitoriosas (BONAVIDES, 2001, p. 34). É que, como forma de Estado, denota-se uma predisposição ao cometimento de ações com vistas ao debate público anterior às tomadas de decisões dos que gerenciam suas políticas, ou mesmo a sua revisão, quando a insatisfação popular torna-se induvidosa. No Brasil, porém, confere-se um deficit quantitativo e qualitativo ao debate público. As decisões geralmente são tomadas de forma hierarquicamente vertical, ou de modo em que os representantes do povo se encastelam em seus próprios interesses e distanciam-se dos problemas que permanecem a infligir grande parte da população.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Com esse deficit de informação e de politização, os debates, quando existem, confinam-se às portas fechadas, por pessoas pouco representativas daqueles brasileiros despossuídos. Doutra banda, como é possível de se constatar, após a Jornada dos Protestos de Junho de 2013 nas ruas, reaparece a propaganda política que desfigura o ativismo, aspecto que vem sendo abordado pela ótica da criminalização extrema a supostos excessos praticados em meio as manifestações. Destaca-se que sempre houve criminalização desses excessos na forma da legislação comum. Porém, atualmente se cogita de “ativismo terrorista”, o qual se encontra enunciado no Projeto de Lei n°499/2013, nascido após as passeatas de protestos da referida Jornada. Governo e mídia formaram e continuam a formar a opinião pública sobre os atos protagonizados pelas mobilizações e também por alguns dos seus sujeitos concretos. Que consequências ocorrem quando os sujeitos que se mobilizam, quer sejam militantes, quer sejam simpatizantes pontuais, vêm a ser criminalizados ou rotulados com significativos termos que levam a opinião pública a entender as suas participações como um ativismo de terroristas? Debruçar no fenômeno da criminalização de líderes ou participantes de movimentos sociais é tarefa que pode ter várias dimensões no campo do direito. Na hipótese concreta deste trabalho, sua análise se deterá sobre a compreensão possível acerca da participação política nos movimentos sociais e dos efeitos produzidos em face das mobilizações e da criminalização de alguns ativistas, o que se fará baseado nos discursos presentes ao tempo da mencionada jornada. O trabalho faz uma clivagem para situar a questão das mobilizações sociais e mesmo da criminalização normatizada que situa o tipo de ativismo terrorista em lei especial no plantel das discussões sobre as democracias latino-americanas e do seu novo constitucionalismo. Trata-se de material residual à Teoria da Constituição, na perspectiva crítica de que, no contexto da América Latina, descortinam-se diferenciações específicas a propósito das necessidades sociais, bem como pelo fato de suas modernidades recentes ainda não terem superado no plano da efetividade alguns dos resquícios dos períodos autoritários, o que poderá significar que, embora exista uma democracia normada no texto da Constituição da República brasileira, o reaparecimento de práticas, sejam discursivas ou não, que recorram ao controle social máximo, poderá ofuscar a democracia possível com medidas críticas bastante assemelhadas as que são atuantes no que se chama de Estado de Exceção. Outrossim, destaca-se que pelos novos modelos, em que pese haver muito mais empecilhos no âmbito da efetivação dos direitos sociais, há aspectos da democracia liberal que se voltam para as liberdades, direitos e garantias políticos que, apesar de representarem direitos de primeira dimensão históricos-material, ainda não se tornaram funcionalmente eficientes no Brasil. Estamos a nos referir às liberdades políticas de reunião, manifestação, greves, que demandam um amadurecimento político das classes integrantes do aparelho estatal com habilidades próprias no âmbito da comunicação e das ações sociais. Também é ainda no entender deste trabalho que a consolidação da democracia que tem um caráter ideológico presente,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 em face dos enunciados que positivam a democracia constitucional mediado por ações humanas, pode exercer um papel na transformação das respostas a supostos excessos remetidos às mobilizações sociais, sem que se tenham que recorrer a medidas excepcionais e sim a meios compatíveis com os enunciados jus-políticoconstitucionais das democracias latino-americanas pós-ditatoriais. Este artigo, tem a pretensão de contribuir sobre o tema do Estado de Exceção, na versão schmittiana do que chamou de "Quebra da Constituição", material que vimos nos dedicando a investigar. Analisamos algumas hipóteses de sua ocorrência praticadas pelo Estado, sem que este tenha justificativa baseada no estado de necessidade, ou emergencial. O Estado de Exceção é o gênero dos diversos fantasmas elucubrados por Schmitt para justificar o decisionismo em face das circunstâncias de juridicizar a política, legitimando seus atos de suspensão de direitos pelo próprio sistema jurídico. Esses fantasmas serpenteiam nas democracias latino-americanas – no dizer popular, “vira e mexe” – em locus que sediam realidades plurais, desiguais e por isso, complexas. Complexidade que passa a ser percebida pelo que se chama de novo constitucionalismo latino-americano, ausente do processo integrador e homogeneizador do constitucionalismo clássico (BALDI, 2013, p. 90-106). Consequência dessa nova perspectiva em construção é que, sem o enfrentamento do debate público e, apenas na direção do maior controle social possível, via de regra fundado na repressão estatal às liberdades, direitos e garantias políticos não se constrói uma cultura jurídica própria (latino-americana) e se permanece a se descurar do bem-estar desses povos, ensejando a contradição de uma democracia nominal que recrudesce ao terror das ditaduras para resolver impasses típicos do convívio complexo entre desiguais. Destaque para o aspecto de que as soluções gravosas em grande parte surpreendem a maioria dos vulneráveis e as minorias políticas, o que faz contornando as formas jurídicas constitucionalizadas com mutações inconstitucionais de seus princípios e diretivas que se legitimaram justamente na inauguração de tais democracias. Nesse sentido, a hipótese da criminalização dos membros dos movimentos sociais é a de que sua ocorrência em moldes excepcionais ocorre menos por suas condutas concretas e mais pela disseminação de ideologias práticas e práticodiscursivas. A 2ª hipótese é de que essa disseminação não é compatível com a nova compreensão constitucional latino-americana e os movimentos sociais desafiam a capacidade de resistência de ideologias cuja prática e discursividade é mais adequada à compreensão dialético-histórico-material no Estado Democrático de Direito, vertente do Estado social que cumula direitos e liberdades da primeira fase do Estado liberal submetida agora ao paradigma social da Democracia.

2 A Problemática Otimização Política

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Como registrado anteriormente, o Novo Constitucionalismo Latino-americano encontra na otimização da política a efetivação jurídica de sua tipicidade cultural, emancipatória e diferenciada em face do constitucionalismo clássico. Em uma breve síntese, essa compreensão parte da constatação de vários estudiosos de que a América Latina superou-se em termos de formas jurídicas, o que fez a partir da luta de seus povos contra as diversas ditaduras que ocorreram nesse Continente. Como desde o início já se firmou a opção por direitos emancipatórios e construtivos ocorre em razão de se considerar estes melhor compatibilizados nas resoluções de problemas sociais e na otimização da política. Trata-se de uma nova construção, um novo pensar que opta por evitar o núcleo duro (que pugna pelo controle social máximo) por entender que este, em face das democracias tardias é passível de recair no direito que nega direitos, que é o Estado de Exceção. Segue-se os passos de Heller (1968), na sua clássica e reconhecida Teoria do Estado. Com isso, evita-se analisar o fenômeno sob esquivas idealistas ou puramente conceituais. Ao se focar nos fatos históricos recentes de junho de 2013, ocorridos no Brasil, jornada essa em que houve protestos e mobilizações fortemente reprimidas pelo Estado, entende-se, como o citado autor, que a Teoria do Estado e o Constitucionalismo são fortes em sua faticidade. De modo que, a partir de fatos, podese obter uma matriz referencial para os conceitos. A investigação social parece ser muito proveitosa quando assim feita porquanto, com isso se limitam as abstrações conceituais. Sobre o nosso fenômeno, é possível se confirmar que as contendas sociais das jornadas de junho traduzem importante material em face de que alguns dos seus efeitos na política podem evidenciar se houve um construto relacional entre Estado e Sociedade, ou um retrocesso nas relações do Estado e a diversidade do tecido social. Em outras palavras, nos aditivos das circunstâncias histórico-materiais revela-se o grau de consequências dos fenômenos políticos. No caso do fenótipo social da Jornada de Junho de 2013, anota-se a primeira consequência que foi o reavivamento da participação popular, agora mediada pela internet. As respostas práticas e prático-discursivas descritas pela imprensa sobre as mobilizações é um bom material de pesquisa qualitativa, cuja análise pode justificar nosso ponto de partida. Assim, em São Paulo, por exemplo, um grupo de manifestantes entoou "Veja, Globo, o povo não é bobo”, “Fora Globo”, “Central Globo de Mentiras” (TERRA ONLINE, 2013), quando repórteres foram cobrir as manifestações, momento em que chegaram descaracterizados. A manchete Globo e Veja viram alvo de manifestantes em novo ato em SP é, por si só, significativa. Destaca-se que a passeata que contou com inúmeras pessoas reprisava o que teria ocorrido em dia anterior, quando os ativistas que se misturavam com populares presentes na ocasião foram desqualificados por esses órgãos da imprensa brasileira. Tudo vem a indicar, portanto, que o rechaçamento à imprensa foi dirigido apenas aos órgãos que rotulavam de forma depreciativa o movimento e os seus ativistas. A edição da notícia de onde foram extraídas essas falas registra que nesse dia os jornalistas integrantes da revista Veja e do Globo não foram agredidos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Nos dias subsequentes, foram registradas 250 prisões de ativistas em manifestações. Ocasião em que se utilizou de bomba de gás lacrimogênio que atingiu não-participantes (motoristas de ônibus, jornalistas e outras pessoas), além de gás de pimenta. As pessoas que estavam nas ruas e os passageiros de ônibus em vão tentavam se proteger correndo para todos os lados, jornalistas foram detidos, ameaçados e agredidos. Essa notícia tinha a seguinte manchete: “Cenas de guerra nos protestos em SP”. Tal título detalhou o confronto em que “(...) policiais usavam bombas e tiros de bala de borracha, manifestantes respondiam com pedras e rojões”. Os tipos penais em que os ativistas foram indiciados corresponderam, segundo a notícia, a crime de dano privado e de dano ao patrimônio público. Atribui-se ao governador de São Paulo e ao prefeito, o primeiro do PSDB e o segundo do PT, as declarações de que as reações teriam sido “ações coordenadas”. A edição complementa que o governador via oportunismo no movimento, apesar de reiterar “a defesa do direito de ir e vir”. Igualmente editado na notícia, estava o seu propósito de não permitir que os manifestantes prejudicassem a circulação de veículos e pessoas. Já o prefeito, segundo foi veiculado, no mesmo dia, afirmou que a polícia deve ser investigada por abusos, mas não deixou de criticar a ação dos ativistas, não se tendo registro nessa notícia de fala original dessa autoridade. A edição complementa que as agressões repercutiram negativamente na imprensa e nas redes sociais. Outrossim, nessa experiência, vítimas e testemunhas divulgaram pela internet relatos, fotos e vídeos e, ademais, que a mobilização contou com a solidariedade em apoio aos protestos ocorridos na capital de São Paulo. Veja-se que os protestos referidos nas falas pretéritas dentro de um direito emancipatório e construtivo requisitaria a habilidade na contenção dos excessos, pelos diversos modos passíveis de serem empregados pela polícia comunitária, com próprias permissivas às manifestações de protesto. De outro modo, observa-se que as consertações democráticas tornam possíveis conviver direitos e valores que guardam feitios próprios. Assim, o direito de participação popular, corolário da democracia e o de tolerância, passam a ser efetivados com a possibilidade das manifestações dos movimentos sociais ocorrer sem que sejam impedidas. O trânsito de pessoas, transportes coletivos e demais veículos devem tolerar tal direito, na medida em que manifestações de protestos não são fatos do cotidiano público. A visibilidade e o reconhecimento ao exercício da liberdade de manifestação, confundido nos discursos como simples direito de locomoção, concretiza-se pela ausência de impasses a sua realização que deve ser garantida pelo Estado. Por outro lado, na medida em que uma autoridade representativa de uma cidade como São Paulo precipita pré-compreensões negativas sobre a participação popular, induzindo ao erro de se atribuir um caráter organizado e permanente a uma passeata de protestos (ou mesmo a uma jornada de passeatas), estimula ao mimetismo de outras autoridades de menor escalão a adotar providências de enquadramento em tipos penais que correspondem ao dado posto em suspeita publicamente pela autoridade máxima do Estado. Ora, os ativistas que cometeram crime de dano privado e de dano ao patrimônio público têm indiciamento sopesado pelo Estado brasileiro, na sua forma simples, em detenção de 01 a 06 meses ou multa. No entanto, o crime organizado

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 que se cumulou aos ativistas presos sobressai um parâmetro penal desproporcional para efeito de adequação a passeata de protesto (crime cuja pena é de 3 a 8 anos de reclusão, sem prejuízos de outras infrações que venham a ser abrangidas). Não diversamente ocorreu em outra metrópole. Notícia veiculada pela UOL dá conta de que o professor e pesquisador Paulo de Abreu Bruno, da Escola Nacional de Saúde Pública, que se encontrava acompanhado de sua esposa quando da manifestação ocorrida no dia 15 de junho, no Rio de Janeiro, foi preso. O “flagrante” ocorreu contra o professor e sua esposa, supostamente quando aquele filmava a manifestação popular. A notícia editada atribui que o professor da Fiocruz foi incursionado na lei de crime organizado com base na recente Lei 12.850/2013. Aqui não se cogita de discutir os poderes da autoridade policial no âmbito de sua incursão, feita em fase pré-processual. O que se cogita é que, desde então a pré-compreensão dessa autoridade em atribuir ao professor uma das condutas descritas na referenciada lei, lhe permitiu impor ao professor um tratamento prático consistente na não concessão de fiança e na condução separada de pessoa da sua família, uma vez que levado para a delegacia do 37° Distrito Policial, da Ilha do Governador, enquanto sua mulher, acorde com a notícia, teria sido conduzida à Delegacia Policial da Penha. A edição dessa notícia alinha outro fato: que todos os 64 presos que participavam do protesto foram enquadrados pela autoridade policial, na mencionada lei, evitando-se igualmente com isso a possibilidade de que fossem soltos mediante o pagamento de fiança. A notícia não conduz a se pensar que os 64 presos estivessem apenas filmando, mas, que uma única pessoa foi presa porque estava filmando a manifestação, não caracterizando as demais condutas, que enfim foram “homogeneizadas” pela autoridade policial sob a tutela excepcional da lei divisada. A notícia demonstra, neste caso, o empenho da polícia em tornar efetivo o controle social pelo chamado núcleo duro do direito. No caso concreto, como não há qualquer tipicidade penal no ato de filmar uma manifestação de protesto, ainda que de uma democracia nominal, a ideia de prender quem está filmando a manifestação nos aproxima da doutrina do direito penal do autor. De fato, o professor não foi preso porque fotografava. O professor foi preso porque estava captando por uma lente fotográfica um protesto, que não poderia ter visibilidade e reconhecimento político por divergências pontuais. Ele foi preso por ser protagonista, autor de algo que seria a possibilidade de tornar visível o fato social da manifestação, de modo instantâneo, original e incontroverso. A Democracia em tal situação é totalmente despida de suas características. Como se falar que intervenções como essa são conformes a Democracia? Como se pretende avançar em uma democracia cujos agentes públicos não se vinculam ao fato social de sua constituinte? Como se pode travar o diálogo se se ignoram a causa da democracia brasileira? Ao se utilizar de meios excepcionais para controlar o corpo social de manifestar a sua insatisfação política, o Estado produz a crise e não a otimização da democracia. De forma que a maxipenalização dos textos legislativos, as reprimendas aos movimentos sociais e as práticas que criam risco às integridades física, moral e psicológica, são em princípio contrárias a Democracia e ao bem-estar social.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A imprensa estrangeira emitiu falas que vêm ao encontro desses questionamentos ao fazer menções como: “perdeu o controle em São Paulo”, referindo-se a ação policial. Também, ao enfatizar a sua intervenção, fala de que seu agir foi como “num campo de batalha”, bem como identifica que a imprensa brasileira se encontra “em mãos de famílias da considerada elite”. As primeiras falas evidenciam que o ativismo contrário às decisões do governo é o inimigo. É o mesmo inimigo de que nos fala Schmitt em sua teologia ao discorrer sobre a falta de substância ou materialidade no âmbito do político, e a implicação de que esse âmbito é o decisivo para decidir a esfera do Estado, discernir a dissociação da associação, o amigo do inimigo (SCHMITT, 2006, p. 76). Também as profusões de discursos que atingem a consciência cultural da democracia, as inflamações preconceituosas de gênero, etnia ou raça, bem como outras discriminações negativas que envolvem a imagem individual e comprometem a representação coletiva, depõem contra o avanço da participação. Quando houve o titulado protesto contra a cura gay, o que foi divulgado foram discursos que protestavam em meio às jornadas de junho/2013 contra retrocessos, com os dizeres: “Esse é um manifesto nacional [...] esse projeto dele (Feliciano) é um tiro no pé, porque se ele quer curar os gays, deveria propor a construção de hospitais ao menos para atender todos”; “O que precisa de cura é o país”. Como é possível se constatar, indiferente aos apelos de segmentos organizados no Brasil e no mundo, a manifestação constata a violação a direitos humanos, ao tempo em que ostenta a repulsa dos destinatários da “cura gay” em face do projeto de Decreto Legislativo 234/2011. Por esse projeto, o presidente da Comissão de Direitos Humanos, na contramão da igualdade constitucional apregoada pela constituição brasileira, art.5°da CFR, e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (DL678/1992: Pacto de San José) faz um discrímine aos cidadãos que mantém relações sexuais homo afetivas, acenando com a possibilidade dos seus tratamentos. Essa mobilização, que desenha a pluralidade da jornada de junho de 2013, ela própria, desoculta o modo grosseiramente subliminar empregado pelo Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Brasil, que leva a inafastável compreensão de que a opção sexual em questão deve ser tratada como uma doença passível de ser curada, apontando-se que o diagnóstico é inteiramente preconceituoso. Ao agir assim, dissipam-se valores democráticos, conjuram-se a força brutalizante contra a massa e a propaganda política desqualificadora da participação popular. A Democracia é uma Forma de Estado, mas sobretudo é um modo de relação política que se sustenta na origem do poder e no modo como esse poder se relaciona com os seus concidadãos. Então, como Campos (1990, p. 19) divisou há anos, há aspectos estáticos, consubstanciados no modo como se deu a conquista do poder e há aspectos dinâmicos de como o poder se relaciona com o povo. Consequência disso é que a otimização do Político na visão clássica requeria a maestria do Estado, não sendo outra coisa também para o próprio Heller quando enuncia que o Estado é o modelo ótimo do poder político e explica que “o poder

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 organizado e exercido por órgãos especiais de uma Igreja, de um trust ou mesmo de uma organização militar como tal, não costuma ser identificado como político” (HELLER, 1968, p. 248). Essa expressão não significa que somente o Estado faz boa política, porquanto política (boa ou má) é também o fim ínsito dos partidos políticos, sindicatos, associações, grupos que se movimentam em torno dos seus interesses e necessidades. Também porque é notório que "fazem política" as mídias, o mercado e mesmo aqueles que se dizem apolíticos, o que não necessariamente, como vemos, requer uma clara identidade política. Muitas das vezes é preciso que suas práticas enunciadas em fala sejam compreendidas como partes contextualizadas com os papéis frontalmente assumidos e os papeis subjacentemente subsumidos, que se transformam em coisas material e historicamente palpáveis (FISCHER, 2013, p. 123151). De modo que, o que há de mais verdadeiro na política é que esta almeja o poder e que a transição ao poder é complexa. Assim, ainda que os setores anteriormente mencionados cometam atos políticos, o Estado sempre foi a maior expressão de poder.

2 Globalização Econômica e Contra-hegemonia

No entanto, é de se indagar se o Estado tem algum papel importante no desempenho da Política. Na conjuntura atual, com a globalização e principalmente com a globalização econômica, representam o maior poderio econômico-financeiro as grandes corporações financeiras transnacionais, e as agências multilaterais. Em seu conjunto, divisa-se a faticidade do poder desses organismos que emitem diretivas, sancionam Estados-Nação e ditam comportamentos deste. No entanto, o papel da política, seu poder simbólico permanece no Estado capitalista e no Capitalismo ultraliberal dos tempos atuais com modificações e adequações a esse grande mercado, sob a síntese da Lex Mercatorum. De fato, hoje, tanto o capitalismo coorporativo quanto o Estado capitalista detêm poderes econômicos e políticos. Consequência é que a representação política do Estado é um poder explícito, o que se explica por deter, no plano interno, a coercibilidade. No entanto, os poderes fáticos do capitalismo são mensurados como poderes superiores aos dos Estados Nacionais, dado o amplo espectro na política e na economia dos Estados, principalmente aqueles que se encontrem endividados. Para estes há um cúmulo de atribuições que fazem com que o termo “Estado Mínimo” seja uma contradição ou, no mínimo, uma controvérsia. É que, ao olharmos o retraimento dos Estados Nacionais, constatamos que há uma espécie de congelamento da figura do Estado Moderno, ainda sob sua acepção de gestor administrativo e financeiro dos poderes; também de Estado-soberano, ou mesmo de Estado representante/representado frente às instituições internacionais.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Todavia, chama-se a atenção de que os Estados Nacionais dos países dependentes em confronto com os Estados Nacionais que desde o final do Estado Moderno adotaram o parâmetro do Estado Social Intervencionista, apesar de terem recuado nas pequenas intervenções iniciadas, detêm muita importância existencial para o capitalismo atual. Isso porque são aqueles Estados Nacionais dependentes que são proporcionalmente mais cooperativos com o capitalismo, seja “contribuindo” com o retraimento das políticas sociais, seja contribuindo com a execução de políticas que permitam que as grandes corporações fruam de maior lucro, em face das vicissitudes ocorridas na seara do trabalho, no qual os países dependentes ofertaram e ofertam, tanto um forte processo de flexibilização do custo da mão de obra ofertada, quanto políticas que atendam a necessidade de segurança aos seus comércios. Explica-se, ao se expandir, o capitalismo cumula ao Estado-Nação tarefas atípicas a sua função genética. Pois, com suas diretivas, as corporações multinacionais duplicaram as tarefas estatais. O Estado, que no plano interno atua como gestor administrativo, financeiro e tributário, é também o receptor das diretivas externas comandadas pelos conglomerados financeiros internacionais que norteiam, dentre outras políticas, o controle social com vistas a assegurar a efetivação (ou não) de políticas públicas e os efeitos advindos de sua intervenção/abstenção pro mercado. Prova inconteste de que foram os Estados Nacionais que, nesse novo formato, viabilizaram a expansão capitalista. Diante deste status quo, a otimização das democracias pós-ditatoriais requer por parte do corpo social que não pertence ao Estado (não integra a sua burocracia), ou que não pertence ao Mercado (não detém poder econômico) a retomada dos espaços públicos que lhes dê visibilidade, reconhecimento e, quem sabe, mantenham as formas jurídicas que lhe beneficiem e conquistem outras tantas. Assim, talvez só assim, retoma-se a configuração democrática de uma forma de Estado cujas decisões compensatórias às liberdades, direitos e prerrogativas, nascidas com as necessidades sociais sejam, ainda que tensionadamente, contempladas. Resumindo a problemática: a otimização da política necessita da refundação da democracia, principalmente no locus latino-americano. A renovação das relações de poder com os segmentos afetados em seus interesses legítimos (datados, informados publicamente) e que sofrem os gravames provocados pela expansão capitalista acolhida abertamente pelo Estado. A jornada de junho de 2013 retrata bem os fragmentos dessa façanha possível, qual seja: a resistência na América Latina. Isso porque, esse extenso e populoso país que dormitava nas novelas globais desde o impeachment de Collor (1992), dando azo ao controle social rigoroso direcionado às camadas mais vulneráveis e remetendo as camadas privilegiadas ao discurso da segurança social obtida à custa de maxi-penalização do direito penal, no ano de 2013, acordou pela união dos movimentos sociais e retomou o direito à participação concreta, demonstrando que a insegurança, a corrupção e a má gestão das verbas públicas, assim como o desemprego, a fome e a contínua exclusão social de segmentos de parte da sociedade, ainda em desamparo, identificavam sintomas de que a política não se otimizou. E reiniciaram as mobilizações sociais.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Como é notório, os atos políticos da Jornada de Junho de 2013 no Brasil não foram, em princípio, atos isolados da totalidade social. De forma latente havia e há um grau de insatisfação e de desesperança que deve ser considerado para que o governo se mantenha estável e se municie com o bem-estar social. Os protestos demandaram ações concretas que vinham ao encontro da população, posto que antes de receberem grande carga desqualificante detinham a simpatia popular. Desse modo sua estética não deveria ter sido dissociada de suas pretensões políticas, que, como se ouviu por alguns que consideraram em um segundo momento opinativo os movimentos, como apartidários, apolíticos ou destituídos de conteúdo de seriedade. Aliás, a desqualificação ou o amesquinhamento dos movimentos sociais não deveria ocorrer. Mesmo para a tradição do constitucionalismo homogeneizado as ações políticas são ações sociais diferenciadas. É que, diversamente de outras ações sociais, as ações políticas vão ao encontro de interesses e de poder estatal, sendo esses os aspectos funcionais mais preponderantes das mencionadas ações, segundo Heller. Nessa direção, Heller criticou a redução da política aos termos “amigo ou inimigo político” sectária de Schmitt, nominando-a de “posição filofascista de Schmitt”. (HELLER, 1968, p. 249). Simplificação aparentemente ausente de conteúdo e plena de conveniência, dir-se-ia. De modo que, se a mobilização e a participação social existiu em junho de 2013 no Brasil foi porque de fato os partícipes e simpatizantes quiseram que seus anseios fossem vistos e acolhidos pelo poder. Houve portanto uma pretensão em potência de que seus conteúdos fossem legitimados na política pelos códigos de comunicação aceitos pelo Estado, dentre esses o direito estatal. Suas reivindicações políticas na esfera pública almejam ver efetivado pelo Estado os direitos, liberdades e ou prerrogativas, identificados como violados, corrompidos ou prescindindo de reconhecimento. Desse modo, no âmbito da democracia atual, a participação nem sempre requisita uma revolução. Porém, reivindica a otimização da política ainda que esta signifique alguns parâmetros da democracia liberal e a manutenção do Estado social neste segundo milênio. De forma que a exigência não se direciona apenas às formas jurídicas, mas, sobretudo a manutenção de direitos já conquistados que se petrificaram nas formas e não evoluem pela efetividade (ZUNZUNEGUI, 2001, p. 307324).

3 Participação por Novas Conquistas e Revezes Ocasionais

Há uma frase atribuída por Mandel a Trotsky em um brocardo ao progresso, quando no dizer do primeiro, o segundo, divisa que: “aquele que não sabe defender as conquistas existentes, nunca será capaz de novas conquistas” (MANDEL e ANDERSON, 2005, p. 45).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Século XXI, a América Latina, por intermédio de lutas sociais, fundada nas emergentes crises econômicas e mesmo éticas constitucionaliza diversos direitos acenando para uma efetiva Democracia Social. O que foi um consenso de forças vivas se mumifica na mundialização do capital. No ápice do liberalismo econômico cultiva-se com discursos legitimatórios o vazio político com soluções às antigas questões não solvidas pela Democracia nominal , em que os benefícios do Estado Social não chegaram e, a despeito de sua inscrição, não há um amadurecimento político. Consequência disso é que mesmo tratando-se de uma versão líbero-social, as Constituições advindas dos momentos pós-ditatoriais não efetivam significadamente os direitos sociais e mesmo os direitos liberais de 1ª dimensão são constantemente ameaçados de ser inviabilizado o seu exercício. Os efeitos da escalada capitalista ofuscam o sistema compensatório das recentes democracias, mediados por inserções autocráticas, que se julgavam banidas com o delongado processo de democratização. Questões como desemprego em massa, exclusão social, que se apresentam fortes na América Latina, África e parte da Ásia são produtos nocivos não só para os vitimados, mas igualmente para aqueles que, com consciência de que tais questões afetam grande número de pessoas, exigem mudanças. Fatos dessa natureza têm chamado a atenção também dos juristas. As mencionadas questões sociais que ora se agudizam pelo fenômeno da globalização econômica trazem para os cientistas sociais a oportunidade de se repensar mecanismos reativos adverso às formas maniqueístas de automanutenção hegemônica. Sobretudo, desafiam aqueles que acompanham a expansão predatória e refletem sobre possibilidades da sociedade submetida poder emergir dos aspectos negativos do capitalismo operante. Tudo isso reforça os benefícios dos movimentos sociais não só para assegurar direitos positivados nas constituições, mas para permitir novas conquistas e compreensões de que a América Latina necessita de meios adequados a sua multiculturalidade, às populações indígenas e mesmo a aspectos que são próprios dessa região. Para que isso ocorra, necessita-se de uma ruptura eurocêntrica, no que diz respeito a lógica daquele constitucionalismo dominante. Baldi (2013) traz à tona alguns excertos dessa “refundação” do Estado, alinha a ruptura com o passado a conteúdos que, segundo ele “[...] relaciona Estado e economia, diversidade e autonomias das comunidades étnicas, impacto e práticas sociais e institucionais derivadas de tais processos (impacto mais político ou formas de ativismo judicial ou de judicialização da política)” (2013, p. 96). Nesse sentido, os movimentos sociais que denunciam essas causas e os seus sintomas, ao serem despotencializados (deformado nos meios de comunicação, reprimidos e criminalizados), atingem esse novo pensar. Porque, ao contrário do que é amplamente divulgado, os movimentos sociais podem significar a otimização da política com o aprofundamento democrático em região que não chegou a viver de modo vigoroso um desenvolvimento social mais equânime.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Grosso modo, no momento reivindicativo das demandas dos setores organizados da população, circunstâncias negativas sobre ações pontuais de ativistas, ocorridas em circunstâncias de intensa emoção, recebem relevo contundentemente destacado da integridade de suas ações, com o ressalte dos aspectos negativos. Ao fazer esse “decote seletivo de ações” com a omissão de seu contexto histórico-material, avultam-se particularidades que são impactadas em práticas ou discursos de reprovação, repressão e criminalização. Do político transitam essas situações que lhes são próprias para a judicialização dos conflitos, criminalizando-os. A crise de politicidade vivenciada no Brasil e em outros países latinoamericanos, apesar de sua especificidade, passa a identificar os efeitos da globalização do capitalismo neoliberal também na Europa. A Europa, a fonte de inspiração, permanece, agora para reconhecer que em países de reconhecida vulnerabilidade econômica como Portugal, Espanha e Grécia os efeitos não foram equânimes com os esforços de integração econômica europeia. Aliás, também inspirados nos efeitos decorrentes da incontida migração retratados pela mídia, com o aumento de tensões na seara laboral, e o próprio endividamento desses países talvez tenha sido o fermento para que o constitucionalismo latino-americano que sempre buscou imitar a Europa central tenha refletido que as denúncias dos movimentos sociais e o vigor com que pugnam por implementar justiça social tenha uma procedência fática, que nem os discursos mais ideológicos conseguiram desmentir. Nessas discussões trazidas pela participação social é possível se sumariar alguns discursos em que o estado de arte da reação latino-americana se inicia por um ativismo benévolo com a consolidação das democracias recém constituídas. Confrontam-se em todos os âmbitos, e inclusive no direito, algumas correntes que contemporizaram possibilidades alinhadas à globalização econômica, invocando o crescimento econômico e a inexorabilidade dos efeitos neoliberais à título de risco. Substituem-se esse pensar por teorias mais brandas que buscam o bom viver de comunidades étnicas (ROMEO, 2012, p. 19-34) e a reflexão de que a globalização ao tempo em que personifica uma uniformização discursiva alinhada com o mais severo processo de acumulação por empresas transnacionais e Estados envolvidos com o Mercado, não consegue ocultar, ainda que pontualmente, suas próprias contradições. Não se ignora que as conquistas do Direito envolvem lutas e interesses e por tal replicam discursos, práticas e concretizações. A dialética igualmente se reafirma para negar a dimensão da uniformidade retórica perseguida pela mundialização do capital, em face de coexistir uma pluralidade subjacente, reativa a intensificada desigualdade social gestada por tal concepção. Verifica-se que a perplexidade intelectual paralisante, código que infirmamos ser daqueles teóricos que contemplam um caminho de intensificação dos efeitos da globalização econômica e sua inexorabilidade não é mais uma pré-compreensão única, desde os anos 1990. Assim, mesmo em face de sua reprodução ideológica e da busca incessante de novos maniqueísmos nos meios de comunicação, apesar da representatividade política e financeira ser denunciadamente fruto de atores financeiros dos países

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 hegemônicos, independentemente das consequências nos destinatários de suas decisões contemplam-se alternativas suscitadas por movimentos sociais (PULIDO, 2010, p. 593-612), o ressurgir de novas discussões que contemporizem os malefícios que se tributa aos cidadãos excluídos da globalização mercantil parece um salutar exercício de novos desenhos teóricos, quiçá eco as resistências dos movimentos sociais e suas lutas.

4 Conclusão

O presente texto tomou como objeto aspectos fáticos relevantes à análise teórica das democracias latino-americanas. Tomando como exemplo a Jornada de Protestos ocorridas no Brasil, em Junho de 2013, trouxe à consideração no âmbito da(s) Teoria(s) da Constituição a necessidade de se refletir de que modo e em que medida os movimentos sociais podem significar a otimização da política. Nesse trilhar, com o auxílio de alguns excertos midiáticos, passou a contrapor aos discursos uma análise de alternativas políticas mais consentâneas com um direito emancipador e construtor da Democracia. Doutro modo, tentou demonstrar a importância de como o Estado se relaciona com os movimentos sociais, com a finalidade de inferir que o doco dessa relação traz importantes implicações, seja em face de possíveis avanços, seja em face de possíveis retrocessos democráticos. Na pontualidade do material examinado sobre a Jornada de Junho, observou que o Estado, por meio do aparelho repressor, ainda mantém uma relação de antagonismo com os movimentos sociais, o que ficou apreciado, à título de uma análise qualitativa com a amostragem dos pronunciamentos de algumas autoridades, bem como com a adoção de práticas que remetem ao núcleo duro do direito penal. Não passou desapercebido igualmente que tais práticas, inclusive as discursivas, ainda estimulam à inconfidência dos movimentos sociais o que é reproduzido por parte da media e rechaçado nos movimentos sociais. De fato, os movimentos sociais parecem ter consciência de que a sua visibilidade incomoda setores da mídia hegemônica no Brasil. Doutra banda, o artigo trouxe à tona a questão do maniqueísmo legislativo, representado pelo projeto de lei 499/2013. Esse projeto, na visão do artigo, traduz a cultura de respostas autocráticas em face da participação popular. Com essa constatação, o trabalho foi conclusivo sobre a necessidade de se acolher os aspectos benéficos dos movimentos sociais, evitando-se práticas obstrutivas como a criminalização excepcional que depõe contra a democracia regular, conquanto o Estado brasileiro não se encontra em crise política que admita a necessidade de meios excepcionais equivalentes a quebra da constituição (SCHMITT). No que se entendeu ser possível se deter os excessos praticados no ativismo, sob o contraditório constitucional e com os enunciados da legislação ordinária, a fim de evitar a prática do não-direito no Direito, que é o Estado de Exceção.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Por último, o artigo é propositivo, no âmbito do seu limite, em requisitar compreensões mais adequadas à democracia mediada pela participação social efetiva. Ao admitir que não somente o senso comum sofre a interferência do estabilishiment e mesmo das mídias que a esse reverencia, quando estas apequenam ou desqualificam pejorativamente seus membros. De fato, é possível todos serem afetados, inclusive os estudiosos da Ciência Política, da Teoria do Estado ou da Constituição. O novo Constitucionalismo apregoado requisita amadurecimento político e a participação contra hegemônica em meio ambiente tomado pelos resultados do ultracapitalismo e sua lógica. No entender do artigo, é instrumental para manter as conquistas e extrair novas soluções compensatórias aos novos problemas sociais desse continente.

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AS IDEOLOGIAS DA MODERNIDADE - COMO PENSAR O FUTURO? José Luiz Quadros de Magalhães RESUMO

O presente artigo tem como finalidade estabelecer os contornos da Modernidade, onde vivemos imersos em um poderoso universo ideológico, percebendo o mundo através das lentes ideológicas que nos são impostas, sob o manto de uma falsa liberdade.

A era moderna foi construída sob uma ótica eurocêntrica, que dividiu a humanidade por meio uma lógica binária subalterna, do “nós x eles”, privilegiando uniformizações de comportamentos e aprisionando pensamentos. As distorções ideológicas criadas pelos poderes dominantes serviram para encobrir e distorcer os fatos, em nome do universalismo. Com isso, o resultado da Modernidade foi a intolerância com tudo o que excedesse os filtros impostos pelos poderes hegemônicos.

Com o fim da era Moderna, são quebrados os conceitos impostos pelo sistema capitalista liberal, por meio do reconhecimento da diversidade cultural, do diálogo intercultural, da democracia e do respeito às mudanças cosntantes de todos os povos, consolidando-se o Estado Plurinacional, pautado por um Novo Constitucionalismo.

PALAVRAS – CHAVE: Modernidade, Aprisionamento, Estado Moderno, Exclusão, Dominação, Uniformização de Padrões, Distorções Ideológicas, Novo Constitucionalismo, Diversidade de Culturas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

IDEOLOGIES OF MODERNITY - HOW TO THINK THE FUTURE?

ABSTRACT

This article aims to establish the contours of modernity, where we live immersed in a powerful ideological universe, perceiving the world through ideological lenses that are imposed on us under the cloak of a false freedom.

The modern era was built under a Eurocentric perspective, which divided mankind through a subaltern binary logic of "us x them," privileging standardization of behaviors and imprisoning thoughts. Ideological distortions created by the dominant powers served to conceal and distort facts in the name of universalism. With this, the result of Modernity was the intolerance of everything that exceeds the filters imposed by hegemonic powers.

With the end of the modern era, the concepts imposed by the liberal capitalist system are broken, through the recognition of cultural diversity, intercultural dialogue, democracy and respect for cosntantes changes of all peoples, reinforcing the Plurinational State, guided by a New Constitutionalism.

KEYWORDS: Modernity, Imprisonment, Modern State, Exclusion, Domination, Uniform Standards, Ideological Distortions, New Consitucionalism, Cultural Diversity.

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1- Introdução:

São mais de quinhentos anos vivendo na era da Modernidade. No decorrer desse período, toda uma estrutura foi criada pelos Grupos Hegemônicos, em um jogo de encobrimentos proposital dos fatos e de discursos ideológicos. Houve uma longa construção moderna, que nos trouxe até o ponto onde nos encontramos hoje: imersos em um universo ideológico poderoso. Representações falsas, distorções propositais encobrem, de forma cada vez mais sofisticada, o real.

Vivemos o resultado da Modernidade, criadora de uma lógica binária subalterna (nós x eles), em que povo, que assume o nome “Europa” dominaram os não-europeus, os quais se tornaram os “outros”, uma sub-categoria de pessoas.

Vivenciamos uma sociedade cuja uniformização é imposta pelo sistema hegemônico ocidental. Dentro de modelos europeus de referência, devemos seguir uma linearidade histórica, acreditando que é preciso percorrer um caminho rumo ao modelo de desenvolvimento, ou seja, a Europa.

O resultado do que foi construído na modernidade foi um sistema de negações de diferenças, de cometimento de injustiças, de distorções ideológicas, extermínios e supressão dos direitos daqueles que não se enquadraram nos padrões impostos. Percebemos que uma das metas do projeto moderno é universalizar o hegemônico e naturalizar esta realidade: trata-se do Universalismo Europeu a que se refere Emanuel Wallernstein.

2- Ideologias Modernas:

Inseridos no universo ideológico moderno, acreditamos ser livres. Entretanto, já paramos para pensar como utilizamos nossas tão desejadas “liberdades”? Somos livres para ler o que é publicado na Revista Veja, comprar o Iphone recém lançado no mercado, o tênis importado da moda, assistir os programas de maior audiência da TV

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Globo? Será que não há 'ninguém' nos ditando qual a “melhor” cerveja a tomar, ou qualquer coisa que seja a “melhor” para se consumir? Será que não estamos livres pra fazer e pensar o que queremos, desde que façamos e pensemos dentro do limite do que é ocultamente imposto para nós? Estas “liberdades”, então, não seriam, na verdade, prisões de pensamento e de comportamento, em uma sociedade dita liberal, que nos leva a um estado hipnótico de ultra-consumo?

Seguindo essa lógica, ao longo desses cinco séculos, nos tornamos seres consumidores, desvirtuando, reiteradamente, o significado do “desejo” - na acepção psicanalítica da palavra, e transformando-o em uma lógica equivocada do “ter para ser”. Supostamente livres, apenas desejamos, cada vez mais, consumir, e assim nos tornarmos mais europeus e menos “os outros”.

Acreditamos, assim, que existe uma “lógica moderna” por trás das nossas “livres” escolhas, as quais, de acordo com CHESTERTON (1.955), de escolhas nada têm, uma vez que nos são impostas de forma oculta:

Em termos gerais, podemos afirmar que o livre pensamento é a melhor de todas as salvaguardas contra a liberdade. Aplicada conforme o estilo moderno, a emancipação da mente do escravo é a melhor forma de evitar a emancipação do escravo. Basta lhe ensinar a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar.

ZIZEK (2.003) menciona o potencial antidemocrático da liberdade de pensamento percebido por Chesterton há cem anos atrás, nos propondo a seguinte questão:

Não podemos esquecer que a afirmação de Chesterton é a mesma afirmação feita por Kant em seu “O que é o Iluminismo?”: “Pense o quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!”. A única diferença é que Chesterton é mais específico, e esclarece o paradoxo implícito oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de pensamento não somente solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta. O antigo lema, “Não pense, obedeça!”, a que Kant reage, é na verdade contraprodutivo: ele gera rebelião; a única forma de garantir a servidão social é por meio da liberdade de pensamento. (…) A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da escolha imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa.”

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Devemos ter em mente que a ideologia que se esconde por trás de um falso “poder de escolha”, e de termos como “guerra contra o terrorismo”, democracia”, “direitos humanos”, não é necessariamente uma mentira. Pelo contrário, quanto maior for a verdade para a qual ela se destina, melhor para o poder dominante que a introduz. Em Um Mapa da Ideologia , Zizek menciona que é muito fácil mentir sobre o disfarce da verdade, exemplificando seu ponto de vista com uma violação dos direitos humanos, que leva à intervenção de uma potência ocidental em um país do Terceiro Mundo. O Filósofo explica que pode ser absolutamente verdadeiro que, nesse país, “os direitos humanos mais elementares não tenham sido respeitados, e que a intervenção ocidental irá efetivamente melhorar o quadro desses direitos”. Entretanto, ele esclarece que essa legitimação torna-se ideológica por deixar de mencionar quais foram os verdadeiros motivos da intervenção, por exemplo, os interesses econômicos do Estado que interviu.

Por tratarmos no presente estudo de ideologias impostas e ocultas, por meio de distorções e encobrimentos propositais emanados pelas potências hegemônicas, lembramos da teoria marxista clássica de Aparelhos de Estado, que passou a ser chamada por ALTHUSSER , de Aparelhos Repressivos de Estado, dentre os quais se encontram o governo, o exército, a polícia, as prisões, os tribunais, etc.

Partindo dessa premissa, chegamos a um segundo caminho criado pelo Autor (uma teoria correspondente à marxista), a qual denominou Aparelhos Ideológicos do Estado. Para ele, os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam, primordialmente, através da violência e, secundariamente, através da ideologia, enquanto que os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam, predominantemente, através da ideologia e, em segundo lugar, através da violência, seja ela atenuada, dissimulada ou simbólica. Nos dizeres de Althusser:

Enumeramos nas formações sociais capitalistas contemporâneas, um número relativamente elevado de aparelhos ideológicos de Estado: o aparelho escolar, o aparelho religioso, o aparelho familiar, o aparelho político, o aparelho sindical, o aparelho de informação, o aparelho cultural, etc.

Na visão althusseriana, o primeiro aparelho ideológico dominante do Estado foi a Igreja. Com o passar do tempo, a burguesia transferiu para a Escola esse domínio. Mas por que a Escola? Porque desde a mais tenra idade, a Escola domina o ensino de todas as crianças, de todas as classes sociais, que lá aprendem a ideologia relativa ao papel que elas deverão desempenhar na sociedade, seja de explorado (saber receber ordens, sem discussão), seja de explorador (saber falar aos operários), seja de agente de repressão (saber mandar e ser obedecido), seja de profissional da ideologia (padres, pastores, políticos, etc).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Por outro lado, é sabido que não somente na Escola, mas também nas famílias, nas igrejas, nos livros, nos filmes, nos estádios, etc., todos aprendem virtudes como modéstia, altivez, habilidade para bem falar. Entretanto, nos moldes althusserianos, nada se compara à audiência obrigatória da Escola, por ser um Aparelho determinante das relações da sociedade, uma vez que é ela que ensina os saberes contidos da ideologia dominante.

Seguindo a mesma linha, BADIOU (2.012) acredita que o domínio ideológico é feito em grande parte por uma ignorância organizada, que foi veiculada durante muito tempo pelas instituições religiosas. Com isso, o filósofo propõe a seguinte idéia: “O sistema de ensino é, pois, a instituição encarregada de superar a seguinte contradição: como elevar a consciência teórica de grupos cada vez mais amplos, sem questionar a supremacia, fundada na ignorância e na repressão intelectual, da ideologia burguesa?”

Ainda a propósito da ideologia como um Aparelho de Estado, os indivíduos que nela se inserem adotam comportamentos ideológicos de acordo com o que aprenderam em seu cotidiano, livre e conscientemente. Se é católico, vá à missa, ajoelhe, ore, que esse próprio mecanismo irá gerar a sua crença religiosa. Notamos, ademais, que fomos ensinados não só a ser religiosos, mas também a discriminar os não-religiosos, e a padronizar nossos comportamentos (inclusive os nossos próprios gostos devem ser padrozinados, para não sermos excluídos da sociedade em que vivemos).

Inseridos nesse contexto ideológico, não só acreditamos que um dia seremos Europeus e que somos melhores que “os outros”, mas também que, apesar de discriminá-los, somos tolerantes para com “eles”: os não-católicos, os homosexuais, os favelados, desde que eles fiquem “lá”, e não cheguem muito perto de nós.

A ideologia imposta é, portanto, uma falsa tolerância! Por outras palavras, vivemos uma verdadeira intolerância a qualquer diferença do padrão “universal” europeu, imposto ocultamente, como sendo o correto e melhor a ser seguido.

Nesse contexto, sugerimos a seguinte ingadação: fazemos parte de uma família tradicionalmente perfeita, com pais casados e felizes? Somos religiosos? Somos caucasianos, descendentes de Europeus? Nossos filhos frequentam a escola “A”? Moramos em nossa casa própria? Somos magros, bonitos e não fumantes? Somos a favor da democracia liberal e contra o fundamentalismo muçulmano? Ah, que bom, passamos pelo filtro da tolerância e estamos dentro do Padrão! Negros, muçulmanos, gays, gordos, deficientes, feios, pobres? Estes são os "outros", “nós” não! “Nós” somos melhores que “eles”, imperfeitos, os quais aprendemos a tratar de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 forma “educada” na Escola. Quanta intolerância, não é mesmo? Percebemos aqui toda a ideologia binária subalterna (nós x eles) embutida em nosso cotidiano.

Enxergamos, então, que fomos levados a não refletir sobre uma situação que nos é apresentada e, simplesmente, acreditamos no que o poder dominante “ensina” como sendo a realidade. Para Zizek, uma ideologia só "nos pega" para valer quando não sentimos nenhuma oposição entre ela e a realidade. Por exemplo, percebemos que não nos foi dada a liberdade para pensar sobre o que é relatado na mídia nacional dominante: uma vez noticiada uma realidade pelo Jornal Nacional, esta se torna uma verdade inquestionável para “nós”, não é mesmo?

Mergulhados nesse cenário de entorpecimento ideológico, desejamos encontrar uma maneira de romper com essa dimensão histórica, em que todo o pensamento e comportamento padronizado vigente no mundo liberal capitalista em que vivemos foi desenvolvido pelo sistema dominante, seja para distorcer a realidade, seja para encobrir os fatos.

Mas, se formos realmente capazes de romper com as ideologias que aprendemos na Modernidade, para onde vamos no futuro que nos espera?

Por outro lado, BADIOU diz que não adianta tentarmos acreditar que acabaremos com as ideologias, pois o seu fim não seria real:

É preciso derrubar o velho veredito que diz que chegamos ao “fim das ideologias”. Hoje, vemos com muita clareza que esse suposto fim não tem realidade além da palavra de ordem: “Vamos salvar os bancos”. Nada é mais importante do que recuperar a paixão das idéias, e opor ao mundo tal como ele é uma hipótese geral, a certeza antecipada de um curso das coisas muito diferente. Ao espetáculo pernicioso do capitalismo, opomos o real dos povos, da vida das pessoas no movimento próprio das ideias. A razão para a emancipação da humanidade não perdeu sua força. A palavra “comunismo”, que durante muito tempo deu nome a essa força, foi aviltada e prostituída. Mas hoje seu desaparecimento serve apenas aos detentores da ordem, aos atores febris do filme catástrofe. Vamos ressuscitá-la em sua nova clareza. Que é também sua antiga virtude, quando Marx diz que o comunismo é a ruptura, “do modo mais radical, com as ideias tradicionais” e faz surgir “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.

Ao envidar esforços para romper com a ideologia aparentemente “sem fim”, acreditamos estar jogando fora as nossas lentes ideológicas e correndo atrás da realidade propriamente dita, de modo a enxergarmos os fatos tal qual como eles

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 realmente são. No que tange às lentes com as quais enxergamos tudo ao nosso redor, JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES (2012) nos ensina que: “Entre nós e o mundo, existe sempre “nós” mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes. Assim, para percebermos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.” Vale, ainda, lembrar a tese de Lacan sobre nossas interpretações para o que chamamos de "realidade". Para ele, a realidade é uma fantasia, e o único ponto em que nos aproximamos do núcleo sólido do Real é, efetivamente, por meio dos sonhos. Nessa linha, mesmo livres dos chamados preconceitos ideológicos, continuamos a ser, o tempo todo, "a consciência de nosso sonho ideológico".

ZIZEK, citanto Lacan, conclui que “a única maneira de romper com o poder de nosso sonho ideológico é confrontar o Real de nosso desejo que se anuncia nesse sonho”. Seria essa tentativa de livrar-se da ideologia uma persistência praticamente impossível? Zizek assim explica:

“Embora nenhuma linha demarcatória clara separe a ideologia e a realidade, embora a ideologia já esteja em ação em tudo o que vivenciamos como "realidade", elevemos, ainda assim, sustentar a tensão que mantém viva a crítica da ideologia. Talvez, seguindo Kant, possamos chamar esse impasse de "antinomia da razão critico-ideológica": a ideologia não é tudo; é possível assumir um lugar que nos permita manter distância em relação a ela, mas esse lugar de onde se pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada; no momento em que cedemos a essa tentação, voltamos à ideologia.”

Lembramos, ainda, de mais uma passagem do Livro de JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES, que assim diz:

“Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo em que nos revelam um mundo, escondem outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como: liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre há cinquenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.” Mas, e quanto ao futuro das ideologias? Devemos sempre lembrar da chamada Realidade Virtual e ter em mente como ela poderá nos afetar, em um futuro muito mais próximo do que talvez imaginemos. Ilustramos nosso ponto de vista com o filme “Ela” (“Her”), de Spike Jonze. “Her” é protagonizado por um escritor solitário que adquire um novo sistema operacional para seu computador e acaba se envolvendo emocionalmente com esse sistema. No desenrolar do filme, é inevitável que passemos a raciocinar sobre a possibilidade de expansão da ideologia moderna para uma dimensão muito além do até hoje conhecido: uma dimensão de inteligências não humanas, e não só isso, mas também de consciências que ultrapassam os limites do homem. O que uma mente artificial do futuro será capaz de “sentir” e criar, partindo da premissa (i) de que ela vem de um “espaço vazio”, ou seja, não construído, como os nossos; (ii) de que sua inteligência se desenvolve de uma forma muito mais rápida do que a de uma mente humana, e; (iii) seu campo de percepção pode ser infinitamente mais amplo do que o nosso.

A Samantha, um sistema operacional (uma voz artificial, extremamente sedutora, interessante, perspicaz, inteligente, amiga, do outro lado do phone de ouvido), foi capaz de mudar radicalmente a vida de um escritor solitário, com quem esta “voz” passa a ter um relacionamento do futuro.

O filme nos lembra uma polêmica afirmativa de Lacan: “não existe relação sexual”. Nas palavras de LACAN: “O sujeito encontra seu lugar num aparelho simbólico pré-formado que instaura a lei na sexualidade. E essa não permite mais ao sujeito realizar sua sexualidade senão no plano simbólico. É o que quer dizer o Édipo, se a análise não soubesse disso, ela não teria descoberto absolutamente nada. (LACAN, As psicoses, 1955-56) Em outras palavras, a copulação não é mais um simples fenômeno natural. Quando duas pessoas se relacionam, o que está em jogo não é o instinto, mas a representação simbólica deste instinto. A experiência humana da sexualidade está sempre submetida a uma interdição, ou seja, que não pode ser realizada de maneira direta, é sempre necessária uma representação simbólica que possa distanciar o humano de experimentar diretamente o mundo. É necessário a construção de um aparato singular que permita experimentar o mundo sem enlouquecer, ou perder-se num gozo letal. O filme nos fala desta relação: o corpo, a fala e a fantasia. E se controlarem nossas fantasias?

Quais caminhos nós, meros cidadãos do consumo, imersos em ideologias hipócritas de dominação, escolheremos quando tivermos acesso às Samanthas em nosso dia-a-dia, ou melhor, quando as Samanthas tiverem acesso a nós, com suas

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 inteligências tão avançadas? Serão elas capazes de enxergar as ideologias dominantes e nos mostrá-las? Serão elas capazes de nos dar opções, sobre quais ideologias podemos “escolher” seguir? Passaremos a ter um leque de “escolhas ideológicas”, cujas opções nos serão dadas por um ser de inteligência superior àquela inteligência humana que criou uma certa ideologia? Será que um dia poderemos contar com a realidade virtual, como opção de escolha de nossa própria “realidade real”?

Existirão ferramentas que nos capacitem escolher nossos caminhos, para não sermos mais vítimas das distorções propositais dos Aparelhos Repressivos e Ideológicos do Estado e da Sociedade Liberal de Consumo a que somos submetidos? Quais serão as formas de libertação desse aprisionamento ideológico em que vivemos?

3 – O Novo Constitucionalismo

Chegamos, enfim, ao axioma do presente estudo: como pensar em uma saída para esse Sistema Moderno de negações de diferenças, distorções ideológicas, intolerância e supressão de direitos dos cidadãos das mais diversas culturas existentes (em nome da padronização universal)?

O Autor canadense JAMES TULLY (2004), em sua obra sobre o constitucionalismo na era da diversidade, questiona o que, para ele, é uma das perguntas mais difíceis do momento histórico em que estamos vivenciando: Pode uma Constituição Moderna reconhecer e acomodar a diversidade cultural?

Para nós, a resposta é negativa, pois acreditamos que apenas com o fim da Modernidade e a consolidação de uma era pós moderna que, felizmente, já se anuncia, é que será permitido aos cidadãos verem o mundo de maneira diferente do que aprendemos até hoje. É através do que podemos denominar uma alternativa plurinacional para uma efetiva democracia que alcançaremos o que denominamos “Novo Constitucionalismo”.

TULLY afirma que o constitucionalismo moderno somente mascara e acoberta o imperialismo europeu. Para ele

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 a linguagem do constitucionalismo moderno, que foi forjado na teoria e na prática constitucional ao longo dos últimos 300 anos é uma farsa parcial. Enquanto aparece como universal, é de fato imperial, em três aspectos: em servir para justificar o imperialismo europeu, as regras imperiais de ex-colônias sobre os povos indígenas e o imperialismo cultural sobre os diversos cidadãos das sociedades contemporâneas. Quando os membros das escolas de autoridade hoje escrevem sobre o constitucionalismo, mesmo pretendendo ser universais, históricos ou transcendentais, eles o fazem dentro das convenções de universalidade, história e transcendência deste mapa cativante da humanidade. Eles (e isso me inclui muitas vezes) acham que estão traçando os contornos das constituições da humanidade, mas eles são apenas girando em volta da moldura "esplendorosa" através da qual eles olham para essas constituições.

Acreditamos que o primeiro passo rumo ao rompimento com a era da modernidade já foi dado na América Latina: as constituições da Bolívia e do Equador trouxeram grande inovação ao sistema internacional por instituírem o conceito de Estado Plurinacional e Intercultural, permeado pelo respeito à diversidade cultural. As comunidades originárias e camponesas, passados cinco séculos do encobrimento, voltaram a ter voz. O Estado Plural já começa a ser realidade nesses países.

Nesse novo constitucionalismo, pós modernidade, o diálogo existe e uma postura não hegemônica nele predomina. É adotada uma atitude de construção comum de novos argumentos, sem competições e, portanto, sem vencedores ou perdedores.

4- Conclusão:

Conseguimos perceber que a formação do Estado Moderno está intimamente relacionada com qualquer tipo de intolerância que extrapola os padrões impostos pelos poderes hegemônicos. O Estado Moderno nasceu da intolerância com o diferente, e se afirmou por meio dela. Para a construção de um futuro sem aprisionamentos, é necessário deixarmos de acreditar que “somos todos iguais”. Pelo contrário, todas as pessoas são a expressão da sua própria vivência, inseridas em uma gigantesca multiplicidade de povos que habitam o planeta. O fenômeno do direito à diversidade cultural não pode mais ser passado desapercebido. E é nesse ponto que passamos a pensar o futuro: com o reconhecimento das enormes diversidades culturais existentes em nosso planeta, até então massacradas em nome da uniformidade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A partir desse momento de compreensão é que passamos a refletir o futuro com uma nova lente, a de um novo constitucionalismo, plurinacional, que possui mecanismos institucionalizados de construção de consensos e que abraça a democracia, em uma diversidade cultural, esta sim, universalisável. Para tanto, é essencial percebermos um novo ciclo que se inicia, que põe fim à violenta e exterminante era da Modernidade, dando lugar ao respeito às formas diferentes de pensamento e às constantes mudanças e transformações de cada cultura.

Pensamos em um futuro em que ninguém correrá o risco de perder a sua identidade, uma vez que não mais haverá necessidade de vencedores, de uniformização de culturas, padrões, pensamentos e comportamentos das pessoas. Entendemos o novo constitucionalismo como uma superação do universalismo europeu que conhecemos até hoje.

Dentro desse contexto, prevalece, como diz José Luiz Quadros de Magalhães, o reconhecimento (ou melhor, conhecimento) das pessoas, sem violência. Passamos a ter diálogos interculturais, de maneira que as vozes de distintos lugares podem ser ouvidas, os fatos considerados, e reconsiderados com o passar do tempo. É preciso, portanto, dar um passo para trás, para entendermos que é possível nos desembaraçar deste algo “mistificador” que nos impediu de pensar até o momento atual. E pensando assim, somente assim, seremos capazes de criar espaços de diálogos interculturais, em que poderemos construir conhecimentos livres das sutis formas de coerção que sustentam as relações de dominação inerentes às condições sociais do capitalismo global, as quais desviam a nossa atenção dos verdadeiros locais dos problemas. Dentro do contexto do Novo Constitucionalismo, saímos, enfim, deste engodo da Modernidade, e passamos a perceber os contornos dos cenários que nos fizeram acreditar sermos indivíduos tolerantes e livres, ao invés de excluídos, prisioneiros, dispensáveis e racistas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

PERTO DO CORA O SELVAGE CO A IN A AV U Danielly Gontijo

EU JOANA E OS DI LOGOS L D /

RESUMO: O presente estudo objetiva realizar uma reflexão acerca do papel da mulher na sociedade e na família, bem como da igualdade entre os sexos, através da análise da obra de Clarice Lispector “Perto do Coração Selvagem”.

Palavras-chave: igualdade – mulher – direito e literatura

SUMÁRIO: 1 A avó; 2 O livro; 3 Mulher, Brasil, Sociedade e a década de 40; 4 Perto do coração selvagem; 5 A víbora; 6 Diálogos com minha avó. Referências.

1 A AV

Ir à casa da avó, mãe de meu pai, significava sempre sentar à mesa, na cozinha, e entre um suco ou café e um pão de queijo quente ou um pedaço daquele bolo que só ela sabe fazer, ouvir, em algum momento, a mesma pergunta, desde os 15 anos: “Tá namorando, filha?”. Não nego, muitas vezes era realmente irritante. A cobrança vinda daquela voz doce era implacável. E quem disse que adiantava alguma coisa explicar que não, vó, prefiro antes me dedicar aos estudos, à minha profissão? Na semana seguinte a pergunta se repetia, seca. E terminava sempre com um “Deus vai encaminhar um bom rapaz pra você”. É claro que eu namorava. Mas, até quase os 30, não era mesmo muito afeita a esses namoros para casar. Gostava mesmo era de ser livre, de me divertir. Gostava de ganhar prêmios na feira de ciências, gostava de escrever, gostava de estudar. Gostava de sair com meus amigos e ficar horas a fio jogando conversa fora – até minha mãe ligar na alta madrugada com voz sonolenta e sempre a mesma frase “já se divertiu bastante, pode vir pra casa” e eu responder prontamente “só mais um pouquinho mãe, o Serginho está aqui”. Para minha mãe, o Serginho sempre estava comigo – era especialmente com o meu melhor amigo que eu gostava de filosofar sobre as coisas da vida, discutir sobre as melhores músicas e os melhores filmes, inventar uma nova estratégia para estudar e passar logo no vestibular, fazer planos de ganhar o mundo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Minha mãe sempre adorou o Serginho e fazia muito gosto da nossa amizade. Minha avó não entendia como um menino e uma menina podiam ser assim tão amigos. Tá namorando filha? Deus vai encaminhar um bom rapaz pra você. Minha avó nunca conheceu Joana. Foi sempre Lídia, do lar, do marido, das coisas da casa. Já minha mãe talvez tivesse um pouco de Joana. E, desconfio, eu também.

2 O LIVRO

Clarice Lispector escreveu “Perto do Coração Selvagem” no início da década de 40, quando minha avó era ainda uma criança. Com essa sua primeira obra, Clarice veio – como um rasgão no vestido de Joana – estremecer a literatura brasileira, até então repleta de romances cingidos a matérias regionais e compromissados com a crítica social. A transgressão veio tanto no tema – intimista, existencialista, psicológico – quanto na forma não linear de escrever, circular, indo e voltando na história. Joana é um personagem tão complexo que provavelmente minha avó nunca a entenderia. Parece ser sempre um grito contido, que vai eclodir a qualquer momento. Sente-se, desde criança, diferente das outras mulheres, um ser cindido, em uma busca constante por se reconciliar com seu lado indômito (ALBUQUERQUE, 2006, p. 54) - Joana tudo racionaliza, cisma, cogita, reflete, matuta... Por isso é retratada como uma mulher com pensamento de homem . (LISPECTOR, 1980, p. 130). Vive em uma constante busca de sua sensibilidade perdida na frieza de seus pensamentos tão lógicos. Com menos de 20 anos e cursando o primeiro ano da Faculdade de Direito, Clarice Lispector deu vida a uma Joana introspectiva, pulsante de questões existenciais que não conseguia expressar em palavras, questionadora das possibilidades de sua vida, de ser simplesmente mulher: É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo (LISPECTOR, 1980, p. 08). Chama atenção a história contada mais pelo valor da sensação dos fatos nos personagens e não pelos fatos em si – não há, pois, uma ordem cronológica, linear. A linguagem também ocupa papel central: Os conflitos internos de Joana se manifestam quando ela busca se comunicar através da linguagem – por se tratar de conflitos, o dizer das palavras se dissocia dos sentimentos, não lhe permitindo expressar nem comunicar aos outros o que lhe é mais íntimo. Daí, a busca da linguagem como libertação, paradoxalmente, ocasionar

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 um aprisionamento no dizer lógico-discursivo, que não apreende nem tampouco exprime a dimensão das pulsões da personagem (ALBUQUERQUE, 2006, p. 64 e 65). O livro convida a diversas reflexões – a principal delas, que será retratada neste estudo, diz respeito ao papel da mulher na sociedade da década de 40 e o paradoxo vivido pela personagem central – Joana – que, por não se enquadrar no modelo de mulher daquela época, enfrenta diversos dilemas existenciais e acaba se afastando dos demais personagens: ao mesmo tempo em que não se identifica com as outras mulheres (consideradas ingênuas, submissas e incapazes de ter as rédeas de suas próprias vidas) também não se aproxima realmente dos homens (embora tenha pensamentos considerados masculinos, como a preocupação em ser a responsável por suas próprias escolhas), exatamente por não encarnar a figura padrão de mulher. Joana mais parece uma mulher do presente que acidentalmente nasceu meio século antes do que deveria. Interessa a análise para se reforçar o quão importante se tornou incutir em toda a sociedade – ou seja, em homens e em mulheres – a ideia de que ambos são iguais em direitos e deveres e livres para trilharem seu próprio caminho, da forma que entenderem melhor. “Perto do Coração Selvagem” causa espanto tanto pelo fato de mostrar que não faz nem tanto tempo assim que mulheres eram tratadas como inferiores aos homens, mas ao mesmo tempo, que já naquela época vozes femininas se levantavam contra esta submissão e desigualdade, não aceitando o fato de não poderem livremente pensar e existir pelo simples fato de serem mulheres. Mas, antes de apresentar o enredo, calha fazer uma breve contextualização sobre a época em que o romance foi escrito.

3 MULHER, BRASIL, SOCIEDADE E A DÉCADA DE 40.

Na sociedade brasileira, uma das maiores conquistas femininas do início do século XX foi concretizada no Código Eleitoral de 1932: o direito de voto . Até aquela época, os valores presentes de forma maciça na sociedade eram transmitidos a meninos e meninas às vezes indistintamente, como “respeito”, “obediência aos mais velhos”, outras vezes particularmente às meninas, como “submissão”, “delicadeza no trato”, “pureza” “capacidade de doação”, “prendas domésticas e habilidades manuais”. O processo de educação da menina perpassava, desde cedo, pela auto-restrição, com um vigiar constante que quase não abria espaço para a quebra de regras. No fim do século XIX e primeiras décadas do século XX muito se valorizava, na educação feminina, a “obediência” (seja aos mais velhos seja às regras do grupo familiar) – como lhe sobrava pouco espaço para transgredir, à menina restava o prazer de agradar e ouvir elogios sobre quão bem educada era. Havia uma excessiva “preocupação com o ‘futuro da moça’, que precisa ‘arranjar’ um marido (provedor) e que, para tal, terá as suas ‘virtudes’, todas, muito ‘olhadas’ e seriamente investigadas,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 sobretudo se for para ‘fazer um bom casamento’, com um rapaz considerado um ‘bom partido’” (BIASOLI-ALVES, 2010, p. 2 e 3). Talvez se alguém perguntasse à minha avó - que nasceu em 1937 – se homens e mulheres eram iguais, a resposta seria uma negativa nada hesitante. Ela nunca soube sobre a Carta das Nações Unidas ou da Declaração Universal de Direitos Humanos, que pregava sem ressalvas que todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direitos. Minha avó só soube mesmo aquilo que viu, sentiu, ouviu, aprendeu, viveu. E, no seu mundo, ah, havia diferenças quase intransponíveis: a mulher cuidava da casa, vivia para o casamento e para os filhos; o homem saía para trabalhar e ganhar o sustento da família e cabia a ele as principais reflexões e decisões sobre como gerir a família, os negócios, a política, o mundo. Naquela época, no Brasil, a igualdade garantida entre homens e mulheres era apenas formal, não material, mera igualdade perante a lei que, mais tarde, viu-se, quase nada garantia, quase nada efetivava. Foi apenas com a Constituição de 1988 que as mulheres puderam acreditar em uma igualdade verdadeiramente concreta. O Código Civil de 1916 restringia a capacidade da mulher casada – para quase tudo havia necessidade do consentimento do marido , situação que só começou a mudar com a Lei 4.121/62. O desquite – embrião do direito ao desamor – vinha atrelado, em seus efeitos, à ideia de culpa (tantas mulheres acusadas de não serem boas mães, boas esposas, de não cuidarem do lar); o direito ao divórcio só foi garantido em 1977 . Havia previsão do regime dotal , o marido era o chefe da sociedade conjugal e tinha a obrigação de sustentar a mulher . No âmbito penal, o Código de 1940 protegia a “mulher honesta”, o estupro estava previsto sob o título “Dos crimes contra os Costumes” , havendo extinção da punibilidade do agente que, tendo praticado algumas das infrações penais aí previstas, casasse-se com a vítima . Enfim, talvez minha avó até tivesse uma certa razão – é que, embora ela e Joana já tivessem nascido com a possibilidade de participar ativamente do processo eleitoral, cresceram ainda sob a ideologia (social e jurídica) da desigualdade de direitos e, mais, da superioridade do homem sobre mulher. Minha avó até hoje pergunta a meu pai em que ela deve votar.

4 PERTO DO CORA ÃO SELVAGEM

O enredo passa-se na década de 40. Joana vive em um ambiente de racionalidade, numa sociedade de valores puramente masculinos: “o pai”, “Otávio”, “o homem”, “o abrigo no homem” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 55). Mas seu papel de mulher, da mulher daquela época, fica em suspenso. O seu drama se desenvolve em busca do “coração selvagem da vida”, um caminho que ela percorre só, pois não consegue se comunicar com os que vivem à sua volta (todos envoltos em suas

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 próprias questões, sem estabelecer pontes entre suas subjetividades) – Joana não é espelho que se espera de mulher, não representa aquilo que se espera da dona de casa, da esposa, da mãe e essa sua personalidade termina por enclausurá-la em si mesma e nos seus pensamentos. Pergunta-se incessantemente sobre o sentido de tudo, tudo racionaliza, perde-se de sua sensibilidade. Vive em uma aparente felicidade, permeada de momentos de angústia e solidão, quando, então, se torna mais forte e consegue enxergar a realidade de forma crua. Hora, pois, de apresentar ao leitor, de forma breve, a estória de Joana. Na infância, quem cria Joana é o pai, que representa a primeira figura do homem: o provedor, a ordem, o conhecido. A mãe morrera e deixara na criança a ideia de lacuna, de desconhecido – por isso, Joana afirma ter medo da mãe; não por um medo da morte, mas por um medo do que não conhece e da “certeza de que dá para o mal” . A não aceitação simples e os questionamentos são da essência da personagem, existem desde quando era ainda criança: - O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana, - Repita a pergunta...? Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros. - Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi. - Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? — repetiu a menina com obstinação. A mulher encarava-a surpresa. - Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras... - Ser feliz é para se conseguir o quê? (LISPECTOR, 1980, p. 17 e 18) Logo, o pai também morre e Joana passa a viver com uma tia, que se sente nitidamente incomodada com a presença da menina. Ocorre, então, um episódio carregado de simbologia – Joana furta um livro porque queria lê-lo. Para Joana, transgressão valia pelo simples prazer da leitura – e, se era aviltante para a tia, não assombrava a menina: - Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faça, pois ela ainda confessa! - A senhora me obrigou a confessar. - Você acha que se pode... que se pode roubar? - Bem... talvez não.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 - Por que então... ? - Eu posso. - Você?! — gritou a tia. - Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum. - Deus me ajude, quando faz mal Joana? - Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste (LISPECTOR, 1980, p. 32 e 33). A tia decide, então, mandar Joana para o internato. É lá que ocorre a descoberta de sua juventude, simbolizada pelo “banho”, no primeiro contato efetivo com seu corpo – é neste momento que Joana descobre a possibilidade de transcender o mundo morno que habitava e dar vazão às forças ocultas que lhe acompanhavam desde criança. Mas esse ritual de passagem acaba frustrado: Joana não consegue se encontrar com ainda com a sua sensibilidade perdida: Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece. Está leve e triste, move-se lentamente, sem pressa por muito tempo. O frio corre com os pés gelados pelas suas costas mas ela não quer brincar, encolhe o torso ferida, infeliz. Enxuga-se sem amor, humilhada e pobre, envolve-se no roupão como em braços mornos. Fechada dentro de si, não querendo olhar, ah, não querendo olhar, desliza pelo corredor — a longa garganta vermelha e escura e discreta por onde afundará no bojo, no tudo. Tudo, tudo, repete misteriosamente. Cerra as janelas do quarto — não ver, não ouvir, não sentir. Na cama silenciosa, flutuante na escuridão, aconchega-se como no ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo. (LISPECTOR, 1980, p. 47) Adiante, Joana conhece Otávio, que representa – da mesma forma que o pai – o homem, o certo, o conhecido, a ordem. Otávio era então noivo de Lídia, a qual representa o exato contraponto de Joana: mulher esposa, mãe, dona de casa, submissa, pacífica. Joana, sendo tão diferente da noiva (e talvez de quase todas as outras mulheres de sua época), encanta e confunde Otávio, pois é forte, dura, fria, “pouco passiva”: Nela havia uma qualidade cristalina e dura que o atraía e repugnava-lhe simultaneamente, notou ele. Até o modo como andava. Sem ternura e gosto pelo próprio corpo, mas jogando-o como uma afronta aos olhos de todos, friamente. Otávio observava-a mover-se e refletia que nem fisicamente era a mulher de quem ele gostaria. (...) Aquelas linhas de Joana, frágeis, um esboço, eram inconfortáveis. Cheias de sentido, de olhos abertos, incandescentes. Não era bonita, fina demais. Mesmo sua sensualidade deveria ser diferente da dele, excessivamente luminosa. Otávio procurava, desde o instante em que a conhecera, não perder nenhum de seus detalhes, dizendo-se: que não se cristalize em mim qualquer sentimento terno; preciso enxergá-la bem. Mas, como se adivinhasse seu exame, Joana se voltava para ele no momento preciso, sorridente, fria, pouco passiva. E tolamente ele agia, falava, confuso e apressado em obedecer-lhe. Em vez de obrigá-la a revelar-se e assim destruir-se no seu poder. E apesar daquele ar de quem ignorava as coisas mais

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 comuns, como logo no primeiro encontro ela o precipitara em si mesmo! Jogara-o na intimidade dele próprio, esquecendo friamente as pequenas e cômodas fórmulas que o sustentavam e lhe facilitavam a comunicação com as pessoas. (LISPECTOR, 1980, p. 67) Otávio, fascinado por essa nova figura de mulher (até então desconhecida para ele), deixa Lídia e se casa com Joana. Por um momento, parece que Joana vai enfim se enveredar pelas curvas da sensibilidade e do amor. Mas, aos poucos, fica claro que não havia real comunhão entre eles: os pensamentos tão profundos em Joana e tão rasos em Otávio não permitiam um diálogo que os unisse. Joana não assume o papel de esposa, de dona de casa, de mãe - ao contrário, ela sente que Otávio lhe atrapalhava a ser ela mesma, que ele lhe atrapalhava a pensar quase como se a impedisse de existir. Joana se recusa a acreditar na aparência de um casamento feliz. E, aos poucos, foram se esvaindo os resquícios da harmonia que tivesse, talvez por um breve instante, existido (ou que se fantasiou existir): A culpa era dele, pensou friamente, à espreita de nova onda de raiva. A culpa era dele, a culpa era dele. Sua presença, e mais que sua presença: saber que ele existia, deixavam-na sem liberdade. Só raras vezes agora, numa rápida fugida, conseguia sentir. Isso: a culpa era dele. Como não descobrira antes? — perguntou-se vitoriosa. Ele roubava-lhe tudo, tudo. E como a frase ainda fosse fraca, pensou com intensidade, os olhos fechados, tudo! (LISPECTOR, 1980, p. 80) Otávio, então, volta a se encontrar secretamente com Lídia – aquela que, para ele, refletia a imagem de verdadeira mulher. Interessante destacar nesse ponto, o diálogo entre Lídia e Otávio, que encerra muito bem os valores da época em relação ao casamento: - Você não tem medo? — gritara-lhe. Lídia continuara igual. - Você não tem medo de seu futuro, de nosso futuro, de mim? Não sabe que... que... sendo apenas minha amante... só tem lugar ao meu lado? - Ela balançara a cabeça surpreendida, chorosa: - Mas não... Ele sacudira-a, longinquamente envergonhado de mostrar tanta força, quanto junto de Joana, por exemplo, calava-se. - Não tem medo de que eu deixe você? Não sabe que se eu deixar você, você será uma mulher sem marido, sem nada... Um pobre diabo... que um dia foi abandonada pelo noivo e que se tornou amante desse noivo enquanto ele casava com outra... - Não quero que você me deixe... - Ah... - ...mas não tenho medo... (LISPECTOR, 1980, p. 92 e 93)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Mas Joana, uma noite, se descobre desejando Otávio não como marido, mas como homem (o que demonstra que ela aceita e reconhece seus desejos); faz-lhe a confidência que, em sono profundo, ele jamais escutou: Mas a libertação veio e Joana tremeu ao seu impulso... Porque, branda e doce como um amanhecer num bosque, nasceu a inspiração... Então ela inventou o que deveria dizer. Os olhos fechados, entregue, disse baixinho palavras nascidas naquele instante, nunca antes ouvidas por alguém, ainda tenras da criação — brotos novos e frágeis. Eram menos que palavras, apenas sílabas soltas, sem sentido, mornas, que fluíam e se entrecruzavam, fecundavam-se, renasciam num só ser para desmembrarem-se em seguida, respirando, respirando... Seus olhos se umedeceram de alegria suave e de gratidão. Falara... As palavras vindas de antes da linguagem, da fonte, da própria fonte. Aproximou-se dele, entregando-lhe sua alma e sentindo-se no entanto plena como se tivesse sorvido um mundo. Ela era como uma mulher. As árvores escuras do jardim vigiavam secretamente o silêncio, ela bem sabia, bem sabia... Adormeceu. (LISPECTOR, 1980, p. 103). Lídia engravida e passa a sonhar com a “pequena família”, que construiria com Otávio e o filho. Ela quer Otávio e se confronta com Joana – e essa vê naquela uma vivência que parece lhe faltar. Há um abismo entre elas. Joana tem ciúme, mas se mostra fria, racional: - Sim, sim, mas nada altera, prosseguia Joana serena. Eu o quero também mais friamente, como a uma criatura, como a um homem. — Será que ela vai olhar daquele jeito medroso, assombrado, reverente: oh, por que você fala em coisas difíceis, por que empurra coisas enormes num momento simples, me poupe, me poupe. Mas dessa vez tenho culpa, porque realmente nem sei o que pretendia dizer. Porém é assim que eu a vencerei. Lídia hesitava: - Isso não é mais do que amor? - Pode ser, disse Joana surpresa. O que importa é que já não é amor. — E de repente eis que vem o cansaço, o grande "para quê" me envolvendo, e eu sei que vou dizer alguma coisa. — Fique com Otávio. Tenha seu filho, seja feliz e me deixe em paz. - Sabe o que está dizendo? — gritara a outra. - Sei, é claro. - Não gosta dele... - Gosto. Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena. Talvez se eu gostasse realmente com o corpo... Talvez me ligasse mais... — São confidencias, Deus meu. Agora vou dizer assim: — Otávio foge de mim porque eu não trago paz a ninguém, dou aos outros sempre a mesma taça, faço com que digam: eu estive cego, não era paz o que eu tinha, agora é que a desejo (LISPECTOR, 1980, p. 113 e 114).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Joana conhece, então, “o homem”, ao qual, embora ela mal conheça (e nem deseje conhecer) ela se entrega. A ruína do casamento com Otávio não lhe incomoda: ela não sofre, pois compreendia que não era feliz. Otávio a deixa e vai viver com Lídia. Mas, tão misteriosamente quanto surgiu, “o homem” também vai embora. Joana vê-se, então sozinha – abre-se a oportunidade, de mais uma vez, sair em busca de sua sensibilidade perdida, da sobreposição de seu eu masculino e feminino. O último capítulo, chamado “A viagem” simboliza essa procura. Mas não se narra o momento do encontro, apenas da disponibilidade para a busca. Desvenda-se, pois, o título da obra: Joana esteve tantas vezes perto, mas apenas perto e nunca dentro do “coração selvagem”. Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo (LISPECTOR, 1980, p. 154 e 155).

5 A VÍBORA

Joana é a antevisão, ainda na década de 40, da mulher que pulsa, que arde, que tem desejos, que não aceita mais ocupar apenas o papel de dona de casa, esposa, mãe. Pensa mais do que borda, raciocina mais do que puramente se entrega. Quer se libertar das amarras que a sociedade lhe impõe – educação, passividade, submissão –, simplesmente porque não quer ser assim, porque não se sente assim. Em algumas passagens, ela reflete que, para ser feliz, é necessário não compreender – e se coloca distante das outras mulheres de seu tempo, as que são felizes porque não compreendem o que é o mundo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Joana é uma previsão do que hoje é um dos valores mais caros ao direito: a igualdade entre homem e mulher. Toda a sua dubiedade se vê envolta nessa igualdade de gênero – supõe-se tão mais parecida com um homem que perde sua sensibilidade de mulher. Toda a busca da personagem no livro é no sentido de refazer essa cisão – juntar na mesma Joana racionalidade e sensibilidade. E essa contraposição entre as características ligadas ao universo masculino e as ligadas ao universo feminino revela, pois, toda a problemática que envolve a assunção de novos papéis sociais pela mulher. A mulher que trabalha, que é mãe, que cuida do lar, que tem um marido, que tem filhos, que tem direitos, que estuda, que tem sucesso profissional, que vota, que lê, que opina, que decide, que participa. Clarice nos pergunta através de Joana se, homem e mulher são necessariamente opostos e, mais, questiona se quando forem todos efetivamente iguais em direitos, vai se perder a ternura. Joana é, pois, a discussão, décadas antes de se efetivar na prática, acerca do papel da mulher na sociedade e no casamento. Acerca da inferioridade e da submissão. Acerca do direito da mulher de não se privar de todos os elementos que compõem a sua personalidade e a sua dignidade pelo simples fato de ser mulher. Clarice Lispector não foi exatamente uma feminista militante, mas pode se dizer que foi uma feminista por meio da literatura. Trabalhou o feminismo, nessa e em outras obras, de forma a clamar as mulheres a tomarem consciência de seu papel – não mais um papel secundário, mas ativo, principal. A Literatura tem esse poder: provocar reflexão. É libertária! E quantas vezes escritores e pensadores foram tão mais sensíveis em perceber problemas jurídicos dos que os próprios juristas... Assim é que se mostra de grande valia analisar o Direito sob a ótica da Literatura – de forma a não isolá-lo em si mesmo, antes, abri-lo a novas visões, a novas interpretações para que a frieza dos Códigos não o encarcere, mas, antes, a beleza e magnitude da arte o alforrie.

6 DIÁLOGOS COM MINHA AV

Minha avó nunca conheceu Joana. Talvez, se a conhecesse, teria lhe dado alguns conselhos à época... Algo como cuidar mais da casa, dar mais atenção ao marido. É assim que ela, ainda hoje, vê seu papel: esposa, mãe, dona de casa. Mas é feliz. Talvez porque, como diria Joana, não compreenda. Só é feliz e ponto. Afinal, ela só sabe o que viu, sentiu, ouviu, aprendeu, viveu. Que foi diferente do que eu e tantas outras mulheres que vieram depois dela, vimos, sentimos, ouvimos, aprendemos vivemos. E quando se tem essa compreensão, não é mais tão simples ser feliz. Há pouco tempo ela estava tomando café em minha casa, quando lhe contei que iria me casar em breve. Uma mistura de alívio e felicidade brotou imediatamente em seu rosto (afinal, eu já tinha 30 anos – velha demais, possivelmente pensava ela).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Lembrei-me de todas as vezes que ouvi resignada “tá namorando, minha filha?”. Encheu-me de perguntas. Pena que ela tem ficado um pouco esquecida nos últimos anos... Na semana seguinte, entre um pão de queijo e um bolo na cozinha da casa dela, perguntou ao meu pai: e minha neta, não está pensando em casar? Pelo menos, ficou feliz por duas vezes.

REFER NCIAS

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 OLIVEIRA, Wilson de. A mulher em face do Direito; direitos e deveres da mulher: solteira, casada, desquitada, divorciada, viúva e concubina. Belo Horizonte, Del Rey, 1984.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

O SER HUMANO, O ESTADO, E O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A PARTIR DOS ENSINAMENTOS DE THOMAS HOBBES. Rodrigo Toaldo Cappellari1e Inácio Cappellari2 THE HUMAN, THE STATE, AND THE PRACTICE OF LAW IN CONTEMPORARY SOCIETY ANALYZED FROM THE TEACHINGS OF THOMAS HOBBES.

Resumo:

O presente artigo pretende proporcionar uma reflexão sobre o exercício da advocacia na sociedade contemporânea. Primeiramente, se buscará subsídios acerca da concepção de ser humano e suas particularidades, o estado de natureza e a necessidade de formação do Estado, na filosofia de Thomas Hobbes, para, após, se analisar o advogado, o exercício de seu papel na sociedade, que é indispensável à administração da justiça, bem como a forma como o direito e a justiça estão sendo praticados atualmente, objetivando, ao final, elaborar uma reflexão ética sobre o 1

Advogado. Professor da Universidade de Caxias do Sul - UCS e da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul - FISUL. É Mestre em Filosofia pela UNISINOS, possui Especialização em Marketing pela FACEBG, Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais Direito pela UCS, Graduação em Administração pela FACEBG, curso de Aperfeiçoamento na área do Direito de Preparação à Magistratura Federal - ESMAFE/RS. Cursando Especialização em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal no RS - ESMAFE/RS. Autor de livros nas áreas do direito e filosofia do direito. Membro do Grupo de Estudos Fundamentação Ética dos Direitos Humanos do PPG Filosofia e PPG Direito da UNISINOS. 2 Advogado. Professor da Universidade de Caxias do Sul. Doutorando em direito pela Universidad de León - Espanha. É Mestre em Filosofia pela UNISINOS, possui Especialização em Teoria Geral do Processo pela UCS, Especialização em Administração e Marketing pela UCS. Autor de livro na área de Filosofia do Direito e Direitos Humanos. Membro do Grupo de Estudos Fundamentação Ética dos Direitos Humanos do PPG Filosofia e PPG Direito da UNISINOS. Foi Conselheiro Estadual da OAB/RS no triênio 2001-2003 e Juiz do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS 1998-2001.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 exercício da advocacia contemporânea e os ensinamentos do filósofo Thomas Hobbes sobre o ser humano e a sociedade.

Palavras-chave: Advocacia, Advogado, Ética, Moral, Thomas Hobbes.

Abstract:

This article aims to provide a reflection on the practice of law in contemporary society. First, it will seek grants on the idea of humans and their peculiarities, the state of nature and necessity of the state formation in the philosophy of Thomas Hobbes, for, after, analyze the lawyer, the exercise of their role in society, that is indispensable to the administration of justice, and the way that law and justice are being practiced today, aiming, ultimately, develop an ethical reflection on the contemporary practice of law and the teachings of the philosopher Thomas Hobbes of the human and society.

Keywords: Lawyers, Lawyer, Ethics, Moral, Thomas Hobbes

1. Introdução: a concepção hobbesiana do ser humano e o estado de natureza

Para Hobbes, a humanidade, todos os seres humanos, seriam teoricamente “iguais”. Todos seriam movidos pela paixão, pelo poder, pela inveja e cobiça. No raciocínio hobbesiano o homem somente se move com um raciocínio calculado, pragmático, refletindo sobre o que a ação que ele irá praticar trar-lhe-á de útil. O homem nunca age de forma solidária por ser generoso, ou achar esta atitude nobre, mas sim já visando que esta atitude poderá lhe ser útil no futuro, uma vez que se necessitar de alguma ajuda, este outro indivíduo que foi ajudado irá proceder da mesma forma. A vontade do homem de obtenção de poder e reconhecimento de sua grandeza só acabará com a morte. Para Hobbes todas as ações humanas giram em torno da obtenção de proveito para si, de algum ganho, de glória ou honra.

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Do início do capítulo inicial do livro De Cive , percebe-se que Hobbes acredita que todos os homens são iguais por natureza. Frisa que uns homens produzem insegurança nos outros, resultante da igualdade natural e da mútua vontade de se ferirem, produzindo o desejo de proteção. Hobbes no mesmo livro analisa que os homens têm razões diferentes para se agredirem no estado de natureza. Uns conformam-se com a igualdade natural e como são temperados, avaliam os limites do próprio poder e do outro. Outros, arrogantes, que se supõem superiores, buscam para si mais respeito e honra do que é realmente devido. A diferença entre eles é que estes últimos, têm uma falsa avaliação de sua própria força, enquanto que os temperados buscam defender seus bens e sua liberdade da violência destes arrogantes. No estado natural, a discórdia nasce do combate entre os espíritos dos homens. O desejo pelas mesmas coisas, sejam objetivas ou subjetivas, concretas ou abstratas, é que fará com que surjam conflitos e disputas, e a decisão destes embates só poderá se dar pela espada. Os homens não são capazes de desfrutar das mesmas coisas em comum, nem dividir. Neste estado de natureza, cada homem é juiz dos meios que tendem a sua própria conservação, podendo julgar os meios a serem utilizados para sua preservação. Cada homem poderá fazer juízo sobre o pensamento do outro, se este pensamento do próprio tende a conduzir ou não a preservação de sua vida. Esta compreensão de julgamento, também abrange o juízo sobre fazer o que lhe fosse útil e ideal, poderia possuir, usar, desfrutar de tudo que quisesse e pudesse obter; já que no estado natural, é legal ter tudo e cometer tudo que se quiser, na medida em que o direito está na vantagem que poderá se obter. Este também é o posicionamento da filósofa Inês M. Pousadela: “trata-se do suposto de que todos os motivos e impulsos humanos decorrem da atração ou repulsão causadas por determinados estímulos externos. Toda conduta deriva do 4 princípio da autoconservação” . Assim, para se protegerem uns dos outros, os homens inventaram armas e cercaram suas propriedades, atitudes estas, que para Hobbes é inútil, visto que sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas, de modo que não se tem como garantir a vida, nem reconhecimento de posse, existindo somente uma lei, que é a lei do mais forte. Desta forma, a natureza em Hobbes é uma perversa luta de todos contra todos, na qual todos se embatem para se afirmar e sobreviver. 3

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 4 POUSADELA, Inês M. O contratualismo hobbesiano. in Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. BORON, Atilio A. CLACSO - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCPFFLCH - Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas - USP. 2006. Disponível em: . Acesso em: 29 de novembro de 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Neste sentido, no pensamento hobbesiano, o estado de natureza, é como se estivéssemos em uma condição de guerra, onde cada pessoa pensa ser mais poderosa que a outra, onde os homens viveriam isolados e em luta permanente, vigorando a máxima do “homem lobo do homem”, de forma a viverem em um estado onde reinaria permanentemente o medo da morte violenta. Consoante o professor Fernando Magalhães5:

O estado de Hobbes tem origem no contrato forjado pelos indivíduos singulares devido ao medo da morte violenta e da dissolução da sociedade; medo provocado pela igualdade natural. Essa dissolução leva Hobbes a identificar a anarquia reinante com o estado de natureza primitivo que é pura ficção do intelecto. (...) Intoxicado pelo medo da anarquia, que não permite aos homens o desenvolvimento pleno de suas capacidades, Hobbes propõe o controle das paixões como única forma possível de se alcançar a paz. O pacto hobbesiano só se efetiva porque as paixões e outros desejos devem ser subjugados por aquelas outras paixões que inclinam os homens para a paz.

Esta guerra perpétua, interpretando o pensamento de Hobbes, impede a continuidade da vida humana. Seria um contraditório continuar-se no estado de guerra, pois tal estado não facilitaria a conversação da espécie humana, bem como o 6 desenvolvimento econômico, social, cultural, etc. Não se teria espaço para noções de propriedade, partilhas do bem, do mal, da justiça e injustiça, bem como para indústria, artes e ciências, de forma que “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, 7 embrutecida e curta”. 8

Hobbes, no início do capítulo V da obra De Cive , nos ensinará que: as leis naturais não oferecem a ninguém condições de segurança no momento, mesmo que conhecidas. Enquanto não houver uma garantia efetiva contra a invasão alheia, todo homem continuará exercendo o primitivo direito de autodefesa por todos os meios em seu poder e ao seu alcance, que é o direito a todas as cosias, ou o direito de guerra. Hobbes, também defenderá que o direito é a força, e existem somente duas formas da humanidade conviver: a primeira, neste estado natural, onde o poder de 5

MAGALHÃES, Fernando. À Sombra do Estado Universal: Os EUA, Hobbes e a nova ordem mundial. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006, pág. 97. 6 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 7 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 79. 8 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 cada homem é dado por suas próprias virtudes: força física, inteligência, astúcia, capacidade de se associar, etc.; vivendo conforme seus interesses pragmáticos. A segunda, é a de se conviver em conjunto com os outros homens, em um estado político, com um soberano os dirigindo, lhe dando diretrizes normativas, conciliando vontades individuais com vontades coletivas. Assim, para Hobbes, o Estado surge de um contrato firmado por homens com a finalidade de conviver em harmonia; com a função de controlar a natureza do homem e ter autoridade para solucionar todos os problemas da sociedade. Um poder comum e absoluto, capaz de defender o homem e ditar regras para um bom convívio em sociedade. Mas para que haja efetividade deste Estado, tais homens deverão elaborar um pacto, um contrato. Criar-se-á a submissão de vontade de todos estes indivíduos à vontade de um só homem, o soberano. O homem transfere para o soberano seu direito de uso da força e de seus recursos. Cada sujeito deverá renunciar ou transferir seus direitos individuais e colocar “na mão do Estado”, o qual terá o poder absoluto (composto pelos direitos individuais de cada um) para dar as diretrizes e gerir a vida dos cidadãos. Eis o embrião da formação do Estado, que surgirá como uma entidade mais forte que o indivíduo, visando garantir o cumprimento de direitos e deveres, e assegurar a paz e a segurança.

2. Sobre a coercitividade do Estado: a necessidade do direito positivo e da espada do castigo em face da natureza humana

Consoante o pensamento de Thomas Hobbes, mais precisamente no capítulo 9 XV da obra Leviatã , para a obtenção da paz é necessário agir com atitudes, ou leis da natureza, que tendam a paz. Como exemplo de tais atitudes pode-se citar: o cumprimento dos pactos celebrados, mostrar gratidão pelos benefícios obtidos de outros, agir com complacência, perdoar com facilidade, evitar a vingança, não manifestar ódio ou desprezo por outros, não se mostrar orgulhoso nem arrogante, julgar com eqüidade, aceitar o uso comum das coisas que não podem ser divididas, dentre outras. Porém, diante da natureza humana analisada até então, estas diretrizes somente serão efetivamente cumpridas e respeitadas, com algum poder capaz de impor tal respeitabilidade.

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HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009.

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No entender de Hobbes , “para que as palavras justo e injusto possam ter algum significado, é preciso haver alguma espécie de poder coercitivo que obrigue igualmente todos os homens a cumprirem seus pactos”. O cumprimento do pacto, então, estaria alicerçado no poder do Estado que “deve infundir o temor de alguma pena superior ao benefício esperado com o rompimento do pacto e capaz de dar força à propriedade adquirida pelos homens por 11 meio do contrato mútuo, como recompensa do direito universal a que renunciaram ”. Neste sentido, consoante o pensamento da filósofa Pousadela “essas leis só o são em sentido estrito no interior de um Estado, quando podem ser impostas, e sua 12 violação castigada, pelo poder da espada” . Assim, no capítulo VI do livro De Cive, Hobbes nos passará a seguinte mensagem:

Não é suficiente, para alcançar a segurança, que cada um dos que agora erigem uma cidade convencione com os demais, oralmente ou por escrito, não roubar, não matar e observar outras leis semelhantes; pois a depravação da natureza humana é manifesta a todos, e pela experiência se sabe muito bem, bem demais até, em que pequena medida os homens atêm a seus deveres com base na só consciência de suas promessas, isto é, naquilo que resta se for removida a punição. Devemos portanto providenciar nossa segurança, não mediante pactos, mas através de castigos; e teremos tomado providências suficientes quando houver castigos tão grandes, previstos para cada injúria que se evidencie que sofrerá maiores males quem a cometer do que quem se abstiver de praticá-la. Pois todos, por necessidade natural, escolhem o que a eles pareça contribuir o mal 13 menor.

Desta forma, com o surgimento do pacto, é incumbido ao soberano utilizar-se da espada do castigo, objetivando a defesa do cumprimento das leis, e em conseqüência, a segurança particular e a paz comum.

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HOBBES, Thomas. Op. Cit. Pág. 106. HOBBES, Thomas. Op. Cit. Pág. 107. 12 POUSADELA, Inês M. O contratualismo hobbesiano. in Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. BORON, Atilio A. CLACSO - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCPFFLCH - Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas - USP. 2006. Disponível em: . Acesso em: 29 de novembro de 2013. 13 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág. 103-104. 11

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Estas leis civis, segundo o pensamento hobbeseano, consistem nas regras e medidas que regulamentam a vida na cidade. Tais regras são criadas e impostas por aquele que detém o poder supremo, a fim de que cada indivíduo saiba o que é seu e o que não é, o que é justo e o que não é, apaziguando as controvérsias que naturalmente surgem.

3. Conclusão: uma reflexão ética sobre o exercício da advocacia contemporânea a partir de uma concepção hobbesiana. A leitura sobre a natureza do ser humano, sua essência individualista e egoísta, a cada dia que passa nos mostra que o filósofo acertou, e muito bem, sobre a concepção do ser humano. Hoje vivemos em uma sociedade praticamente amoral, onde quase não há ética. Atualmente, tudo se limita à base do consumo, do utilitarismo, do funcional, da lucratividade e do eficaz. A excelência e a virtude são cada vez mais deterioradas e diminuídas. O ser humano baseia seus atos na ideologia individualista, consumista e hedonista, originária da relação que nasce do homem com as coisas, e não como reza a ética, do homem com o homem, o que o leva a agir de tal forma que seus atos são realizados, não pelo que acredita ser correto, certo, ético, justo ou até humano, mas sim, pela coercitibilidade estatal, visto que sabe que se agir por determinada conduta, serão lhe impostas sanções econômicas ou restritivas a sua liberdade. Deixando o homem livre a seu próprio arbítrio, não havendo o Estado para impor a ele normas positivas pela espada do castigo, por sua natureza que lhe é peculiar, segundo Hobbes, não exitará em agir de determinado modo, mesmo sabendo que sua ação prejudicará outro homem, uma vez que colocará em uma balança de juízo o que lhe será útil, lucrativo, e lhe trará benefícios; e do outro lado, o malefício para o próximo. O resultado da escolha deste indivíduo, no pensamento hobbesiano é muito claro. O indivíduo escolherá a medida mais favorável, mais útil para si. Tal atitude até poderá ser amenizada em seu íntimo com a reflexão de que se o outro estivesse em seu lugar, também faria a mesma escolha, já que na condição de ser humano, sabe como o homem pensa. Assim, como acredita que seu próximo também pensaria da mesma forma com relação a ele, tal reflexão é utilizada para justificar para sua própria consciência, que quando da escolha de atitude, não agiu de modo errôneo, somente procedeu da mesma forma que fariam outras pessoas, se estivessem em seu lugar para a tomada de decisão. Na melhor concepção hobbesiana, poderia se dizer que o homem trata seu semelhante como se fosse uma coisa, dando atenção e importância enquanto lhe é

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 útil e pode lhe trazer alguma vantagem; depois o abandona, não tendo mais o lado da 14 amizade, humanidade e ética que tanto defendia Aristóteles . Atualmente com a economia globalizada e cada vez mais ditando as diretrizes das tomadas de decisões em empresas, governos e associações, os vetores das relações entre sujeitos são a utilidade, a produtividade, a eficácia, ou seja, a pessoa não é reconhecida, respeitada e bem tratada por ser também um ser humano, mas sim, porque possui dinheiro, capacidade de aquisição e de consumir, podendo pagar por um bom atendimento, ou consumindo seu produto. Como exemplo desta reflexão, podemos analisar a diferença de tratamento que se recebe de um mesmo hospital ou clínica, o homem (cliente) que pode pagar de forma particular seu tratamento e o homem que depende de atendimento pelo Sistema Único de Saúde Pública. Todo esse quadro em que a sociedade contemporânea se encontra, criou um tipo de reconhecimento subjetivo extremamente precário, onde se valoriza o quantificável, o mensurável, o útil, o lucrativo, o rápido, o veloz, o eficaz, etc. Assim, em um mundo onde tudo é mensurado pelo coeficiente de utilidade e lucratividade, o direito infelizmente, em grande parte dos casos anda seguindo a mesma linha, de forma que as decisões e ações dos advogados seguem a mesma linha de pensamento, ainda que pareça amoral ou imoral. O direito, para alguns, tornou-se um objeto de consumo, um objeto mercantilizado, e quem comercializa este produto são os profissionais do direito, entre eles o advogado. Hoje, é difícil nos depararmos com um estudante de direito que se preocupe com as cadeiras de ética, filosofia, e introdução ao estudo do direito, preocupa-se mais com disciplinas como direito civil, tributário, do trabalho, matérias codificadas, transformando-se em meros técnicos em leis. Não se vê mais a origem da lei, de onde vêm tais princípios, o pensamento, a filosofia, a gênese destas positivações. Analisa-se somente a lei como conjunto de normas a serem cumpridas, havendo penas se não o feito, e caso ocorra violação dela, uma oportunidade para se lucrar algum dinheiro buscando-se uma indenização. Um exemplo cada vez mais crescente disto, pode-se analisar das ações visando ressarcimento por danos morais. O sujeito não mais fica indignado, irritado por ver sua moral abalada por certo acontecimento; muito pelo contrário, fica feliz, por ter sido o felizardo de estar como vítima de um acontecimento que a justiça acredita ser merecedor de reparação por danos morais, com conseqüente indenização em dinheiro. Para alguns, pouco importa o real abalo emocional, mas sim o quantum da indenização. Na questão atinente aos danos morais, verifica-se que o relativismo, o pluralismo, o cinismo, o ceticismo, a permissividade e o imediatismo têm mostrado

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Recomenda-se ler a obra “Ética a Nicômacos” de Aristóteles, mais precisamente o Livro V.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 papel decisivo, quando o assunto é o ressarcimento por danos morais. Neste sentido, 15 reflete o professor Calmon de Passos :

Não se indaga se aquele que se enche de furor ético porque teve recusado um cheque de sua emissão teve, por força disso, forte abalo emocional, ou é simplesmente um navegador esperto no mar de permissividades e tolerância que apelidamos de ousadia empreendedora. Quando a moralidade é posta debaixo do tapete, esse lixo pode ser trazido para fora no momento em que bem nos convier. E justamente porque a moralidade se fez algo descartável e de menor importância no mundo de hoje, em que o relativismo, o pluralismo, o cinismo, o ceticismo, a permissividade e o imediatismo têm papel decisivo, o ressarcimento por danos morais teria que também se objetivar para justificar-se numa sociedade tão eticamente frágil e indiferente, O ético deixa de ser algo intersubjetivamente estruturado e institucionalizado, descaracterizando-se como reparação de natureza moral para se traduzir em ressarcimento material, vale dizer,o dano moral é significativo não para reparar a ofensa à honra e a outros valores éticos, sim para acrescer alguns trocados ao patrimônio do felizardo que foi moralmente enxovalhado.

Atualmente tem-se evidenciado que o ofendido precisa lucrar com a ofensa e o ofensor estimar que o preço pago convida-o a sair do mercado, porque não compensador o negócio. Pelo andar das coisas, não é um absurdo se cogitar a idéia de que em breve, surgirão empresas especializadas no treinamento de pessoas para habilitá-las a criar situações que levem alguém a ofendê-lo moralmente. Assim, a lei e a sua origem foram deslocadas, desconectadas e desunidas de sua natureza do bem, de ser sagrada, a vontade de Deus, etc. A pessoa não deixa de agir de forma “imoral, ilegal” por uma questão de virtude, por medo de arder no fogo do inferno, para não ir pra cadeia, até mesmo, em certas vezes, colocando na balança o risco, o faz, sabendo que se utilizando-se dos meios jurídicos, com um bom advogado, sairá ileso e com vantagens de seu ato desumano e mau. O cidadão não espera mais que a justiça seja feita, mas sim que ele seja ressarcido, ou indenizado em seus prejuízos, tomando para si também uma postura individualista, não querendo que puna quem fez o mau, ou que a punição sirva de 15

PASSOS, J. J. Calmon de. O imoral nas indenizações por dano moral. Disponível em: . Acesso em: 22 de novembro de 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 exemplo para outros não repetirem tal conduta. Ele age desejando uma boa indenização para si, por ter sido vítima da maldade, até porque no mundo de hoje, perdeu-se completamente a noção de justiça, o justo é cumprir a letra fria da lei, não refletir sua fundamentação ética e moral. Assim, a visão panorâmica que se tem do direito atual, é que o advogado brasileiro, encontrando-se neste mesmo planeta, dirigido pela economia de mercado e num mundo sem hierarquia de valores, acaba em certos casos, por consequentemente, transformando seus serviços de busca da justiça e do bem comum, em apenas mais uma mercadoria. O divorcio do direito com a ética e suas noções de virtudes, de justiça, equidade, lealdade, infelizmente destituíram-se, de sua nobreza e de seu valor intrínseco, para se tornar um objeto a mais no mundo dos negócios. Os aspectos trazidos pelo Código de Ética Profissional do advogado, dedicam o seu maior número de paginas ao tratamento de temas como: honorários, captação de clientes, propaganda, etc., o que potencializa a idéia do direito como um produto e multiplica cada vez mais piadas e anedotas sobre advogados. Atualmente, pode-se analisar a situação onde há pais que não sabem se devem ensinar ao seu filho o valor de ser honesto e de não enganar o próximo, seja porque não sabe o que é ser honesto, ou porque uma pessoa profundamente honesta e correta neste mundo é a vitima mais adequada para aqueles que, decididamente estão longe de um comportamento estritamente moral. Tal pensamento é generalizado, e em todos os setores, abarcando, também, os profissionais que exercem a advocacia, fazendo-se necessária a existência de um código de ética que não só oriente e aconselhe profissionais a seguirem um tipo de conduta, mas que também imponha sanções àqueles que transgridam e descumpram os termos do código de ética, para pelo menos impor parâmetros básicos a serem respeitados para aqueles profissionais que não desejam fazer do exercício advocatício um meio de enriquecer às custas dos problemas alheios, mas sim, o serviço mais sublime e honrado que se pode prestar a comunidade, que é a realização da justiça e do bem comum. Desta forma, analisa-se que na atualidade a concepção hobbesiana de ser humano, com toda evolução tecnológica, social e econômica, continua sendo a mesma. Não evoluiu. O homem continua o mesmo: individualista, utilitarista, “o lobo do homem”. A alternativa para se regrar tais condutas, continua a mesma da defendida por Hobbes, tendo em vista a necessidade de se elaborar códigos de ética profissionais, com sua devidas punições pela espada do castigo, já que somente a existência de diretrizes éticas na conduta profissional não seriam suficientes. Desta forma, denota-se o quanto a leitura de Hobbes acerca do ser humano se mostra contemporânea, passível de se encaixar em diversas situações e grupos de classes pessoais e profissionais.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O pior de tudo, é que denota-se também, o quanto o ser humano, a sociedade, ainda nos dias de hoje, carece de um debate ético e filosófico acerca de suas condutas. Hoje, o debate filosófico e ético foi deixado de lado, somente se debate acerca de assuntos econômicos, mercados, capitais, ganhos, lucros, restando a moralidade encontra-se totalmente em segundo ou terceiro plano.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONDENAÇÃO DO BRASIL NO CASO ARAGUAIA: KANT COM SADE - PARADOXOS DA LEI / Carolina Machado Cyrillo da Silva1, David Leal da Silva2e Yuri Felix3 Resumo: O presente estudo procura elaborar algumas considerações sobre o “Caso Araguaia”, envolvendo tortura, detenção arbitrária e desaparecimento forçado de 70 pessoas, sendo tais ações autoria do Exército Brasileiro, nos anos entre 1972 e 1975, que teve por objetivo erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985). Percebe-se que o “Caso Araguaia” nasceu numa atmosfera de forte autoritarismo institucional e de violência instituída, o que exige pensar suas implicações no contexto do excesso punitivo da atualidade. Tem-se como ponto de apoio o texto Kant com Sade, de Jacques Lacan, o qual demonstra haver um lado obscuro - não dito - nos meandros da lei formal kantiana, que se insere numa lógica tipicamente perversa. Tal lógica assegura a aplicação legal na aparência de mero cumprimento de um dever. Palavras-chave: Ditadura Brasileira; Caso Araguaia; Direitos Humanos.

Abstract: This study seeks to draw some considerations about the "Araguaia case" involving torture, arbitrary detention and forced disappearance of 70 people, with such shares authorship of the Brazilian Army, in the years between 1972 and 1975, which aimed to eradicate the Araguaia Guerrilla in the context of the military dictatorship in Brazil (1964-1985). One realizes that "Araguaia case" was born in an atmosphere of strong institutional authoritarianism and instituted violence, which requires thinking its implications in the context of punitive excess today. Has as 1

Professora da Faculdade Nacional de Direito - FND da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Bolsista da CAPES. Mestre em Direito na sub-área Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2005). Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2008). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (2001). 2 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Bolsista CAPES. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS (2013). Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Metodista (2011). 3 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós-graduado em Ciências Penais. Presidente da Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP. Ex-coordenador do PRONASCI/MJ. Professor e palestrante com artigos publicados em revistas especializadas. Advogado criminal em São Paulo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 support Kant with Sade text, Jacques Lacan, which shows that there is a dark side said not - in the intricacies of Kant's formal law, which is part of a typically perverse logic. Such logic ensures the legal application in the appearance of mere fulfillment of a duty. Keywords: Brazilian dictatorship; Araguaia case; Human Rights.

1. Ponto de partida: decisão judicial e interpretação Uma decisão judicial é o resultado de um processo de interpretação. A decisão judicial é, por sua vez, o resultado do processamento de certa informação relativa a uma determinada situação fática e normativa.Seguindo Vernengo (1977), uma teoria geral da interpretação poderia ser útil para encontrar um parâmetro comum à problemática interpretativa que se apresenta nas diversas disciplinas dogmáticas – v.gr. a interpretação no direito privado, no direito penal, no direito constitucional, etc.– mas ao examinar esses problemas na literatura jurídica se observa um fator notório: por interpretação, juristas e jusfilósofos entendem coisas muito variadas. Em algumas obras, por exemplo, assinala o autor, encontraríamos o problema da interpretação radicado no conhecimento da lei ou no conhecimento do direito: então, interpretação seria conhecer; de maneira tal que o problema da interpretação jurídica seria de tipo epistemológico ou lógico. Sem embargo, outros autores podem chegar a negar o aspecto cognoscitivo; para eles não se trataria de conhecer a interpretação de uma lei ou do direito, senão que a questão residiria, melhor dizendo, numa eleição decisiva dentro do marco de valorações. Interpretar seria algo assim como captar ou compreender certos valores ou sentidos axiológicos ou políticos que podem se dar em determinadas situações sociais e, por consequência, interpretar é adotar decisões com base em ditas valorações. Agrega Vernengo(1977) que para Kelsen os problemas interpretativos não são problemas relativos à objetividade do conhecimento, tampouco à determinação de valores: o problema da interpretação judicial giraria em torno da questão da radicalização do exercício de um poder autocrático. Se aqueles que exercem a atividade interpretativa são juízes e estes, como órgãos autônomos do Estado, atuam autocráticamente sem que sua atividade resulte controlada pelas partes que se vêm afetadas pela decisão, o problema radica em como justificar socialmente esta modalidade do poder que exercem aqueles funcionários. Para Kelsen (1986:163) interpretar es una operación del espíritu que acompaña al proceso de creación del derecho al pasar de la norma superior a una norma inferior. En el caso normal, el de la interpretación de una ley, se trata de saber cómo, aplicando una norma general a un hecho concreto, el órgano judicial o administrativo obtiene la norma individual que le incumbe establecer.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A partir desses pressupostos, vejamos algumas aporias interpretativas a respeito do “Caso Araguaia” nos próximos tópicos.

2. Relato e apresentação da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Caso Araguaia” No dia 26 de março de 2009, em conformidade com o disposto nos artigos 51 e 61 da Convenção Americana sobre Direito Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – adiante “Comissão”– submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos – Adiante “Corte”- uma demanda contra a República Federativa do Brasil, que se originou na petição apresentada em 7 de agosto de 1995 pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch/Americas em nome 4 de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares . Em 6 de março de 2001, a Comissão emitiu um informe de Admissibilidade n.º 5 33/01 e em 31 de outubro de 2008 aprovou o Informe de Mérito nº. 91/08, nos termos do artigo 50 da Convenção, que continha determinadas recomendações para o 6 Estado brasileiro . Dito informe notificou o Brasil no dia 21 de novembro de 2008 e lhe concedeu um prazo de dois meses para comunicar as ações empreendidas com o propósito de implementar as recomendações da Comissão. Os prazos para apresentar informações sobre o cumprimento das recomendações transcorreu sem que houvesse uma “implementação satisfatória [das mesmas]”. Ante isso, a Comissão decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte, considerando que representava:“uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre leis de anistia em relação às desaparições forçadas e à execução extrajudicial, e à resultante obrigação dos Estados de fazer 4

Posteriormente, se somaram como peticionário a Comissão de Familiares Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Violência do Estado, a senhora AngelaHarkavye o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. 5 No informe de Admissibilidade N.º 33/01, A Comissão declarou admissível o caso n.º 11.552, em relação com a presumida violação dos artigos 4, 8, 12, 13 y 25, em concordância com os artigos 1.1, todos da Convenção Americana, assim como dos artigos I, XXV y XXVI da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (adiante “Declaração Americana”), (expediente de anexos à demanda, apêndice3, tomo III, folha 2322). 6 No Informe da Decisão No. 91/08, a Comissão concluiu que o Estado era responsável pelas violações aos direitos humanos estabelecidos nos artigos I, XXV y XXVI da Declaração Americana e 4, 5 y 7, em conexão com o art. 1.1 da Convenção, em prejuízo das vítimas desaparecidas; nos artigos XVII da Declaração Americana e 3, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo das vítimas desaparecidas; nos artigos I da Declaração Americana e 5, em conexão com o art. 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo dos familiares dos desaparecidos; no artigo 13, em relação com o art. 2 da Convenção Americana, em prejuízo dos familiares dos desaparecidos; nos artigos XVIII da Declaração Americana e 8.1 e 25, em relação com os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana, em prejuízo das vítimas desaparecidas e de seus familiares em virtude da aplicação da Lei de Anistia, e nos artigos XVIII da Declaração Americana e 8.1 e 25, em relação com o artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo das vítimas desaparecidas e de seus familiares, em virtude da ineficácia das ações judiciais não penais interpostas no marco do presente caso.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 conhecer a verdade à sociedade e investigar, processar e sancionar graves violações de direitos humanos”. A Comissão enfatizou o valor histórico do caso e a possibilidade de o Tribunal afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia e das leis sobre segredo de documentos com a Convenção Americana. Segundo indicou a Comissão, a demanda se refere à

responsabilidade [do Estado] na detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil [...] e campesinos da região. [...] resultado de operações do Exército Brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985)”. Assim mesmo, a Comissão fundou sua decisão de submeter o caso ante à Corte porque, “em virtude da Lei Brasileira n.º 6.683/79 […], o Estado não levou a cabo uma investigação penal com o objetivo de julgar e sancionar as pessoas responsáveis da desaparição forçada de 70 vítimas e a execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva […]; porque os recursos judiciais de natureza civil com miras a obter informação sobre os fatos não tem sido efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos e das pessoa executada o acesso à informação sobre a Guerrilha do Araguaia; porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado Brasileiro têm restringido indevidamente o direito de acesso à informação dos familiares; e porque o desaparecimento das vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da Silva, a impunidade de seus responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação, têm afetado negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada.

Concretamente, a Comissão solicitou à Corte que declare que o Estado Brasileiro é responsável pela violação dos direitos estabelecidos no art. 3º (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), art. 4º (direito à vida), art. 5º (direito à integridade pessoal), art. 7º (direito à liberdade pessoal), art. 8º (garantias judiciais), art. 13 (liberdade de pensamento e expressão) e art. 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1. (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da mesma. Finalmente, solicitou à Corte que ordene ao Estado a adoção de determinadas medidas de reparação.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Na primeira quinzena de dezembro de 2010, a Corte condenou o Brasil a reparar os danos causados aos familiares das vítimas da Guerrilha do Araguaia e declarou que o governo deve investigar, processar e punir os responsáveis pelas torturas, desaparecimento e execuções praticadas durante o regime militar. A sentença declara que a Lei de Anistia (Lei n.° 6.683), que “assegurou a impunidade dos torturadores”, carece de efeitos jurídicos e afronta um dever irrecusável do 7 Estado . Pontualmente, a sentença da Corte declarou que o Brasil: a) “implicou sua obrigação adequar seu direito interno"; b) viola as “garantias judiciais e à proteção judicial, em virtude da falta de investigação, juízo e eventual sanção dos responsáveis"; c) que viola o “direito à liberdade de pensamento e de expressão” ao negar às famílias o direito de buscar e receber informação e o direito de conhecer a verdade; d) que viola a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos causandolhes “sofrimento e angústia”, "insegurança, frustração e impotência diante da abstenção das autoridades públicas de investigar os fatos”: "receber os corpos das pessoas desaparecidas é de suma importância para seus familiares, já que lhes permite os sepultar de acordo com suas crenças, assim como concluir o processo de luto vivido ao longo dos anos”. Ademais, a sentença determinou que o Brasil deveria tipificar em sua normativa penal interna o crime de desaparecimento forçado de pessoas e, também, garantir o efetivo juízo e punição dos casos que envolvessem esta conduta, por meio de mecanismos existentes no direito interno. Assim, cabe perguntar se a Corte tem o poder de vincular com sua decisão a justiça brasileira que, anteriormente, se havia expedido declarando a 8 constitucionalidade da lei brasileira n.º 6.683/79 , “Lei do Perdão”, por meio do juízo de controle concentrado de constitucionalidade.Desde já, o argumento para aceitar tal

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Decisão Gomes Lund vs. Brasil, disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acessado em 12 de agosto de 2012. 8 Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. § 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 vinculação é que o Brasil firmou a Convenção e, portanto, sua ordem jurídica interna se encontra submetida ao exame do controle de convencionalidade. Por sua vez, em abril de 2010 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) promoveu uma demanda de constitucionalidade por meio do controle concentrado de constitucionalidade, questionando a Lei de Anistia Brasileira que perdoou os militares que praticaram a tortura em nome do Estado Brasileiro e, ao resolver o caso, o Supremo Tribunal Federal – adiante STF- julgou que referida Lei é compatível com a 9 Constituição Brasileira de 1988, e, portanto, constitucional . A reforma da Constituição Federal Brasileira de 1988, realizada mediante Emenda Constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004, incorporou no ordenamento jurídico brasileiro uma regra de estrutura, sob a introdução do § 3º, do art. 5º que diz: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que resultem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Com a adição do parágrafo citado passou-se à primeiro plano o debate sobre a hierarquia das normas do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que se refere ao tema da possível incompatibilidade do sistema com respeito à prevalência dos direitos humanos na Constituição brasileira, no art. 4 da Constituição, e a tese da dogmática no Brasil sobre a impossibilidade de incluir por meio de reforma constitucional (emenda constitucional) de Direitos Fundamentais com a mesma força que as derivadas da constituinte originária. A posição do STF é, por maioria, que os instrumentos de direito internacional sobre direitos humanos vigentes à data de entrada em vigor da emenda nº 45, têm força de leis infraconstitucionais (embora supralegais), fazendo sua a opinião de que, admitindo-se que os tratados internacionais de direitos humanos podem criar normas de hierarquia constitucional, isso equivaleria a aceitação de que normas que estão fora do sistema constitucional brasileiro têm, sem embargo, a capacidade de modificar e/ou inserir normas à Constituição por meio de fonte externa, incorporando inclusive a imposição da necessidade de verificação de todos os mecanismos de controle de constitucionalidade (ou convencionalidade) aos instrumentos de direitos humanos. Assim, as regras dos direitos internacionais dos direitos humanos do sistema interamericano, em especial os da Convenção não têm na ordem jurídica brasileira interna o caráter constitucional.Aparentemente, existe uma incompatibilidade entre as decisões da Corte e do STF sobre a prevalência dos instrumentos de direitos humanos na ordem jurídica do Brasil, que precisa ser solucionada.Para tal finalidade, cabe perguntar se, acaso, a incompatibilidade entre as decisões ocorre por diferentes utilizações de métodos interpretativos a respeito do princípio da legalidade e da retroatividade de leis em matéria penal. Tarefa para o próximo tópico.

3. Direito Penal: irretroatividade da lei penal incriminadora 9

Decisão n. ADPF 153 disponível http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2644116.

em:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A compreensão da lei penal no tempo emerge como uma das questões primordiais de sua aplicação. O princípio da irretroatividade da lei penal encontra razão de ser numa relação direta com o princípio basilar do direito penal, qual seja: o princípio da legalidade ou da reserva legal (nullum crimem sine lege). Trata-se por este meio de impedir que o legislador considere punível um comportamento quando à data em que foi praticado não o era; ou que agrave a pena posteriormente à realização do fato. Se assim fosse, o próprio agente não poderia orientar sua ação sob o signo da licitude ou da ilicitude, pois sempre haveria a possibilidade de ser punido a posteriori (FARIA COSTA, 2007: 82-5). Sedimentar-se-ia, portanto, uma lógica de indeterminação normativa típica de regimes totalitários. Desta arte, em não se observando o princípio da irretroatividade, conseqüentemente, esbarrar-se-ia, a um só tempo, em flagrante desrespeito aos princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal (nullum crimem sine lege praevia). Estes têm como finalidade coibir, entre outras coisas, a promulgação de leis ad hoc que, não sem precedentes históricos, podem estar contaminadas por comoções sociais (BITENCOURT, 2007: 160-1) e ideologicamente corrompidas. Daí que a proibição de retroatividade sempre goza de atualidade político-jurídica, uma vez que o legislador pode cair na tentação de introduzir previsões de pena sob a ingênua impressão de acalmar um estado de excitação momentâneo com leis feitas na medida do espetáculo social (ROXIN, 1997: 161), renunciando, assim, à ideia de Estado de Direito. Além do mais, leis adhoc mostram-se excessivamente duras com encarceramentos deslocados temporalmente. O fundamento desta proibição não está amparado numa estrita legitimação democrática, posto que se pretende limitar o âmbito de atuação do próprio legislador. Jescheck dirá que o mais decisivo é a idéia de segurança jurídica (JESCHECK, 2002: 147). Podemos deduzir, portanto, que a proibição da retroatividade penal apresenta-se como um imprescindível limite legal, cujo objetivo é o de proteger o indivíduo da vontade da maioria, da ação de um legislador leviano e também do próprio direito penal. No terreno do direito penal brasileiro, o princípio da irretroatividade da lei penal 10 está consagrado, não por acaso, no art. 1º do Código Penal (adiante CP), definindo que: “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. A Constituição da República Federativa do Brasil (adiante CF/88) traz esse mesmo conteúdo em seu art. 5º, inciso XXXIX.No entanto, tratará da excepcionalidade desse princípio no inciso LX, do art. 5º, que assim dispõe: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Isso quer dizer que sempre que for para beneficiar o réu a lei deverá retroagir. Este dispositivo não faz outra coisa senão a corresponder ao art. 2º do CP, que diz: “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixar de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. A impossibilidade de retroatividade da lei penal na Constituição encontra proteção ainda no art. 60 que dispõe: “não será objeto de declaração a proposta de emenda tendente a abolir: IV- os direitos e garantias individuais”. Assim, a 10

A reforma do ano de 1984 alterou toda a parte geral do Código Penal que era de 1940. A Constituição que é de 1988 recepcionou a reforma neste tocante.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 irretroatividade é uma cláusula pétrea e não pode ser abolida nem sequer por reforma constitucional.No mesmo sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (adiante CADH), no seu art.9º, expressa de forma precisa o princípio da irretroatividade da lei penal e da sua exceção em beneficio ao réu: “ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena 11 mais leve, o delinquente será por isso beneficiado”.

Podemos notar que a CADH também prevê a aplicação da retroatividade benéfica ao réu e que tal previsão deve ser respeitada por mais nociva que tenha sido a conduta do agente. Neste sentido, o critério de validade da lei penal no tempo, de forma geral, impõe um limite instransponível ao poder de punir; enquanto que, de forma mais específica, a validade da lei penal retroage quando mais favorável ao réu, incidindo sobre crimes, penas e medidas de segurança (SANTOS, 2007: 47-53). Não obstante, a retroatividade da lei mais benigna pode encontrar respaldo em causas de justificação, de exclusão de culpabilidade, bem como em causa impeditiva da operatividade da pena. Da mesma forma, a benignidade pode emanar de outras circunstâncias, tais como: lapso prescricional mais curto, classe distinta de pena ou novo regime de cumprimento, novas condições para concessão de sursis, etc. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007: 200). No que diz respeito às leis de anistias, a lei que venha futuramente descriminalizar um delito é, por óbvio, considerada como uma lei descriminalizadora, no entanto, anômala, vez que se trata de uma descriminalização temporária. Por se tratar de lei em sentido formal e material, ela só pode ser ditada pelo Congresso Nacional, conforme prevê o art. 21, inciso XVII, da CF/88 (estabelecendo que compete à União conceder anistia). O crucial é que, dentre as várias implicações existentes por ser lei descriminalizadora (por exemplo: a anistia extingue a ação penal; mesmo havendo sentença transitada em julgado, a anistia eliminará a condenação, bem como seus efeitos; o condenado por delito anistiado poderá ter a concessão do sursis; a anistia elimina o delito cometido pelo autor, co-autores e partícipes; a anistia não impossibilita a reparação na esfera cível, etc.), a lei de anistia não pode ser revogada, conforme sustentam Zaffaroni e Pierangeli (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007: 204-5). Para o arrepio de uma perspectiva constitucional, contudo, atualmente, pretendese subverter os princípios mais básicos do que se pode entender por um direito penal fundado no Estado democrático de direito no seu sentido substancial ou constitucional. Como na maneira apresentada por Ferrajoli, a democracia formal submetida tão11

Disponível em: http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 somente à vontade da maioria engendra inumeráveis injustiças, desrespeito a direitos e garantias e abusos de poder. Por conta disso, a democracia substancial é reconhecida enquanto tal somente à medida que impõe limites à vontade da maioria e ao poder punitivo, tornando possível, assim, que direitos e garantias fundamentais da minoria também sejam respeitados (FERRAJOLI, 2008). No ordenamento jurídico brasileiro, o delito de tortura foi tipificado em 1997 e 12 não existe, até hoje, um tipo penal de desaparecimento forçado de pessoas .A partir de agora a presente análise deve se deslocar do campo da adequação normativa, não enquanto produto do poder legislativo, senão no que diz respeitoaos processos de investimentos libidinais que constituem o vínculo com a lei (paterna ou autoridade, psicanaliticamente falando), pois “é que o sujeito em causa não é o da consciência reflexiva, mas o do desejo” (LACAN, 2008: 91). Se nos prendêssemos tão-somente à questão da normatividade talvez o problema fosse insolúvel, pois bastaria dizer: a lei é clara, apenas foi mal compreendida e mal aplicada (SAFATLE, 2008: 83). No próximo tópico, apresentaremos a maneira como o discurso dos direitos humanos se materializa segundo um uso estratégico que produz nada menos do que a violação do seu próprio enunciado e, portanto, do próprio direito defendido a priori. Para tanto, nosso ponto de apoio será o texto Kant com Sade, de Lacan, a fim de relacionar alguns desdobramentos dessa leitura com suas possíveis manifestações no campo penal.

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A Corte Nacional da República Argentina considerou que as Leis de obediência devida e ponto final se opõem à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos porque, na medida em que obstaculiza o esclarecimento e a efetiva sanção de atos contrários aos direitos reconhecidos em ditos tratados internacionais, impedem o cumprimento do dever de garantia a que se comprometeu o Estado Argentino. Por isso, afirmou que as leis eram inconstitucionais, enquanto que os referidos tratados gozam de hierarquia constitucional (art. 75, inc. 22 da Constituição Nacional da República da Argentina). Da mesma sorte, declarou a validez da lei pela qual o Poder Legislativo havia declarado insanavelmente nulas as leis de obediência devida e ponto final, porque seu sentido havia sido, justamente, o de intentar dar cumprimento aos tratados constitucionais em matéria de direito humanos por meio da eliminação de tudo aquilo que pudesse aparecer como um obstáculo para que a justiça argentina investigue devidamente os feitos alcançados por ditas leis. Finalmente, resolveu declarar que nenhum efeito das leis de obediência devida e ponto final e qualquer ato fundado nelas que se oponha ao julgamento e eventual condenação dos responsáveis ou obstaculize as investigações levadas a cabo por crimes de lesa humanidade (voto dos juízes Petracchi, Boggiano, Maqueda, Zaffaroni, Highton de Nolasco, Lorenzetti y argibay – estes últimos seis fizeram seu próprio voto. O juiz Fayt votou em dissidência. O magistrado Belluscio se escusou e não votou). O juiz Fayt considerou que não existia nenhum argumento fundado no direito internacional que justificasse que a Corte mudara o critério estabelecido na decisão “Camps” e resolveu agora contra a constitucionalidade das leis de obediência devida e ponto final. Afirmou que a aplicação retroativa da “Convenção sore a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa Humanidade” e da “Convenção interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas” resultavam inaplicáveis no direito argentino porque o art. 27 da Constituição Nacional estabelece que os tratados devem se ajustar e guardar conformidade com os princípios de direito publico estabelecidos na Constituição, neste caso, a proibição da aplicação retroativa da lei penal que estabelece o princípio da legalidade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 4. Direitos Humanos e discurso punitivo: a inversão do discurso As democracias atuais partem do regime de direitos humanos universalmente válidos como um importante fundamento sociopolítico, como limite à violência e, normalmente, apontam como seus próprios parâmetros as declarações de direitos humanos (HINKELAMMERT, 2001). Neste contexto, os direitos humanos tornam-se normas legais (leia-se: direitos fundamentais) cuja aplicação se dá por parte do poder do Estado. Paradoxalmente, contudo, haverá situações em que sua vigência entrará em certa dimensão anuladora de seus efeitos, ou mesmo suspensão (epoché), sob a finalidade de que essas mesmas normas continuem a ser enunciadas e não descuidem da possibilidade de conferir fundamento a determinados fins decisórios. Seguramente, esse discurso não é determinante em estabelecer uma relação entre o sujeito do enunciado e a própria enunciação, o que permite romper com essa imbricação no mais íntimo da dualidade de uma razão cínica, pondo à prova toda uma construção pretensamente segura e racional. O discurso dos direitos humanos encontra paralelo à maneira da combinação de Kant com Sade (LACAN, 1998) cuja lei moral pura e a priorido primeiro não estava livre de qualquer perversão do Marquês (SADE, 2009) - é só lembrar que Sade fundamentava sua doutrina nos direitos do homem-, entronizando hoje a lógica do excesso punitivo e torna ainda mais convicta a consciência geral repressora. A Lei pura a priori, de um lado, reveste-se da conhecida formalidade que não se permite viciada por nenhum objeto fenomênico patológico. O discurso dos direitos humanos, de outro, considera a priori todo e qualquer humanodigno de ser respeitado nos seus direitos universais, em qualquer lugar e momento que seja. Eis que este é o Outro (lacaniano) a quem nos remetemos e quem nos solicita a ordem do contexto social 13 contemporâneo . Assim, encontramo-nos num processo em que se anulam os direitos humanos daquele que violou os direitos humanos ou: promove-se a violação supostamente legítima dos direitos humanos em nome dos direitos humanos. Maneira esta, como bem destacou Franz Hinkelammert, que “El Occidente conquistó el mundo, destruyó culturas y civilizaciones, cometió genocidios nunca vistos, sin embargo todo eso lo hizo para salvar los derechos humanos. Por eso, la sangre derramada por el Occidente no deja manchas” (HINKELAMMERT, 2000). Neste contexto, o mandamento não é mais: “não matarás!”, sob pena de se sofrer uma sanção. Agora se enuncia: “não!... Matarás!” (ZIZEK, 2006: 37), sob pena de o inimigo restar impune. Tal inversão se dá por um fenômeno geral que atravessa as sociedades atuais, chamado cinismo moderno ou razão cínica, cuja conceitualização pode ser a seguinte: sob uma consciência duplicada, o cínico é aquele que sabe o que faz, mesmo assim, continua a fazê-lo (SLOTERDIJK, 2007). 14 Por exemplo: o legislador sabe que o Brasil conta com mais de 700 mil presos e a terceira maior população carcerária do mundo (perdendo para Estados Unidos e Rússia), mesmo assim, para atender ao clamor público e os interesses político13

Falamos aqui de lei em sentido amplo, podendo ser um valor universal, um imperativo moral (categórico), um direito compreendido socialmente ou até mesmo a lei enquanto carta política. 14 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 ideológicos, continua a criar e tornar mais severas leis penais. Desta forma, cria-se um cenário caótico. A repressão se torna a regra, contudo realizada em nome da validade do regime democrático, cuja base se encontranos direitos humanos. Chegamos a uma situação em que sentidos contraditórios se conciliam, evidenciando um cinismo ideológico jamais visto. Em razão disso, identifica-se um cenário em que se engendra uma polarização social do tipo: amigo-inimigo. E quanto mais se tenta inserir na consciência social a ideia de conquista de direitos, mais tem de haver formas de se lutar contra o inimigo opositor, este é a representação da produção do mau e que não permite à sociedade realizar o gozo completo no processo de pacificação. Significa que, quanto mais se demoniza o inimigo, mais se externaliza a vontade de violar os direitos humanos. Ou seja, ironicamente, fala-se em sociedades democráticas quando se está, em realidade, diante de estruturas normativas que apresentam traços (ou até mandamentos) de exceção, de totalitarismo. É dizer: “ennombre de la democracia se suspende ahorala democracia” (HINKELAMMERT, 2001). E mesmo assim, a ordem continua vigente. A lógica da lei continua sendo respeitada. Nada diferente do cenário 15 de Sade, pois, apesar de todas as suas perversidades, a mãe permanece inviolável (LACAN, 1998). O que Kant com Sade vem a demonstrar então é que a lei que impõe o estrito cumprimento de um dever é também a lei que permite o gozo subversivo. Do que foi exposto, não nos parece evidente que o ideário dos direitos humanos é demolido pouco a pouco no entrecruzamentoda experiência social e da lei incondicional? O libelo “franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos” (LACAN,1998: 802-3) não seria a própria injunção de se estabelecer de vez e por completo a democracia, no entanto, ainda limitada por algo que deve ser eliminado (o inimigo, o criminoso)? Se Sade é o lado recalcado de Kant, os resultados perpetrados pelo poder punitivo não representam o lado recalcado (obscuro) dos direitos humanos e que vêm à tona como real traumático?Em suma, não seria a lei mesma a condição própria e referência incitadora da trangressão precisamente por seu excesso residual com a investidura libidinal que porta em si, como traz o próprio sentido psicanalítico, 16 promovendo a violação estrita do que ela mesma proibe ? Aos critérios dessa lógica, somos sempre culpados diante da lei, sem sequer saber de quê ou quando, como explicou Deleuze (2009) no seu Sacher-Masoch. E nessa ordem em que a lei é revogada e restabelecida sucessivas vezes, estamos precisamente diante de preceitos totalitários a partir dos quais, por não haver uma orientação segura, o excesso subversivo se inscreve como produto inafastável da hipérbole do supereu. Daí que a fórmula ideológica é a emergência da exceção dentro da própria ordem em estado de normalidade (AGAMBEN, 2004). Posto isso, parece haver na ideologia do presente certa tentativa de encontrar o objeto puro da lei no culpável por excelência- quiça abstrato, numa figura fantasmática incastrável (ZIZEK, 2010: 264)-, na pessoa de todo acusado – como se 15

Trata-se da passagem em que a vítima, em A Filosofia na Alcova (SADE: 2009), é costurada por seus carrascos. 16 E mais: talvez não seja justamente a transgressão da lei um dever, tal como um critério, que nos faz (demasiado) humanos? Ou: a lei, ao invés de proibir, não nos manda justamente avançar?

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 todo singular correspondesse ao inimigo universal construído imaginariamente-, nem que seja às custas da colonização do tempo (possado). Nesta medida, dominando todos os meios, agora, o poder estatal pretende num oportunismo radical apropriar-se do passado, estendendo mais ainda o alcance do poder punitivo, assim como na sociedade distópica de 1984 (ORWELL, 2009) em que o passado sucessivas vezes era reinventado, anulado e pervertido. Veja-se queo próprio excesso como negação simbólica é o que estabelece o reconhecimento do vínculo social. Isso porque, não são os valores sociais positivos que, em certo sentido, mantêm a (incoerente) sociedade coerente, ao contrário do que leva a entender a ideologia dos direitos humanos. Os resíduos simbolizados, o que ainda é real às margens das palavras, é que fazem da sociedade um todo unitário, ou seja, a sua própria desidentificação (ZIZEK, 2011: 205). Numa sociedade em que não se encontra mais sentido de reconhecimento em sua totalidade, a maneira que se descobriu de fugir do desespero e da angústia foi encontrar consenso na repugnância do seu lado obscuro, isto é, na própria inconsistência social que se reflete na projeção do outro abjeto: o criminoso. Assim, notamos que este é mais um reflexo do que a psicanálise denomina desintegração da figura paterna. Por se desfazer tal figura limitadora, cada vez mais normas de proibição simbólica são substituídas por ideais imaginários (de democracia, de êxito social, etc.), gerando com isso o reaparecimento de figuras superegóicas ferozes. Desta forma, tudo se percebe como uma ameaça a esse precário equilíbrio imaginário. Não é por outro motivo que se universalizou a lógica da vítima ressentida. Tudo se torna ameaça em potencial. Qualquer reivindicação política tem de lançar mão do status específico de vítima a fim de se assegurar a efetiva justiça social. Ocorre que normalmente esse tipo de justiça requer um grande aparato repressor (jurídico e policial principalmente), punindo severamente aquele que violou tais direitos. Logicamente, o que isso desencadeia é uma irrenunciável necessidade de violência Real no corpo. Daí que alguém se torna herói só à medida que passa por um enfrentamento traumático com o Real. Essa é a ingênua ilusão de se achar que, com tal encontro, realizou-se a promessa de plenitude, como se a democracia efetiva não fosse mais uma promessa, mas algo que está aí realmente (ZIZEK, 2011: 144, 226, 294). No âmbito da discussão interna do Direito, fala-se em proibição da proteção deficiente de direitos fundamentais por omissão do poder estatal. Diz-se que, quando o Estado, na figura do juiz de execuções penais, não cumpre com o dever de segurança da sociedade, especialmente não encarcerando os “perigosos” ou dispensando laudos psicológicos - LênioStreck (2005: 174) afirma: “O Estado não é o único inimigo!”-, ocorre violação da norma constitucional no que toca ao dever de segurança e, portanto, viola os direitos humanos. Logo, o direito penal neste cenário seria o “braço armado” da Constituição. Ora, não espanta que o autor mencionado tenha comparado crimes perpetrados por regimes ditatoriais com a figura abstrata e, presente no simulacro do imaginário, chamada costumeiramente de “bandido” (a propósito, um significante privilegiado no manejo do cinismo midiático). Aqui podemos desvendar a estratégia punitiva. Ao vincular a conduta do autor de um delito a um acontecimento histórico tal como a ditadura, toda responsabilidade

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 lhe é atribuída em dobro (HINKELAMMERT, 2005: 174), de modo que ele é culpado pelo crime do qual é acusado e pelos acontecimentos da ditadura militar. Assim, para se evitar que esse mal se repita, em nome dos direitos humanos, o incremento da repressão se autojustificaria. No final das contas o que acontece é que “frente ao inimigo de todo humano se suspende toda humanidade (HINKELAMMERT, 2001). Por isso que, quando se bombardeia o sistema atual com demandas de direitos humanos que, por óbvio, não se podem cumprir, joga-se com um esquema histérico de provocações, apelando-se ao Amo (Constituição, Poder Judiciário eEstado) para que ele cumpra justo aquilo de que é incapaz, tornando evidente com essa exigência a sua impotência. O problema nisso tudo não está apenas em não se satisfazer essas demandas, senão em se saber que elas não se cumprirão e contar com o fato de que elas não se cumpram. Assim, sabendo-se que as coisas não vão mudar efetivamente, o status quo restará intacto (ZIZEK, 2006: 63-4). Veja-se, por conseguinte, que o enunciado dos direitos humanos não pode ser entendido como um significante privilegiado, (força de lei) que vale por si só. É preciso entender que a sua legitimidade não paira no fato de simplesmente pronunciá-lo, mas, sobretudo, no efeito que produzirá sobre todos e sobre a vida daquele que sofrerá suas implicações (HINKELAMMERT, 2005: 71). Seguindo as palavras de Derrida, não podemos nos iludir com o desejo de encontrar a justiça na própria lei (DERRIDA, 2010). Nela não encontraremos nada. A justiça é substancialmente inexistente na vacuidade legal, leia-se: na própria enunciação vazia dos direitos humanos. Não é de se estranhar que o próprio Sade idealizava um Estado libertino via valores universais. Estamos, portanto, num campo atravessado em toda a sua extensão pela ideologia cínica da repressão penal. Em havendo perseguição ou não daqueles que cometeram os crimes no regime militar, o discurso punitivista já avança inevitavelmente. Afinal, o movimento de perseguição aos responsáveis desencadeia nada mais que o agigantamento e a intensificação do discurso punitivo, cimentando-o na consciência político-social. Não sem correspondência com ambiguidade brasileira, aqueles que deverão saldar substancialmente as dívidas pendentes do regime autoritário não serão os homens do passado, masos do presente: os clientes preferenciais do sistema penal. E, enquanto nosso sentido de direitos humanos continuar a se pautar por uma farsa de garanti-lo à custa da negação dos direitos humanos, tudo não passará de uma artimanha cínica. O mesmo se refere ao fato de se achar que a verdadeira justiça só será encontrada com o castigo penal. Ademais, as violações de direitos do passado provieram da mesma fonte que hoje se procura realizar todo tipo de perseguições, a diferença é que esse poder trocou de mãos. E em se tratando de poder estatal, como já alertou Ferrajoli, o abuso é algo próprio da sua genética. Por fim, é preciso destacar que estamos longe de defender aqueles que cometeram atrocidades neste período de completa exceção. O Brasil necessita 17 realizar um balanço histórico , acertando contas com seu passado de dor e sangue, 17

Da mesma forma que a memória não pode ser monopolizada pelo Estado, sob pena de se reproduzir a violência do passado numa sempre opressora tentativa de se impor a “história oficial”, que não diz respeito à narrativa daqueles que são, de fato, os oprimidos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 porém, entendemos que em uma democracia que só se realiza com a satisfação de pulsões vindicativas, com a punição e o encarceramento, não anuncia outra coisa senão a emergência de uma sociedade sádica, evidentemente, distante do próprio ideal de direitos humanos. Não levar isso em conta é participar do cinismo ideológico que domina a questão.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO, CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO PENAL Roger Raupp Rios e Lawrence Estivalet de Mello

RESUMO Este artigo objetiva analisar a proposta de criminalização da homofobia de modo crítico, mediante o exame dos argumentos abolicionistas e da necessidade de medidas antidiscriminatórias. Em um primeiro momento, apresenta a crítica abolicionista à criminalização da homofobia e propõe a defesa de uma política criminal alternativa. A seguir, arrola as consequências da não-criminalização na perspectiva do direito da antidiscriminação. Conclui pela necessidade de criminalização da homofobia, em respeito ao princípio constitucional da liberdade e igualdade sexual, bem como ao avanço da consciência social a respeito da discriminação homofóbica. Palavras-chave: homofobia, criminalização, antidiscriminação.

INTRODUÇÃO

Esta reflexão propõe uma abordagem jurídica crítica em face de um dos debates mais acirrados na sociedade brasileira contemporânea: a criminalização da homofobia. Crítica, ao menos, em duas frentes: tanto diante dos argumentos nutridos no abolicionismo penal, quanto frente à omissão legislativa decorrente da resistência parlamentar a medidas penais que enfrentem a violência homofóbica. Para tanto, são apresentadas crítica abolicionista e, a seguir, a política criminal alternativa e a criminologia queer (parte 1). Considerada a necessidade de enfrentamento da homofobia, procede-se à análise da criminalização da homofobia no horizonte do direito da antidiscriminação (parte 2).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 1. CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA contextualização e resposta antidiscriminatória

E

ABOLICIONISMO

PENAL:

Esta parte examina a crítica do abolicionismo penal à criminalização da homofobia, bem como suas limitações. A análise se subdivide em duas seções: a crítica abolicionista (1.1), a política criminal alternativa e a criminologia queer (1.2).

1.1.

A crítica abolicionista à criminalização da homofobia

Dois textos são tomados como paradigma da crítica abolicionista à criminalização da homofobia. Um primeiro, mais geral, é o clássico “A esquerda punitiva”, de Maria Lúcia Karam, de 1996. O segundo, recente e específico, é da lavra de Aline Passos Santana, denominado “Criminalização das opressões: a que estamos sendo levados a servir?”, lançado em janeiro de 2014. Karam afirma que o interesse da esquerda pela repressão é datado, com origem em meados da década de 1970. Localiza esse interesse no movimento feminista, que teria como objetivo “a busca de punições exemplares de atos violentos contra mulheres”, em “febre repressora” que a seguir se estenderia ao movimento ecológico . Descreve o fundamento da criminalização como busca de “identificação exemplar” dos criminosos, para que “emprestem sua imagem à personificação da figura do mau, do inimigo, do perigoso”. A punição exemplar esconderia os perigos e males que sustentam a estrutura de dominação e poder . Afirma que a lógica do sistema penal é a da pena pela seletividade. Individualiza-se e demoniza-se o criminoso, como característica inerente à chamada “reação punitiva”. Gera-se, assim, “satisfação e alívio”, com dispensa de investigação das razões ao fundo das “situações negativas”. Tornam-se invisíveis as fontes geradoras da criminalidade. Em seu lugar, toma assento a superficialidade da resolução falsa . O motivo principal da crítica à “esquerda punitiva” é seu “abandono da utopia da transformação social, cedendo lugar a desejos mais imediatos”. Por um lado, afirma-se o objetivo de reprodução do senso comum, para conquista de cargos políticos. Por outro, sugere-se “processo de envelhecimento e estabilização material”, que resultaria em ideais de “paz” e “tranquilidade” . Como exemplo dessa postura, vale-se do discurso da guerra às drogas em favelas do Rio de Janeiro. Em reprodução da ideologia repressora, setores da esquerda defenderiam maior intervenção do sistema penal. Para tanto, trabalhariam com o “fantasma da criminalidade organizada”, que seria o responsável pela desorganização de movimentos populares. Desse modo, forjar-se-ia uma espécie de complacência com a “violenta educação das classes subalternizadas para a submissão”, que incluiria revistas pessoais até mesmo contra crianças .

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Trata-se, segundo Karam,

de quem não hesita em dar sua adesão a uma pretendida ‘paz’ classista e excludente, de quem, priorizando o combate à criminalidade, parece ter definitivamente relegado a segundo plano as medidas mais profundas e de longo prazo que, aptas a criar melhores condições de vida e maiores oportunidades sociais para as classes subalternizadas, simultaneamente contribuam para o rompimento com os mecanismos excludente (tão eficazmente reproduzidos pelo sistema penal) e conduzam a uma – não importa quão distante – transformação social (...) .

Para a autora, “a ideia de pena, de afastamento do convívio social, de punição, baseia-se no maniqueísmo simplista, que divide as pessoas entre boas e más” . A defesa da criminalização, desse modo, concerne à adesão à ideologia da repressão, da lei e da ordem. Compatibiliza-se com um tempo de “medo coletivo difuso”, “isolamento individual”, bem como “decepção enfraquecedora das utopias” e “necessidade de criação de novos inimigos” . Defende, em contraposição, uma “síntese que incorpore os ideais libertários, asseguradores da livre expressão e realização dos direitos da personalidade de cada indivíduo, (...) [com] indispensável garantia da liberdade individual e do direito à diferença” . Aline Passos, em texto mais recente, especifica a crítica abolicionista à criminalização das opressões, estas entendidas como racismo, machismo e homofobia. Sistematiza seis principais críticas à criminalização. A primeira crítica se refere à persistência das condutas, mesmo após a criminalização. Revela, portanto, a falsidade de um suposto caráter preventivo. O segundo motivo é o caráter de classe do sistema penal. Afirma-se que apenas “os de baixo” são atingidos pela criminalização de condutas; com nova criminalização, portanto, “é exatamente isso que ele [o sistema penal] continuará fazendo” . O terceiro argumento informa que há opressões no interior das prisões, o que significa que “empurrar para dentro delas os opressores é autorizar que eles se multipliquem e se espalhem” . A quarta crítica caracteriza criminalizações como “abrir mão da juventude pobre”. Relaciona crime com ato infracional e questiona o caráter “pedagógico” de internações em instituições destinadas ao aprisionamento de jovens em conflito com a lei. O quinto argumento afirma insensibilidade de umas opressões em relação a outras. Detalha-se que negros podem ser machistas e homofóbicos, gays podem ser machistas e racistas e mulheres podem ser homofóbicas e racistas. Por esse motivo, criminalizar opressões se caracteriza como um “fogo cruzado”, que pode levar à hierarquização entre as opressões, em “problemática reciprocidade”, que atesta a “sofisticação da estratégia punitiva”. Por fim, o sexto motivo contrário à criminalização das opressões é o de que criminalizar cria “empregos úteis”. Citam-se “secretarias especiais, ONGs,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 especialistas, parlamentares, institutos de pesquisa, departamentos de polícia especializados”, que forjariam “não só o criminoso, mas também, o policial e o carceireiro, mais ou menos intelectualizado, fardado ou não, cuja existência material depende da constante renovação dos processos de criminalização e aprisionamento” . Ambas as autoras, portanto, sustentam o caráter ideológico do combate à discriminação por meio da criminalização. Caracterizam a posição contrária à delas como classista, adaptada à paz e à ordem, rebaixada ao senso comum, insuficiente para o combate à discriminação, bem como passível de efeito reverso, isto é, de aumentar a discriminação. Sugerem, inclusive, má-fé por parte de quem defende a criminalização, com suposto interesse em cargos políticos, empregos e afins. São, portanto, duas ordens de argumentos. A primeira, a respeito do caráter de classe do sistema penal e sua impermeabilidade a apropriações contra-hegemônicas. A segunda, concernente à insuficiência da referida tática para o combate à discriminação.

1.2.

A política criminal alternativa e a criminologia queer

Há alternativas de pensamento à crítica desferida à criminalização da homofobia na seção anterior, como a possibilidade de uma política criminal das classes subalternas e a ideia de uma criminologia queer. Exemplos disso são as reflexões de Alessandro Baratta e a defesa de Salo de Carvalho sobre a possibilidade de uma criminologia queer. Ambos defendem a permeabilidade de contradições no caráter de classe do sistema penal, como se verá. Baratta, em “Criminologia crítica e crítica do direito penal”, sustenta a possibilidade de uma política criminal alternativa, baseada em “quatro indicações ‘estratégicas’ para uma ‘política criminal’ das classes subalternas”. São elas (a) a distinção entre comportamentos socialmente negativos que se encontram nas classes subalternas e aqueles que se encontram nas classes dominantes, (b) o uso alternativo do direito penal em favor dos interesses coletivos e uma obra radical e corajosa de despenalização, (c) o objetivo da abolição da instituição carcerária, com as múltiplas e diferenciadas etapas de aproximação deste objetivo; e (d) “uma batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade” . A primeira indicação estratégica concerne à função do direito penal na estrutura da sociedade capitalista. Os comportamentos socialmente negativos das classes subalternas são "expressões específicas das contradições que caracterizam a dinâmica das relações de produção e de distribuição, (...) na maioria dos casos uma resposta individual e politicamente inadequada àquelas contradições” . Os das classes dominantes, em outro sentido, referem-se a “processos legais e ilegais da acumulação e da circulação do capital e entre estes processos e a esfera política” . Diferencia-se programaticamente, assim, política penal de política criminal. Esta é

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 uma “política de transformação social e institucional”; aquela é uma resposta circunscrita ao âmbito do “exercício da função punitiva do Estado” . A adoção da perspectiva da política criminal, portanto,

Não pode ser uma política de ‘substitutivos penais’, que permaneçam limitados a uma perspectiva vagamente reformista e humanitária, mas uma política de grandes reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanas (...) .

A segunda indicação estratégica se refere à crítica do direito penal como direito desigual, sob dois perfis. Primeiro, diz respeito “à ampliação e ao reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e da comunidade: a saúde, a segurança no trabalho, a integridade ecológica etc.” . Configura-se, assim, um uso alternativo do direito penal, com necessário cuidado para não-reprodução da ideologia da defesa social. O segundo perfil, por outro lado, tem como objetivo uma “obra radical e corajosa de despenalização” . Busca-se a contração ao máximo do sistema punitivo, com alívio da pressão negativa sobre as classes subalternas. Significa, também, a busca por meios alternativos de resolução de conflitos, com a substituição das sanções penais por formas de controle legal não-estigmatizantes. Dentre estas, são citadas sanções administrativas ou civis, entre outras . A terceira indicação estratégica afirma o objetivo da abolição da instituição carcerária, com as múltiplas e diferenciadas etapas de aproximação deste objetivo. Ou seja, busca-se dar concretude à defesa da abolição, por meio de táticas adequadas para este fim. Entre elas, encontram-se o “alargamento do sistema de medidas alternativas”, a “ampliação das formas de suspensão condicional da pena e de liberdade condicional”, a “reavaliação do trabalho carcerário” e, em especial, “a abertura do cárcere para a sociedade, também mediante a colaboração das entidades locais e, mais ainda, mediante a cooperação dos presos e das suas associações com as organizações do movimento operário” . O objetivo é de constituir uma alternativa ao “mito burguês da reeducação e da reinserção do condenado” . A quarta indicação estratégica, enfim, defende a necessidade de “máxima consideração na função da opinião pública e dos processos ideológicos e psicológicos que nela se desenvolvem” . Opinião pública, para o autor, possui três sentidos: primeiro, o de construção de estereótipos de criminalidade; segundo, o de portar e legitimar a ideologia dominante; e terceiro, o de projetar “culpa” e “mal” a certas atitudes, em cumprimento às “funções simbólicas da pena” . Encontra importância, desse modo, “uma batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade” . Para reverter as relações de hegemonia cultural, é necessário um “decidido trabalho de crítica ideológica, de produção científica, de informação” .

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Somente assim a crítica pode atingir um patamar de “discussão de massa” e fugir à destinação de permanência como “utopia de intelectuais iluministas” . Salo de Carvalho, por outro lado, fundamenta a constituição de uma criminologia queer, cujo objeto é a violência homofóbica . Identifica duas pautas do movimento LGBT no plano da política-criminal. Uma primeira é negativa, referente à limitação da intervenção penal nas esferas do direito e da psiquiatria. Uma segunda, positiva, direcionada à criminalização da violência homofóbica . A pauta negativa se fundamenta na “repressão histórica da diversidade sexual”. Apresenta-se a necessidade de descriminalização de atos homossexuais, ainda presente em 40% dos países membros da ONU e no Código Penal Militar brasileiro . Outrossim, sem ignorar avanços no processo de despatologização das sexualidades e identidades de gênero não-hegemônicas, ressalta-se que a transexualidade permanece tipificada como transtorno de identidade de gênero . Acerca da pauta positiva, Carvalho releva aspectos penais e criminológicos. Do ponto de vista penal, o autor considera a demanda pela criminalização legítima, mas equivocada a estratégia político-criminal eleita (PL 122/2006) . Defende que a mera especificação de condutas já criminalizadas não produz aumento de repressão penal . Sustenta presença de discriminação na tutela insuficiente contra a violência homofóbica, em comparação à tutela contra a violência racista e machista . Ressalva, no entanto, que a mera especificação da violência homofóbica (nomen juris) não resolve o problema. É necessário debater “os instrumentos legais e os efeitos jurídicopenais decorrentes desta diferenciação” . Da escolha dos instrumentos legais decorre sua conclusão de equívoco na estratégia utilizada pelo movimento LGBT . Do ponto de vista criminológico, refutam-se as posições que violam a Lei de Hume, isto é, retiram uma norma (plano do dever ser) de uma situação concreta (plano do ser). Os dados sobre o funcionamento do sistema prisional, no seu entendimento, não podem levar a uma conclusão normativa, senão em reprodução de argumentos típicos do positivismo científico . Critica o idealismo ingênuo, segundo o qual uma criminalização possa, por si mesma, diminuir violências. Em contraposição, sustenta que a possibilidade de redução de violências “implica em um processo complexo de análise de cada situação-problema em seu local de emergência”, na qual “a lei penal é apenas uma – e provavelmente a menos eficaz e mais falha – das estratégias” . Destaca, entretanto, que a criminalização da homofobia pode possuir forte efeito simbólico, com capacidade de “desestabilizar a cultura homofóbica enraizada no tecido social” . Neste aspecto, lembra o processo desencadeado pela Lei Maria da Penha. Com base em dados IBOPE/THEMIS, sublinha que:

o estatuto provocou importantes mudanças culturais (IBOPE/THEMIS, 2008), inclusive pelas reações que o movimento de mulheres e a própria lei sofreram. Pesquisas evidenciam que o nível de consciência do problema da violência doméstica na sociedade brasileira ganhou densidade, sofisticação (IBOPE/THEMIS, 2008).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Sobretudo na forma pela qual os meios de comunicação e de entretenimento passaram a noticiar os atos de violência contra mulheres. E inegavelmente a Lei Maria da Penha desempenhou um papel estratégico central nesta mudança cultural .

Embora os números de violência doméstica persistam, foram realizados avanços significativos. Em especial, no campo da consciência social das vítimas, que passam a denunciar os atos de violência, com algum acolhimento pelos serviços de atendimento especializados. Abre-se terreno, desse modo, “para que se possa mapear o problema e atuar positivamente, através de políticas públicas não punitivas, para a sua redução” . Nessa senda, torna-se inequívoca a possibilidade de construção de uma política criminal alternativa para o combate à discriminação homofóbica. O reconhecimento do caráter de classe do sistema penal não obstaculiza essas políticas. Em outro sentido, caracteriza suas limitações e sua função no interior de uma determinada totalidade social. Em cumprimento às quatro táticas indicadas por Baratta, não é incoerente que as classes subalternas: (a) compreendam que a discriminação homofóbica colabora para “processos legais e ilegais de acumulação do capital”, ao precarizar as condições vida de parte da população, com a costumeira retirada da proteção familiar e diferentes dispositivos que a tornam força de trabalho mais vulnerável a todo tipo ataque e retirada de direitos;

os de os de

(b) caracterizem como seus valores comunitários, que merecem a “tutela penal essencial”, o reajuste histórico de instituições e relações homofóbicas, na defesa de valores como igualdade e dignidade da pessoa humana; (c) identifiquem que, no interior das “diferentes etapas” da abolição do sistema penal, a criminalização da homofobia constitui um primeiro passo, que viabiliza a construção de políticas públicas e o supramencionado reajuste histórico da homofobia institucional, para sua posterior despenalização. Destaca-se, neste ponto, que sem esse passo permanece dificultada a construção de políticas públicas e, portanto, o combate à discriminação; e (d) utilizem o sistema penal para combater e reverter a opinião pública hoje predominante, que não apenas naturaliza, mas até mesmo difunde a ideologia homofóbica, em processo similar ao ocorrido em torno da criminalização do racismo e da violência doméstica, conforme já citado.

A refutação sem ressalvas da possibilidade de adoção crítica da estratégia de criminalização alimenta uma série de simplismos e homofobias. Destacam-se cinco deles abaixo. Primeiro, subestima e invisibiliza a capacidade crítica do movimento LGBT, classificando-o como classista, elitista, punitivista, sem propor junto a ele políticas de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 combate à homofobia, isolando-o mesmo no interior do campo crítico. Segundo, distorce um movimento de defesa (contra a violência homofóbica), mistificando-o como um movimento de ataque (contra as classes subalternas, de que a população LGBT faz parte). Terceiro, afirma uma adesão à “paz e à ordem”, para uma população cuja realidade cotidiana é em tudo o contrário, de insegurança, conflito, medo, e invisibilidade. Quarto, sugere um “rebaixamento ao senso comum punitivista”, ignorando que a disputa presente no senso comum é entre homofóbicos e nãohomofóbicos, e não entre punir ou não a homofobia. Quinto, por fim, sustenta que a criminalização não resolve a situação, reduzindo a política contra a discriminação ao debate do direito penal. É sobre este último ponto que segue a próximo parte. Nela, busca-se inverter o presente debate. Isto é: analisa-se a criminalização sob o ponto de vista do direito antidiscriminatório, e não o contrário.

2. A NÃO-CRIMINALIZAÇÃO ANTIDISCRIMINAÇÃO

DA

HOMOFOBIA

E

O

DIREITO

DA

A homofobia é uma modalidade de discriminação reprovada constitucionalmente, cuja persistência e enfrentamento requerem o cumprimento de deveres constitucionais de proteção, dada a intensidade da violação a direitos fundamentais que dela resulta. De modo particular, a homofobia qualifica-se, juridicamente, como ofensa ao princípio da igualdade, compreendido como mandamento antidiscriminatório. Com efeito, no âmbito do direito da antidiscriminação, entendido como conjunto de conteúdos e institutos jurídicos relativos ao princípio da igualdade enquanto proibição de discriminação e como mandamento de promoção e respeito da diversidade, pode-se indagar sobre a omissão na criminalização da homofobia.

2.1. Conceito jurídico de discriminação e a não-criminalização da homofobia

O termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, originadas do preconceito, capazes de produzir violação de direitos contra indivíduos e grupos estigmatizados. A abordagem da discriminação por meio de uma perspectiva jurídica não implica desconhecer ou menosprezar o debate sociológico sobre o tema. Como indica Marshall (1998), os estudos sociológicos sobre discriminação, inicialmente vinculados à investigação do etnocentrismo, atualmente se concentram em padrões de dominação e opressão, como expressões de poder e privilégio.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Nesta perspectiva, o conceito de discriminação aponta para a reprovação jurídica das violações ao princípio isonômico , atentando para os prejuízos experimentados pelos destinatários de tratamentos desiguais. A discriminação aqui é visualizada através de uma perspectiva mais substantiva que formal : importa enfrentar a instituição de tratamentos desiguais prejudiciais e injustos. Como demostra Fredman , uma abordagem meramente formal poderia levar à rejeição de um pleito de proteção jurídica (fundado na proibição de discriminação sexual) diante de um empregador que praticasse assédio sexual contra homens e mulheres simultaneamente. Neste contexto, afirma-se o conceito de discriminação desenvolvido no direito internacional dos direitos humanos, cujos termos podem ser encontrados na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher . Segundo estes dizeres, discriminação é “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública”. Colocado este conceito, importa agora perguntar-se sobre as consequências, para o direito da antidiscriminação, da não-criminalização da homofobia. Antes de demonstrar tais repercussões jurídicas, é preciso salientar as formas de violência pelas quais a homofobia se manifesta.

2.2. A discriminação homofóbica: contrariedade ao direito e formas de violência

Dado que a indivíduos e grupos distantes dos padrões heterossexistas é destinado um tratamento diverso daquele experimentado por heterossexuais ajustados a tais parâmetros, a “homofobia” implica, sem sombra de dúvida, discriminação, uma vez que envolve distinção, exclusão ou restrição prejudicial ao reconhecimento, ao gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. O pressuposto para a qualificação jurídica de uma relação social como discriminatória é a contrariedade ao direito. Com efeito, não haverá discriminação se a diferenciação de tratamento for considerada conforme o direito, como se dá, por exemplo, diante da proteção jurídica à mulher no mercado de trabalho. Sendo assim, a qualificação jurídica da homofobia como expressão discriminatória exige que se destaquem, ao menos, dois aspectos: (1) a contrariedade ao direito dos tratamentos homofóbicos e (2) as modalidades de violência pelas quais a discriminação homofóbica se manifesta. Quanto ao primeiro tópico, revela-se necessário salientar a injustiça dos tratamentos discriminatórios homofóbicos . De fato, persistem posturas que pretendem legitimar tais discriminações, diversamente do que ocorre, em larga medida, diante do anti-semitismo, do racismo ou do sexismo. Com efeito, a teoria e a jurisprudência dos direitos humanos e dos direitos fundamentais afirmam, de modo

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 cada vez mais claro e firme, a ilicitude da discriminação por orientação sexual. Tanto tribunais internacionais de direitos humanos, quanto tribunais constitucionais nacionais (inclusive o fez, de forma unânime, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento Fundamental n. 132), afirmam como ofensa a diversos direitos humanos e fundamentais a discriminação dirigida contra identidades, práticas e expressões divorciadas do heterossexismo. Nestes casos, direitos básicos como a privacidade, a liberdade individual, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade humana, a igualdade e a saúde são concretizados e juridicamente protegidos em demandas envolvendo homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais . A homofobia viola de modo intenso e permanente uma série de direitos básicos, reconhecidos tanto pelo direito internacional dos direitos humanos, quanto pelo direito constitucional. Ao lesionar uma gama tão ampla de bens jurídicos, a homofobia manifesta-se por meio de duas formas de violência: física e não-física. A violência física, mais vísivel e brutal, atinge diretamente a integridade corporal, quando não chega às raias do homicídio. A segunda forma de violência, não-física, mas não por isso menos grave e danosa, consiste no não-reconhecimento e na injúria. O não-reconhecimento, configurando uma espécie de ostracismo social, nega valor a um modo de ser ou de viver, criando condições para modos de tratamento degradante e insultuoso. Já a injúria, relacionada a esta exclusão da esfera de direitos e impedimento da autonomia social e possibilidade de interação, é uma das manifestações mais difusas e cotidianas da homofobia . Nas palavras de Didier Eribon (apud Lopes, 2003),

O que a injúria me diz é que sou alguém anormal ou inferior, alguém sobre quem o outro tem poder e, antes de tudo, o poder de me ofender. A injúria é, pois, o meio pelo qual se exprime a assimetria entre os indivíduos. [...]. Ela tem igualmente a força de um poder constituinte. Porque a personalidade, a identidade pessoal, a consciência mais íntima, é fabricada pela existência mesma desta hierarquia e pelo lugar que ocupamos nela e, pois, pelo olhar do outro, do ‘dominante’, e a faculdade que ele tem de inferiorizar-m insultando-me, fazendo-me saber que ele pode me insultar, que sou uma pessoa insultável e insultável ao infinito. A injúria homofóbica inscreve-se em um contínuo que vai desde a palavra dita na rua que cada gay ou lésbica pode ouvir (veado sem-vergonha, sapata semvergonha) até as palavras que estão implicitamente escritas na porta de entrada da sala de casamentos da prefeitura: ‘proibida a entrada de homossexuais’ e, portanto, até as práticas profissionais dos juristas que inscrevem essa proibição no direito, e até os discursos de todos aqueles e aquelas que justificam essas discriminações nos artigos que apresentam como elaborações intelectuais (filosóficas, teológicas, antropológicas, psicanalíticas etc.) e que não passam de discursos pseudocientíficos destinados a perpetuar a ordem desigual, a reinstituí-la, seja invocando a natureza ou a cultura, a lei divina ou as leis de uma ordem simbólica imemorial. Todos estes discursos são atos, e atos de violência.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Estando manifesta a contrariedade ao direito da homofobia, bem como a violência de suas manifestações, deve-se atentar para o quanto a discriminação homofóbica está disseminada em nossa cultura heterossexista. De fato, ao lado de expressões intencionais de homofobia, convivem discriminações não-intencionais, mas nem por isso menos graves ou injustas. Uma análise destas modalidades de discriminação homofóbica pode ser desenvolvido a partir das modalidades direta e indireta do fenômeno discriminatório, elaboradas no seio do direito da antidiscriminação. Na presente reflexão, apresentadas essas modalidades, perguntamo-nos quanto aos efeitos da omissão na criminalização da homofobia.

2.3. Modalidades de discriminação: homofobia direta e indireta

A homofobia, como expressão discriminatória intensa e cotidiana, ocorre sempre que distinções, exclusões, restrições ou preferências anulam ou prejudicam o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública. Assim compreendida, a qualificação de um ato como homofóbico não depende da intencionalidade do ato ou da situação ocasionadora da lesão aos direitos humanos e liberdades fundamentais afetados. Deste modo, há discriminação homofóbica sempre que, de modo proposital ou não, houver tal espécie de lesão a direitos, decorrente da concretização de preconceito diante de estilos de ser e de viver divorciados do heterossexismo. Daí a relevância da análise das formas intencionais (discriminação direta) e não-intencionais (discriminação indireta) de discriminação homofóbica, uma vez que ambas lesionam direitos de modo grave e disseminado, em cujo quadro será analisada a não-criminalização como manifestação discriminatória.

2.3.1. Discriminação direta e homofobia

Na modalidade direta, cuida-se de evitar discriminação intencional. Três são as suas principais manifestações: a discriminação explícita, a discriminação na aplicação e a discriminação na elaboração da medida ou tratamento. Na primeira, tem-se a mais clara e manifesta hipótese: trata-se de diferenciação injusta explicitamente adotada. Uma manifestação homofóbica que ilustra a primeira situação são os cartazes espalhados por grupos neonazistas pregando o extermínio de homossexuais. Discriminação explícita também ocorre quando a diferenciação é imediatamente extraída da norma, ainda que esta não o tenha referido literalmente. É o que ocorre, por exemplo, na discriminação perpetrada contra homossexuais no regime legislativo da Previdência Social: neste caso, a redação da legislação de benefícios, ao arrolar os dependentes, almejou excluir companheiros homossexuais, como revelou de modo inconteste a Administração .

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A discriminação na aplicação ocorre quando, independentemente das intenções do instituidor da medida, a diferenciação ocorre, de modo proposital, na execução da medida. Isto ocorre quando a Administração Pública emprega, em concurso público, um critério constitucionalmente proibido através de um procedimento, em tese, neutro: o exame psicotécnico. Em litígios judiciais concretos, por exemplo, constata-se que a Administração Pública já se valeu, de forma deliberada e intencional, deste expediente para discriminar por orientação sexual na seleção de agentes policiais, em que pese inexistir qualquer determinação administrativa oficial neste sentido. Por fim, a discriminação pode ocorrer ainda na própria concepção da legislação ou da medida (discrimination by design), ainda que do seu texto não se possa inferir, literal e diretamente, a diferenciação. Isto ocorre quando a medida adota exigências que, aparentemente neutras, foram concebidas, de modo intencional, para causar prejuízo a certo indivíduo ou grupo. Pode-se citar, exemplificativamente, uma regra instituidora de uma exigência desnecessária de escolaridade superior num dado concurso público com o propósito de excluir pessoas negras, dado que os indicadores escolares variam substancialmente em prejuízo da população negra. Outro exemplo mais cotidiano da realidade brasileira foi a utilização, por largo tempo, da referência “boa aparência” em anúncios de emprego, objetivando, na concepção, a exclusão de negros. É importante ressaltar aqui que, não obstante a neutralidade aparente da regra, ela foi concebida com o propósito de excluir do certame ou do emprego pessoas negras, donde a sua classificação como hipótese de discriminação direta. No quadro conceitual da discriminação direta, portanto, a não-criminalização da homofobia encontra previsão na proibição de discriminação proposital explícita. Resultante de decisões políticas que explicitamente objetivam deixar fora da proteção jurídico penal tal espécie de discriminação, estamos diante de discriminação direta, pela intencional exclusão do âmbito de proteção de determinado grupo de indivíduos.

2.3.2. Discriminação indireta e homofobia

Independentemente da intenção, a discriminação é um fenômeno que lesiona direitos humanos de modo objetivo. Seu enfrentamento exige, além da censura às suas manifestações intencionais, o cuidado diante de sua reprodução involuntária. Mesmo onde e quando não há vontade de discriminar, distinções, exclusões, restrições e preferências injustas nascem, crescem e se reproduzem, insuflando força e vigor em estruturas sociais perpetuadoras de realidades discriminatórias. Diante destas realidades, o conceito de discriminação indireta ganha especial relevo e importância. De fato, muitas vezes a discriminação é fruto de medidas, decisões e práticas aparentemente neutras, desprovidas de justificação e de vontade de discriminar, cujos resultados, no entanto, têm impacto diferenciado perante

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 diversos indivíduos e grupos, gerando e fomentando preconceitos e estereótipos inadmissíveis. Quando se examina a homofobia, fica ainda mais clara a pertinência e a relevância desta preocupação. De fato, em uma cultura heterossexista, condutas individuais e dinâmicas institucionais, formais e informais, reproduzem o tempo todo, freqüentemente de modo não-intencional e despercebido, o parâmetro da heterosssexualidade hegemônica como norma social e cultural. A naturalização da heterossexualidade acaba por distinguir, restringir, excluir ou preferir, com a conseqüente anulação ou lesão, o reconhecimento, o gozo ou o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais de tantos quantos não se amoldarem ao parâmetro heterossexista. Nesta linha, a discriminação indireta se relaciona com a chamada discriminação institucional. Enfatiza-se a importância do contexto social e organizacional como efetiva raiz dos preconceitos e comportamentos discriminatórios. Ao invés de acentuar a dimensão volitiva individual, ela se volta para a dinâmica social e a “normalidade” da discriminação por ela engendrada, buscando compreender a persistência da discriminação mesmo em indivíduos e instituições que rejeitam conscientemente sua prática intencional (Korn, 1995). Conforme a teoria institucional, as ações individuais e coletivas produzem efeitos discriminatórios precisamente por estarem inseridas numa sociedade cujas instituições (conceito que abarca desde as normas formais e as práticas informais das organizações burocráticas e dos sistemas regulatórios modernos, até as pré-compreensões mais amplas e difusas, presentes na cultura e não sujeitas a uma discussão prévia e sistemática) atuam em prejuízo de certos indivíduos e grupos, contra quem a discriminação é dirigida . O estudo da discriminação indireta demonstra a relação entre homofobia e heterossexismo. Não só porque há instituições e práticas, formais e informais, em nossa cultura, que historicamente excluem ou restringem o acesso a certas posições e situações apenas a heterossexuais (realidade cujos casos do casamento e do acesso às Forças Armadas ilustram), como também porque fica patente a supremacia heterossexista no convívio social. Com efeito, a percepção da discriminação indireta põe a nu a posição privilegiada ocupada pela heterossexualidade como fator decisivo na construção das instituições sociais, cuja dinâmica está na base do fenômeno discriminatório, nas suas facetas individual e coletiva. Este privilégio heterossexista faz com que a cosmovisão e as perspectivas próprias de um certo grupo sejam concebidos como “neutros do ponto de vista sexual”, constitutivos da “normalidade social”, considerada “natural”: tudo aquilo que é próprio e identificador da heterossexualidade enquanto expressão sexual específica é efetivamente percebido como neutro, genérico e imparcial. Esta pseudoneutralidade heterossexista, que encobre relações de dominação e sujeição, pode ser entendida, segundo Flagg (1998), por meio do “fenômeno da transparência”. Vale dizer, a tendência de heterossexuais desconsiderarem sua orientação sexual como fator conformador e normatizador da realidade, conduzindoos a uma espécie de inconsciência de sua heterossexualidade. Este fenômeno só é

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 possível pelo fato de heterossexuais serem socialmente dominantes e faz com que a heterossexualidade seja norma sexual e a homossexualidade transformada em diferença. No caso da omissão quanto à criminalização da homofobia, abstraídas as decisões políticas que objetivam de modo consciente deixar sem proteção indivíduos e grupos vítimas dessa modalidade de discriminação (que configuram hipótese de discriminação direta explícita), vislumbra-se, ao menos, situação de discriminação indireta. Com efeito, assumir, ainda que de forma inconsciente, a heterossexualidade como padrão e como norma inquestionada, sem qualquer atenção para a violência perpetrada pela homofobia, concretiza discriminação indireta, compreendida tanto como manifestação institucional, quanto como efeito do fenômeno da transparência. Trata-se de legitimar, por negligência, insensibilidade, ignorância ou quiçá assentimento, um estatuto privilegiado para a heterossexualidade cuja confirmação implica tolerar a discriminação homofóbica, seja qual for de suas manifestações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso combater a discriminação sem cair no risco do populismo penal, nem em uma postura punitivista, que deve ser rechaçada. A violência homofóbica perpassa múltiplas esferas da vida interpessoal, manifestando-se no seio familiar, institucional e trabalhista, entre outros. Nesse contexto, não se deve confundir punitivismo e proteção antidiscriminatória. Resguardando-se do perigo de apenas reproduzir elementos e estruturas de opressão, deve-se postular meios de proteção, inclusive penais, no enfrentamento da homofobia. Daí não ser correta a mera adjetivação negativa das reivindicações por respostas penais diante da violência homofóbica, com a desconsideração da possibilidade de constituição de uma política criminal alternativa. Um sem-número de medidas podem ser tomadas no combate à homofobia. A criminalização da homofobia não se esgota em si mesma. Ela é apenas uma das medidas legítimas de combate à discriminação, considerando, inclusive, os resultados quando adotadas medidas penais contrárias a outras discriminações, tais como aquelas decorrentes do sexismo e do racismo. As vítimas avançaram em capacidade de denúncia e reação aos ataques sofridos. Dados foram gerados e sistematizados, possibilitando maior clareza a respeito do problema e das políticas públicas necessárias para seu combate. Sem dúvida, o problema ganhou maior visibilidade e densidade. A homofobia, em suas modalidades direta e indireta, é ainda um grande desafio político e jurídico, que exige medidas concretas. Do ponto de vista jurídico, a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 criminalização é uma delas, cuja visibilidade, simbolismo e ganhos à consciência social não devem ser subestimados.

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UMA APRESENTAÇÃO DOS DILEMAS DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR PELA LITERATURA DE BERTOLT BRECHT Fausto Santos de Morais1 e Janaína Hennig Bridi2.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A relação entre o Direito e a Literatura – 3. D “A exceção e a Regra” – 4. O Direito apresentado em “A exceção e a regra” – 5. Considerações Finais – 6. Referencial Bibliográfico.

RESUMO: Pode a Constituição mudar a realidade? O ideal da Constituição Alemã de 1919 (Weimar) nasceu com o objetivo de transformar as relações desigualitárias existentes no seio da sociedade. Alguns dos institutos jurídicos criados por aquela Constituição são apresentados no presente texto, cuja inspiração foi fruto da obra “A exceção e a regra” de Bertolt Brecht. Assim, aproveitando a narrativa de Brecht que relata a relação entre um empregador e seus dois funcionários, propõe-se uma discussão sobre o reflexo da desigualdade nas relações de trabalho no inicio do século XX na Alemanha.

PALAVRAS-CHAVE: Direito – Literatura – Weimar .

1. Introdução O estudo de Direito e Literatura vem sendo concebido como uma nova forma de discussão dos grandes temas da Filosofia e Teoria do Direito, valendo-se da dimensão holística e zetética que a aproximação desses campos do saber produzem. Essa forma de ver os problemas jurídicos vem sendo desenvolvida na Europa e nos Estados Unidos desde o início do século XX, caminho seguido apenas de forma recente no Brasil. Assim, o presente estudo assume que algumas narrativas literárias servem ao estudo do Direito, às vezes, de forma melhor e mais efetiva que alguns dos manuais jurídicos existentes. Partindo dessa premissa, este ensaio possui como objetivo principal a leitura e analise da peça “A exceção e a Regra” do escritor Bertolt Brecht, na qual os fatos narrados permitem uma reflexão crítica a respeito das diferenças de classe na 1 2

Doutor em Direito Público pela Unisinos e docente do PPGD da IMED. Discente da Faculdade Meridional (IMED)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 sociedade do século XX e a condição do Direito à época do texto. A metodologia empregada será a fenomenologia hermenêutica e de cariz bibliográfico, tomando a obra literária como ponto de partida para a descoberta e desenvolvimento de questões jurídicas relacionadas aos eventos narrados no texto. O objetivo será desenvolvido, portanto, em três partes. A primeira envolverá a reconstrução acerca da possibilidade de repensar o Direito por provocação da Literatura, tendo em vista a contribuição que as narrativas literárias podem prestar a compreensão dos fenômenos jurídicos. Na sequencia, apresentar-se-á uma sinopse da peça. E, num terceiro momento, indicar-se-á os fenômenos sócio-jurídicos encontrados no texto e sua relação com a doutrina jurídica. Encerra-se o presente ensaio apresentando uma configuração de Estado Social que inaugura na Constituição de Weimar, alguns mecanismos que visavam a redução da desigualdade mediante a regulação democrática das relações laborais.

2. A relação entre o Direito e a Literatura Em que pese seja recente o estudo do Direito e Literatura no Brasil, entendese que a literatura por sua capacidade de orientar a visão de mundo, definir normas e estilos de vida, tem o efeito de conduzir o leitor à expansão dos seus horizontes de sentido. Desse modo, o jurista que adota em seu cotidiano a leitura de obras literárias, pode, através delas, construir uma postura crítica perante os dilemas do Direito (TRINDADE; GUBERT, 2008 p. 16). Admite-se essa condição apenas como uma possibilidade. Essa possibilidade nasce do constrangimento que a Literatura promove ao colocar o jurista dentro de uma história ficcional, esperando, de forma inerte, a resolução do enredo. Nessa resolução a incerteza do final é o que surpreende o jurista. É assim, que a experimentação do resultado acaba capacitando ao jurista a reflexão sobre os pressupostos significativos que se assentam o desenrolar da obra. É convergindo com isso que o hábito da leitura torna-se cada vez mais importante no ensino do direito, tendo em vista a necessidade do jurista de possuir a perspicácia no enfrentamento de situações diferentes, de modo a assumir uma postura crítica e de resolução de problemas. (TRINDADE; GUBERT, 2008 p. 16). Dito disso, atribui-se à Literatura a tarefa de possibilitar a (des) construção dos lugares de sentido, principalmente aqueles que no campo do Direito são dominados pelo senso comum teórico. É por influência do senso comum teórico, por exemplo, que os fenômenos sócio-jurídicos, altamente complexos, acabam se tornando corriqueiros e standarlizados, reduzindo, significativamente, as possibilidades interpretativas do jurista (TRINDADE; GUBERT, 2008 p. 15). Assim, a Literatura pode tornar-se um meio de devolver ao Direito uma dimensão cultural própria, possibilitando ao jurista o desenvolvimento de capacidades que possam emancipar o seu papel de ator da transformação social (TRINDADE; GUBERT, 2008 p. 18). O estudo do Direito e Literatura pode ser compreendido em três categorias a partir de pressupostos funcionais. O Direito na Literatura é a corrente desenvolvida principalmente na Europa e esta ligada ao conteúdo ético da narrativa. Para esta vertente a obra literária amplia a consciência jurídica por permitir uma melhor

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 compreensão do direito e seus fenômenos. Já o Direito como Literatura, corrente dominante nos Estados Unidos, esta ligada à dimensão hermenêutica, através da qual se observa a qualidade literária do direito e se examinam os textos e os discursos jurídicos a partir de analises de interpretação. Por outro lado, o Direito da Literatura é a categoria vinculada a regulamentação jurídica dada a literatura, por exemplo as disciplinas de direito privado como a respeito da propriedade intelectual (TRINDADE; GUBERT, 2008 p. 48 e 49). Pode-se entender então, em face da amplitude do estudo do Direito e Literatura, a pluralidade significativa que as diversas abordagens referidas permitem. Cada uma delas está ligada a um âmbito diferente de análise. Neste estudo privilegiamos o Direito na Literatura, procurando observar os fatos jurídicos apresentados no texto literário eleito como objeto de estudo. Para tanto, apresenta-se na próxima secção um relato sobre a história narrada no conto “A exceção e a Regra”.

3. D “A exceção e a Regra” Sem referencia a um período ou local precisa, a peça “A exceção e a regra” está ambientada na cidade de Urga . A estreia da peça ocorreu em 1938 na Palestina em hebraico, sendo posteriormente apresentada em Paris no ano de 1947, mesmo em que foi encenada em alemão na zona de ocupação francesa. Na Alemanha, a estreia ocorreu em setembro de 1956 na cidade de Dusseldorf e no Brasil a peça foi encenada pela primeira vez em 1954 pelos alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo (MONTAGNARI, 2010 p.11). A peça “A exceção e a Regra” é anterior a fase na qual foram produzidas obras clássicas como “A vida de Galileu” e “O círculo de Giz Caucasiano”. Nesse período diversos textos produzidos foram reunidos sob o título de teoria da peça didática. O objetivo desse modelo de teatro de aprendizagem é ser um exercício da razão, ou seja, um instrumento a serviço de uma realidade que pode e deve ser demonstrada como passível de modificação (MONTAGNARI, 2010, p. 09 e 10). Destaca Oliveira (2013, p. 03) que para Brecht a finalidade da peça didática estaria na sua construção e não na apresentação, o que dispensaria, inclusive, a presença de qualquer público. Tal modelo de teatro apresenta como característica ser a tríade: narrativo, crítico e político. Desse modo, através das narrativas eram apresentados fatos cotidianos a fim de que os espectadores os julgassem, criando assim, um teatro social voltado a estimular a capacidade do homem quanto ao seu direito e dever de modificar o mundo onde vive. Da peça “A exceção e a regra” (Die Ausnahme und die Regel) participam onze pessoas listados na primeira pagina. Os personagens são o comerciante chamado Karl Langmann, um guia e um cule, ambos empregados do comerciante, dois policiais, um taberneiro, um juiz, a mulher do cule, o guia da segunda caravana e dois juízes adjuntos. Na história narrada, o comerciante e seus dois empregados fazem uma viagem à cidade de Urga em busca de petróleo, único motivo de tal empreendimento. No

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 meio do caminho, na Estação Han, o comerciante demite o guia por aparente incompetência e segue viagem apenas com o cule pelo deserto inabitado de Jahí . Pouco antes de partirem, o guia entrega ao cule seu cantil extra de água e resume o trajeto a ser seguido, o dono da taberna onde eles passaram a noite assiste a cena de longe. O cule então é obrigado a assumir a tarefa do demitido, ou seja, passa a exercer a função de guia e mais a sua própria. O comerciante se torna ainda mais agressivo no trato com seu empregado, ofendendo-lhe verbalmente e proferindo-lhe diversos golpes. Num ponto da viagem eles se deparam com um rio. Nesse momento o cule se opõe a travessia, informando que não sabe nadar. Mesmo assim, a sua voz não persuade o comerciante, sendo obrigado por este a atravessar o rio. No entanto, a sua tentativa é frustrada, pois, ele acaba por se afogar, sendo resgatado pelo comerciante, que ao tirar o empregado do rio quebra seu braço. Mesmo com a condição física do cule prejudicada, o empregador não diminuiu a carga de trabalho deste. Após tal episodio as desconfianças do comerciante de que a qualquer ponto o cule se vingaria dele aumentam, afinal não acredita que ninguém tolere ser maltratado de tal forma por tanto tempo. Por outro lado o cule sofre todos esses dissabores em silêncio, conscientizando-se que precisa do trabalho para conseguir dinheiro para sua família. Em dado momento da narrativa o cule externa duas preocupações: primeira, de ambos estarem perdidos no deserto. Segunda, deveria ele entregar ou não o cantil reserva ao seu patrão, visto que eventual sinistro poderia ser interpretado como sua culpa. Assim, o cule se pergunta constante se deveria ou não fornecer água para evitar riscos à vida do comerciante. Em certo ponto da viagem, o cule decide oferecer o cantil de água ao comerciante, este, no entanto, acaba matando-o, pois teve a falsa impressão que o cule iria atacá-lo com uma pedra. O que, na verdade, era o cantil. Após o termino da viagem, a viúva do cule leva o comerciante a julgamento por assassinato. No julgamento decidiu-se pelo ato de legítima defesa do comerciante. No entendimento do juiz a legítima defesa do comerciante se justificaria em consideração à classe social do cule, sendo natural esperar deste um comportamento réptil e agressivo. Como refere o juiz o cule “pertencia a uma classe social que tinha motivos para ser ameaçado ou para se sentir ameaçado”. Por ser de uma classe social “inferior”, a regra seria esperar o seu ataque. Desse modo, os juízes absolvem o comerciante e não concedem indenização à mulher do cule. Durante a leitura do texto ora analisado, constata-se que o prólogo, epílogo e a canção que antecede o momento do julgamento são feitos pelos atores em conjunto. Cabe aqui o questionamento sobre qual motivo levou o autor a utilizar-se desse recurso. Seria um modo que Brecht representa o imaginário social da época? De acordo com Montagnari (2010, p. 12), “A exceção e a regra” é uma moralidade, ou seja, um gênero teatral medieval do qual Bertolt Brecht se serve para definir a estrutura de sua fábula. Nesse enredo, o autor demonstra de forma dialética como atua a justiça dos poderosos que, ao sacrificar a vítima (cule) que era a exceção, termina por absolver o comerciante (a regra) que era o criminoso. Ou, em outra

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 especulação, mostraria que independentemente do valor de cada pessoa, a condição pessoal de cada uma deles era o fator determinante para o seu sucesso na sociedade, estabelecendo-se rótulos a priori dos seus destinos em virtude da classe social a qual pertencesse.

4. O Direito apresentado em “A exceção e a regra” A “Exceção e a Regra” permite que algumas questões jurídicas possam ser tematizadas e destacadas. Optou-se, entretanto, por tratar do seguinte assunto pensado por provocação da leitura da obra, qual seja: a necessidade de proteção jurídica do trabalhador como tarefa de um modelo de Estado Social. De início, assume-se que a principal tarefa de um modelo de Estado Social é combater as desigualdades nascidas pelo desenrolar de uma sociedade estratificada em classes sociais. Nesse modelo de sociedade é comum que as classes dominantes se utilizem do seu poder econômico impor aos menos privilegiados condições para sua subsistência. A obra impulsiona a reflexão sobre o desenvolvimento das relações de trabalho. Pensando no Direito do Trabalho como expressão dessa relação entre diferentes classes sociais, surge a necessidade do Estado proteger o trabalhador – economicamente hipossuficiente – nas relações contratuais estabelecidas com os detentores dos meios de produção. Aliás, aproveitando o insight, e parece ser esse o caso, o conto externa a ideologia marxista sobre o Direito. Quer dizer, que o Direito é um produto da determinação econômica, cuja base estaria na dominação social, mediante o capital, da classe proletariada. Considerando isso, Marx recriminaria o Direito e o Estado, com a projeção, até então utópica, da escatologia tanto do Direito quanto do Estado numa futura sociedade comunista (COUTINHO; NETTO; 2006, p. 575). Pode-se observar através do texto analisado que o cule, personagem de classe financeiramente inferior, acreditava que o Direito dar-lhe-ia um tratamento diferenciado – e degradante – em virtude da sua condição social. Ou seja, que por ser pobre ninguém acreditaria em sua inocência caso o comerciante viesse a falecer no deserto. Essa questão se torna explícita no trecho do conto em que o Cule afirma: “É melhor entregar a ele (empresário) o cantil cheio que o guia me deu no posto. Senão, se nos encontrarem e eu ainda estiver vivo, com ele assim quase morto de sede, podem me processar”. E mais. Em inúmeras passagens do texto o comerciante imprimi um tratamento degradante, desumano ao Cule, tendo ele num primeiro momento se submeter a essa condição por força de sua necessidade econômica de subsistência. Aliás, durante boa parte em que o personagem do Cule é maltratado durante a viagem deles no deserto é a sua subsistência, em cooperação com a subsistência do Comerciante, exigem do Cule o suporte aos maus tratos que lhe são desferidos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Não se deve desconsiderar, por isso, que um dos temas centrais que a obra permite pensar é a desigualdade social e a incapacidade do Direito conseguir garantir a devida proteção jurídica aquelas pessoas colocados na situação de hipossuficiência. Destaca-se dois momentos no conto que podem ser as principais exações da crítica a sociedade e aos problemas vivenciados pelo Direito vigente à época. O primeiro deles é o julgamento. Quando os juízes, após apreciarem o caso, concluem que a ação do Comerciante é legítima visto que diante do relacionamento que desenvolveu com o Cule durante a viagem, não se poderia esperar mais nada do serviçal que não um ataque. Isto é, a própria natureza (social) do Cule lhe outorgaria um status de periculosidade. Essa distinção sobre a natureza do Cule é, por assim dizer, a ratio decidendi que orienta a decisão, como se pode perceber pela forma como o juiz se manifesta:

Então eu vou proferir a sentença! O Tribunal considera provado que ocarregadoraproximou-se do patrão, não com uma pedra, e sim com um cantil d'água. Ainda partindo dessa premissa, porém, era muito mais provável que ele estivesse pensando em matar o patrão, com o cantil, do que em lhe dar de beber. O carregador pertencia a uma classe que tem, efetivamente, razões para sentir-se prejudicada. Para pessoas da classe do carregador, defender-se contra um abuso que o deixasse lesado na partilha da água era uma simples questão de bom senso. Para pessoas desse tipo, com seus pontos de vista limitados e unilaterais, aferrados a um único aspecto da realidade, pareceria até bastante justo vingar-se dos que as maltratam: no dia do ajuste de contas só teriam a ganhar. O comerciante não pertencia à mesma classe do carregador, de quem só poderia esperar o pior. O comerciante jamais poderia acreditarem qualquer gesto de camaradagem por parte do carregador, a quem ele havia confessadamente maltratado: o bom senso lhe dizia que sobre ele pesavam as mais graves ameaças, e o despovoado da região devia trazê-lo cheio de apreensões. A ausência de polícia e de juízes possibilitava ao empregado arrancarlhe à força a sua ração de água, e o encorajava mesmo a fazer isso. O acusado, portanto, agiu em legítima defesa tanto no caso de ter sido realmente ameaçado quanto no caso de apenas sentir-se ameaçado. Dadas as circunstâncias, tinha razões para sentir-se ameaçado. Isto posto, absolve-se o acusado, e não se toma conhecimento da queixa da mulher do morto.

Sendo possível verificar assim, que o texto denúncia à condição de desigualdade social existente entre empregador e empregado que era a realidade naquele momento na Alemanha. Sendo possível destacar em diversos trechos da narrativa essa realidade, veja-se, nesse sentido, os versos do prólogo que inicia a peça: Agora vamos contar A história de uma viagem Feita por dois explorados e por um explorador.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Vejam bem o procedimento desta gente: Estranhável, conquanto não pareça estranho Difícil de explicar, embora tão comum Difícil de entender, embora seja a regra. Até o mínimo gesto, simples na aparência, Olhem desconfiados! Perguntem Se é necessário, a começar do mais comum! E, por favor, não achem natural O que acontece e torna a acontecer Não se deve dizer que nada é natural!Numa época de confusão e sangue, Desordem ordenada, arbítrio de propósito, Humanidade desumanizada Para que imutável não se considere Nada. (grifos nossos)

Tal premissa é apresentada na fala tanto do Comerciante como também do Cule, ou seja, ambos possuíam consciência da sua posição social e da dependência que um tinha do outro. Afinal, sabe o Cule que precisa se sujeitar aos maus-tratos do empregador para obter o dinheiro que precisa para dar a sua família. E o Comerciante sabe que sem o trabalho do Cule não teria como executar sua jornada. O conto de Bertolt Brecht apresenta claramente uma função crítica, pois chama o leitor para uma representação da sociedade desigualitária, o que, nas relações de trabalho, implicariam numa exploração do trabalhador ao ponto de colocar-lhe em situação humilhante, degradante e insalubre. O sentimento é que o Cule não merece qualquer consideração como ser humano pelo Empresário. Ou seja, não lhe é reconhecido qualquer tipo de dignidade. Na canção que encerra o conto evidencia-se essa crítica: Os atores: Assim termina A história de uma viagem Que vocês viram e ouviram. E viram o que é comum O que está sempre ocorrendo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Mas a vocês nós pedimos: No que não é de estranhar Descubram o que há de estranho! No que parece normal Vejam o que há de anormal! No que parece explicado Vejam quanto não se explica! E o que parece comum Vejam como é de espantar! Na regra, vejam o abuso E, onde o abuso apontar Procurem remediar! (grifos nossos)

Embora o ideal marxista de fim do Estado e do Direito não se verificou na prática, houve uma mudança na concepção do papel do Estado e do Direito diante das questões de desigualdade. Isto é, o modelo de Estado e de Direito se transformam para eliminar – ou pelo menos, reduzir - o quadro de desigualdades sociais que se instauraram no seio das relações de uma sociedade capitalista. Nesse sentido, o Estado Social passa a considerar a sociedade como um todo, a soma dos indivíduos e as suas relações numa visão coletiva, buscando o enfrentamento dos desafios impostos pela transformação da forma de produção de riqueza por força da Primeira Revolução Industrial. Assim, nas primeiras décadas do século XX dois fenômenos indicam a mudança do paradigma individual (Estado Individual) para o coletivo (Estado Social): Primeiro, o surgimento e o crescimento das chamadas classes operarias e o processo de urbanização. Em um segundo momento, outro fator importante é a questão do processo produtivo com atenção à qualidade de vida das pessoas (MORAIS, 1997 p. 31 e 32). Mas a mudança de paradigma não foi implementada sem dificuldades. Talvez a principal delas fosse o desenrolar do pensamento liberal que continha um ideal individualista. O projeto jurídico a partir daí assumiu como sua figura central a estrutura de um homem só, alheio e alienado de seu meio ambiente. Portanto, o direito individual seria a expressão jurídica do modelo liberal, reclamando um modelo não intervencionista de Estado. No entanto, a reação ao projeto liberal ocorre com a profusão das doutrinas socialistas e também, das crises vividas por este modelo, que resultam na reinserção social deste individuo isolado de seu contexto sócio-histórico. O que no âmbito jurídico que permitirá a sustentação da ideia de Direito Social (MORAIS, 1997 p. 31 e 32).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Essa ideia de Direito Social no limiar do século XX promoveu um novo conceito de Estado, que muito se afastaria do perfil liberal (não-intervencionista), o qual atraiu, além da função negativa uma função positiva. Quer dizer, o Estado passou a ser o regulador e promotor do bem-estar social. Seria por causa disso que se reconheceu um modelo voltado ao welfare state que, no pós-45, com aspecto promocional, integrou o vocabulário jurídico-político do século XX (MORAIS, 1997 p. 33). Embora o conceito de Direito Social seja associado para muitos como um conjunto de regras próprias que regulam as relações de trabalho e a organização das questões relativas à seguridade social, para Gurvitch o Direito Social é uma espécie de autorregulação comunitária, alheia à normativização estatal. Desse modo, compreende-se que o autor critica essa visão limitada do Direito Social ligado à ideia de política social do Estado, isto é, como normas estatais próprias à regulação das relações de trabalho (MORAIS, 1997 p. 33), sem, de fato, projetar estruturas estáveis de participação comunitária nas principais decisões do Estado. Vale ressaltar que a peça foi escrita em 1929-1930 na Alemanha. O interessante é que naquele momento histórico os direitos trabalhistas tinham acabado de serem incluídos na Constituição de Weimar (1919), cujo texto foi promulgado logo após a Primeira Guerra Mundial. A Constituição de Weimar foi uma das primeiras a positivar uma série de direitos que procuravam regulamentar questões econômicas, trazendo para o âmbito de interesse do Estado as relações privadas como propriedade e relação empregatícia. Nesse sentido, a Constituição disciplinou questões como: a participação dos trabalhadores nas empresas; a liberdade de união e organização dos trabalhadores para a defesa e melhoria das condições de trabalho; o direito a um sistema de seguros sociais; o direito de colaboração dos trabalhadores com os empregados na fixação dos salários e demais condições de trabalho, bem como a representação dos trabalhadores na empresa. Enquanto nas relações econômicas considera-se o aspecto da produtividade político-econômica, no direito trabalhista considera-se o aspecto da proteção do economicamente mais fraco contra o economicamente forte. O primeiro, inclina-se mais ao ponto de vista da empresa, enquanto o segundo, ao interesse do trabalhador. Consequentemente, a ótica jurídico-econômica e a jurídico-trabalhista encontram-se frequentemente em conflito real ou aparente (RADBRUCH, 1999 p. 97). O direito do trabalho é baseado nos moldes do direito civil, assim reconhece apenas “pessoas” ou sujeitos jurídicos iguais, que por livre e mútua decisão celebram contratos entre si, e não vê o trabalhador em sua inferioridade de poder diante do empresário. Bem como não sabe da solidariedade do operariado, das associações profissionais ou os contratos coletivos de trabalho, porque reconhece apenas o contratante individual e o contrato individual de trabalho. Sendo essa falha, criticada por Radbruch (1999, p. 98), afinal a essência do direito trabalhista é a proximidade à vida. Ainda nos ensinamentos de Radbruch, superados os paradigmas em relação ao trabalho do direito romano que o associava ao direito das coisas por ser o trabalhador um escravo e da Idade Média onde a relação de trabalho provinha do estado civil (direito da pessoa), o direito do trabalho passa a ter tarefa de valorizar o

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 direito humano do trabalhador. Neste novo cenário, o direito trabalhista é uma instituição contra os perigos da liberdade contratual formal-jurídica. Ou seja, o Direito colocaria barreiras legais à liberdade de contratar visando proteção ao trabalhador; ligaria o contrato individual de trabalho ao contrato coletivo; vincularia efeitos colaterais público-jurídico ao contrato de trabalho e fomentaria a celebração de contratos de trabalho (1999 p. 100). Por sua vez, a Constituição de Weimar (1919) parece que expressa essas condições ao novo cenário das relações trabalhistas, como reclamava Radbruch. Todavia, essa constituição apostava numa superação da sociedade organizada num modelo de relações de trabalho de índole individual. De um lado, o empregador e de outro o trabalhador. O que confluiria a um modelo de submissão. Agora, essas relações dar-se-iam em outro nível. Num nível coletivo. Não de submissão, mas de contratação de serviços. A classe dos empregadores e a classe dos trabalhadores. Embora ainda fosse possível existir contratos de trabalho individuais, coletivamente procurar-se-ia estabelecer condições legais que intervissem na contratação individual. É por causa disso que o pólo das negociações contratuais teria sido deslocado aos representantes sindicais dessas classes. Juridicamente o amparo a esse modelo veio pela Constituição de 1919 e pela Lei dos Conselhos da Empresa (04 de fevereiro de 1920), passando-se a reconhecer a importância ao direito do trabalho coletivo Portanto, antes da contratação entre empresa e trabalhador, haveria a contratação coletiva entre os representantes sindicais, fazendo com que a regulamentação dos direitos de uma forma coletiva pudesse superar a força socioeconômica do empresário (RADBRUCH, 1999 p. 101 e 102). Havia na constituição a promessa de um direito trabalhista uniforme , o que no ensinamento de Radbuch significava não uma unidade de código, mas sim de espírito jurídico-trabalhista. Dentre as medidas que assegurariam tal prerrogativa estariam: implementação da carteira de trabalho, seguro-desemprego, fiscalização das indústrias e profissões, seguridade social, criação de órgãos da decisão de litígios econômicos, bom como órgãos de conciliação (1999 p. 102). Em 1926 foi promulgada a lei dos tribunais trabalhistas que buscava um caminho conciliatório entre a incorporação dos tribunais trabalhistas aos tribunais ordinários. Os tribunais trabalhistas de primeira instância eram tribunais especiais, presididos por um juiz togado. Já as instâncias superiores, os tribunais do trabalho dos Estados e o tribunal do trabalho do Reich eram incorporados à jurisdição de direito comum. Percebe-se que a compensação deu-se mais para a aproximação dos tribunais trabalhistas ao judiciário comum. No entanto, mais importante seria o fato que em todas as etapas da jurisdição trabalhista seriam convocados assessores dos grupos dos empregadores e dos empregados, em igual número de participação na aplicação da lei. O objetivo era que através desse assessoramento as condições sociais de uma sociedade dividida em classes poderia ser considerada no litígio. Assim, por intermédio dos assessores das duas classes, o juiz de carreira seria defrontado de maneira significativa com a grande luta de classes, em que o litígio individual seria a forma de sua manifestação.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Especula-se que o objetivo de tal medida era despir o juiz de seu conteúdo de interesse pessoal-individual e vislumbrá-lo sobre a generalidade da luta de classes suprapessoal. Conforme Radbruch seria esse o modo de manter vivo na consciência do juiz de carreira sobre a evolução dialética promovida pela luta de classes, não podendo esse agente da justiça se conformar apenas com interesses próprios da classe da qual derivasse. Em outras palavras, fazia com que o ponto de vista do juiz fosse passível de revisão (RADBRUCH, 1999 p. 103 e 104). A inclusão de assessores que representavam cada um dos polos envolvidos nas classes trabalhistas é uma das formas de concretização da igualdade, afinal, tal medida objetivava uma maior imparcialidade do julgador, criando um ambiente de ideias plurais a serem considerados no momento da decisão judicial. No âmbito legislativo também havia uma medida, que consistia na criação de Conselhos formados por representantes de cada classe. Observando-se o artigo 165, já supra referenciado, a existiam dois conselhos. Um do Império e outro dos empregados e operários. Era conferido aos conselhos a capacidade de propor projetos de lei do interesse de seus representados o que, pragmaticamente, faria com que a dimensão política-legislativa desse conta da pluralidade e, ao mesmo tempo, da necessidade de decisões igualitárias que guiassem o agir estatal. Nesse sentido, destacando-se a tentativa de equilíbrio econômico, a Constituição de Weimar, em seu Capítulo V, ao tratar do assunto (“A vida econômica”) estabeleceu, ao lado de prescrições como a pertinente à função social da propriedade (art. 153) e à criação de um regime previdenciário (art. 161), um sistema de participação de empregados na condução das políticas de “desenvolvimento econômico das forças produtivas” (art. 165). Tal participação era concretizada por meio dos celebrados Conselhos Operários. Nos termos da Carta Alemã todos os projetos de lei político-sociais ou político-econômicos, de importância fundamental, deveriam passar pelo conhecimento do Conselho Supremo de Economia, antes de serem apresentados. E mais, o Conselho Supremo possuía competência para apresentar projetos de lei de sua iniciativa (PINHEIRO, 2006 p.129). De acordo com Nascimento (2011, p. 85) embora a Carta alemã tenha apenas preceitos de Direito do Trabalho, ela pode ser considerada a fonte jurídica mais relevante do setor atualmente denominado como seguridade social. Afinal, seus princípios foram aos poucos sendo reproduzidos pelas Constituições modernas e Estados democráticos, que visavam o dever do Estado de proteger o trabalho, visto que caberia ao Estado elevar o trabalho humano à dignidade de bem social cuja preservação era do interesse da coletividade. Desse modo, a doutrina alemã, que inspirou a Constituição de 1919, tem a característica de deslocar a questão da igualdade do plano público para o privado, por considerar que tal medida não é apenas uma forma de defesa do cidadão perante o Estado, mas sim de proteção de um particular sobre outro particular (NASCIMENTO, 2011 P. 261). Delgado (2009, p. 91) atribui o status de marco à Constituição de Weimar junto com a criação da OIT (Organização Internacional de Trabalho), identificando essa fase do Direito do Trabalho como a “institucionalização ou oficialização” desse ramo

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 do Direito. Desde aquele momento histórico, tal ramo do Direito ganharia cidadania e passaria a ser assimilado à estrutura e dinâmica institucionalizada na sociedade(Estado). No Brasil, essa fase de institucionalização do Direito do Trabalho teve seu marco inicial em 1930, firmando a estrutura jurídica e institucional de um novo modelo trabalhista até o final da ditadura getulista (1945). Neste período houve intensa atividade administrativa e legislativa do Estado, em consonância com o novo padrão de gestão sociopolítica que se instaurava no país com a derrocada, em 1930, da hegemonia exclusiva do segmento agroexportador de café (DELGADO, 2009 P. 103). A concepção da doutrina alemã de que não basta à igualdade entre o Estado e o cidadão, sem o oferecimento de condições mínimas de vida, igualdade econômica, melhor distribuição de renda e de bens entre os indivíduos. Para tanto, o Estado deve agir protegendo os cidadãos mediante meios que garantam as mesmas oportunidades, procurando igualar as condições nas relações entre particulares, em que a fragilidade de uma das partes deixa a outra em absoluta situação de inferioridade. Esse entendimento continua presente no Direito de Trabalho como se pode ver pela positivação em mais das diversas constituições de dispositivos que procuram proteger o trabalhador de um possível abuso do poder econômico. Além disso, outros mecanismos como a criação de instituições que fiscalizem e garantam as boas condições nas relações de trabalho como o Ministério do Trabalho e uma justiça especializada para essas questões (NASCIMENTO, 2011 p. 261 e 262). No entanto, existem controvérsias sobre a efetividade da Constituição de Weimar, sobretudo, analisando os meios oferecidos pelo Estado para realização dos fins previstos pelo texto constitucional. Assim, parece que o Estado não estava preparado para oferecer os serviços e prestações sociais e econômicas à população, passando assim, apenas a garantir estes direitos de modo programático. Nesse sentido, a Constituição de Weimar não foi expressamente e legalmente revogada, mas a partir do ano de 1932 com o fim da República de Weimar, passou a ser rejeitada pela maioria das pessoas (CAENEGEM, 2009 P.330). Percebe-se ainda, pela leitura de Radbruch, a existência de uma preocupação quanto à imparcialidade do julgador nas causas trabalhistas, com a busca de retirar do juiz seus diferentes interesses ligados a diferença de classes. No entanto, na narrativa de Brecht, vê-se que os juízes ao decidirem pela inocência do Comerciante, a atribuem ao fato de que por ser este de uma classe superior deveria mesmo se sentir ameaçado por alguém de classe inferior como o Cule. Essa questão pode ser facilmente percebida na passagem do texto quando o juiz profere a sua sentença de absolvição do Comerciante, principalmente, considerando a natureza social do cule: “O comerciante não pertencia à mesma classe do carregador, de quem só poderia esperar o pior”.Desse modo, pode-se inferir que o texto “A exceção e a regra” denuncia que a realidade trabalhista, mesmo com a legislação vigente (Constituição de Weimar e leis específicas), não era capaz de propiciar a proteção suficiente ao trabalhador. Como já fora supramencionado, a institucionalização ou oficialização do Direito do Trabalho no Brasil iniciou em 1930 e teve intensa atividade administrativa e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 legislativa nos seus primeiros treze ou quinzes anos, ao menos até 1943 com a Consolidação das Leis de Trabalho. Tal movimento ocorreu em convergência com o novo sistema de gestão sócio-política que se instaurava no país (DELGADO, 2009 p. 103). Dentre as primeiras medidas estatais tomadas, estão a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (através do Decreto n. 19.443 de 1930) e do Departamento Nacional do Trabalho (Decreto 19.671-A, de 1930). A área sindical também foi objeto de normatização com a criação de uma estrutura sindical oficial baseada em um sindicato único, de caráter não obrigatório e submetido ao reconhecimento pelo Estado e compreendido como órgão colaborador deste (por meio do Decreto 19.770 de 1931). Por fim, com o Decreto n. 21.396 de 1932 criou-se as Comissões Mistas de Conciliação e Julgamento como um sistema de solução judicial de conflitos trabalhistas. No entanto, somente os trabalhadores integrantes do sindicalismo oficial teriam legitimidade para ingressar com tais ações. A Constituição de 1937 referia-se a Justiça do Trabalho, que teve seu aperfeiçoamento com o Decreto-lei n. 1.237 de 1939. Nessa atmosfera, o sistema previdenciário que também possuía formação corporativa, por ser vinculado as áreas profissionais e aos correspondentes sindicatos oficiais, começou a ser estruturado logo após 1930, da mesma forma que as demais instituições do modelo justrabalhista (DELGADO, 2009 p. 103). Estabelecendo a comparação com o Direito Alemão, nota-se que os direitos trabalhistas assegurados pela Constituição de Weimar de 1919 somente vieram a ser igualmente contemplados no Brasil a partir de 1930. Em ambos os cenários políticojurídicos foram tomadas medidas normativas com objetivo de promover a igualdade de condições nas relações de trabalho, visando especialmente proteger o lado hipossuficiente da relação representada pelo trabalhador.

5. Considerações Finais A Exceção e a Regra pode ser interpretada como um manifesto de Bertolt Brecht que denuncia, através de um modelo de peça didática, o problema da dominação social existente numa sociedade estratificada em classes sociais. No contexto da obra, isso fica bem claro com o exercício pelo comerciante de uma série de atos desumanos contra o cule. Transparece na peça que essa relação sádica somente era possível por força da necessidade proletária do cule de obter a sua subsistência através do trabalho oferecido pelo comerciante. No desenvolver da pesquisa notou-se, ainda, a crítica de Brecht ao Direito e ao Estado como instrumentos da dominação social imposta por aqueles possuidores do poder econômico. Assim, tanto o Direito como o Estado, numa visão escatológica aproximada a Marx, não deveriam existir numa sociedade efetividade comunista. Também foi possível outra reflexão sobre a forma que as relações de trabalho à época atraíram a preocupação do Direito, com a necessidade de estabelecimento de mecanismos e instituição que pudessem disciplinar as relações laborais. Nesse

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 sentido, o principal objetivo seria a intervenção do Direito com meios possíveis de estabelecer um equilíbrio numa sociedade desigualitária, cujo reflexo se fazia nítido nas relações laborais. Não seria atoa, portanto, que a Constituição de Weimar, contemporânea à peça, previu como um dos seus objetivos reduzir a desigualdade social com o fomento de instrumentos jurídicos que fortalecessem a classe operária, emancipandoa como partícipe na construção político-institucional do Estado, bem como constituindo as entidades sindicais sujeito que pudesse intervir de forma efetiva para salvaguardar uma igualdade de direitos ao trabalhador individual nas relações laborais.

6. Referencial Bibliográfico

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POSSIBILIDADE DE LIBERTAÇÃO PELOS CAMINHOS DA AUTOGESTÃO? UMA REFLEXÃO SOBRE O COOPERATIVISMO A PARTIR DA FILOSOFIA DESCOLONIAL / Luciana Souza de Araujo RESUMO

O presente trabalho busca estabelecer relação entre o tema do cooperativismo e questões articuladas pela Filosofia Descolonial. Discorre sobre a autogestão, como elemento caracterizador do cooperativismo, considerando a diversidade de vertentes congregadas sob tal insígnia. Desde a filosofia latino-americana, ressalta as contribuições quanto ao método analético, proposto notadamente por Dussel. Considerando que transformação social é objeto da reflexão tanto de determinada vertente do cooperativismo, como também de filosofia específica na América Latina, a conexão entre analética e autogestão tem por objetivo questionar sobre as possibilidades de emergência do novo. Articulados os referenciais teóricos do cooperativismo e da filosofia descolonial, pretende-se refletir sobre o aspecto político da autogestão como fio condutor de uma prática à libertação. Palavras-chave: cooperativismo; autogestão; libertação.

1 Introdução

O presente trabalho é um convite à reflexão quanto a práticas e valores contemporâneos. Nossa atual cultura, assentada em premissas neoliberais, prioriza o econômico em detrimento da pessoa humana, bem como promove o individualismo, como fundamento único e natural de sociabilização produtiva. As consequências de tais primados, a exemplo da radicalização das desigualdades sociais, têm gerado mazelas, especialmente em países de periferia mundial, como é o caso brasileiro. Buscando questionar a possibilidade de formar alternativas de produção, que ressaltem a primazia do humano e o desafio de uma práxis coletiva, propomos a reflexão crítica quanto ao cooperativismo brasileiro. Para tanto, lançaremos mão de instrumentais teóricos fornecidos pela reflexão filosófica latino-americana, conectando o econômico e o político, como fio condutor a uma prática organizativa que nos permita um produzir voltado ao viver.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Centrada na valorização do humano, o ponto de partida da presente reflexão está atrelada à produção, reprodução e desenvolvimento da vida concreta de cada sujeito. Ou seja, trata-se de uma reflexão que não parte da vida humana como um conceito, uma ideia ou um horizonte abstrato. Trata-se da consideração do modo de realidade de cada ser humano concreto (DUSSEL, 2002, p. 11). Desde este aporte filosófico, ressaltamos a necessidade de reflexão e crítica da atual realidade de exclusão e exploração engendradas pelo modo de produzir hegemônico. Muitos autores (não sem pesadas críticas, como adiante veremos) apontam a experiência cooperativa como possibilidade de transformação dessa realidade social. Aliando a necessidade de produção econômica a uma forma de interação social que valorize o coletivo, buscamos verificar a existência de virtualidades a serem afirmadas no cooperativismo, caracterizado por sua matriz autogestionária. A conexão entre a filosofia descolonial e a autogestão cooperativa, busca aliar teoria e prática na busca por pistas para a transformação social. Desde a filosofia, explorando-se o método específico por ela proposto (analético), ressalta-se a necessidade da libertação. questiona-se, de outro lado, se a prática autogestionária, ao exigir a reflexão/ação de cada um dos envolvidos quanto às questões cotidianas envolvidas no processo produtivo, levaria à compreensão das situações concretas em que estão inseridos os cooperados. Desde a micro realidade cotidiana, localizada e circunscrita aos afazeres produtivos diários, complexificada pela consideração do outro, do diálogo e da busca pelo consenso, o agir cooperativo, por seu aspecto político interno, poderia mostrar-se como mecanismo (micro) de conscientização e transformação de cada sujeito e do coletivo? Ainda que a prática do cooperativismo não desencadeie, natural e necessariamente, o desenvolvimento de um novo modo de produção, a presente provocação questiona se poderia, aliada ao instrumental metódica fornecido pela filosofia, revelar-se como mecanismo à prática de valores diferenciados, que, embora não hegemônicos, mostram-se válidos e salutares em direção à libertação.

2 Tateando o real concreto do cooperativismo brasileiro

Para tecer considerações iniciais sobre o cooperativismo, é necessário pontuar que, no Brasil, sua promoção ocorreu por elites políticas e econômicas voltadas à economia agroexportadora. Longe de ser um movimento contestatório, como historicamente caracterizado, na realidade europeia do capitalismo incipiente da era moderna, no Brasil, efetivou-se como ação governamental de controle e intervenção social (RIOS, 2007, p. 26-27). Inicialmente localizado no meio rural, o cooperativismo foi implantado como meio para a ‘modernização conservadora’ agrícola, que consistiu em um processo de transformações nas estruturas rurais, com a introdução de tecnologias (tais como maquinário, insumos, adubos), gerando a subordinação da agricultura à indústria, através da introdução de novos modelos de consumo (LOUREIRO, 1981, p.136).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Como resultado da chamada ‘Revolução Verde’, deu-se a “formação ou consolidação de uma burguesia agrária e a proletarização de camponeses” (SANTOS, 2003, p. 31). Essa orientação teórica engendrou a edição da Lei 5.764/71, chamada Lei do Cooperativismo, que define a política nacional do cooperativismo e, embora seja reconhecidamente obsoleta, ainda hoje se constitui no principal marco legal de referência às experiências cooperativas, pois além de não ter sido revogada pela Lei 12.690/12, este novo documento legal ressalta e complementa determinações contidas na Lei de 1971. Da análise jurídica do cooperativismo brasileiro, pode-se perceber que uma determinada forma de cooperativismo possui suporte e promoção pelo sistema jurídico-formal-burocrático. Trata-se de uma vertente do cooperativismo, que, embora institucionalizada, não é única. A partir da década de 90, diante da crise do desemprego estrutural, surgiram no cenário urbano brasileiro experiências populares que, buscando por geração de renda, utilizam-se do ideário cooperativista, porém em bases teóricas diferenciadas da acima exposta. Trata-se da retomada do cooperativismo em seus fundamentos históricos, como reação às condições socioculturais engendradas pela sociedade moderna europeia que remontam ao final do século XVIII. Historicamente, o movimento cooperativista tinha a característica de questionar os efeitos danosos das estruturas existentes, em um momento de instituição do modo de produção capitalista. Com influências do associativismo e dos socialistas utópicos, buscavam alternativas ao empobrecimento dos artesãos, camponeses e pequenos produtores, às condições desumanas de trabalho, à exploração do trabalho, questionando o trabalho assalariado, a propriedade dos meios de produção e a gestão autoritária e heterogestionária dos empreendimentos capitalistas. Ainda que se ressalte o momento histórico de surgimento do cooperativismo, apontando ser a prática cooperativa tão antiga quanto o capitalismo industrial (cujas causas estão imbricadas), o que se pretende neste texto não é a retomada anacrônica de valores situados em contextos específicos. Sem dúvidas o atual cooperativismo (ou cooperativismos) tem marcas próprias, alteradas e adquiridas pela interação de múltiplos fatores e contextos ao longo da história. Entretanto o recurso à história, clamando por seu peso legitimador, é bastante corriqueiro e também se revela nos estudos sobre o cooperativismo. Notadamente no que se refere ao que se pode chamar de ‘mito de origem’ do cooperativismo: a cooperativa de consumidores de Rochdale , fundada na Inglaterra em 1844. No período histórico europeu em que surgiu o cooperativismo, pode-se identificar a existência de cooperativas de produção e de consumo. Entretanto, este último modelo foi a natureza que acabou se difundindo, a exemplo da eleição de Rochdale como modelo que seria implementado mundo a fora. A escolha pela promoção do cooperativismo de serviços é verifica também no Brasil, traduzida na legislação nacional, como se pode verificar na dicção do artigo 4º da Lei 5.764/71: “As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 [...]”. Também no artigo 7º: “Art. 7º As cooperativas singulares se caracterizam pela prestação direta de serviços aos associados”. (BRASIL, 1971, sem grifos no original). Para além da experiência de cooperativas de consumo e para além de Rochdale – que sem dúvida teve importância no seu contexto e por sua história – existiram outras formas e experiências cooperativas. Porém, tal modelo é o propagado, nacional e internacionalmente, por organizações que avocam pra si a legitimidade de representação do cooperativismo. Em âmbito nacional, temos a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e, em âmbito internacional, a Aliança Cooperativa Internacional (ACI). No cenário de reestruturação produtiva da década de 90, momento de surgimento do cooperativismo popular brasileiro, também se viu surgir a absoluta precarização do trabalho, sob a forma fraudulenta de cooperativas de trabalho. Tratase de dois modelos distintos, embora congregados sob a mesma designação. De um lado a associação engendrada pelos próprios trabalhadores, excluídos do mercado de trabalho, objetivando criar possibilidades de geração de renda em razão do desemprego estrutural. De outro lado, a organização dos trabalhadores feita pelo capitalista, com o objetivo de diminuir os custos sociais do trabalho. O segundo modelo, por burlar regulamentações trabalhistas, foi combatido no âmbito judiciário e acadêmico. Em âmbito legal, foi aprovada a Lei 12.690/12, que pretende definir o cooperativismo de trabalho e estabelecer sua organização e funcionamento. A mencionada lei, bastante recente, foi vista positivamente pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), no sentido que “Ela lança luz sobre os conflitos no mundo do trabalho brasileiro nas últimas décadas.” (SINGER, 2012). Por parte do sistema OCB, a nova lei foi recebida com elogios. Comentando sobre a aprovação da Lei 12.690/12, o presidente da OCB, Márcio Lopes de Freitas, declara:

Esta é uma importante conquista para o movimento cooperativista. Esta lei será o instrumento jurídico preponderante para o funcionamento das cooperativas de trabalho, resgatando a legitimidade, o relacionamento de confiança, com um salto de qualidade e perenidade do negócio cooperativo. (SANCIONADA lei que regulamenta o cooperativismo de trabalho, 2012.)

Pontuando a complexidade do tema, é importante frisar que a edição dessa mesma lei foi, ao mesmo tempo, recebida – paradoxalmente – de forma positiva por seguimentos muito distintos (de um lado a SENAES e de outro a organização ruralista – OCB), mas também gerou manifestações contrárias de setores que lutam por bandeiras muito similares. A exemplo, citamos a nota de repúdio emitida pela CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e as declarações do MNCR (Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis). Embora as duas manifestações sejam desfavorável à promulgação da lei, as razão que cada qual são bastante diversas, até opostas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Enquanto a CONTAG repudia a aprovação da lei por entendê-la como ato de flexibilização dos direitos trabalhistas, o MNCR a acusa de exigir pesadas providências e encargos aos trabalhadores organizados de forma associativa. Tratamse de realidades muito distintas, ainda que ambas organizações apresentem-se como contestatórias do sistema hegemônico. No campo, a luta é pela assunção dos trabalhadores assalariados. Luta-se pela responsabilização dos empregadores pelas conquistas trabalhistas que a cooperativa de trabalho não alcança, tais como: aviso prévio, FGTS, multa de 40% sobre o FGTS, 13° salário, hora in itinere, Férias, PIS, seguro desemprego, salário família, horas extraordinárias. Considerando as complexas relações no campo, os trabalhadores seriam reféns da obrigatoriedade de constituírem cooperativas (embora um de seus princípios seja a livre adesão). Na interpretação da CONTAG, a lei transfere aos próprios trabalhadores rurais as responsabilidades trabalhistas, bem como a responsabilidade pelo risco do empreendimento:

[...] os trabalhadores e trabalhadoras serão obrigados a constituírem cooperativas, tendo em vista ser esta a única forma de garantir emprego [...] já que não há dúvidas que o patronato jamais contratará um empregado se tem a opção de contratar um coopergato, que lhe retira a obrigação de respeitar os direitos trabalhistas destes empregados. (NOTA de repúdio da CONTAG..., 2012).

De outro lado, as razões do repúdio do MNCR não partem do caráter fraudulento ou flexibilizante ao cooperativismo de trabalho. Os catadores de materiais recicláveis entendem a cooperativa como forma legítima de geração de trabalho e renda (em oposição à CONTAG). Porém, seu descontentamento com a aprovação da lei recai no grande impacto que a nova regulamentação terá sobre suas organizações, impondo altos custos às associações que, muitas vezes, não possuem sequer sustentabilidade financeira. Referindo-se ao artigo 7º da Lei 12.690/12 (que determina como direito do sócio: a retirada no valor do piso da categoria profissional; a jornada de trabalho nos patamares da legislação trabalhista; repouso semanal e anual remunerado; adicionais de insalubridade e periculosidade e seguro acidente), manifesta-se o MNCR: “[...] artigo 7º incisos de I a VII e de seus parágrafos de 1º a 6º, não são de competência natural dos empreendimentos cooperativos, e sim dos empreendimentos empresariais mercantis” (DECLARA ÃO..., 2012). Ressaltam que:

[...] os empreendimentos populares solidários e da economia solidária, não podem ser transformados em empreendimentos meramente mercantis, conforme o entendimento prático desta lei. Pois garante aos cooperados direitos obrigatórios da relação empregatícia, tradicionalmente as mesmas do trabalhador subordinado ao capital, submetendo os cooperados a um pretenso dono do capital que deverá pagar as obrigações. (DECLARAÇÃO..., 2012)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 As discussões promovidas pela edição na nova lei, que não revoga, mas adiciona determinações à lei geral do cooperativismo (Lei 5.764/71), demonstra o cenário complexo em que está inserido o tema do cooperativismo. Diante do quadro apontado, é evidente a pluralidade de cooperativismos. De modo geral e considerando a forma de regulação jurídica, o cooperativismo pode ser sistematizado em dois grandes grupos: de um lado o cooperativismo tido como oficiallegal-hegemônico, cujos empreendimentos se enquadram facilmente nas exigências legais (que são, inclusive, convenientes e resultantes desse tipo de cooperativismo). Tal vertente será designada de ora adiante apenas como ‘cooperativismo empresarial’. De outro lado, estão experiências plurais, complexas e com caráter contestatório. São comumente designadas como ‘cooperativismo popular’. Dada a variedade de organizações que utilizam a designação de cooperativa, é de fundamental importância apontar elementos capazes diferenciá-las, indicando o que chamaremos de genuína experiência cooperativa. Dentre outros caminhos possíveis, seguimos pelo elemento autogestionário como caracterizador do que é o cooperativismo. A partir deste critério, o presente trabalho estabelece seu recorte temático: tem por objeto o acima designado cooperativismo popular, que a partir de agora será chamado unicamente de cooperativismo. Insistindo na questão terminológica, embora a substantivação do cooperativismo como popular seja de extrema importância por situar, de maneira clara, o lugar de onde se fala, mesmo diante da necessidade de marcar as bases sobre as quais se trabalha, acreditamos importante seguir afirmando ‘o’ cooperativismo, como único, evidenciado como o movimento genuinamente contestatório. Manter-se no embate, requerendo a essa vertente a exclusividade da designação, é importante no sentido de combater o desvirtuamento da palavra ‘cooperativismo’. Marcando o contraponto à ideia unitária do cooperativismo empresarial, porque reconhecido formalmente, ressalta-se a pluralidade de experiências cooperativas, por isso nos referimos a ‘movimento cooperativista’ ou ‘movimento cooperativo’. Com essa visão ampla no que se refere ao conceito de cooperativismo, é possível identificar pontos de conexão com a chamada Economia Solidária.

2.1 A utopia militante e o cooperativismo: aproximações com a Economia Solidária

A discussão em torno da Economia Solidária ocorreu no Brasil concomitantemente à retomada das formulações da Economia Social na França, com ênfases semelhantes. (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004. p. 15). Trata-se do movimento surgido a partir da década de 90, que congrega vários tipos de experiências apoiadas por igrejas, sindicatos, Organizações Não Governamentais e órgãos do governo, especialmente a partir de 2003, com a criação da Secretaria

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Nacional da Economia Solidária (SENAES), quando lhe é atribuído o estatuto de política pública. Em razão da multiplicidade de empreendimentos reunidos sob a designação de Economia Solidária, uma definição precisa e única é de extremamente difícil. Ainda assim, é possível identificá-la, de modo geral, como o conjunto de experiências solidárias têm a pretensão de estabelecer e fomentar relações econômicas e sociais fulcradas na coletividade e solidariedade, propondo a substituição da lógica competitiva pela solidária. A lógica econômica-solidária questiona a forma de apropriação do lucro efetivado pelo capitalismo, propõe, em seu lugar, que seja coletivo. Nas palavras de Paul Singer, principal referencial teórico da Economia Solidária:

A solidariedade na economia só pode se realizar se ela for organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais em vez do contrato entre desiguais. (SINGER, 2002, p. 09).

Além do questionamento quanto à distribuição dos recursos, os empreendimentos de Economia Solidária se distinguem daqueles sob a lógica capitalista em razão da forma específica como são geridos. Enquanto na administração capitalista prevalece a heterogestão, hierarquizada, com níveis diferenciados de autoridade, que geram decisões de cima para baixo e fomentam a competição, os empreendimentos solidários são administrados de forma autogestionária, com a participação dos trabalhadores no processo de decisão, planejamento e produção. Considerando que os teóricos da Economia Solidária explicitam a defesa da democracia interna em suas experiências, fomento à cultura democrática e ao espírito coletivo, bem como a geração de renda que favoreça a conscientização quanto à exploração capitalista do trabalho, pode-se encontrar conexão com os aportes teóricos do cooperativismo, em sua vertente popular. Neste sentido, Singer é enfático ao afirmar que a cooperativa de produção é o protótipo de empresa solidária, pois “todos os sócios têm a mesma parcela do capital e, por decorrência, o mesmo direito de voto em todas as decisões.” (SINGER, 2002, p. 09). Também é preciso registrar que a Economia Solidária é objeto de controvérsias: imprecisões terminológicas; contradições em sua fundamentação teórica, considerando autores diferentes; a prática política por vezes distanciada das reflexões teóricas. Os questionamentos surgem até mesmo quanto à própria designação dessa corrente: a conjugação das locuções ‘economia’ e ‘solidariedade’ apresenta-se como um desafio, por serem noções opostas. Para alguns teóricos não há na economia espaço à solidariedade (CARLEIAL; LIANA, 2008, p. 77). Nas lições de Coraggio:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 [...] lembremos que para autores inclusive anti-utilitaristas como Alain Caillé, a possibilidade que a economia seja ela mesma solidária é um sinsentido, porque a solidariedade social se alcança pela política democrática e por uma sociedade de associações livres que limitam, regulam, encastram a essa economia que não poderia deixar de ser um aspecto da vida, o relativo ao economizar, ao calcular, ao intercambiar buscando vantagens e soluções para as próprias necessidades. (CORAGGIO, 2010).

Algumas anotações críticas à Economia Solidária recaem na forma pouco analítica de apresentação dos seus fundamentos teóricos, ou mesmo quanto ao conteúdo de tais formulações. A exemplo: a questão se a Economia Solidária seria um novo modo de produção ou forma de amenizar as mazelas do sistema atual. Autores que defendem a Economia Solidária divergem quanto a tais considerações. Para Singer, “A economia solidária é outro modo de produção...” (SINGER, 2002, p. 10). O autor defende:

A economia solidária é ou poderá ser mais do que uma resposta à capacidade do capitalismo de integrar em sua economia todos os membros da sociedade desejosos e necessitados de trabalhar. Ela poderá ser o que em seus primórdios foi concebida para ser: uma alternativa superior ao capitalismo. Superior não em termos econômicos estritos, ou seja, que as empresas solidárias regularmente superariam suas congêneres capitalistas, oferecendo aos mercados produtos ou serviços melhores em termos de preço e/ou qualidade. A economia solidária foi concebida para ser uma alternativa superior por proporcionar às pessoas que a adotam, enquanto produtoras, poupadoras, consumidoras etc., uma vida melhor. (SINGER, 2002, p. 114, grifos no original).

Outros autores, também defensores da economia solidária, sustentam posicionamentos diferenciados, referindo-se à alternativa para geração de renda diante da crise do emprego, estando, portanto, sob os moldes capitalistas.

Pensamos [...] que a economia solidária constitui muito mais uma tentativa de articulação inédita entre economias mercantil, não-mercantil e não monetária, ao invés de uma nova forma de economia que viria a se acrescentar às formas dominantes de economia, no sentido de uma eventual substituição. (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004, p. 187).

A contradição exemplificada demonstra a dificuldade em trabalhar com o tema e abre espaço a críticas como “precariedade conceitual e analítica” (WELLEN, 2012, p. 24), ou quanto à ausência de sustentação teórica (GERMER, 2007, p. 59). A par da falta de consenso entre autores da economia solidária, no que se refere ao conteúdo

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dos fundamentos, questiona-se ainda a capacidade dos empreendimentos solidários em organizar os trabalhadores visando a superação do capitalismo. Também é necessário perpassar o tema da autonomia das experiências de economia solidária – crítica se que estende também ao cooperativismo – frente à lógica do capital. Questiona-se a possibilidade de serem espaços paralelos onde se possa exercer experiências institucionais alheias às leis gerais da reprodução capitalista. Para tanto, devem ser considerados os apontamentos feitos por Rosa Luxemburgo, que se dirige diretamente ao cooperativismo, porém também atinge a base teórica da Economia Solidária:

As cooperativas e sobretudo as cooperativas de produção são instituições de natureza híbrida dentro do capitalismo: constituem uma produção socializada em miniatura que é acompanhada por uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força do trabalho, quer dizer a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. (LUXEMBURGO, 2002, p. 82).

O caráter híbrido analisado pela autora marca a contradição em que a cooperativa está inserida. Desde a lógica interna diferenciada, autogestionária, de valorização do humano e do trabalho, à inafastável lógica capitalista do atual modo de produção. Ao analisar o âmbito econômico da cooperativa, tem lugar o questionamento quanto à invasão da lógica neoliberal na estrutura interna, enfrentando os dilemas anteriormente apontados quanto à precarização do trabalho. Também é preciso refletir se tal incidência é nefasta ao ponto de inviabilizar toda experiência cooperativa. Sem dúvida (adiante referido no item 2.2), a cultura hegemônica neoliberal, que propaga os valores do individualismo, da concorrência e da valorização do capital acima do ser humano, está disseminada de forma radical, introjetada na cultura social. Desta forma é, inevitavelmente, levada ao interior da cooperativa, dificultando a promoção de valores diferentes, tais como o coletivismo, a consideração pelo outro, a busca do consenso, entre outros. Ao final deste trabalho, reunidos a esse debate os aportes filosóficos, pretende-se verificar se a questão é uma dificuldade a ser considerada e ultrapassada ou se representa um obstáculo intransponível, esvaziando a experiência cooperativa de elementos emancipatório. Nessa mesma discussão, cabe também o questionamento quanto a posicionamentos desde um ponto de vista determinista, que impõe uma consequência última como necessária. Diretamente relacionado ao efeito de precarização do trabalho e intimamente ligado à questão da autonomia, está a análise quanto à viabilidade econômica da cooperativa e, de um modo geral, das experiências de economia solidária, pois são organizações que congregam, em grande parte, pessoas de baixa renda, que não dispõem de recursos para constituir capital inicial do empreendimento e, muitas vezes, recorrem a tais alternativas quando já estão em situação de endividamento.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A viabilidade econômica envolve aspectos administrativos, jurídicos e de qualificação profissional, considerando-se também a capacitação para o uso de tecnologias informacional e comunicacional. Os desafios econômicos envolvem, portanto, equacionar a necessidade de produzir para o mercado, portanto submetido a essa lógica, enquanto se pretende propagar uma logica interna diferenciada; bem como exercer atividades comerciais, partindo-se ‘do vermelho’; muitas vezes sob a dinâmica de pessoas de baixa instrução formal e idade avançada. Tais elementos têm levado à necessidade do apoio de organizações externas (tais como igrejas, ongs e, principalmente, o Estado). O posicionamento adotado pela SENAES, decorrente destes fatores, é de que a economia solidária trata-se de política social. Necessita do aporte estatal, seja com injeção direta de recursos, seja com a disponibilização técnica e funcional a amparar a instituição e manutenção dos empreendimentos, considerando seu financiamento e gestão. A partir dessa realidade e, retomando as lições de Rosa Luxemburgo, a cooperativa definitivamente não tem se apresentado, na atual conjuntura, como um fim em si, mas antes como meio, instrumento alternativo de amparo a excluídos do sistema produtivo, meio legítimo a amenizar as desigualdades sociais. Para além da questão econômica, ainda que ressaltada sua importância, o presente estudos por objetivo ressaltar a possibilidade cooperativa – como meio – em outro âmbito: o político, pois o cooperativismo se apresenta como um movimento econômico, mas também social. Encontra-se outro ponto de aproximação entre o cooperativismo e a Economia Solidária: a crítica ao reducionismo econômico. Nesse ponto a pesquisa se apropria dos referenciais teóricos da Economia Solidária, mormente Paul Singer e Euclides Mance, ainda que anteriormente tenha lhes dedicado críticas determinadas. A consideração quanto à viabilidade política da cooperativa está circunscrita ao seu ambiente interno, porém não desconsidera os desafios inerentes à sua inserção externa, subsumida ao modo de produção capitalista e às complexas relações dele decorrente. A viabilidade externa da cooperativa é de extrema relevância, pois sem sustentabilidade, o cooperativismo não se mantém e é, sem dúvida, a razão pela qual essa forma associativa é buscada por quem dele necessita, para geração de renda, ou seja, para questões concretas da vida. A virtualidade cooperativa está em aliar à busca por trabalho e renda a possibilidade de reflexão crítica, e, portanto, política. Trata-se do combate à alienação causada pelo trabalho subordinado à estrutura hierarquizada capitalista. A virtualidade do cooperativismo está no âmbito democrático, quando plenamente exercido, na figura da autogestão. Quando este caráter não se efetiva, os empreendimentos cooperativos estão fadados à cooptação, não oferecendo qualquer benefício à causa contestatória dos efeitos excludentes e exploratórios do capitalismo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 2.2 A autogestão como elemento caracterizador da genuína experiência cooperativa

Diante da multiplicidade de ‘cooperativismos’, é necessário questionar-se por pistas a indicar o que é ‘o’ cooperativismo. Os elementos históricos (com inspiração nas formulações idealizadas pelos socialistas utópicos e associativistas, tais como Proudhon e Owen) e contemporâneos apontam para a estrutura interna da cooperativa. O que há de diferenciador nessa estrutura é: a substituição da competição pela cooperação específica do cooperativismo (que não se confunde com a cooperação efetivada pelo capitalismo); no lugar da acumulação tem espaço a distribuição; e, essencialmente, a valorização do humano sobre o capital, atribuindose especial relevância à democracia. A autogestão e a heterogestão marcam, de forma inconteste, a diferença entre organizações cooperativas (ainda que em âmbito teórico e não jurídico ou hegemônico) e empresas capitalistas. Enquanto na heterogestão a administração é hierarquizada, possuindo níveis diferenciados de autoridade, caracterizando as decisões que vem “de cima para baixo”, na autogestão as relações são horizontalizadas. A autogestão, para que se efetive, exige a participação dos trabalhadores – sócios do empreendimento – de forma concreta, desde o processo de planejamento e decisão, passando – necessariamente – pela execução e repartição dos resultados obtidos pelo trabalho. A ideia de autogestão já estava contida nas experiências socialistas de Proudhon, que, muito embora não tenha utilizado tal designação, empregou seu conteúdo, segundo Motta (1981, p. 133):

[Proudhon] deu, pela primeira vez, [...] o significado de um conjunto social de grupos autônomos, associados tanto nas funções econômicas de produção quanto nas funções políticas. A sociedade autogestionária, em Proudhon, é a sociedade organicamente autônoma, constituída de um feixe de autonomias de grupos se autoadministrando, cuja vida exige coordenação, mas não hierarquização (MOTTA, 1981, p. 133).

A autogestão, contraposta à heterogestão da empresa capitalista, é uma marca indelével às organizações cooperativas. Nas cooperativas de produção, a autogestão manifesta-se em toda extensão da organização: na gestão, no efetivo controle do processo de produção pelos trabalhadores, bem como na distribuição do resultado proporcional ao trabalho realizado (FARIA, 2005, p. 122). E apenas quando simultânea nesses três âmbitos se pode identificar a concretização da autogestão. É sua ocorrência em conjunto que garante uma organização autogestionária. Ao discorrer sobre os princípios da autogestão para unidades produtivas (na gestão; no processo produtivo; e da distribuição), José Ricardo salienta que tais princípios “não são independentes, o que significa dizer que o desenvolvimento pleno de um somente é possível com o desenvolvimento dos outros.” (FARIA, 2005, p. 52).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A cooperativa tem uma existência paradoxal: sua lógica interna é conflitante (e contrária) à lógica externa em que está inserida. Se, de um lado, procura-se propiciar uma forma diferenciada de convivência produtiva entre os cooperados (operadores em conjunto), em colaboração (laborando em conjunto), de outro lado, essas organizações, externamente, entram em relações inevitáveis de competição com outras organizações (capitalistas ou não). Nesse sentido, são válidos os apontamentos de Coraggio:

Para dar um exemplo: a cooperativa posta a competir pela sua sobrevivência no mercado atua competitivamente, motivada pelo egoísmo particular não já de ganhar sem limite, mas sim de assegurar a melhor qualidade de vida para seus membros. E ao fazê-lo, luta contra as forças do mercado: a de outros produtores, capitalistas ou não, nacionais ou do estrangeiro, pugnando por vender seus produtos, competindo por preços ou tratando de ganhar a fidelidade dos consumidores; a do sistema financeiro que usualmente os discrimina; a dos regulamentos e normas que aplica o Estado, usualmente pensadas para a empresa de capital; ou as rígidas instituições do cooperativismo tradicional. (CORAGGIO, 2010).

Além da contradição interna/externa, outros elementos desafiam a efetiva vivência da autogestão, tais como: a cultura individualista exacerbada e hegemônica, que contraria as orientações coletivistas da autogestão; a questão do poder nas relações internas, mesmo em cooperativas genuinamente formadas pelos próprios trabalhadores; a questão da ingerência de órgãos apoiadores da organização, que muitas vezes atuam no sentido de viabilizar a cooperativa, porém tais direcionamentos são negativos, ainda que a prática cotidiana da autogestão seja difícil e morosa; a questão da viabilidade da autogestão em cooperativas com elevado número de participantes; a diferenciação da autogestão e da participação democrática. Pelas características delineadas, conclui-se que a autogestão vai além da participação democrática meramente formalista. Não se restringe à participação – com voto – em assembleias, prática percebida nas cooperativas do modelo agroexportador (referência e endereço certo da atividade legislativa brasileira), cujas assembleias anuais (que deveriam congregar todos os cooperados) são reuniões que objetivam ratificar atos e decisões já tomadas por uma cúpula que se reveza na administração da empresa. Autogestão não se trata de representação e sim da efetiva atuação, em todos os níveis da organização, de maneira responsável e decorrente do amplo acesso à informação (que pressupõe sua compreensão). Na lição de Rose Maria Inojosa (1999, p. 166) “a autogestão é a negação da burocracia que separa uma categoria de dirigentes de uma categoria de dirigidos”. A noção equivocada quanto à autogestão se limitar à participação democrática é amplamente difundida e modelo executado pelo cooperativismo empresarial, pois, reproduzindo em seu interior a lógica capitalista, precisa de decisões rápidas, a serem

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 tomadas por pessoas com característica de líderes. Tal noção foi eleita pela recente definição legal (Lei 12.690/12) de autogestão:

Art. 2º [...] § 2º Considera-se autogestão o processo democrático no qual a Assembleia Geral define as diretrizes para o funcionamento e as operações da cooperativa, e os sócios decidem sobre a forma de execução dos trabalhos, nos termos da lei. (BRASIL, 2012).

A exigência legal, longe de conferir mecanismos efetivos à prática autogestionária, limita-se a garanti-la em sua formalidade. Reduz e, consequentemente, deturpa a noção, restringindo-a à participação democrática, que em muitos momentos da gestão, é meramente ratificadora. Contrariando a noção mercadológica, que domina o cooperativismo empresarial, o processo autogestionário é complexo e não imediato. Demanda empenho e persistência. Porém, como uma construção orgânica e coletiva, revela-se “um processo pedagógico de democracia” (MAURO, 2003, p. 95). O processo engendrado pela autogestão, ao promover a discussão, a participação e a responsabilidade pelas decisões tomadas coletivamente, constitui um espaço que é, em última análise, político. Pretende-se ressaltar a importância desse elemento político do cooperativismo, para além da possibilidade da criação de condições de inclusão material de famílias à margem dos processos econômicos. Sem dúvidas, o elemento econômico não pode ser relegado, pois a motivação que – em geral – leva as pessoas a constituir ou ingressar em uma cooperativa é, majoritariamente, a questão econômica. Ainda assim, a virtualidade da cooperativa está na possibilidade de ser o lugar em que se possibilite a transformação de subjetividades. Se a cooperativa pode ser esse lugar é tão somente em razão do procedimento que congrega: a autogestão.

3 A reflexão filosófica sobre a utopia

Sem dúvida, a filosofia tradicional (historicamente europeia e, hoje, também norte-americana) tem muito para nos auxiliar. Entretanto, considerando-a, é preciso ir além. A reflexão sobre a questão latino-americana, brasileira, exige a reflexão de elementos e traços próprios, nossa história e nossa realidade, que são particularmente nossas. Não se pode olvidar a posição de periferia ocupada por nossa sociedade diante do sistema-mundo. Sem qualquer referência a elementos de inferioridade, esse é um fato que se impõe. Portanto, a reflexão filosófica deve partir de tal consideração, pois apenas a repetição ou aprofundamento de construções erigidas em marcos que

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 não são nossa realidade, tornam-se amarras e reproduzem tal estrutura. As palavras de Dussel (1977) são bastante claras a ressaltar a insuficiência da filosofia tradicional europeia à realidade latino-americana:

A filosofia clássica de todos os tempos é o acabamento e a realização teórica da opressão prática das periferias. Por isso a filosofia, como o centro da hegemonia ideológica das classes dominantes, quando é filosofia da dominação, desempenha um papel essencial na história europeia. Pelo contrário, dificilmente se poderia encontrar em toda essa história o pensamento crítico que seja, de alguma forma, filosofia da libertação, enquanto se articula à formação ideológica das classes dominadas. (...) Os filósofos modernos europeus pensam a realidade que se lhes apresenta: a partir do centro interpretam a periferia. Mas os filósofos coloniais da periferia repetem uma visão que lhes é estranha, que não lhes é própria (...). (DUSSEL, 1977, p. 11-12; 18)

Mesmo sem desconsiderar o pensamento produzido pelo ‘centro’, este artigo se propõe a utilizar o referencial latino-americano como aporte a refletir a realidade latino-americana.

3.1 A colonialidade das reflexões cooperativistas

A filosofia própria da América Latina é aquela que considera, desde esse lugar, a sua própria constituição, no processo colonial moderno. A América Latina, criada como tal, foi integrada em um padrão de poder histórico-estrutural, que, de um lado a colocou em posição de dependência e, no mesmo movimento, constituiu a Europa ocidental como centro mundo do controle de tal poder (QUIJANO, 2006, p. 49). Esse padrão de poder, que define elementos materiais e subjetivos, é a colonialidade, herança histórica que permanece internalizada, mantendo-se para tempos muito além do período colonial. Essa continuidade, velada e explícita, é possibilitada por relações de poder que reproduzem a colonialidade no saber e na subjetividade. A colonialidade também se explicita nas relações de poder. A colonialidade do poder consiste em um sistema de dominação e exploração social, gestado no momento em que a América Latina se constituía na forma como hoje é conhecida. Esse momento foi o da modernidade. Os principais elementos desse sistema de dominação e exploração, segundo Quijano (2006, p. 62; 68; 73; 2005, p. 120), são: a ideia de raça (como um sistema de classificação social, que racionaliza as relações entre colonizadores e colonizados); o capitalismo mundial (como o sistema de exploração social, com divisão do trabalho, seu controle e exploração dos seus recursos e produtos); o eurocentrismo (como um modo de produção e controle de subjetividade); e o Estado-Nação (como sistema de controle da autoridade coletiva). Especialmente interessa ao presente artigo as formulações quanto ao eurocentrismo, racionalidade específica moderna, que consiste em um sistema de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dominação pelo controle da subjetividade. O que se pretende evidenciar com tal aporte não é um ressentimento histórico pelos episódios gerados no período de conquista, mas sim o elemento de distorção na compreensão da realidade, que se mostrou mais duradouro e estável que o próprio processo de colonização (QUIJANO, 2005, p. 107). A questão trazida refere-se a uma perspectiva já assumida pela forma de pensar latino-americana, que em realidade, é fulcrada em elementos e valores eurocêntricos. Justifica-se, portanto, a necessidade de uma crítica genuinamente latino-americana, para que a percepção dos nossos problemas não seja obstada por tal bloqueio de visão.

Por sua natureza, a perspectiva eurocentrista distorce, quando não bloqueia, a percepção de nossa experiência histórico-social, enquanto leva, ao mesmo tempo, a admiti-la como verdadeira. (...) Em consequência, nossos problemas também não podem ser percebidos senão desse modo distorcido [...]. (QUIJANO, 2006, p. 57-58).

Além de pontuar a importância das reflexões filosóficas que considere integralmente a realidade latino-americana, busca-se utilizar tal referência para voltar a análise às formulações teóricas do cooperativismo e da Economia Solidária, no esforço por identificar em que medida tal visão não se apresenta distorcida pelo padrão de poder originado pela força da colonialidade. Nossa herança colonial revela toda uma legitimação de poder, justificada econômica e culturalmente. Colonialidade que também se reproduz no espaço interno do nosso país, seja por sua reprodução a partir de elites culturais e econômicas, ou mesmo pela internalização de valores, tidos como naturais, que assumem o sistema econômico como inevitável ou os discursos culturais como verdadeiros, produzindo desigualdades de todas as ordens. Com esses fundamentos, voltamos os olhos à ‘doutrina cooperativista’, considerada como um corpo de conhecimentos, pretensamente neutros, caracterizados pelo formalismo (descolado da multiplicidade da realidade social) e legalmente legitimado, assumido e divulgado por órgãos que se apresentam como representantes unitários do cooperativismo, em âmbito internacional (a ACI) e em âmbito nacional (o ‘sistema’ da OCB). Para o tema, seguimos a orientação de Gilvando Rios (2007, p. 51), para quem:

A ‘doutrina cooperativa’ é habitualmente apresentada como ‘teoria’. [entretanto] A teoria deriva da prática, dela se enriquece, com ela se modifica e se transforma. [enquanto que] uma ‘doutrina’ é exatamente o oposto disso, pois, não deriva da observação sistemática da prática, se impõe a ela. [...] Apensar disso é conveniente apresentar-se a ‘doutrina cooperativa’ como ‘teoria’, pois isso justifica e enobrece a prática ou as práticas do cooperativismo. Trata-se apenas de uma perspectiva falsamente teórica [para] justificar uma perspectiva pragmática do cooperativismo, isto é, o cooperativismo politicamente ‘fácil’ e ‘seguro’ para os interesses das classes

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dominantes. A ‘doutrina cooperativa’ é uma falsa teoria, na medida em que consiste num corpo de princípios abstratos, sem referencia a situações históricas concretas e de classe. Não interfere, pois, com a ‘prática’, não a enriquece, nem a contesta. (RIOS, 2007, p. 51).

A ‘doutrina cooperativista’ se revela em uma forma de propagação da colonialidade, tanto de forma exógena (colonialidade externa), através das orientações propagadas principalmente pela ACI, quanto de forma endógena (colonialidade interna), nas determinações do cooperativismo empresarial, legal e hegemônico no interior da realidade brasileira. O que se tem produzido nessa doutrina, deixa de considerar o específico contexto histórico-cultural diferenciado da realidade brasileira, para fazer a transposição de um modelo europeu. Nas palavras de Givanildo Rios (2007), é uma caricatura:

O cooperativismo “decalcado”, copiado do figurino formal europeu, não é exatamente uma cópia, como toda imitação, é uma caricatura. Este cooperativismo de “macaqueação” compreende um aspecto aparentemente inofensivo e inócuo, folclórico mesmo: a chamada “doutrina” (RIOS, 2007, p. 47)

A colonialidade dessa vertente se revela na reprodução de valores cooperativistas, categorizado em princípios, que deturpam as origens históricas de onde são extraídos. Também, e principalmente, as formulações teóricas e práticas do cooperativismo empresarial revelam seu vício performativo na crença do progresso capitalista, revelando a colonialidade engendrada pelo eurocentrismo e capitalismo mundial. A visão distorcida deixa de revelar as verdadeiras características desses dois produtos da colonialidade: de um lado o sistema de controle da subjetividade e do conhecimento e, de outro, o sistema de exploração social. Também nessa linha de análise, tem lugar as considerações de Fals Borda (1970), que, analisando o cooperativismo de estilo europeu, implementado com mais êxito na Argentina e sul do Brasil, constata a reprodução dos moldes do cooperativismo de consumo de Rochdale, restando o cooperativismo instaurado atrelado a um processo de colonialismo. Ao assumir fundamentos construídos e adequados à noção eurocêntrica, a subjetividade passa a ser bloqueada, quando não passa a criar como verdadeiros sentidos que são, na realidade, apenas hegemônicos. Conjugada com a noção de colonialidade do poder está a discussão sobre a colonialidade do saber, pois a separação entre saber e poder é didática e tem o objetivo de permitir uma melhor apreensão dos fenômenos. Porém, são noções que mutuamente se condicionam, já que um projeto de poder é legitimado em determinadas bases de saber.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A colonialidade do saber revela o legado epistemológico que condiciona a compreensão do mundo no qual se está inserido. Trata-se da subalternização de conhecimentos próprios frente a uma epistemologia hegemônica. Walter Mignolo (2003, p. 41) é enfático ao afirmar que, apesar de os gregos terem gestado determinado pensamento filosófico, o pensamento não fica a isso adstrito. Pensamento, conhecimento está em todos os lugares e em diferentes povos. Há tantas epistemes quanto tantos povos diferenciados existirem. A postura crítica quanto à construção dos saberes surge diante do limite imposto por essa colonialidade. Para descolonializar o saber é necessário uma aprendizagem que considere os valores e saberes próprios, ainda que destoem do formato tradicional epistêmico. Saberes próprios a exemplo daqueles que são produzidos pelos trabalhadores, quando inseridos em processos marcados pela autogestão. Habilidades, informações e conhecimentos originados do trabalho vivo, construído pelo acumulo da experiência histórica. Considerar esses saberes epistemologicamente é romper com a dicotomia tradicional entre o ‘mundo do trabalho’ e o ‘mundo da cultura’, fruto da racionalidade capitalista (FISCHER; TIRIBA, 2009, p. 293; 294). A sociedade de classes situa o conhecimento (apto à produção da ciência) ao lado dos possuidores dos meios de produção, enquanto desconsidera – ou subalterniza – os conhecimentos daqueles que vendem sua força de trabalho, sob a etiqueta de senso comum ou desvalorizado como conhecimento iminentemente prático. Romper com a colonialidade do saber é conferir validade aos conhecimentos produzidos desde a prática, que são plurais. Saberes constituídos nos debates entre cooperados, ou seja, nas difíceis, morosas e reformuladas decisões da gestão compartilhada. Toma-se a possibilidade autogestionária como meio a gerar, considerar e valorizar outros conhecimentos, vindos da experiência, pois:

O que se vivencia deixa marcas éticas, políticas, culturais e existenciais, além de inúmeros saberes. Coletivamente também se vivenciam modos de ser, produzir e de se reproduzir material, social e culturalmente. Nessas vivências, vão se criando saberes e tradições de um grupo, instituição, povo ou classe social. (FISCHER; TIRIBA, 2009, p. 295).

Romper com a colonialidade é, portanto, considerar a produção do conhecimento para além das estruturas institucionais e formais de ensino e aprendizagem. Os atores que, em geral, estão envolvidos em experiências da economia solidária e também do cooperativismo, são privados do ensino formal ou, de modo insatisfatório, o ‘recebem’ (no sentido dado por Paulo Freire à educação bancária, que considera os alunos como depósitos, inicialmente vazios, a serem preenchidos pelo conhecimento formal e hegemônico detido pelo professor). São, por isso,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 considerados – a partir de uma noção colonializada – destituídos de conhecimentos. Entretanto, por suas vivências, produzem saberes e valores, que são, inclusive, indispensáveis – a partir da metodologia assumida por Dussel –, pois é desse lugar (do depósito vazio; do nada; do que não existe; do que não é considerado) que há possibilidades criativas. É de onde pode vir algo novo.

3.2 A metodologia do novo: autogestão e libertação

Também apontando para as deformações da colonialidade, Erique Dussel, denuncia a divisão do sistema-mundo em centro e periferia: aquele reprodutor de uma totalidade, que se anuncia como única realidade existente, desconsiderando toda uma exterioridade, composta por vítimas. ‘Vítimas’ são seres humanos privados da possibilidade de produzir, reproduzir ou desenvolver sua vida, são excluídos, afetados por alguma situação de morte. (DUSSEL, 2002, p. 303). A totalidade se implantou a partir do século XVI tendo a modernidade europeia com centro. Para a consideração da modernidade a partir da periferia, não apenas a origem desse mito é problematizada, como também o são seus fundamentos e possibilidades. A filosofia da libertação construída por Dussel nega tal dominação e exclusão no sistema-mundo. É necessário destruir tal pensamento europeu totalizante, apontando seus limites, e, a partir da exterioridade latino-americana, abrir lugar para o novo (LUDWIG, 2006, p. 127). A impossibilidade da plena realização da Modernidade exige a superação do atual sistema-mundo, em um projeto denominado “Trans-Moderno”. Neste projeto há a afirmação da alteridade negada, partindo-se do reconhecimento do outro, encoberto pelo sistema vigente. Entretanto, para que se possa valorar e dignificar outras culturas, é necessário negar a centralização europeia. Romper com o ideário de ser essa a única possibilidade e que observa as demais experiências como repetição do seu ‘mesmo’. Para tanto, Dussel (1986) apresenta um método filosófico próprio: o método analético. Essa metodologia específica ultrapassa a dialética aristotélica e moderna. Ultrapassa a noção do pensar como condição para o existir. Correndo o risco de cair em uma simplificação do pensamento dusseliano, que pressupõe o domínio de filosofias complexas, poderíamos apontar três noções que o método analético congrega: (1) a superação da dialética ontológica; (2) o irromper do outro (a exterioridade); (3) a possibilidade de criação do novo, surgido desde o cara-acara. A reflexão sobre o método proposto se inicia com a consideração das análises filosóficas quanto à dialética. Dussel apropria do pensamento de Heidegger importantes contribuições quanto à crítica ao cotidiano e reflexões sobre o ‘pensar essencial’ do ‘ser a partir de si mesmo’ (DUSSEL, 1986, p. 190), partindo-se do cotidiano, busca-se acesso ao fundamento do mundo. Para Heidegger, o pensar só pode acontecer a partir do mundo cotidiano e, especificamente, na crítica a ser feita a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 esse mundo das coisas. Assim, a existência pode ser concebida de duas maneiras: numa posição existencial, cujo modo de existir é óbvio, sem crises (mera reprodução de atos, práticas e rotinas); ou numa posição existenciária, cujo modo de ser é refletido e crítico (DUSSEL, 1995, p. 88). Este primeiro momento do método proposto por Dussel, cujas bases estão na filosofia tradicional, ou seja, ainda dentro da totalidade, é dialético: horizontes são avançados sucessivamente, alterando a percepção do sujeito, em uma atitude que ganha dimensões críticas. Entretanto, a dialética chega ao seu limite: o desvelar do fundamento; a compreensão do ser. Nesse momento, as noções heideggerianas, embora subsumidas, são superadas, pois para além da totalidade está a exterioridade, concreta expressada na face da vítima, o outro, aquele que está excluído do sistema totalitário. O fundamento da totalidade é opressor e causa negatividades. Por essa razão e por se tratar de uma reflexão que parte da realidade concreta de periferia mundial, composta por vítimas do sistema-mundo hegemônico e totalizante, o método dusseliano inclui outros momentos ao método. Subsume a dialética, que, por estar no âmbito da totalidade, é chamada por Dussel de dialética totalitária ou dialética ontológica (DUSSEL, 1986, p. 189). Além de subsumi-la a supera, pois o método dialético, lido e relido ao longo da tradição filosófica europeia, é sinônimo de dominação, por não romper com a ontologia (DUSSEL, 1986, p. 196). É dominação porque, apesar de acessar e conhecer o fundamento do mundo, continua a reproduzi-lo. A superação da totalidade ontológica é feita a partir da constatação de que a totalidade não é tudo. Além dela existe a exterioridade, composta por vítimas desse sistema ontológico. Na exterioridade está o outro, que não é como o eu: “O Outro é o rosto de alguém que eu [...] experimento como outro; e quando o experimento como outro já não é coisa, não é momento de meu mundo, mas meu mundo se evapora e fico sem mundo diante do rosto do Outro” (DUSSEL, 2008, p. 68). Esse momento do método é construído a partir das formulações de Levinás. A descoberta do outro, o seu desvelar, impõe uma atitude ética: a alteridade, que percebe a existência do outro, porém não o transforma em ente da totalidade. No lugar, empreende-se na incansável tarefa de interpretá-lo, unicamente possível por analogia. A interpretação do outro por analogia assume a limitação do conhecer o. Conhece-se algo diferente apenas pela referência ao que já faz parte da própria compreensão. É apenas a partir daquilo que já integra o universo de significado do sujeito e este consegue assimilar algo que lhe é estranho. Portanto, a compreensão vem desde a própria experiência e desta forma busca-se, analogicamente, compreender ao outro, ciente da impossibilidade completa dessa compreensão, pois o outro é ‘mistério insondável’. Tal mistério se revela pela palavra. A dialogicidade é fundamental na filosofia de Dussel e, também, para o método de que se utiliza. No encontro com o outro, no cara-a-cara, é quando surge a verdadeira originalidade. O sentido fundante (o fundamento), que é o limite da ontologia, é transportado para a exterioridade. A partir de uma nova fundamentação, o que era não-ser se torna real.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Configura-se a libertação, que institui uma consciência crítica (ao subsumir a dialética ontológica, desvelando o fundamento do mundo) e – superando a ontologia totalitária – também ética (de alteridade; de reconhecimento), ao escutar a voz do outro. A partir da exposição do método, feita de forma bastante sintética, propomos a conexão entre a filosofia e o cooperativismo, mais propriamente a autogestão. Retomando os momentos do movimento metódico proposto por Dussel e analisando cada um deles a partir da prática augestionária, podemos perceber que se trata de um instrumento prático que proporciona a ruptura com a totalidade ontológica. A conexão feita segue aportes teóricos do cooperativismo, que afirmam a possibilidade de uma postura crítica dos cooperados em razão das atividades autogestionárias exercidas: tomar a frente do seu negócio impõe às pessoas posicionamentos, que apenas são concretizados a partir da compreensão e reflexão das informações inerentes ao assunto tratado. Nessa atividade, pessoas até então vistas e a si próprias reconhecidas como não possuidoras de conhecimentos, descobrem-se capazes. Capazes de utilizar os saberes acumulados por sua experiência. Capazes de aprender novos saberes. Capazes de se manifestar e se fazerem entendidas. Ao se colocarem diante desses desafios em sua própria subjetividade, bem como de outros que envolvem conhecer, compreender e opinar sobre a estrutura externa em que está situada a organização em que atua, os cooperados têm seus horizontes de conhecimentos ampliados. Ultrapassam fronteira a fronteira, sem mesmo perceber as alterações em sua forma de compreender e agir. Esse é um movimento dialético. As condições oferecidas pela gestão compartilhada – ainda que de difícil realização em razão dos dilemas anteriormente apontados – possibilitam o ambiente à ação crítica, a partir das mediações do compreender, refletir, discutir e agir que estão dispersas no cotidiano da autogestão. Subsumindo a reflexão heideggeriana, consideramos que o pensar surge do mundo da cotidianidade. A concretude das relações autogestionárias cooperativistas conferem os elementos de facticidade e efetividade, a estrutura concreta própria e histórica, substrato com o qual os cooperados terão que compreender, refletir e agir. Para que surja a reflexão (para que surja o novo, que decorre do pensar), é necessário o questionamento da cotidianidade, é preciso pensá-la. A prática autogestionária dá condições para que o cooperado desenvolva uma compreensão existenciária, a partir da qual, conhecendo o fundamento das relações e condições que compõe o mundo em que está inserido, possa romper com o mundo da cotidianidade. Nessa leitura, a autogestão se demonstra como dialética ontológica, que permite a ampliação de horizontes de conhecimento, rumo ao desvelamento do fundamento do mundo. Para além da ontologia, o espaço da cooperativa é lugar onde o outro se revela. O outro desde a exterioridade, pois os participantes do cooperativismo popular são, como se disse, pessoas submetidas a vários tipos de exclusão e invisibilidade na totalidade ontológica. No diálogo propiciado pela autogestão ocorre o encontro com o

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 outro. Inicia-se o desafio de falar e, principalmente, ouvir, buscando a compreender, a si e ao outro. Pretende-se olhar o cooperativismo, em sua prática autogestionária, em busca do novo. A cooperativa não é válida em si. Não se basta a si própria como forma institucional. Trata-se do lugar – e tem a autogestão como o modo – que possibilita a construção de novos conhecimentos, novos valores, novas soluções (ainda que para problemas antigos – opressão, exclusão, vitimação), através da intersubjetividade dos atores cooperativos, descobertos como construtores de suas próprias histórias. Ao refletir sobre as relações produtivas, entre os seres humanos e estes com a natureza, Lia Tiriba (2012) indica que: “(...) as experiências de trabalho associado podem se constituir como palco de produção de saberes e práticas sociais que, de alguma maneira, se contraponham à lógica do sistema capital.” No trabalho associado, propiciado pela cooperativa, por meio da práxis de constante questionamento e atitude, os atores relacionam entre si e entre a comunidade, identificando e transformando as estruturas vigentes, alcançando a cada passo a libertação diante das (novas) negatividades. Portanto, o cooperativismo, nas bases acima determinadas, revela-se como práxis de libertação: “A práxis de libertação é a ação possível que transforma a realidade (subjetiva e social) tendo como última referência sempre alguma vítima ou comunidade de vítimas [...].” (DUSSEL, 2002, p. 558). É a práxis de libertação que traz em si a possibilidade do novo: A nova sociedade surgirá a partir das experiências, a partir dos momentos, a partir da cultura do “pleno nada”, a partir do “não-ser”, a partir do trabalho improdutivo, a partir do trabalho vivo, a partir dos “pobres”, a partir da afirmação da afirmação da exterioridade, e por orgânica conjunção com a negação da negação do capital. (DUSSEL, 1986, p. 285) A possibilidade de construção de algo novo revela a potencialidade política da cooperativa, ainda que localizado em seu microespaço. Ressalte-se que não se está a afirmar o cooperativismo como, em si, um projeto político, cuja garantia e consequência inevitável é a construção de uma nova totalidade. Entendemos, com Coraggio, que a transformação social ocorre lenta, trabalhosa e historicamente: Como megaestruturas tão complexas não se modificam pela pura ação decidida de uns poucos (a ideia da “tomada do poder” para revolucionar a sociedade não goza de legitimidade, ou em todo caso se reconhece que o poder social se constrói lenta e trabalhosamente), e como não existe um paradigma plausível dessa outra sociedade, de suas instituições, de suas subjetividades, de suas formas de sociabilidade na diversidade, de seu modo de atuar o político, de sua vinculação com outras sociedades em um mundo global, estamos em um momento de reação, experimentação, aprendizagem, de lenta recuperação da memória, da perspectiva histórica e de um olhar com um horizonte do longo período, de reflexão sobre as práticas, de articulação desde o micro e o local em processos de coalescência em nível mesosocial de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 projetos, grupos, comunidades, redes, movimentos que atinam a saltar as fronteiras nacionais [...]. (CORAGGIO, 2010, sem grifos no original). Entretanto, o agir que se desenvolve internamente na cooperativa (atuando, inclusive, na subjetividade do cooperado) é experimentação e aprendizagem. O que será o novo a surgir é razão imaginativa. Porém, apoiar meios que possibilitem a reflexão, ainda que no micro espaço cooperativo, é parte da responsabilidade da crítica, ao menos em bases teórico-instrumentais.

Conclusões A proposta inquietante do presente trabalho é a reflexão sobre as condições atuais e concretas da sociedade brasileira. Inseridos na realidade de periferia do sistema-mundo, cuja ideologia hegemônica neoliberal é promotora de negatividades e exclusões, cabe a responsabilidade da reflexão questionando pelo novo, pelas possibilidades e caminhos para a transformação social, que se dá inicialmente na transformação do próprio ator social. Os aportes filosóficos conferem subsídios à reflexão por uma postura crítica, consciente das estruturas e fundamentos que dão à atual sociedade globalizada os valores que possui. A discussão teórica quanto ao método para a produção de novos conhecimentos e saberes foi articulada, ao longo do presente trabalho, com o objetivo de aliar-se à reflexão quanto às práticas econômico-sociais. Tendo o cooperativismo como objeto, depois de tecidas considerações quanto a sua complexidade e desafios críticos, conclui-se que há virtualidades a serem afirmadas, porém, estritamente relacionadas à efetiva prática autogestionária. Apenas como opção de geração de renda e condições mínimas de reprodução do viver (ou sobreviver), o cooperativismo se assemelha às condições (alienantes) do trabalho assalariado, subsumido ao capital. Com a ressalva, porém, de que a cooperativa abre espaço a muitas pessoas que, em razão da baixa instrução formal, idade avançada, exclusão digital (entre outros), não teriam inserção no atual mercado de trabalho. No lugar do trabalho alienante exercido em empresas capitalistas, a cooperativa pode possibilitar o fomento da consciência ético-crítica, da conscientização. Enquanto perspectiva, a interação cooperativa abre novos horizontes que podem transcender à mera reprodução da totalidade. No sentido contrário de um determinismo, que aprisiona as experiências cooperativas unicamente aos seus elementos negativos, promover espaços em que se possibilite a criatividade dos atores sociais consiste em dar prevalência do sujeito atuante. Nas lições de Franz Hinkelammert (2013, p. 332), anterior ao sujeito cognoscente (teorizador, formulador da ciência) está a realidade e o sujeito vivo (atuante, o sujeito da práxis). Não se está a desconsiderar a análise crítica do atual momento por que passa o cooperativismo, mas a afirmar a possibilidade primeira – transcendente – da atuação, da práxis. A prioridade do sujeito atuante. E a ele devem

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 ser possibilitadas condições para, refletindo e atuando, desenhar os rumos das possibilidades. A virtualidade apontada ao cooperativismo corresponde à análise da autogestão como caminho (método, prática) à libertação. Essa característica (que não é garantida unicamente pela designação ‘cooperativa’) é o elemento que faz frente às críticas dirigidas à cooperativa e justifica a manutenção desse ideário como possibilidade de transformação da sociedade. Não em si, mas por abrir espaço ao encontro dos atores sociais, conhecedores de si e do outro, possibilitando-se, nessa interação – mediada pelo mundo em que estão inseridos e atuando – o surgimento do novo, a ser criado e desenvolvido. Assim, a cooperativa – que tem a autogestão em todos os âmbitos (produção, execução, partilha) – mostra-se mais que o produto conveniente à realidade externa (econômica), pois favorece a construção de novos conhecimentos e novos valores, desde a sua dinâmica política interna. Concluindo o presente trabalho, ainda que se aponte para uma abertura e não para um fechamento, o agir cooperativo, que ocorre no espaço localizado da cooperativa, por sua potencialidade transformadora dos próprios cooperados em atores conscientizados (ético-criticamente), permite que tais aprendizados sejam levados para a vida. Teríamos, portanto, o protótipo da ação e da conscientização política que, transpondo os microlimites cooperativos, espraia-se na vida política de seus cooperados, enquanto atores cívicos.

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A TEORIA DA REDISTRIBUIÇÃO E DO RECONHECIMENTO DE NANCY FRASER NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA DE GÊNERO1 / Yumi Maria Helena Miyamoto2 e Aloísio Krohling3

THE THEORY OF REDISTRIBUTION AND RECOGNITION OF NANCY FRASER IN BRAZILIAN STATE OF DEMOCRATIC OF LAW IN GENDER PERSPECTIVE

RESUMO

O presente artigo examina a contingência de realização e materialização da teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser no Estado Democrático de Direito Brasileiro na perspectiva de gênero. Preliminarmente, averiguaremos a compreensão, a partir da perspectiva de gênero, do sentido correspondente de espaço público e espaço privado para a abrangência das dimensões da elaboração dos papéis sociais de homens e de mulheres. Posteriormente, será aprofundada a reflexão sobre a teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser que fornecerá subsídios para aferir, nas políticas públicas das questões de gênero adotadas pelo governo federal da presidenta Dilma Rousseff, a eventualidade da colaboração deste subsídio teórico norte-americano na realidade brasileira.

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Trabalho apresentado como resultado do Grupo de Pesquisa “As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil – continuidade e originalidade como problemas de um pensamento periférico” na Faculdade de Direito de Vitória – FDV. 2 Doutoranda e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV, graduada em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Pós-graduação lato sensu (especialização) em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Consultime. Professora de projeto de TCC na graduação da Faculdade de Direito de Vitória - FDV. E-mail: [email protected]. 3 Ph D em Filosofia e M.A. em Ciências Sociais. Professor de Filosofia do Direito no Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória. E-mail: [email protected].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Palavras-chave: identidade – reconhecimento – redistribuição – gênero.

INTRODUÇÃO A naturalização das discriminações dos papéis sociais masculinos e femininos foi legitimada pelos diferenciais biológicos existentes entre homens e mulheres constrangendo ao inexorável encarceramento da mulher ao espaço privado das relações domésticas. A partir da percepção dos artifícios de conversão da natureza em cultura manobrada pelos conjuntos sociais, alavancando a metamorfose de machos e fêmeas em homens e mulheres e, do mesmo modo, a edificação dos valores do feminino e do masculino em cada sociedade trouxe, de fato, consideráveis oscilações estruturais nos ordenamentos sociais. São as opções socioculturais que delimitam as atribuições e as relevâncias do que seja masculino e feminino e não a sua fatalidade biológica, sendo a categoria gênero, então, uma nova dimensão para compreender a realidade social. O isolamento da pessoa ao espaço privado acarreta a sua invisibilidade porque deixa de ser percebida pelos outros fomentando a ausência de sua relevância social. O aprisionamento da mulher ao espaço privado legitimado pela naturalização das discrepâncias das atribuições sociais representadas por homens e mulheres sob o subterfúgio das diferenças biológicas provoca a sua invisibilidade perante as demais pessoas desvalorizando socialmente as questões femininas e exacerbando as disparidades sociais persistentes entre homens e mulheres. A compreensão de que o sistema patriarcal estimula as correlações de submissão e de poder desempenhado pelo homem em face da mulher, incentivando os estereótipos em relação à mesma, cerceando e intensificando a sua inferioridade intelectual e cognitiva, a sua subjugação emocional, social e econômica em relação ao homem, o seu aprisionamento ao reduto privado, à sua fatalidade biológica reprodutiva e a sua agorafobia política. Nancy Fraser é o marco teórico imprescindível para a compreensão da concepção de gênero bidimensional, comportando duas óticas, ou seja, gênero tendo afinidades com classe e, a outra, ligada ao status, focalizando, cada qual, de per si, um aspecto importante de subordinação da mulher, sem, contudo, nenhuma delas, sozinha, ser suficiente, sendo, portanto, necessário que as duas lentes estejam superpostas para vislumbrar uma compreensão plena de que o conceito de gênero tem um eixo de categoria que alcança duas dimensões do ordenamento social: a dimensão da redistribuição e a do reconhecimento. Na dimensão redistributiva, gênero assemelha-se a classe que é uma peculiaridade da estrutura econômica da sociedade que fundamenta a organização da divisão do trabalho, distinguindo trabalho “produtivo” pago e trabalho doméstico “reprodutivo” não pago, permanecendo este como responsabilidade primária das mulheres. Observa-se que dentro do universo do trabalho pago é possível verificar que gênero estrutura a divisão entre os melhores salários para os homens e os

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 menores salários para as mulheres, trazendo como consequência, uma estrutura econômica que gera formas específicas de injustiça distributiva baseada em gênero. Quanto à perspectiva do reconhecimento, gênero é compreendido como uma forma de distinção de status da sociedade uma vez que o mesmo codifica padrões culturais de interpretação e avaliação já disseminados, que são centrais na ordem de status como um todo. O androcentrismo é o padrão institucionalizado de valor cultural que valoriza os traços identificadores da masculinidade e, em contrapartida, desvaloriza tudo que estiver associado ao paradigma feminino, não se referindo exclusivamente às mulheres, sendo, então, esta, umas das características que incide sobre a injustiça de gênero, vez que a instituição destes enquadramentos androcêntricos promove verdadeiras clivagens sociais. Desse modo, a injustiça de gênero somente poderá ser reparada quando houver uma combinação de uma política de redistribuição com uma política de reconhecimento. A hipótese desta pesquisa é a de que, na realidade brasileira, as diferenças biológicas serviram para justificar a naturalização da distinção dos papéis sociais representados por homens e mulheres que apartam as mulheres da atuação na esfera pública, segregando-as à esfera privada das relações e as desigualdades sociais decorrentes desses papéis sociais, não permitem o pleno exercício da cidadania no Estado Democrático de Direito Brasileiro. Neste sentido, o que se questiona é saber em que medida a política da redistribuição e do reconhecimento como proposta por Nancy Fraser se aplica ao Estado Democrático de Direito Brasileiro na perspectiva de gênero. Singulariza-se, nessa perspectiva, uma compreensão do múltiplo dialético para o aprimoramento do objeto da pesquisa, uma vez que, mediante as discrepâncias entre o entendimento do espaço público e o espaço privado, observado na incessante e irredutível continuidade do sistema patriarcal ainda dominante nas relações sociais brasileiras, que são de vinculações de prevalência e de poder do homem sobre a mulher, e a ação das mulheres na esfera pública possibilitando apurar se a mesma reforça os papéis sociais preponderantes de subordinação servil da mulher em relação ao homem e de encarceramento da mulher à esfera privada ao invés de estimular a sua emancipação e libertação social e política. A contribuição deste trabalho é no sentido de deslindar o procedimento das conexões de subjugação de poder, de conformação às atribuições sociais tradicionais de uma sociedade patriarcal mancomunado aos interesses da ideologia capitalista refletindo acerca de novas dimensões de emancipação e de libertação da mulher através da ação (práxis) no espaço público.

1. Compreensão do espaço público e espaço privado e as esferas de estruturação dos papéis sociais de homens e mulheres: a perspectiva de gênero

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Pierre Bourdieu (2009, p. 20) pondera que a presença da distinção anatômica entre os órgãos masculinos e femininos justificou a naturalização “(...) da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente da divisão social do trabalho”. Por conta disso, as assimetrias anatômicas entre os órgãos sexuais masculinos e femininos serviram para legitimar a naturalização das distinções dos papéis sociais representados por homens e mulheres, compelindo as mulheres ao inexorável encarceramento à esfera privada das relações domésticas. Contudo, Gayle Rubin, antropóloga americana, trouxe relevante contribuição ao introduzir o termo “sistema sexo-gênero” em sua obra “O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo, em 1975, ao esquadrinhar a origem da opressão e da subserviência social das mulheres, ocasionando expressivas modificações nos sustentáculos dos arranjos sociais ao desconstruir as delimitações de masculino e feminino como decorrentes dos grilhões da natureza, para resultado de socialização. Evidencia que este sistema sexo-gênero adéqua-se a um somatório de disposições “(...) através dos quais a matéria-prima biológica do sexo e da procriação humanas é moldada pela intervenção humana e social e satisfeita de forma convencional, pouco importando o quão bizarro algumas dessas convenções podem parecer (RUBIN, 1993, p. 5).” Desse modo, ao versar sobre as questões de gênero, ressalta-se o aspecto social, isto é, o aspecto histórico das “concepções baseadas nas percepções das diferenças sexuais (PINSKY, 2010, p. 11)”, inferindo a percepção de que a opressão corresponde a um “(...) produto das relações sociais específicas que a organizam (RUBIN, 1993, p. 6)”. Por sua vez, marcante contribuição traz Hannah Arendt (2003, p. 68) ao escancarar que a nossa compreensão do que se considera o espaço privado, como sendo o símbolo da intimidade contraposto ao espaço público essencialmente guerreiro em sua perspectiva política, encontra-se obscurecido porque privado deve ser percebido na sua significação original de privação, qual seja, de ser privado de sua própria existência porque despojado de “coisas essenciais à vida verdadeiramente humana”. Consequentemente infere-se que a captura da pessoa à esfera privada 4 acarreta a sua invisibilidade na medida em que passa a não ser percebida pelos outros provocando a sua escassez de significância social. Fica evidente, por outro lado, que a mulher estava fadada ao aprisionamento no espaço privado vez que as diferenças biológicas ajustaram-se adequadamente para fundamentar a naturalização da discriminação dos comportamentos sociais praticados por homens e mulheres. Desse modo, explica-se porque as questões femininas perderam sua importância social na proporção em que a mulher se insulou à esfera privada ao ponto de torná-la invisível perante os outros, exacerbando as desigualdades sociais persistentes entre homens e mulheres. 4

Invisibilidade aqui utilizada conforme a definição de invisibilidade pública como “desaparecimento intersubjetivo de um homem.” COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relato de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004, p. 63.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Pela perspectiva de gênero, compreendem-se as reflexões de Simone de Beauvoir (1980, p. 9) porque nascemos machos e fêmeas e nos convertemos em homens e mulheres vez que não é o destino imposto pela natureza e, sim, as escolhas planejadas na sociedade. São as nossas escolhas socioculturais que nos fazem homens e mulheres e não as distinções biológicas que particularizam machos e fêmeas. Portanto, gênero representa “(...) um modo contemporâneo de organizar normas passadas e futuras, um modo de nos situarmos e através dessas normas, um estilo ativo de viver nosso corpo no mundo (BUTLER, 1987, p. 142).” Contudo, adverte Judith Butler (1987, p. 143) quanto aos obstáculos para o exercício da liberdade de gênero porque existem regramentos opressores que conduzem a um caminho de resignação ao enquadramento social considerando que é “(...) um projeto laborioso, sutil e estratégico, e quase sempre velado [e o seu desvio é carregado de] uma realidade plena de sanções, tabus e prescrições (BUTLER, 1987, p. 143)”. Com a clareza dos estratagemas concebidos que transfiguraram elementos naturais em processamentos culturais estrategicamente idealizados pelos grupos sociais convertendo machos e fêmeas em homens e mulheres alavancaram expressivas transformações nos arcabouços das composições sociais. Reconhece-se um novo panorama de consciência da realidade social através da categoria de gênero ao se entender que as atribuições e sentidos do que seja masculino e feminino são orquestrados pelas escolhas socioculturais e não pelo seu destino biológico. A acuidade em assimilar que a divisão social do trabalho emana de construção social de gênero e não de diferenciação biológica do sexo, admite a investigação crítica da cisão social do trabalho realizado por mulheres e por homens no que tange à concessão de papéis sociais marginalizados por gênero, no sentido de seu enquadramento como superior ou inferior, nas pautas de produção, reprodução e política. Por conta disso, a perspectiva de gênero também provoca o questionamento da própria divisão das relações do público e do privado. Neste particular, a práxis e os sustentáculos patriarcais do passado ostentam nefastas implicações reais, nitidamente para as mulheres, no que se refere à divisão sexual do trabalho. De fato, os homens são reconhecidos pelos encargos da esfera da vida pública, econômica e política, e, por esse motivo, se tornam responsáveis pelos mesmos, o que não acontece com as mulheres, uma vez que elas aceitam as atividades da domesticidade e da reprodução. (OKIN, 2008, p. 308). Consequentemente, tradicionalmente, acolhe-se o entendimento da inaptidão da natureza feminina para a esfera pública, decorrente da dependência econômica, social, cultural das mulheres em relação aos homens e a intrínseca submissão à família. Por sua vez, verifica-se que o patriarcado foi admitido, de for incontestável, tanto pelos homens como pelas mulheres, na percepção de Dias (2010, p. 19), que fundamentou a distinção a partir do gênero dos papéis sociais, como nos valores a eles relacionados e a bifurcação da esfera pública e da esfera privada por meio da insulação sexual. As relações de dominação do homem e de subordinação da mulher são intensificadas dentro do sistema patriarcal, que trata a divisão dos papéis sociais,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 particularizando a superioridade masculina em detrimento da feminina, a inferioridade da mulher em relação ao homem, a delimitação categórica e insuperável dos espaços sociais, do público para o homem e do espaço privado para a mulher. O capitalismo ocorre nessa conjuntura adversa para as mulheres, depreciadas tanto na escala superestrutural como no estrutural (SAFFIOTI, 1979, p. 35). O capitalismo se apropria dessa retórica, da subvalorização das capacidades femininas, para legitimar o mito da supremacia masculina e dar sentido à nova forma de organização social. Por outro lado, no plano estrutural, com a expansão das forças produtivas, a mulher foi perdendo seu espaço e, gradativamente, sofreu as consequências do processo de marginalização das responsabilidades lucrativas, renegadas a uma adaptação periférica no sistema de produção. Somente com as conquistas dos direitos das mulheres pelos movimentos feministas e as modificações ocorridas nas relações sociais viabilizaram ambientes para o questionamento sobre a igualdade de gênero, introduzindo ações governamentais para concretizar a igualdade substancial entre homens e mulheres. Entretanto, o encerramento da esfera doméstica ao âmago da esfera privada provoca o aprisionamento da mulher não oportunizando o reconhecimento público do valor social do trabalho doméstico e, principalmente, o entendimento que as questões que envolvem a administração doméstica correspondem a um problema privado das famílias e, consequentemente, de gerenciamento pelos próprios parceiros (GALEOTTI, 1995, p. 252). Assim, as ponderações de Joaquín Herrera Flores (2009, p. 188) são pertinentes quanto à sua proposição de empoderamento das mulheres objetivando o atendimento para suas demandas, preservando a igualdade dos direitos humanos. Contudo, reflete Habermas (2003, p. 163) que o movimento feminista desvela as relevâncias ambivalentes do progresso da igualdade dos direitos entre homens e mulheres, tanto modelo liberal quanto no modelo do Estado social, pois, [...] o paternalismo do Estado social tinha sido tomado ao pé da letra. A materialização do direito, que a princípio visava eliminar a discriminação das mulheres, produziu efeitos contrários, na medida em que a proteção da gestação e da maternidade apenas agravara o risco de desemprego das mulheres, uma vez que normas de proteção do trabalho reforçaram a segregação do mercado de trabalho, situando-as no grupo de salário mais baixo, pois um direito de divórcio mais liberal sobrecarregou as mulheres com as conseqüências da separação e, finalmente, na medida em que o esquecimento das interdependências entre as regulações do direito social, da família e do trabalho fez com que as desvantagens específicas ao sexo se acumulassem. O excessivo paternalismo do Estado, contudo, ao invés de eliminar as discriminações contra as mulheres, ocasionava uma resistência oposta, acentuando as discriminações contra elas, trazendo em seu bojo todas as consequências nefastas completamente divorciadas do contexto social. Pondera-se que não bastam atos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 contra a discriminação porque é necessário um conjunto complexo integrado de interações sociais, culturais e jurídicas. Entretanto, desmascadas as engrenagens de construção social e cultural que levam à naturalização das especificidades biológicas entre homens e mulheres, com a perspectiva de gênero oportuniza a desconstrução do paradigma prevalecente da dominação masculina e da sujeição feminina. Assim, as premissas empenhadas para justificar o enclausuramento da mulher à esfera privada, enaltecendo o cuidado para com a sua família, a sua responsabilidade com a educação dos filhos para o futuro, a sua abnegação e autosacrifício em nome da família, e a sua inexorável invisibilidade, com as reflexões de gênero, não mais se sustentam. O mundo não pode ser mais enxergado, e suportado, a partir de um prisma androcêntrico. A gradativa participação das mulheres na vida política foi decorrente de significativas mudanças sociais, culturais e políticas ocorridas nas sociedades, com o advento de novas composições familiares, “a ruptura dos padrões familiares patriarcais, as novas formas de produção no mundo do trabalho com impacto sobre as relações sociais, as conquistas das mulheres ao longo do século XX e o amadurecimento de uma consciência feminista (AVELAR, 2001, p. 11)”. Contudo, o desafio de desconstruir este paradigma onde a mulher foi reiteradamente separada do processo político, além de ter sofrido um adestramento no sentido de considerar assunto de política, em termos aristotélicos, como sendo coisa de homem, e não assunto das mulheres. Esta agorafobia política é tão eficiente que mesmos que todos os entraves para o exercício da cidadania política pelas mulheres tenham desaparecidos vai levar ainda algum tempo para que as mulheres assumam sua posição na Ágora. Esta é a reflexão de Pierre Bourdieu sobre autoexclusão das mulheres ao espaço público por falta de “vocação” no lugar de uma categórica exclusão, na medida em que as próprias mulheres reputam o espaço público como sendo o espaço masculino, onde essa rejeição ao espaço público corresponde a “uma espécie de agorafobia socialmente imposta, que pode subsistir por longo tempo depois de terem sido abolidas as proibições mais visíveis e que conduz as mulheres a se excluírem motu próprio da ágora (BOURDIEU, 2009, p. 52)”. Dessa forma, a perspectiva de gênero tem o condão de propiciar a descontrução do paradigma predominante da superiordade masculina e do apoderamento da esfera pública e da inferioridade da mulher e sua insulação à esfera privada. Kate Millett defende que a questão pessoal é, também, uma questão política e este questionamento fundamentou o refrão feminista “o pessoal é político”(MILLETT, 1974, p. 242). Para tanto, Iris Marion Young (1987, p. 69) aventa a construção alternativa de vida pública a partir do qual se “insinua que nenhuma pessoa, nenhuma ação ou atributo pessoal devem ser excluidos da discussão pública e do processo decistório,” a despeito de considerar a manutenção da autodeterminação de privacidade. Para Hannah Arendt (2003, p. 15), refletindo sobre a própria existência e a condição humana, entende que a ação é a única atividade que se desempenha entre

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 os homens sem a intercessão das coisas ou da matéria condizente com a condição humana da pluralidade, na acepção de que não é o Homem e sim os homens que vivem e habitam o mundo. 2. Teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser Na modernidade periférica brasileira a perquirição da política do reconhecimento pode ser empreendida a partir de três molduras teóricas distinguindose, a de Charles Taylor, com o reconhecimento (e da redistribuição), que aborda a identidade e reconhecimento, de Nancy Fraser, que destaca a sua política da 5 redistribuição e do reconhecimento e de Axel Honneth ( ), que se dedica à luta pelo reconhecimento (MOREIRA, 2010, p. 33-67). Pondera-se sobre a reviravolta histórica empenhada pela humanidade que irrompem as amarras de seu estado de súdito de uma regência monarquista absolutista para ser alçado à sua posição de indivíduo, como sujeito de direitos perante o Estado. Contudo, para a obtenção dessa nova identidade, que leva em consideração a sua homogeneidade, foram apartadas quaisquer correspondências relativas a gênero, raça, religião, orientação sexual para alcançar o conceito de cidadania. (MOREIRA, 2010, p. 36) Vislumbra-se, no entanto, nessa alforria identitária, a devida precaução no sentido de preservar a pluralidade dos grupos sociais, impedindo que ocorra a sua anulação, a partir do multiculturalismo, nos caminhos traçados por Charles Taylor. Como a questão do reconhecimento compõe a agenda de reivindicações dos movimentos feministas dentro da política do multiculturalismo, Charles Taylor (1998, p. 45) desvenda a polêmica entre a “suposta relação entre reconhecimento e identidade”, na medida em que entende que identidade adéqua-se a “qualquer coisa como a maneira como a pessoa se define, como é que as suas características fundamentais fazem dela um ser humano (TAYLOR, 1998, p. 45)”. A questão da identidade correlaciona-se a “algo como uma compreensão de quem somos de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos (TAYLOR, 2000, p. 341),” apurando que o “ambiente no qual nossos gostos, desejos, opiniões e aspirações fazem sentido (TAYLOR, 1998, p. 54)”, sopesar que a nossa identidade é dialógica, tanto na sua formação quanto na sua manutenção. Contudo, como a nossa identidade é formada em parte pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, “pelo reconhecimento incorreto dos outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem realmente prejudicadas, serem alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam reflectirem uma imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos.[...] (TAYLOR, 1998, p. 45)”.

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Não é nosso escopo o aprofundamento da polêmica estabelecida entre Honneth e Fraser que se encontra na obra FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A PoliticalPhilosophical Exchange.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Este ponto é primordial, qual seja a circunstância do não reconhecimento ou do reconhecimento incorreto que produz efeitos negativos consistindo-se como “uma forma de agressão”, na proporção em que reduz a pessoa “a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe (TAYLOR, 1998, p. 45)”. Este fenômeno é apontado pelas feministas como recorrente nas sociedades patriarcais porque as mulheres são induzidas a adotar uma opinião depreciativa delas próprias, internalizando uma imagem da sua inferioridade de tal forma que, “quando determinados obstáculos reais à sua prosperidade desapareciam, elas chegavam a demonstrar uma incapacidade de aproveitarem as novas oportunidades. E, além disso, estavam condenadas a sofrer pela sua debilitada auto-estima (TAYLOR, 1998, p. 46)”. Por conta disso, pondera-se sobre a necessidade de abandonar essa identidade equivocada que as mulheres têm de si mesmas porque essa autodepreciação se transformar em um mecanismo notável da própria opressão feminina. Entretanto, o incorreto reconhecimento não representa apenas uma falta da devida consideração porque, além do incorreto reconhecimento ocasiona cicatrizes nas suas vítimas “subjugando-as através de um sentimento incapacitante, de ódio contra elas mesmas. Por isso, o respeito devido não é um acto de gentileza para com os outros. É uma necessidade humana vital (TAYLOR, 1998, p. 46)”. Como a “minha própria identidade depende, decisivamente, das minhas reacções dialógicas com os outros (TAYLOR, 1998, p. 54)”, pondera-se sobre a necessidade de um equilíbrio no desenvolvimento de um ideal de identidade se torna primordial ao reconhecimento. Ao analisar a política do reconhecimento das mulheres, Susan Wolf (1998, p. 94-96) aponta a relevância do reconhecimento equivocado delas mesmas, pois, verifica-se que não existe falta de reconhecimento das mulheres na medida em que já foram reconhecidas, há muito tempo, como mulheres de fato. Apesar da ocorrência desse reconhecimento das mulheres o mesmo se formou sob um padrão da dominação masculina que ocasiona a tirania, a exploração e a sujeição das mulheres, que importa em uma barreira para o sobrepujamento desta configuração excludente e deformada de reconhecimento das mulheres. Wolf (1998, p. 96) deixa patente que “não há uma herança cultural clara, ou claramente desejável, separada através da qual possamos redefinir e reinterpretar o que é ter uma identidade como mulher.” Para a resolução do nó górdio do reconhecimento das mulheres, tomamos como ponto de partir o questionamento e reflexão sobre esse reconhecimento equivocado das mulheres que proporcionará desconstrução e a reconstrução da identidade da mulher em novos alicerces, de não exclusão e de não submissão, a partir da alteridade, promovendo a igualdade nas relações de gênero. Uma resposta simples a um aparente enigma complexo. Todavia, a exequibilidade da desconstrução da naturalização das distinções biológicas sobre o mito da superioridade masculina e da inferioridade feminina somente se tornou viável com os estudos sobre gênero ao escancarar a gênese da divisão social do trabalho decorrente das diferenças biológicas orquestradas pelas escolhas sócioculturais e não de sua naturalização.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Axel Honneth fundamentou a sua teoria do reconhecimento na dialética do reconhecimento entre o senhor e o escravo, encarada por Hegel (2008, p. 147-151) para asseverar que a luta pelo reconhecimento se encontra no alicerce de todos os conflitos sociais por justiça distributiva. Edifica Honneth a aproximação crítica do reconhecimento, a partir das ponderações de Hegel sobre a questão do reconhecimento, na sua abstração e metafísica e, ao mesmo tempo, avoca Herbert Mead e sua psicologia social com o propósito de lograr o reconhecimento recíproco por meio de uma concepção intersubjetiva da autoconsciência humana. (MOREIRA, 2010, p. 54) O sentido da “relação que reconhece” é especificado por Hegel apud Honneth (2009, p. 85) como sendo: No reconhecer o si cessa de ser esse singular; ele está juridicamente no reconhecer, isto é, não está mais em seu ser-aí imediato. O reconhecido é reconhecido como válido imediatamente, por seu ser, mas precisamente esse ser é gerado a partir do conceito; é ser reconhecido. O homem é necessariamente reconhecido e é necessariamente reconhecente. Essa necessidade é a sua própria, não o nosso pensamento em oposição ao conteúdo. Como conhecer, ele próprio é o movimento, e esse movimento supera justamente seu estado de natureza: ele é reconhecer. Para Honneth (2009, p. 77), Hegel cogita que a sexualidade constitui um primeiro modo de centralização de sujeitos opostos, uns aos outros, na proporção em que cada “um é igual ao outro justamente aí onde está oposto a ele; ou o outro, por aquilo que lhe é outro, é ele mesmo (HONNETH, 2009, p. 77)”. Prosseguindo nesta forma de raciocínio, Honneth (2009, p. 77) avalia que para se atingir a uma relação de amor real deve-se atravessar pela experiência recíproca do saber-se-no-outro até tornar-se um conhecimento das duas partes, intersubjetivamente compartilhado. Nesse sentido, somente quando o sujeito souber de seu defrontante que ele “igualmente se sabe em seu outro” é “para mim”. Para a relação de reconhecimento é imprescindível entender que significa exatamente o que “está embutida nela, de certo modo, uma pressão para a reciprocidade, que sem violência obriga os sujeitos que se deparam a reconhecerem também seu defrontante social de uma determinada maneira Honneth (2009, p. 78). Isto faz muito sentido porque na medida em que eu não reconheço “meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco posso me ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa HONNETH (2009, p. 78)”, exatamente porque “lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis me sentir confirmadas por ele (HONNETH, 2009, p. 78)”. Corresponde a “um pressuposto necessário para todo o desenvolvimento posterior da identidade, uma vez que confirma o indivíduo em sua natureza instintiva particular, propiciando-lhe com isso uma medida indispensável de autoconfiança (HONNETH, 2009, p. 81)” porque a relação de reconhecimento propõe implicitamente

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 aos sujeitos pretensões recíprocas na mesma medida do correlato reconhecimento um do outro. Levinas compreende o reconhecimento quando eu o reconheço, acreditando nele. Entretanto, “se este reconhecimento fosse minha submissão a ele, esta submissão retiraria todo valor de meu reconhecimento: o reconhecimento pela submissão anularia a minha dignidade, pela qual o reconhecimento tem valor (LEVINAS, 2004, p. 61)”. Por isso, o reconhecimento rechaça a submissão do outro porque a submissão, ao aniquilar a dignidade de outro, despoja o valor do reconhecimento, ou seja, só tem valor o reconhecimento que resguarda a dignidade do outro. Para Honneth, a tomada da autoconsciência de um sujeito somente será possível através do diálogo com um outro sujeito, ou seja, a partir da perspectiva do outro sujeito. (MOREIRA, 2010, p. 56). A edificação da elaboração da acepção de cidadania na modernidade fundamenta-se na dignidade da pessoa humana na sociedade e perante ela, considerando os instrumentos assentados para a sua salvaguarda e respeito pelo Estado. O reconhecimento intersubjetivo, por sua vez, comporta três etapas, sendo a primeira, o reconhecimento recíproco na esfera das relações primárias, referentes ao amor e à amizade, inspirado em Hegel, onde os sujeitos se reconhecem carentes, na dependência um do outro. Na segunda etapa, o reconhecimento se localiza nas relações jurídicas, com o reconhecimento mútuo, da alteridade das interações sociais, onde este reconhecimento intersubjetivo é representado por uma “instância normativa de afirmação da visibilidade, na medida em que a adjudicação de direitos representa uma dimensão indispensável da cidadania (MOREIRA, 2010, p. 58)”. O terceiro estágio do reconhecimento nos conduz à solidariedade que se encontra lida à autocompreensão cultural de uma dada sociedade que orienta a estima social das pessoas, dentro de um contexto de vida social que tem objetivos comuns. Entretanto, desde já, podemos perceber o perigo desta situação, uma vez que “a negação do reconhecimento de alguém implica em privação de um prérequisito básico para o seu desenvolvimento humano.” (MOREIRA, 2010, p. 60) Finalmente, Nancy Fraser defende que a justiça demanda ao mesmo tempo pela redistribuição e reconhecimento de identidades, a partir de uma percepção de justiça bidimensional, centralizada “no princípio de paridade de participação”, porque a justiça “requer acordos sociais que permitam que todos os (adultos) membros da sociedade interajam uns com os outros como pares (FRASER, 2002, p. 66-67).” Para que ocorra essa paridade participatória são necessárias duas condições, sendo a primeira: [...] a distribuição de recursos materiais precisa ser feita de tal forma que assegure independência e “voz” aos participantes. Essa condição “objetiva” evita formas e níveis de dependência econômica e desigualdade que impedem a paridade de participação. Assim sendo,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 evitam-se arranjos sociais que institucionalizam a privação, a exploração e as enormes disparidades de riqueza, renda e tempo para lazer, que acabam negando a algumas pessoas os meios e as oportunidades de interagir com outros como seus pares. [...] (FRASER, 2002, p. 67) Quanto à segunda condição para a paridade participatória, qual seja, a da intersubjetividade, ela “requer dos modelos institucionalizados de valores culturais que expressem o mesmo respeito a todos os participantes e assegurem oportunidades iguais para se alcançar estima social (FRASER, 2002, p. 67)” que guarnece um mecanismo que constrange “os modelos de valores institucionalizados que, sistematicamente, depreciam algumas categorias de pessoas e as qualidades a elas associadas (FRASER, 2002, p. 67)”. Assim as duas condições são condições sine qua non para a paridade participatória porque isoladamente, nenhuma delas é suficiente, pois, a primeira condição se reporta à justiça distributiva que se refere à estrutura econômica da sociedade e as diferenças de classe advindas de fatores econômicos, ao passo que a segunda condição cuida da filosofia do reconhecimento no que se refere à ordem do status da sociedade, às hierarquias do status demarcados culturalmente. Ou seja, por este motivo, uma percepção bidimensional de justiça deve contemplar tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, sem diminui qualquer uma das duas políticas. Este pensamento sintoniza-se com Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 56) porque entende que apenas com a união da demanda por reconhecimento e por redistribuição é que enseja o aprimoramento da igualdade, vez que “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. Nesse sentido, a urgência de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, 2010, p. 43).

3. APLICAÇÃO DA TEORIA DA REDISTRIBUIÇÃO E DO RECONHECIMENTO DE NANCY FRASER NAS QUESTÕES DE GÊNERO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO Para enfrentar a nossa indagação apresentada, averiguamos a Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015 (PNPM 2013-2015), do governo atual, de Dilma Roussef para conferir se a mesma considera a possibilidade de aplicação e concretização da política bidimensional da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser. Desse modo, analisamos os princípios dirigentes da Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015 (PNPM 2013-2015) que tem como objetivo trazer a autonomia das mulheres “em todas as dimensões da vida; busca da igualdade efetiva entre mulheres e homens, em todos os âmbitos; respeito à diversidade e combate a todas as formas de discriminação; [...] participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas (PNPM, 2013)”. Assim, percebe-se

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 a realização do aporte teórico de Nancy Fraser vez que se reconhece que, para a promoção da igualdade substancial entre homens e mulheres, são essenciais planos de sobrepujamento das defasagens de gênero por intermédio das ações afirmativas que levem em consideração as singularidades e particularidades das mulheres nas diversas etapas da vida, além das medidas de inserção social, bem como de redistribuição para reparar a injustiça distributiva. Abrange, ainda, o princípio da equidade, que enseja, por meio do incremento de ações que proporcionem a “inserção e permanência das mulheres no mercado de trabalho, especialmente em profissões não tradicionais com o objetivo de diminuir a diferença de rendimentos (PNPM, 2013, p. 14)”. É indispensável atentar para a diferenciação a ser feita quanto às intervenções de natureza universal que alcança a todas as pessoas que se encontram nas mesmas conjunturas e, às ações afirmativas que são distintivas aos grupos historicamente diferenciados reconhecendo-lhes as especificidades de suas necessidades. É relevante, por outro lado, salientar o princípio da autonomia das mulheres que alavanca a “organização produtiva e o acesso à renda para mulheres, especialmente das em situação de vulnerabilidade social (PNPM, 2013, p. 15)”. Na mesma esteira, quando se fomenta a valorização e o reconhecimento da contribuição das mulheres do campo, da floresta, mulheres indígenas, das comunidades tradicionais e das mulheres com deficiência para o desenvolvimento econômico do país (PNPM, 2013, p. 15). A possibilidade da ação no espaço público pelas mulheres é uma forma de superação da herança social e cultural patriarcal para que elas mesmas possam decidir o que for melhor para elas mesmas, rompendo com o passado de dependência, exploração e submissão em relação aos homens. É, ainda, contemplado o princípio da universalidade das políticas públicas, ao “apoiar a reforma política, bem como a criação, revisão e implementação de instrumentos normativos com vistas à igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, e entre as mulheres, na ocupação de postos de decisão nas distintas esferas do poder público (PNPM, 2013, p. 15)”. As políticas permanentes nas três esferas governamentais são pautadas pelo princípio da universalidade, enquanto que as políticas públicas de ações afirmativas são compreendidas como medidas transitórias até que se atinja a efetiva igualdade e equidade de gênero, raça e etnia. O princípio da Justiça social fomenta a premência de redistribuição dos recursos e riquezas geradas pela sociedade e na pretensão de suplantação da desigualdade social, que impacta as mulheres de forma significativa. Constata-se que a PNPM 2013-2015 dá concretude à teoria da justiça bidimensional de Nancy Fraser como medida de incentivo à justiça social na realidade brasileira. Como as políticas públicas voltadas paras as mulheres atingem diretamente sobre as mesmas, significa que as próprias mulheres precisam buscar o seu empoderamento para que, como sujeitos de direitos e como protagonistas de suas próprias vidas possam intervir peremptoriamente sobre as referidas políticas públicas. Para tanto, é garantido o princípio informador da participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O PNPM 2013-2015 torna evidente a reafirmação da continuidade das políticas de autonomia das mulheres, de acordo com a 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, por ser um “princípio gerador de políticas e ações do poder público que são propostas para a sociedade (PNPM, 2013, p. 14)”, uma vez que a autonomia econômica e a igualdade entre mulheres e homens no mundo do trabalho estão ancoradas em ações exclusivas que objetivam a erradicação da desigual cisão sexual do trabalho, com realce na supressão da pobreza e na prerrogativa da participação das mulheres no progresso do Brasil (PNPN, 2013, p. 14). As ações propostas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - 20132015 contemplam a teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser considerando que as mesmas planejam ampliar “a participação e a permanência das mulheres no mundo do trabalho, garantindo a qualidade nas condições e igualdade de rendimentos (PNPM, 2013, p. 14)”. Concretamente, promovendo “a organização produtiva e o acesso à renda para mulheres, especialmente das em situação de vulnerabilidade social (PNPM, 2013, p. 15)”. Fica mais evidente, a escolha pelo direcionamento do aporte teórico de Nancy Fraser, quando se pretende a “valorização e o reconhecimento da contribuição das mulheres do campo, da floresta, mulheres indígenas, das comunidades tradicionais e das mulheres com deficiência para o desenvolvimento econômico do país (PNPM, 2013, p. 15)”. Do mesmo modo, quando se pretende promover “políticas que visem o compartilhamento das responsabilidades domésticas e que contribuam para a superação da divisão sexual do trabalho (PNPM, 2013, p. 15)”, como também, pela ampliação da formalização do trabalho das mulheres e da garantia de direitos (PNPM, 2013, p. 15). Os movimentos feministas trouxeram questionamentos sobre os ultrapassados estereótipos sobre o papel feminino provocando rupturas nas estruturas sociais tradicionais abrindo novas potencialidades e dando ensejo para que as mulheres pudessem exercer atividades fora do âmbito privado das relações domésticas. Por outro lado, há o reconhecimento mundial da importância da educação para a “consolidação do exercício de direitos e para construção da autonomia individual e coletiva, bem como para o desenvolvimento econômico e social do mundo moderno (PNPM, 2013, p. 22)”. É, por meio dela que se promove a ruptura das “desigualdades sociais de gênero, raciais, étnicas, geracionais, de orientação sexual, regionais e locais (PNPM, 2013, p. 22)”. Especificamente, o PNPM 2013-2015, objetiva eliminar “conteúdos sexistas e discriminatórios e promover a inserção de temas voltados para a igualdade de gênero e valorização das diversidades nos currículos, materiais didáticos e paradidáticos da educação básica (PNPM, 2013, p. 23)”. Nesse sentido, há a necessidade da promoção da formação continuada de gestores/as e servidores/as públicos/as de gestão direta, sociedades de economia mista e autarquias, profissionais da educação quanto aos temas que envolvam a questão da igualdade de gênero, bem como o respeito e a valorização das diversidades (PNPM, 2013, p. 23). O mesmo raciocínio de aplica na “formação de estudantes de todos os níveis, etapas e modalidades dos sistemas de ensino público de todos os níveis (PNPM, 2013, p. 23)”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 O desafio se encontra em provocar fissuras nas tradicionais estruturas sociais notadamente quando se almeja promover “políticas para a ampliação do acesso e permanência das mulheres no ensino profissional, tecnológico e no ensino superior (PNPM, 2013, p. 23)”, ao acentuar o interesse nas “áreas científicas e tecnológicas, com igualdade de gênero, raça, etnia, considerando as mulheres em sua diversidade (PNM, 2013, p. 23)”. O esforço, também, de estimular “a produção de conhecimento sobre relações sociais de gênero, identidade de gênero e orientação sexual, levando em consideração os aspectos étnicos, raciais, geracionais e das pessoas com deficiência (PNPM, 2013, p. 23)”. Assim como proporcionar “políticas para reduzir o analfabetismo feminino, em especial entre as mulheres acima de 50 anos, negras e indígenas (PNPM, 2013, p. 23)”. E, além disso, o propósito de contribuir “para a redução da violência de gênero no ambiente escolar e universitário, com ênfase no enfrentamento do abuso e exploração sexual de meninas, jovens e adolescentes (PNPM, 2013, p. 23)”. A violência contra a mulher configura-se “como um fenômeno multidimensional que não escolhe lugar, classe social, raça, etnia, faixa etária, entre outros e, consequentemente, deve contemplar ações nas diversas esferas da vida social (PNPM, 2013, p. 43)” e, nesse propósito, as suas diversas formas de violência contra as mulheres são enfrentadas na sua singularidade, objetivando refrear as taxas de violência contra as mulheres. É dever do Estado e exigência da sociedade coibir “punir e erradicar todas as formas de violência devem ser preceitos fundamentais de um país que preze por uma realidade justa e igualitária entre mulheres e homens (PNPM, 2013, p. 43)”. Assim, o PNPM 2013-2015 tem o propósito de garantir “e proteger os direitos das mulheres em situação de violência considerando as questões étnicas, raciais, geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional (PNPM, 2013, p. 43)”. Como também, de garantir “a implementação e aplicabilidade da Lei Maria da Penha, por meio de difusão da lei e do fortalecimento dos instrumentos de proteção dos direitos das mulheres em situação de violência (PNPM, 2013, p. 43)”. Por esta razão, assegura-se ampliar “e fortalecer os serviços especializados, integrar e articular os serviços e instituições de atendimento às mulheres em situação de violência, especialmente as mulheres do campo e da floresta (PNPM, 2013, p. 43)”. Mas, principalmente, proporcionar “às mulheres em situação de violência um atendimento humanizado, integral e qualificado nos serviços especializados e na rede de atendimento (PNPM, 2013, p. 43)”. Evidencia-se que o PNPM-2013-2015 busca desconstruir “mitos e preconceitos em relação à violência contra a mulher, promovendo uma mudança cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades e de valorização da paz (PNPM, 2013, p. 43)”. Para tanto, procura identificar “e responsabilizar os agressores das mulheres que sofrem violência doméstica e sexual (PNPM, 2013, p. 43)”, principalmente, quando presta “atendimento às mulheres que têm seus direitos humanos e sexuais violados, garantindo os direitos sexuais e os direitos reprodutivos na perspectiva da autonomia das mulheres sobre seu corpo e sobre sua sexualidade (PNPM, 2013, p. 43)”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A efetivação da teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser é visualizada na proporção em que o PNPM-2013-2015 garante “a inserção das mulheres em situação de violência nos programas sociais nas três esferas de governo, de forma a fomentar sua independência e autonomia (PNPM, 2013, p. 43)”. A igualdade substancial entre homens e mulheres, com certeza, fundamenta uma sociedade mais justa e democrática, perpassando, necessariamente, pela participação das mulheres nos espaços de poder e de decisão “por meio da promoção de mudanças culturais, legislativas e institucionais que contribuam para a construção de valores e atitudes igualitárias e democráticas e para a construção de políticas para a igualdade (PNPM, 2013, p. 53)”. É preciso, portanto, apoiar “a reforma política, bem como a criação, revisão e implementação de instrumentos normativos com vistas à igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, e entre as mulheres, na ocupação de postos de decisão nas distintas esferas do poder público (PNPM, 2013, p. 53)”. O incentivo para a “ampliação da participação das mulheres em cargos de poder e decisão nos três poderes das três esferas federativas (PNPM, 2013, p. 543)”, levando-se em conta as dimensões étnicas, raciais, de orientação sexual, identidade de gênero, geracionais e mulheres com deficiência. Por este motivo é que almeja estimular “a ampliação da participação de mulheres nos partidos políticos e nos cargos de liderança e de decisão no âmbito das entidades representativas de movimentos sociais, sindicatos, conselhos de naturezas diversas e em todos os tipos de associação (PNPM, 2013, p. 54), considerando, sempre, as dimensões étnicas, raciais, de orientação sexual, identidade de gênero, geracionais e mulheres com deficiência. Para tanto, é imprescindível o fortalecimento da “participação social na formulação e implementação das políticas públicas de promoção da igualdade de gênero e de combate a todas as formas de discriminação (PNPM, 2013, p. 53, observando-se as dimensões étnicas, raciais, de orientação sexual, identidade de gênero, geracionais e mulheres com deficiência. O PNPM 2013-2015 consolida as políticas para a promoção do desenvolvimento sustentável que pressupõe “mudanças fundamentais nos padrões de desenvolvimento ainda vigentes no país, estabelecendo como um de seus princípios norteadores a promoção da igualdade nas suas diferentes dimensões (PNPM, 2013, p. 60)”. Neste contexto, o fomento da igualdade de gênero consubstancia-se como uma condição fundamental para a promoção do desenvolvimento sustentável e solidário (PNPM, 2013, p. 60). Ganham relevância, portanto, “as ações orientadas para a valorização do trabalho reprodutivo, historicamente a cargo das mulheres, a partir da divisão sexual do trabalho, que lhes impôs o cuidado da família e a garantia das suas condições de bem-estar e sobrevivência (PNPM, 2013, p. 60)”. O subsídio teórico de Nancy Fraser permite demonstrar o reconhecimento do trabalho reprodutivo e a sua valorização econômica e social, por toda a sociedade no PNPM 2013-2015, “para a compreensão das relações entre gênero e mundo do trabalho, uma vez que a inserção produtiva das mulheres está condicionada pela permanente tensão entre as suas responsabilidades familiares e as profissionais (PNPM, 2013, p. 60)”. Por conta disso, são necessárias políticas públicas que

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 permitam a “liberação das mulheres da obrigatoriedade de seus encargos domésticos [porque isto] constitui um dos fatores decisivos para a conquista da sua autonomia, principalmente a econômica (PNPM, 2013, p. 60)”. No mesmo caminho, a contribuição teórica de Nancy Fraser é evidente quando se almeja a autonomia econômica das mulheres que, no entanto, está condicionada, em grande medida do reconhecimento “da sua contribuição para o desenvolvimento econômico e social, na condição de protagonistas nesse processo, de agentes de mudança, capazes de interferir nas decisões obre as prioridades que deverão orientar as políticas públicas de caráter local, regional ou nacional (PNPM, 2013, p. 60). Uma das linhas de ação do PNPM 2013-2015 comprova a adoção da teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser, a partir do incentivo da expansão “de políticas de soberania e segurança alimentar e nutricional, fortalecendo princípios agroecológicos, o reconhecimento da contribuição das mulheres e o compartilhamento da responsabilidade por uma vida saudável (PNPM, 2013, p. 62)”. Todavia, as políticas públicas para as mulheres não se efetivam se não ocorrer uma transformação de mentalidades, sendo, então, relevante a concretização da cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e não discriminatórias, cooperando para a estruturação de uma cultura igualitária, democrática e não copiadora de estereótipos de gênero, raça/etnia, orientação sexual e geração por intermédio do estímulo das condutas e posturas que não reproduzam argumentos discriminatórios, sendo as mulheres valorizadas em toda a sua diversidade, nos meios de comunicação. E, por fim, promover ‘a visibilidade da contribuição cultural das mulheres na sociedade brasileira e o acesso das mulheres aos meios de produção cultural e de conteúdo (PNPM, 2013, p. 75)”. Assim, dar visibilidade ao trabalho feminino possibilita trazer ao debate as necessidades específicas das mulheres que são implementam através das políticas públicas para as mulheres que contemplam em seu bojo a contribuição teórica de Nancy Fraser quanto à necessidade de políticas públicas de redistribuição e de reconhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O ponto crucial foi desconstruir as demarcações de masculino e feminino como resultantes dos grilhões da natureza, para criação de socialização para ensejar o grande progresso nas questões dos direitos das mulheres. Instaura-se, assim, uma nova perspectiva de compreensão da realidade social por intermédio da categoria de gênero, pela percepção de que as atribuições e significações do que seja masculino e feminino são coadunados pelas escolhas socioculturais e não pela sua fatalidade biológica. Para lograr as proposições sobre políticas de gênero, na finalidade emancipatória de Boaventura de Sousa Santos procura-se um novo critério comum político por meio do empoderamento das mulheres, no discernimento de Herrera

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Flores. Neste sentido, é essencial a investigação da identidade e do reconhecimento das mulheres em novas bases, de não exclusão e de não submissão, com base na alteridade, promovendo a igualdade nas relações de gênero, desfazendo, assim, o nó górdio do reconhecimento falseado das mulheres. As ponderações de Nancy Fraser oportunizaram o entendimento de que, de fato, para que ocorra a emancipação e a libertação das mulheres as questões sobre a redistribuição dos recursos econômicos em sociedades desiguais devem ser concretizadas a partir da combinação com as demandas de representação, identidade e diferença. Depreende-se que o reconhecimento e a redistribuição acolhem o aprimoramento da igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades por meio das práxis das mulheres no espaço público. Evidenciado que a concepção bidimensional de justiça, que contempla tanto a política de redistribuição e de reconhecimento, articulado por Nancy Fraser empregase compativelmente na perspectiva de gênero, constatamos que esta teoria pode servir de fundamento para a Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, na formulação e elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015. Desse modo, para a otimização da justiça social na sua perspectiva bidimensional de gênero devem-se ponderadas as peculiaridades e especificidades que atingem as mulheres, no que concerne ao seu pretérito cultural e social de herança patriarcal, esculpida numa moldura machista e da submissão feminina. Assim, as desigualdades sociais advindas dos papéis sociais reservados para homens e mulheres sob a alegação das diferenças biológicas e sexuais se prestarem como argumento para a dominação das mulheres ao julgo dos homens. O imaginário da superioridade masculina e da fragilidade e docilidade da mulher segregaram cada qual ao espaço de atuação ou de submissão, ou seja, o espaço público reservado aos homens e as mulheres encarceradas ao espaço privado das relações domésticas que engendraram a invisibilidade da mulher e de todos as suas temáticas e preocupações. Portanto, é relevante a efetivação da justiça bidimensional de gênero de Nancy Fraser, com a política da redistribuição e do reconhecimento como mecanismo de reversão do paradigma patriarcal, que traz em seu cerne o entendimento da prevalência da superioridade masculina e, consequentemente, a consideração da inferioridade feminina. Verifica-se a consistente intenção da política brasileira de desafiar as questões de gênero, por intermédio da utilização da teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser, contudo, no caminho de Pierre Bourdieu (2009, p. 52), cogitamos que mesmo que as pressões externas sejam eliminadas e as liberdades formais, como o direito de voto, o direito à educação, o acesso a todas as profissões e, neste sentido, as políticas públicas, são obtidas, a agorafobia socialmente imposta às mulheres ainda perdurará. Por conta disso, as políticas públicas nas questões de gênero devem considerar a indispensabilidade de sua persistência como medida para a reconstrução das relações de igualdade substancial entre homens e mulheres. Há uma estrita

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 dependência da formulação de políticas públicas e ações afirmativas nas questões de gênero e o empenho conjunto do Estado e das demais instituições, como a família e a Escola, além da mudança nas mentalidades e, especialmente, nas práxis das mulheres na esfera pública.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 LINHAS EDITORIAIS E NORMAS DE PUBLICAÇÃO CONSIDERAÇÕES GERAIS Usualmente, entende-se haver três grandes caminhos do pensamento jurídico contemporâneo. O primeiro, de larga repercussão e muito ao gosto da maioria dos juristas, é o que se chama de Positivismo Jurídico positivista, que abrange: na sua conotação mais estrita, as obras de Hans Kelsen, de Herbert Hart, entre outros; sua vertente mais sociológica, também chamada de positivismo eclético, lastreado na escola histórica do direito e, no Brasil, pela filosofia de Miguel Reale; e, por fim, o positivismo ético, decorrente de algumas tendências pós-modernas, em especial do pensamento de Jurgen Habermas e John Rawls. O segundo caminho, na verdade, é um conjunto de diferentes doutrinas filosóficas que se comunicam por não aceitarem a abordagem positivista. Podem se lastrear: em um realismo jurídico, tal como Carl Schmitt; em um existencialismo jurídico, tal como o faz Hans-Georg Gadamer; ou em uma análise das micro-relações de poder, tal como o faz Michel Foucault. O terceiro e último grande caminho do pensamento jurídico contemporâneo é a chamada Crítica Marxista do Direito, que evidencia a relação do Direito para com a luta de classes, tal como o faz Peter Stutchka, e sua relação intrínseca para com o sistema mercantil, tal como faz Eugeny Pachukanis. Assim, será dada preferência aos textos que se encaixem em quaisquer das perspectivas acima relacionadas e que sejam adequadas às linhas editoriais abaixo. A Revista Crítica do Direito é uma frente ampla de militantes, intelectuais e pesquisadores do direito oriundos das mais diferentes regiões do país e das mais diversas tendências teóricas. Nossa missão é a análise crítica numa perspectiva ampla, sem sectarismos teóricos, contemplando as diferentes tendências de pensamento, desde que haja expressamente a conotação progressista perante os modelos econômico e político vigentes no Brasil e no mundo, bem como perante a sociabilidade capitalista em geral. Partindo dessas premissas, seguem as linhas editoriais. 1 - CRÍTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA Esta linha é de grande impacto para as formas tradicionais de se pensar e praticar o direito. Por meio dela se oferece uma crítica dentro do universo factual de atuação tradicional do jurista. Aqui o espaço é amplo para se elaborarem críticas às leis, à jurisprudência, ao papel da Administração Pública, à repressão institucional, à seguridade social, a questões trabalhistas, entre tantas outras. Assim, o artigo deve se posicionar criticamente quanto à preservação do "status quo" e aos limites impostos à cidadania e à democracia pela ideologia dogmático-positivista.

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2 - FUNDAMENTOS DA CRÍTICA DO DIREITO Nesta linha, entendemos ser basilar o desenlace de todas as amarras ideológicas referentes a aspectos jurídicos fundamentais, sejam eles relacionados à discussão da sociologia e filosofia do Direito ou à teoria geral do Direito. Assim, temas como princípios gerais do direito, legalidade, isonomia, liberdade, propriedade, sujeito de direito, método de investigação jurídica etc. são colocados à prova, trazendo-se à luz suas nuances ideológicas. 3 - ELEMENTOS DO PENSAMENTO CRÍTICO Por fim, nesta linha serão analisadas as grandes questões teóricas da contemporaneidade que possam ter mediatamente repercussão para as investigações do direito e do Estado. Esta linha diz respeito às pesquisas que não tenham como foco temas específicos da análise jurídica em suas mais variadas vertentes, mas que importam sobretudo à investigação das ciências sociais em geral. Podem ser abordados temas relacionados à economia política e sua crítica, às ciências políticas em geral e às discussões propriamente filosóficas, tais como lógica, epistemologia e ontologia. Podem também constar aqui discussões relacionadas à crítica “cultural” em geral, seja de cinema, música, literatura e das artes plásticas, desde que possam ter, pelo menos mediatamente, repercussão para as investigações do direito e do Estado NORMAS DE PUBLICAÇÃO ENCAMINHAMENTO Os autores deverão encaminhar seus textos, exclusivamente, por meio do endereço eletrônico destinado para esse fim, a saber, [email protected]. NORMAS BÁSICAS DE FORMATAÇÃO Artigos científicos: Textos em arquivos .doc Espaçamento entre linhas simples Texto alinhado à esquerda, sem tabulação Fonte Arial 10

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Quantidade de caracteres entre 28.800 e 72.000 (entre oito e vinte laudas) Imagem opcional, com obrigatória menção da fonte Enviar mini-currículo no formato "Profissão. Formação acadêmica. Última publicação (se houver). Página pessoal (se houver). Assuntos de interesse: Resenhas: Textos em arquivos .doc Espaçamento entre linhas simples Texto alinhado à esquerda, sem tabulação Fonte Arial 10 Quantidade de caracteres entre 1800 e 18000 (entre meia e cinco laudas) Imagem da capa do livro Enviar mini-currículo no formato "Profissão. Formação acadêmica. Última publicação (se houver). Página pessoal (se houver). Assuntos de interesse: Traduções: Textos em arquivos .doc Espaçamento entre linhas simples Texto alinhado à esquerda, sem tabulação Fonte Arial 10 Autorização, específica para fins de tradução, por escrito e assinada, na língua original e em língua portuguesa, dos detentores dos direitos autorais Enviar mini-currículo no formato "Profissão. Formação acadêmica. Última publicação (se houver). Página pessoal (se houver). Assuntos de interesse: Enviar mini-currículo do autor cujo texto foi traduzido. OBSERVAÇÃO DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO Na elaboração dos textos os autores deverão observar o novo acordo ortogáfico. USO DE IMAGENS Será admitido o uso de imagens, bem como as respectivas legendas, desde que citadas as referências de autoria e instituição detentora. SELEÇÃO DOS TRABALHOS A seleção dos trabalhos será por meio de pares especialmente designados para tal fim. Os textos devem ser inéditos no Brasil, com título, resumos e 3 palavraschave/descritores em português e inglês.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 Aos pareceristas ad hoc fica reservado o direito de publicar, rejeitar ou devolver os textos para adequação segundo o parecer que será encaminhado aos autores. Aos editores é resguardado o direito de diagramar os textos conforme o padrão gráfico da revista. NORMAS DE CITAÇÃO Tendo em vista a Revista Crítica do Direito ser uma publicação on line, o Corpo Editorial optou pela utilização do sistema autor-data para a citação, devendo a referência completa estar disposta na bibliografia. Desta forma, para as referências, pede-se seja seguido o padrão abaixo: Artigo em periódico: GOULART, Flávio. A. A. Representações Sociais, Ação Política e Cidadania. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro: ENSP, vol. 9, fascículo 4, out/dez de 1993, pp. 477/486. Livro completo: MASCARO, Alysson Leandro Barbate. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010. Capítulo de livro: LOPES, Ana Maria D’Àvila. A cidadania na Constituição Federal Brasileira de 1988: redefinindo a participação política. In: BONAVIDES, Paulo et alii (Coords). Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao Prof. J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 21/34 Tese (doutorado) ou dissertação (mestrado): ALMEIDA, Juliana Litvin de. Da possibilidade de emancipação humana: experiência formativa e elaboração do passado – contribuições de Theodor W. Adorno. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Obra em meio eletrônico: COLOMBO, Thiago. Tupac Amaru bradado aos berros. Revista Crítica do Direito. Disponível em: . Acessado em 14 de junho de 2011. DIREITOS DE PUBLICAÇÃO

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015 A Revista Crítica do Direito é uma publicação eletrônica de acesso aberto e gratuito que mantém on-line todos os seus números publicados, bem como é divulgada a leitores cadastrados. Ao fornecerem textos, os autores concordam em transferir os direitos exclusivos de reprodução dos textos da forma acima descrita, o que tacitamente implica a aceitação de todos os itens constantes do item “Normas de Publicação”. Os autores se responsabilizam integralmente pelos direitos das imagens fornecidas. ESCREVA PARA A REVISTA CRÍTICA DO DIREITO! Dicas, críticas ou sugestões serão muito bem vindas. Escreva para [email protected].

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