SPGD 2016 2º SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN DA ESDI Rio de Janeiro, 9 a 11 de novembro de 2016
Por meio do cinema: design, antropologia e colaboração By means of cinema: design, anthropology and collaboration PORTELA, Imaíra; IBARRA, Maria Cristina RESUMO: Este artigo pretende refletir por meio do cinema, especificamente por meio do filme colombiano O Abraço da Serpente (2015), recentemente indicado ao Oscar dentro da categoria Melhor filme estrangeiro, sobre a prática do design e sua relação com a antropologia. Buscamos, a partir da visão do Design Anthropology, explorar o que, como designers, podemos aprender do comportamento de um xamã, de um etnólogo e de um biólogo na Amazônia colombiana, na primeira metade do século XX, e ver como podemos trazer essas formas de atuar para os processos que vivemos hoje no nosso campo.Como um filme pode nos fazer pensar nosso papel como designers? Quais atitudes dos viajantes podemos aprender e de quais nos podemos apropriar para serem levadas à prática do design no nosso contexto? Podemos conseguir a partir delas um melhor processo com o grupo com que trabalhamos? Palavras-chave:Pesquisa e metodologia do design, cultura e sociedade, design antropology, o abraço da serpente, cinema. ABSTRACT: This article aims to reflect through cinema, specifically through the Colombian film Embrace of the Serpent (2015), recently nominated for an Oscar in the category Best Foreign Language Film, on the practice of design and its relation to anthropology. We seek, from the Design Anthropology point of view, exploring what can we learn, as designers, from the behavior of a shaman, an ethnologist and a biologist in the Colombian Amazon, in the first half of the twentieth century, and see how we can bring these forms of work to the processes that we have today in our field. How can a movie make us think our role as designers? What travelers’ attitudes can we learn and which ones can we appropriate to be taken to the practice of design in our context? Can we get from them a better process with the group we work with? Keywords: Research and methodology of design, culture and society, design anthropology, The embrace of the snake, cinema.
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1 — Introdução O filme "O Abraço da Serpente" conta a história de dois exploradores pela Amazônia colombiana, um deles etnólogo e o outro biólogo. Os dois, por motivos diferentes, aparecem na história buscando a Yakruna, uma planta sagrada, que se encontra no território e faz parte da cultura de várias tribos indígenas hoje extintas. Assistindo e analisando a película, reconhecemos várias características da pesquisa antropológica: como é ir ao campo, fazer imersão, colocar-se no lugar do outro, observar e participar, deixar-se afetar e transformar, etc. Se entendemos a antropologia como "a maneira de pensar quando o objeto é 'o outro' e que exige nossa própria transformação", como afirma Merleau-Ponty (1984 apud Magnani, 2002), entenderemos porque o design, quando se aproxima dela, abre espaço para participação e a colaboração. Como apontam os investigadores da Research Network for Design Anthropology (Rede de pesquisa para o Design Anthropology): A participação e colaboração entre as partes interessadas - mais proeminentemente usuários, cidadãos e especialistas profissionais - tornaram-se um forte ponto de convergência entre design e antropologia, principalmente devido à capacidade dos etnógrafos para mobilizar e envolver "pessoas comuns" nos processos de design (RESEARCH NETWORK FOR DESIGN ANTHROPOLOGY, 2016, tradução nossa) O que buscamos com este artigo é pensar o design e sua relação com a antropologia através da história e os acontecimentos relatados no filme. Pretendemos, a partir da visão do Design Anthropology, campo que explicaremos mais a frente, explorar o que, enquanto designers, podemos aprender do comportamento do etnólogo e do biólogo na Amazônia colombiana, e ver como podemos trazer essas formas de atuar para os processos que vivemos hoje no nosso campo. Primeiramente, faremos uma breve descrição histórica da relação do design e antropologia. Em seguida, apresentaremos nosso modo de abordar esta relação, relatando as principais partes do filme, para, em seguida, concluir com uma análise do filme com a prática do design, a colaboração e participação.
2 — Desenvolvimento 2.1 Design e antropologia Os pilares sob os quais se fundou o design modernista, forte influência para o design brasileiro, estavam principalmente ligados ao atendimento de necessidades primárias do homem pós-guerra europeu. O desenvolvimento industrial tornara-se uma prioridade para a reconstrução da sociedade e para reordenar a infraestrutura de produção. A fundação da Bauhaus na Alemanha, em 1919, visava relacionar o design à arte e aos ofícios, enfatizando o caráter estético dos produtos e valorizando também as habilidades do artífice. Em contrapartida, a HfG Ulm, baseada em Ulm (Alemanha), no ano de 1953, abandona qualquer relação que o projeto venha a ter com uma manifestação artística, ou mesmo o ofício, a habilidade do artífice e foca-se apenas na metodologia do projeto, formando um designer com competências generalistas e ligado estreitamente à produção industrial. O exercício do design, como se configurou no Brasil, vem de escolas que acabam por privilegiar a questão estética (Bauhaus) e a produção industrial (Ulm). O pensamento Anais do 2º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2016 ISSN 2447-3499
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moderno e os movimentos modernistas se impuseram como uma forte influência para esse fazer mais ligado à produção seriada. O que se esperava do design modernista é que ele servisse como um redentor dos problemas do mundo e do homem. Ocorre que toda essa prática se estabeleceu de costas para a compreensão dos problemas sociais. Se não há uma crítica e o pensamento não se coloca em constante problematização, acaba-se por criar um design descolado do mundo real. Como pesquisadoras atuantes no Brasil e também orientadas por esta tradição, desejamos através deste estudo colocar em crítica os nossos modos de fazer design e pesquisa em design, repensando nossas práticas. Sob outra perspectiva, sabemos que há um trabalho conjunto entre designers e antropólogos desde há alguns anos, como é colocado no livro Design Research Through Practice (2011) e também no artigo Ethnography in the Field of design de Christina Wasson (2000). Segundo estes autores, a indústria do design começou a envolver etnógrafos ainda nos anos 1970, primeiro no centro oeste dos Estados Unidos e na área de Chicago e um pouco depois na Califórnia. Depois nos anos 1990 muitos antropólogos foram contratados por grandes empresas incluindo Apple (1994) e Intel (1996). Nesta década ficaram bem conhecidos os trabalhos de Julton Fulton Suri na IDEO, e o de Liz Sanders na Fitch com métodos de “Design Participativo”. Várias abordagens têm surgido a partir destas aproximações entre design, antropologia e as demais ciências sociais. Quais podem ser suas possíveis contribuições à prática do design hoje? No Laboratório de Design e Antropologia (LaDA) da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), do qual nós autoras fazemos parte, trabalha-se com a perspectiva teórico-metodológica do Design Anthropology. Este é um campo emergente que é diferente do design e da antropologia e que se forma com a ideia de convergir esforços e aprender um do outro (Halse apud GUNN, 2012). Como Gunn, Otto e Smith (2013) apontam, um dos seus desafios é desenvolver ferramentas e práticas para a criação colaborativa do futuro. Este campo cria métodos que empregam várias formas de intervenção, pois ele é mais orientado à intervenção e transformação da realidade social do que a antropologia, e trabalha em equipes multidisciplinares em processos de design e inovação. Ancorados na tradição antropológica de investigar o passado para entender o presente e na capacidade do design de projetar futuros, esse campo de conhecimento, se propõe a estabelecer uma linha contínua entre o que aconteceu e o que está por vir. Ele desenvolve ferramentas que auxiliam na construção de futuros imaginados que não estejam descoladas da realidade dos sujeitos envolvidos no processo, construindo com eles esse futuro por meio de práticas colaborativas, contribuindo assim para a transformação dessas realidades (GUNN et al., 2013). Com este embasamento teórico nos perguntamos: Como um filme que relata duas histórias protagonizadas por um xamã amazônico e dois cientistas durante suas incursões na Amazônia colombiana, primeiro no ano 1909 e depois em 1940, pode nos fazer pensar nosso papel como designers? Como estes cientistas validaram os conhecimentos indígenas e se deixaram afetar por eles? Qual seria o papel dos designers no trabalho com comunidades (urbanas ou rurais) às quais eles não pertencem? Quanto eles são cientistas e quanto eles são colocados como índios? Quais atitudes dos viajantes nós podemos aprender e de quais nós podemos apropriar para serem levadas à prática do design no nosso contexto? Podemos conseguir a partir delas um melhor processo com o grupo com que trabalhamos?
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2.2 O abraço da Serpente de Ciro Guerra. “O Abraço da Serpente” é um filme do diretor colombiano Ciro Guerra que se baseia nos diários de campo do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünber (Figura 1A) e do botânico americano Richard Evans Schultes (Figura 1B). Ambos entraram em território Amazônico durante a primeira metade do século XX. A história contada por Guerra é construída através de paralelos temporais. Uma questão chave para iniciar esta descrição é entender de que ponto de vista se conta a história. O filme fala principalmente a partir do ponto de vista de Karamakate (Figura 1C), xamã Cohiuano, que acredita ser o último sobrevivente de sua tribo. Em um primeiro momento, Karamakate é encontrado pelo etnólogo Theodor e seu informante Manduca (Figura 1D), em uma margem do Rio Uaupés. Quarenta anos depois de vivida a primeira história acontece o encontro de Karamakate com o biólogo Evans, às margens do mesmo Rio. As cenas se constroem sucessivamente, como uma experiência já vivida, em que o índio entra em contato com o homem branco e daquele ponto iniciam juntos uma trajetória.
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Figura 1: A- Theodor Koch-Grünber. B-Richard Evans Schultes C-Karamakate D-Manduca (Screenshots de algumas cenas do filme)
O etnólogo alemão, Theodor, acompanhado de Manduca, chega a Karamakate sofrendo de uma grave doença que só poderia encontrar cura com o conhecimento do xamã (Figura 2A). Karamakate, ainda jovem, acreditando ser o último sobrevivente de sua tribo e vendo no homem branco, colonizador, a figura determinante para o extermínio de sua etnia, resiste fortemente a oferecer ajuda ao branco. Só encontra motivação para tal quando reconhece no pescoço do etnólogo um colar originário de sua tribo (Figura 2B). Theodor afirma ter estado com os cohiuana e saber o caminho para reencontrá-los. Essa é também uma trajetória até a sua cura, pois na tribo cohiuana estaria a Yakruna, uma planta que parece gerir todo o sistema de vida daquele povo, com propriedades curativas e ritualísticas muito importantes para os Cohiuana (Figura 2C). Assim se dá o ponto de partida para um desencadeamento de fatos que irão transformar as perspectivas do índio e do branco. As cenas seguintes mostram o encontro de Karamakate com Evans (Figura 2D). O botânico, tendo visitado os diários de campo de Theodor, demonstra interesse em reencontrar a Yakruna, indo ao encontro do xamã para realizar sua busca. Ele encontra um Karamakate já velho, que diz ser apenas um chullachaqui, como uma casca sem sentido, sem memória, a vagar pelo mundo sem lembrar do que passou. O desenrolar dos fatos acontece sempre fazendo um paralelo com o caminho percorrido por Karamakate, primeiramente na companhia de Manduca e Theodor e posteriormente na companhia de Anais do 2º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2016 ISSN 2447-3499
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Evans. Fazer o segundo percurso, revisitando os mesmos locais da primeira viagem, possibilitou a Karamakate um resgate da sua história.
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Figura 2: A- Theodor e de Manduca, chega a Karamakate. B-Karamakate reconhece no pescoço do etnólogo um colar originário de sua tribo C- Viagem de Karamakate, Manduca e Theodor D- Encontro de Karamakate com Evans (Screenshots de algumas cenas do filme)
2.3 Análise da relação design/antropologia através do filme A primeira exibição a que assistimos de “O Abraço da Serpente” foi ainda no cinema, quando o filme entrou em cartaz, indicado ao Oscar de Melhor filme Estrangeiro. A película de Guerra nos convidava afetivamente, já que nós, autoras, nos identificamos profundamente com as questões levantadas ali. Tanto por pertencermos a regiões próximas à floresta amazônica, quanto por termos ingressado, no ano de 2015, no LaDA. Sabemos que a tradição etnográfica retratada no filme ecoa em um período da antropologia em que os sujeitos de pesquisa ainda estavam distanciados, apesar de estarem ali retratadas inserções muito profundas no campo. O outro, pesquisado, era um outro distante, pertencente a sociedades de diferentes organizações, com modos de vida distintos dos modos europeus, de onde surgem as primeiras escolas da antropologia. No entanto, o que nos fez refletir sobre a película de Guerra, é que as relações mostradas pelo diretor estavam muito mais próximas do que entendemos como pesquisa de campo. A antropóloga francesa Jeanne Favret-Saada descreveu a questão do afeto em seu trabalho de campo no Bocage, em 1968, quando trabalhou com comunidades que tinham como sistema ritualístico de organização a feitiçaria (FAVRET-SAADA, 2005). A autora relata que Anais do 2º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2016 ISSN 2447-3499
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para fazer parte do universo de sua pesquisa de campo, teve que se deixar afetar por ele. Ela aceitou e reconheceu a condição de enfeitiçamento e participou de mais de 200 sessões de desenfeitiçamento, tornando-se parte daquele sistema. A pesquisadora expõe que gerava interesse nos seus interlocutores pelo fato de acreditarem que ela estivesse enfeitiçada, não pelo fato de ser etnógrafa. Dessa forma, ela rompia a fronteira do que era apenas observável e adentrava, de fato, no universo da comunidade que se propunha a pesquisar. “O Abraço da Serpente” nos coloca em questão exatamente esse tipo de reflexão: como se deixar afetar pelo outro? Entendendo que esta não é uma via de único sentido, Karamakate e seus dois visitantes, Theodor e Evans, em diversos momentos do filme, tensionam a questão do afeto e a permissão para a imersão em seus universos. Há, entre eles, uma negociação constante, apesar de implícita, sobre os espaços que podem ser visitados, os comportamentos que devem ser mantidos. Na primeira expedição em busca da Yakruna mostrada no filme, Theodor deve seguir uma série de tabus. A ele não é permitido que coma carne, nem que pratique sexo. Ele deve aceitar viver como o índio naquele período, para que assim possa alcançar sua cura. Em outros momentos pontuais, nas linhas de tempo paralelas mostradas no filme, os dois homens brancos são incentivados por Karamakate a abandonar suas malas no meio do rio. Karamakate questiona o apego do homem branco às suas coisas. Sabemos que a nossa sociedade se orienta de uma forma completamente diferente a das sociedades indígenas. Temos um outro tipo de relação com os objetos que criamos. Em um ambiente completamente diferente ao nosso, é usual que nos reconectemos à nossa cultura, ao nosso país e à nossa família através desses objetos. Deixar-se afetar, ser o outro, e de certa forma descolar-se do que nos conecta ao nosso universo, no campo do design, nos permite compreender uma série de questões que enquanto praticantes de um design modernista, ou um design prometeico, como fala Latour, deixamos passar (LATOUR, 2008). Se estamos apenas conectados ao nosso repertório de experiências e à cultura em que fomos ensinados, não poderemos corresponder aos anseios e desejos dos que são tocados pelo processo e produto de design. Por outra parte, em várias cenas do filme percebemos como Theodor assimila o que Karamakate lhe diz, valorizando o conhecimento indígena. O fato dele não sair da selva e pensar que o Yakruna vai salvar sua vida, é um reconhecimento à sabedoria do índio. Morrer na selva, é levar seu trabalho a serio. Theodor deixa-se transformar, escuta, aprende, obedece, faz com que o seu 'trabalho' seja grande parte da sua vida, se insere completamente. Sua vida pessoal vaza, como aponta Ingold (2012), sobre as coisas. Estando uma vez no rio, depois de passar uma parte de grande turbulência, Theodor sem haver feito isso antes, pega o remo e começa a remar. Karamakate diz: "Mantenha o remo mais perto do barco. Escute. O rio te diz quando remar". Theodor escuta, rema diferente e pergunta: "Assim?". Karamakate afirma como a cabeça. Theodor sorri e continua remando. Se como designers perguntamos "Assim?" para as pessoas com quem trabalhamos, e ainda mais, deixamos que eles também construam a partir do seu conhecimento, estaríamos andando em direção a uma prática democrática, colaborativa, que escuta, e aprende do outro, uma prática de construção conjunta. Se, como designers, escutarmos "o rio", escutarmos o campo, corresponderemos, como assinalam Ingold & Gatt (2013). Dessa forma, a prática do design estará mais ligada aos fluxos da vida. Anais do 2º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2016 ISSN 2447-3499
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Theodor também fala a língua dos cohiuanos. O que significa falar a mesma língua em processos de design na cidade? Como falar a mesma língua das pessoas com quem estamos criando por meio do design? Falar a mesma língua não significa pensar igual, significa estar em sintonia, e isso demanda esforço. Ademais, por falarem a mesma língua, Theodor e Karamatake tem pontos em comum, apesar de serem de mundos completamente diferentes, isso faz com que o índio perca a desconfiança e siga a viagem. "O que é isso?”, pergunta Karamatake apontando para um livro de desenhos que Theodor, está mostrando para ele. "Um desenho que fiz", responde Theodor. "Onde você viu isso?”, pergunta Karamatake. "Num sonho", responde Theodor. "Um sonho de Caapi?", pergunta Karamatake. "Não, nunca me deixaram beber caapi. Eu vi num sonho", fala Theodor. Nos minutos seguintes do filme, Karamatake disse que sonhou com o desenho de Theodor e o convida para beber Caapi, uma planta que faz sonhar, também conhecida no Brasil como Jagube, liana, Mariri ou Yagé. Depois de que Karamatake viu o desenho e se encontrou de alguma maneira em Theodor, sua atitude mudou. Algo parecido aconteceu na pesquisa da designer Elisa Kushnir ao trabalhar com artesãs da cooperativa Lã Pura do sul do país. O fato de ser loira de origem alemã, como as artesãs, gerou confiança e fez com que elas se abrissem para a pesquisadora ficar na casa de uma delas. Elisa conta: Na volta, ela (D.Eva) me perguntou se eu morava no interior e eu disse que não, que morava na cidade e, ao ouvir a reposta, falou que tinha me achado “muito simples”. Em seguida, por conta de minhas características físicas, questionou-me se eu era de origem italiana ou alemã. Disse, estratégica, porém honestamente, que tinha família alemã e gaúcha, relatando as relações de parentesco responsáveis por isso. Imediatamente, D. Eva identificou o fato de eu “ser simples” com as origens de minha família, as mesmas da sua. Respondidas as duas perguntas, D. Eva me convidou para ficar hospedada em sua casa (KUSCHNIR, 2015, p. 33) Por outra parte, Theodor explica o que ele faz na selva amazônica. Mostra a Karamatake uma foto sua. Karamatake pega a imagem e vê que é ele. Theodor tenta pegar o retrato de volta e Karamatake pergunta: "O que está fazendo?". "Preciso guardar", responde Theodor. "Mas sou eu", diz Karamakate. "Não é você, é uma imagem sua", diz Theodor. "Como um chullachaqui?", pergunta Karamakate. "Um o que?", pergunta Theodor. "Um chullachaqui. Todos temos um chullachaqui. Ele parece conosco, mas é vazio, oco", diz Karamatake. "Isso é uma lembrança de momento que passou", diz Theodor. "Chullachaqui não tem memória. Ele vaga pelo mundo, vazio, como um fantasma perdido num tempo sem tempo. Vai mostrar meu chullachaqui para seu povo?", indaga Karamatake. "Só se você deixar", responde o etnólogo. Karamatake devolve a fotografia para Theodor e ele tenta dar o colar cohiuano que tem no pescoço para o índio. Karamatake diz: "O colar é parte dos cohiuanos, não pode ser dado". Theodor responde: "Está bom" (Figura 3)
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Figura 3: Theodor tenta dar o colar cohiuano que tem no pescoço para Karamatake. (Screenshots de algumas cenas do filme)
Nesta cena podemos ver a ética do etnólogo ao perguntar para o índio se pode mostrar o que está registrando. Talvez se a resposta de Karamatake tivesse sido outra, nem o filme, nem o livro que inspirou o filme tivessem existido. Theodor mostra respeito e explica para índio uma parte de seu mundo. Há um intercambio de conhecimentos. No livro Democratic Design Experiments, editado por alguns estudantes da escola de design do The Royal Danish Academy of Fine Arts, explica-se que o processo de codesign, uma prática influenciada grandemente pela antropologia, consiste em trabalhar em conjunto. Para isto, é necessário escutar e ser humilde. No processo de codesign também, segundo eles, é necessário explicar quem somos como codesigners e o que vamos fazer, tentando não fechar as mentes dos participantes e deixando o processo aberto (AAGAARD et al, 2015).
3 — Conclusões Assim, como em outros países latino-americanos, o design chegou no Brasil através das escolas que foram implantadas no país baseadas em modelos da Ulm, a escola de design radicada na Alemanha nos anos 1950. Este foi o caso da ESDI/UERJ, a escola mais antiga do subcontinente, como apontam vários autores, que foi influenciada por um modelo de ensino de "costas para o Brasil" (LEITE, 2006). Devido às ideias da Ulm, buscava-se a criação de uma linguagem universal, desconsiderando as particularidades locais, como é apontado por Szaniecki (2012). Com o decorrer do tempo a ESDI vem questionando este modelo de ensino, buscando fazer uma prática do design mais conectada com o que acontece na vida cotidiana, e em geral, no contexto que ela está inserida. Este é um dos objetivos da aproximação entre o design e a antropologia. Ao permitir que o 'outro' participe nos processos de design, estamos fazendo uma prática mais próxima da realidade, pois é produzida por vários conhecimentos, por conhecimentos situados, como aponta Donna Haraway (1988). A autora afirma que o conhecimento não pode ser universal, pois as coisas não podem ser vistas desde uma ‘nada’ abstrata e invisível. Este conceito tem sido relacionado à prática do design por vários pesquisadores nos últimos 15 anos. Suchman (2002) aponta que as práticas do design devem ser realizadas com “responsabilidade localizada” (SUCHMAN, 2002 apud SIMONSEN et al, 2014), pois a situação e a posição desde onde se executam influem enormemente. Anais do 2º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2016 ISSN 2447-3499
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Há no filme várias atitudes do etnólogo com as quais podemos aprender e das quais podemos nos apropriar para a prática do design no nosso contexto, nos servindo para repensar esta prática e desenvolvê-la de forma mais colaborativa e participativa. Aprendizagem, valorização do conhecimento do outro, transformação, escuta, inserção, correspondência, falar a mesma língua, gerar confiança, ética, explicar, se deixar afetar, são algumas delas. O cinema também pode ser uma ferramenta para pensar nossos próprios fazeres, pois, o distanciamento dá uma melhor perspectiva para analisar as situações. A prática dos viajantes que visitam a Amazônia colombiana em busca de uma planta sagrada, pode não ser parecida com a prática dos antropólogos hoje, mas instigou a reflexão das nossas próprias atitudes e a aprendizagem de alguma delas para atuar em nossas pesquisas de campo e conseguir desenvolver um processo mais colaborativo e participativo com os grupos com quem trabalhamos.
Referências AAGAARD et al. Democratic Design Experiments – Drawing things together with codesign. 1. Ed. Copenhagen: The Royal Danish Academy of Arts, Schools os Architecture, Design and Conservation, 2015 FAVRET-SAADA, J. Ser afetado (tradução de Paula de Siqueira Lopes). Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005. GATT, C; INGOLD, T. From description to Correspondence: Anthropology in Real Time. In: Design Anthropology: Theorie and Practice., edição: GUNN, W; OTTO, T; SMITH, R. p. 175-198. Bloosmbury, 2013. GUNN, W.; OTTO, T.; SMITH, R. C. (Eds.). Design Anthropology: Theory and Practice. London/New York: Bloomsbury, 2013. HARAWAY , Donna . 1988 . Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies 14( 3 ): 575 – 599. INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012. KOSKINEN, Ilpo, et al. Design research through practice: From the lab, field, and showroom. Elsevier, 2011. KUSHNIR, Elisa. “Tudo isso é inovação”: mediação e criatividade no encontro entre o designer e as artesãs. 2015 LATOUR, Bruno (2008). “A Cautious Prometheus? A Few Steps Toward a Philosophy of Design (with Special Attention to Peter Sloterdijk)”. Key no telecture. Networks of Design, Cornwall, GB: Design History Society Anais do 2º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2016 ISSN 2447-3499
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LEITE, João de Souza. “De costas para o Brasil, o ensino de um design internacionalista” em O design gráfico brasileiro – Anos 60. Chico Homem de Melo (org.). São Paulo: Cosac Naify, 2006. MAGNANI José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais 17.49 : 11-29, 2002. O ABRAÇO da Serpente. Direção: Ciro Guerra. Fotografia: David Gallego. [S.l.]:Buffalo Films, 2015. 1 DVD (125m), NTSC, P&B. Título original: El abrazo de La Serpiente RESEARCH NETWORK FOR DESIGN ANTHROPOLOGY. Seminar 3: Collaborative Formation of Issues (January 2015). Disponível em: . Acesso em: 14 de jun. 2016. SIMONSEN, J. Et al. Situated Design Methods, Edited by Jesper Simonsen ... [et Al.]. 1 Ed. MIT Press, 2014. SZANIECKI, Barbara. Uma política cultural para as práticas criativas. In: Revista Lugar Comum, n. 35-36, p. 175-190. 2012.
. . . . . . . . . . . . . . . . . Notas sobre os autores: IBARRA, Maria Cristina; Doutoranda; Título provisório da Tese: O papel do design no contexto de práticas criativas desenvolvidas por não-designers no espaço público de Rio de Janeiro; Orientador: ZoyAnastassakis; Ano previsto para defesa: 2019; Link para Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3707517093961615
[email protected] PORTELA, Imaíra; Mestranda; Título provisório da Dissertação: Sobre o Design e Patrimônio Cultural: o material e o simbólico em torno do Bumba meu boi em exposição na Casa do Maranhão ; Orientador: ZoyAnastassakis; Ano previsto para defesa: 2017; Link para Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9002320323525372
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