Por onde anda nossa mente quando ela está vagando e o que isso nos diz sobre psicopatologia?

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Modo default e psicopatologia

Por onde anda nossa mente quando ela está vagando e o que isso nos diz sobre psicopatologia? Hélio Tonelli Você já deve ter notado o quanto é difícil não pensar. Tentar alcançar um estado mental de completa ausência de pensamentos é um desafio, até mesmo para aquelas pessoas com algum treino em meditação. O modo padrão de funcionamento da mente humana parece consistir de um processo de contínua produção de pensamentos cuja dificuldade em interromper poderia ser comparada à dificuldade que temos de parar de respirar. Possivelmente, a suspensão desta incessante atividade mental deve ser, de alguma forma, prejudicial ao adequado funcionamento de nossa mente, daí a razão pela qual nos é custoso interrompê-la. Este texto tem a finalidade de discutir alguns aspectos relativos ao trabalho contínuo e espontâneo da mente e a produção de pensamentos; suas características, razões e relações com a atividade de determinadas regiões do cérebro. Também pretendo mostrar que problemas no funcionamento das estruturas cerebrais intimamente ligadas à geração desta atividade mental contínua parecem se relacionar diretamente com o aparecimento de sintomas afetando o pensamento em muitos transtornos mentais. Vou começar esta discussão com uma pergunta: o que, de fato, faz a mente quando não a estamos ocupando, ou, melhor dizendo, quando não a estamos ocupando ativamente, por exemplo, quando nos debruçamos em uma tarefa qualquer? Esta questão tem intrigado pesquisadores da neurociência há algum tempo, principalmente após o advento de técnicas de exploração da atividade do cérebro, como a neuroimagem funcional, possibilitando que saibamos com mais precisão quais áreas do cérebro são ativadas quando estamos envolvidos em alguma tarefa que exija concentração (evidentemente estas técnicas ainda têm uma série de problemas comprometendo a precisão dos achados, os quais são didaticamente discutidos por McGilchrist 1). Por exemplo, diversos estudos utilizando técnicas de neuroimagem funcional mostram que quando indivíduos saudáveis estão envolvidos em testes de função executiva a região cerebral mais ativada é o córtex pré-frontal dorsolateral. Nestes testes, requer-se basicamente dos sujeitos experimentais que eles concentrem a sua atenção, priorizando seletivamente determinados estímulos enquanto desprezam outros. Outras áreas são ativadas quando são mudados os testes psicológicos. Por exemplo, quando indivíduos saudáveis desempenham testes psicológicos que exigem a reflexão a respeito dos estados 1

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mentais de outras pessoas, como diversos testes de cognição social, áreas bem diferentes ficam mais ativas. Uma delas é o córtex pré-frontal medial. Adicionalmente, a ciência cognitiva tem demonstrado que muitos, se não todos os transtornos neuropsiquiátricos, estão associados a disfunções cognitivas detectáveis quando portadores destas condições desempenham tarefas cognitivas; por exemplo, há muito tempo se sabe que indivíduos sofrendo de esquizofrenia apresentam múltiplos déficits cognitivos, assim como portadores de transtornos do humor e de autismo, para citar apenas alguns exemplos. A neuroimagem funcional tem mostrado que, ao contrário do que acontece em indivíduos saudáveis, estes pacientes recrutam mal diversos sistemas cerebrais relacionados a diferentes funções mentais. Você pode concluir, então, que parece muito lógico que quando exigido, o cérebro recrute diferentes circuitos, dependendo do tipo de demanda que lhe é imposta. E que comparar o tipo de atividade cerebral acontecendo em indivíduos saudáveis e em indivíduos sofrendo de um distúrbio mental durante a execução de um teste cognitivo específico deve auxiliar a entender as diferenças do funcionamento deste órgão na saúde e na doença. Acontece que, mesmo quando não está envolvido em alguma tarefa cognitiva, o cérebro permanece ativo. Isso equivale a dizer que o cérebro nunca “descansa” e que, ao contrário do que nossa intuição possa nos dizer, quando em repouso ele não está dormente, quiescente, desconectado ou desligado. Ele continua ativo, e muito ativo. Os estudos de neuroimagem funcional nos mostram isso: cérebros de indivíduos escaneados em aparelhos de ressonância magnética funcional enquanto não desempenham nenhum teste cognitivo, isto é, enquanto são deixados por conta de seus próprios pensamentos, mostram intensa atividade em áreas específicas, que descreverei com mais detalhes adiante. Sabendo que tanto cérebros “concentrados” em tarefas cognitivas quanto cérebros em repouso estão ativos, bem como que há diferenças nos padrões de ativação cerebral na saúde e na doença mental, resta-nos saber se tais diferenças ocorrem exclusivamente no “modo concentrado” ou exclusivamente no “modo repouso”, ou em ambos. Os mais modernos estudos cognitivos envolvendo neuroimagem funcional já se preocupam em fazer esta comparação, na medida em que ela confere maior precisão aos achados. A maior precisão em se comparar os padrões de ativação cerebral durante uma tarefa e durante o repouso reside no aumento do poder de discriminação das regiões ativadas exclusivamente em uma atividade mental específica, na medida em que é descontado o

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“ruído” da atividade cerebral de repouso eventualmente aparecendo durante a execução da tarefa cognitiva, como é comum nas doenças psiquiátricas. O “ruído” da atividade cerebral de repouso, ou, melhor dizendo, da atividade cerebral espontânea, já é conhecido há bastante tempo. Em 1929, Hans Berger, o pai do eletroencefalograma, afirmava que uma rede neural permanentemente ativa seria responsável pelo maior custo energético do trabalho do cérebro. Para Berger era importante distinguir entre o traçado eletroencefalográfico característico das doenças neurológicas e o “ruído” inespecífico da atividade cerebral espontânea. Mais recentemente, a neuroimagem funcional tem sido um importante aliado na compreensão desta atividade e de que maneiras ela se reflete como experiência psicológica saudável e patológica. Ao longo deste texto vou preferir utilizar a expressão “atividade cerebral espontânea” a “atividade cerebral de repouso” em razão do fato de que nesta condição o cérebro não está de fato em repouso, mas plenamente ativo. Como disse logo acima, por mostrarem quais são as redes neurais mais atuantes durante a atividade cerebral espontânea, os estudos de neuroimagem funcional nos auxiliam a prever com mais exatidão quais seriam os equivalentes subjetivos desta atividade espontânea, já que de antemão sabemos que muitas destas áreas também são recrutadas em tarefas cognitivas específicas. A psiquiatra americana Nancy Andreasen chamou a atividade cerebral espontânea de REST, ou Randomic Episodic Silent Thinking (em português, pensamento silencioso episódico aleatório) 2, uma expressão salientando que, mesmo em repouso (rest, em inglês), nosso cérebro continua pensando. Contudo, o nome mais moderno da atividade cerebral espontânea ou de repouso é modo default. Este modo default é considerado a linha de base da atividade mental, da qual nossa mente “parte” quando precisa se preocupar com alguma coisa acontecendo no ambiente. O modo default está ativo quando não precisamos nos preocupar com estímulos externos e, em pessoas saudáveis mentalmente, é substituído pelo trabalho de outras redes neurais, na dependência das exigências do ambiente. Assim sendo, a atividade das redes neurais constituintes do modo default e de outros circuitos cerebrais associados a tarefas mentais específicas estão em constante alternância. Quando não estamos concentrados ou atentos a algo especial acontecendo em nosso ambiente, o modo default está ativo e, do ponto de vista psicológico, esta atividade está relacionada ao que os falantes da língua inglesa chamam de mind wandering e os alemães de Wandelnde Geist, cujas traduções para o português significariam algo como “mente a vagar”. 3

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Para onde nossa mente vai quando está vagando? Que tipos de pensamentos, imagens e representações mentais são mais comuns durante este estado? É claro que, em princípio, este processo parece ser muito individual, já que cada um pensa naquilo que faz sentido para si num determinado instante. Além disso, sabe-se que existem mentes mais ou menos predispostas a vagar, bem como variações relacionadas à idade nas formas como a mente humana vagueia. Todavia, o fato de que as pessoas saudáveis psicologicamente ativam invariavelmente os mesmos sistemas neurais durante o modo default não sugeriria que os “temas gerais” por ele precipitados seriam os mesmos, apesar de estilos mentais pessoais configurarem o “colorido” da experiência subjetiva decorrente da atividade cerebral espontânea, assim como sua intensidade? Este é um dos pontos mais estimulantes do estudo do modo default de funcionamento de nossa mente: a compreensão de quais são as funções de cada uma das suas redes permite com que comecemos a poder traçar um perfil de nossa subjetividade sob um ponto de vista cientificamente orientado. Além disso, este conhecimento possibilita o estudo dos modos através dos quais os transtornos psiquiátricos alteram a subjetividade humana, já que sabemos que nestas condições a expressão do modo default pode ser muito diferente da observada em pessoas sem transtornos psiquiátricos. Uma das primeiras observações a respeito da relação entre modo default e doença mental consiste na constatação de que portadores de esquizofrenia e de depressão apresentam maior dificuldade em “sair” deste modo quando isso é necessário. Assim, diferentemente do que acontece com pessoas saudáveis, estes indivíduos precisam “fazer mais força” para “desligarem” o modo default quando lhes é exigido que prestem atenção em algo acontecendo no seu ambiente. Os cientistas cognitivos têm sugerido que, quanto maior o trabalho para fazer a mente parar de vagar, isto é, quanto maior o esforço necessário para se alternar entre o modo default e outras redes neurais quando é exigida atenção focada, maiores são as chances de um distúrbio mental. Observo isso com muita frequência em meu consultório ao atender pacientes depressivos, os quais parecem ter uma enorme dificuldade de “desligarem” seus pensamentos patológicos, cuja temática envolve principalmente ideias de infortúnio, desesperança, menos-valia, culpa ou medo. Tudo o que veem tem relação com esta perspectiva pessimista a respeito da vida e do mundo. Ao invés de ser deixado temporariamente de lado, ou menos saliente, quando estas pessoas têm de se ocupar com outras coisas em suas vidas, seu modo default interfere massivamente nos processos atencionais, conferindo esta perspectiva depressiva acerca de tudo. Para estes indivíduos, o mundo é um lugar muito mais triste, injusto ou perigoso do que realmente é. O uso de 4

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antidepressivos reverte este processo em muitos destes pacientes – felizmente na maioria deles – fazendo com que voltem a apreciar o mundo e suas vidas de forma mais adaptada e não tão sofrida. Gosto muito de uma frase de uma das canções do grupo Titãs, que diz que “o acaso vai me proteger enquanto eu estiver distraído”, porque ela expressa muito bem um jeito desejável de pensar. É verdade que vivemos sob o manto da incerteza, em um mundo em que a tragédia, a injustiça e o infortúnio podem acontecer a qualquer momento, para qualquer um de nós. No entanto, caso fiquemos o tempo todo pensando nestas coisas, não conseguiremos desfrutar nossas vidas de forma saudável e plena. Consequentemente, é importante que passemos uma boa parte do tempo “distraídos” ou “esquecidos” dos terríveis incidentes que podem nos afligir a todo o instante, vivendo nossas vidas como se fôssemos vivê-las para sempre e em um lugar seguro. Ao contrário do que pensam muitas pessoas, preocupação excessiva não minimiza as chances dos imprevistos indesejáveis. Indivíduos deprimidos e ansiosos parecem nunca se distrair, estão sempre tensos, preocupados, pessimistas, amedrontados. Pensam coisas ruins o tempo todo e avaliam qualquer situação sob uma perspectiva negativa, o que faz com que tenham muita dificuldade para tomarem decisões e sofram com sentimentos contínuos de angústia. Como mencionei antes, antidepressivos revertem esta propensão a enxergar as coisas de forma pessimista e niilista, tanto em pessoas deprimidas quanto ansiosas, porque parecem “desligar” a influência patológica da rede default em suas mentes. Apesar de, em muitas ocasiões, termos a impressão de que antidepressivos operem verdadeiros milagres quando prescritos a pacientes muito deprimidos ou ansiosos, é importante lembrar que não há milagre algum. Antidepressivos apenas mudam o foco atencional de pessoas deprimidas ou ansiosas, mas nunca a essência destas pessoas. Muitos de meus pacientes parecem se sentir aliviados quando lhes explico que o remédio não lhes “cria” nada de novo, apenas “os devolve a eles mesmos”. Eles têm muito receio de que antidepressivos gerem-nos um “eu artificial”, ou de que precisarão viver indefinidamente sob a influência de uma droga para que “se comportem bem”. Seu alívio está na oportunidade de entenderem que nenhuma droga pode lhes “introduzir” ou “veicular” uma nova mente, bem como modificar seus valores, sua educação e seu temperamento, fantasias muito comuns em pessoas leigas experimentando sofrimento mental. As drogas antidepressivas alteram exclusivamente o foco atencional delas, isto é, o jeito com que prestam atenção no mundo. Afinal de contas, nenhum remédio poderá inserir novas crenças, valores, conceitos ou posturas nos seres humanos; o que os antidepressivos fazem, para a maioria dos pacientes deprimidos, é devolver sua capacidade para prestar a atenção naquilo que realmente importa, e deixá-los novamente distraídos para as coisas 5

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aparentemente ruins e para as quais não há solução. E isso permite uma forma mais adequada de atualizarem suas crenças anteriores. Se você está constantemente aflito por causa de medos exagerados, este estado de espírito vai acabar por configurar aquilo em que você acredita. É importante, ainda, deixar claro que antidepressivos não provocam estes mesmos efeitos em pessoas mentalmente saudáveis. Nelas, tudo o que podem causar são seus indesejáveis e desagradáveis efeitos colaterais. Mas, o que em um modo default rígido e inflexível faz com que algumas pessoas fiquem deprimidas? Quais as razões para que a interferência do modo default no funcionamento cerebral produza sintomas depressivos? O fato de o cérebro processar tipos muito específicos de pensamentos e de representações mentais quando trabalhando no modo default. Lembre-se que estes pensamentos e representações mentais devem, idealmente, ser “desativados” quando temos de prestar atenção em estímulos externos. Você pode imaginar que é muito importante parar de pensar em determinadas coisas quando precisa se concentrar em seu trabalho ou tomar decisões importantes. Se, por exemplo, você tem filhos pequenos e precisa sair para trabalhar e deixá-los aos cuidados de alguém ou em uma creche, é desejável que durante seu expediente você não fique pensando em tudo de ruim que pode acontecer com eles enquanto está fora de casa. Assim como é fundamental que, durante o trabalho você seja capaz de temporariamente se esquecer de quaisquer outras coisas que possam ocupar seus pensamentos, seja porque elas são importantes, como seus filhos ou outros entes queridos, seja porque elas são prazerosas, como alimentos ou sexo, ou, para algumas pessoas, álcool e/ou drogas. Pessoas que sofrem de determinados transtornos psiquiátricos parecem ter pensamentos doentes invadindo suas mentes porque seu modo default é invasivo e inconveniente. Desta forma, ansiosos pensam em infortúnios; deprimidos têm ideias de culpa e de menos-valia e pensam demais no passado; alcoolistas pensam em álcool, dependentes químicos, em substâncias; obesos, em comida, psicóticos, em perseguição; obsessivocompulsivos, em rituais; anoréxicos, em magreza, e assim por diante. Mais do que os relatos de experiências mentais pessoais vividas em repouso – todos nós haveremos de concordar a respeito de para onde vai nossa mente quando ela está a vagar, consideradas as múltiplas nuances conferidas pela individualidade – o conhecimento prévio de muitas das funções das várias partes do cérebro que compõem a rede default nos permite inferir quais tipos de pensamentos e preocupações podem ser estas. As informações obtidas a partir do escaneamento cerebral por neuroimagem funcional de pessoas com perturbações mentais também são úteis para este propósito. 6

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Estudos de neuroimagem têm mostrado que a rede default é composta por três regiões, ou circuitos cerebrais, os quais são ativados por estímulos bem caracterizados. Duas destas regiões encontram-se na linha média: o córtex pré-frontal medial e o córtex cingulado posterior. A terceira região abrange os córtices temporoparietais inferiores, bilateralmente. Estas três redes encontram-se altamente conectadas durante o repouso e o estudo de suas funções em separado nos ajuda a compreender que tipo de representações mentais e, em consequência, que tipos de pensamentos são gerados por elas. Já disse que a identificação do papel de cada uma delas é possível através da observação, por neuroimagem funcional, de sua ativação por diversas tarefas cognitivas; por exemplo, tarefas de função executiva recrutam mais o córtex pré-frontal dorsolateral e tarefas que exijam inferência de estados mentais recrutam o córtex pré-frontal medial, mas também outras estruturas das regiões temporoparietais inferiores, como o sulco temporal superior. Estas, coincidentemente, fazem parte da rede default. Portanto, o fato de que circuitos responsáveis pelo processamento de estímulos sociais façam parte da rede default nos autoriza a inferir que boa parte dos nossos pensamentos espontâneos devam se referir a pessoas. De fato, como seres sociais, outras pessoas são uma importante preocupação de nossa espécie, na medida em que durante boa parte do tempo em que estamos acordados temos de “decifrar pessoas”, isto é, inferir o que elas estão pensando, querendo, pretendendo, desejando. Através desta contínua atitude de “decifrar pessoas” conseguimos prever os comportamentos delas com muita precisão. Por exemplo, não precisamos fazer força alguma para entendermos que, se João pensa que sua esposa o traiu com Pedro, ele pode ter uma série de atitudes em relação a ela e/ou a Pedro, as quais incluem agressões verbais ou até mesmo físicas. Isso porque sabemos que os estados mentais de uma pessoa estão por trás de seus comportamentos. Agimos conforme nossas crenças, ideias, pensamentos, sentimentos e, muitas vezes, desejos. Literalmente deciframos pessoas o tempo todo, de forma automática e espontânea; ou seja, não há nenhum esforço para executarmos esta atividade cognitiva, que, em muitos círculos de psicólogos e cientistas cognitivos, é perigosamente chamada de “leitura de mentes”. Com esta expressão pouco precisa estes profissionais agrupam capacidades cognitivas importantes para a saudável convivência com outros seres humanos, as quais englobam capacidades como a inferência de estados mentais e a compreensão de estados emocionais e de ações de terceiros. Sem elas não somos capazes tanto de nos beneficiarmos das muitas vantagens da convivência social, como a colaboração entre indivíduos da mesma espécie, quanto de nos protegermos das armadilhas que ela nos apresenta, a exemplo das trapaças e sabotagens.

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Estas habilidades mentais são denominadas em conjunto de cognição social. A cognição social é o conjunto de operações mentais realizadas pelo cérebro em contextos sociais e, como os pensamentos, muitas vezes não nos damos conta do quanto elas são complexas, justamente porque as realizamos com grande espontaneidade e naturalidade. De fato, na maior parte do tempo empregamos expressões e conceitos relacionados a estados mentais para compreender situações cotidianas. Sem tais expressões e conceitos, a compreensão destas situações fica gravemente comprometida. Perceba como empregamos expressões relativas a estados mentais para interpretarmos adequadamente o comportamento humano, em frases como “Ao se comportar daquela forma, João pensou que a porta estivesse aberta e quis saber quem a teria deixado assim” (as expressões relativas aos estados mentais estão destacadas). Não são poucas as expressões perigosas utilizadas pelos psicólogos e neurocientistas interessados em cognição social para nomear as várias operações cognitivas sociais realizadas no cérebro. Além de “leitura de mentes”, outra expressão não mais precisa pretende agrupar todas estas operações: “mentalização”. Sob este termo guarda-chuva aqueles acadêmicos reúnem todas as operações cognitivas sociais por eles estudadas: inferência de estados mentais ou habilidades Teoria da Mente, reconhecimento e identificação de emoções, compreensão de ações de terceiros, etc. e etc. Afinal, ao empregarem o termo “mentalização” estes pesquisadores estão se referindo a toda a atividade cognitiva relacionada à compreensão e ao “diagnóstico” do ambiente social. Não há como fugir das imprecisões, os termos estão lá e já foram consagrados pelo uso. Muita pesquisa científica bem conduzida tem demonstrado que uma importante parcela da atividade da rede default é dedicada à mentalização. Alguns pesquisadores, inclusive, já demonstraram que existe uma surpreendente coincidência entre áreas cerebrais ativas em repouso e áreas que são ativadas por múltiplas tarefas cognitivas sociais, particularmente tarefas exigindo que os sujeitos experimentais infiram estados mentais de personagens, como no famoso e elegante Sally e Anne Task 3. Neste teste, são apresentadas duas personagens, Sally e Anne, as quais têm uma cestinha cada. Sally também tem um brinquedo, que guarda em sua cestinha, saindo a seguir da cena. Enquanto está fora de cena, Anne vai até a cestinha de Sally, tira o brinquedo dali e o coloca em sua cestinha. Então é perguntado ao sujeito experimental (geralmente crianças com mais de 4 anos de idade) em que cestinha Sally acredita estar o brinquedo. Para responder corretamente a esta tarefa (isto é, Sally deve achar que o brinquedo está onde o colocou, ou seja, em sua cestinha), o examinado tem de se colocar no lugar de Sally, 8

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inferindo, assim, seus estados mentais; isto é, levar em consideração que Sally não viu Anne trocando o brinquedo de lugar enquanto estava ausente. Mas a rede default não processa apenas cognições sociais, ela também se ocupa de outras coisas não menos importantes para nossa navegação pelo mundo: nossas memórias e senso de passado, nossas expectativas e perspectivas sobre o futuro e, enfim, nossa identidade. A propósito, para alguns autores o processamento da própria identidade não deixa de ser uma forma mais simples ou mais extrema de processamento cognitivo social, pois a partir da percepção de nossas inclinações psicológicas, a exemplo de nossos próprios estilos cognitivo e afetivo e de controle de impulsos, reconhecemos a nós mesmos como seres portadores de mentes e, portanto, susceptíveis a pensar, desejar, agir intencionalmente, etc. Ao nos proporcionar um senso de que eventos se desencadeiam linearmente do passado, passando pelo presente e conduzindo a um futuro, a memória autobiográfica nos permite acessar nossa história, nosso passado, bem como reconhecer nossos familiares, amigos e inimigos, além de nos preparar para agir de um jeito mais adequado no futuro. Portanto, através da contínua atividade neural espontânea das estruturas componentes da rede default relacionadas ao processamento de lembranças e de projeções de futuro (as regiões da rede default mais envolvidas com este tipo de processamento incluem o córtex cingulado posterior e estruturas temporais da linha média) nosso cérebro nos proporciona uma experiência de coesão e de linearidade em relação à sucessão de eventos decorridos até o dia de hoje, além de uma capacidade de elaborarmos, por simulação envolvendo muitos dos aspectos aprendidos durante a vida, uma perspectiva a respeito do futuro. Assim, a contínua atividade da rede default parece ter a importante função de processar nossa identidade, através de um trabalho incessante de conexão de memórias, pensamentos e outros tipos de cópias do mundo surgidas a partir do aprendizado. Voltando aos estados depressivos e às razões pelas quais um modo default rígido e invasivo favorece o surgimento de sintomas depressivos: os tipos de preocupações e pensamentos de pessoas depressivas e ansiosas coincidem com os tipos de pensamentos e representações mentais geradas espontaneamente pela rede default, embora em uma intensidade fora do normal. Os principais pensamentos dos deprimidos incluem ideias de culpa em relação ao que (acham que) fizeram ou deixaram de fazer pelos outros, ideias de menos-valia e ideias de desesperança em relação ao futuro.

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Pessoas ansiosas têm pensamentos um pouco diferentes, frequentemente com temáticas envolvendo riscos, infortúnios ou tragédias afetando a si mesmas ou seus entes mais queridos, bem como uma autoavaliação enviesada por temores de incompetência ou inferioridade. Tantos são os pacientes que se apresentam com uma mistura de depressão com ansiedade, que às vezes é difícil dizer qual destes fenômenos é predominante. Felizmente, em muitas (mas não todas) ocasiões o tratamento é o mesmo: antidepressivos. Lembre-se de que os pensamentos doentes dos depressivos e dos ansiosos podem poder ser explicados por uma hiperatividade da rede default que leva estas pessoas a uma incapacidade para “desligar” pensamentos disfuncionais envolvendo seu passado (ideias de culpa ou de pesar), elas mesmas (convicções de incompetência e inferioridade) e o futuro (perspectivas desfavoráveis do que está por vir, seja por pessimismo, seja por aumento dos temores de riscos). Pessoas deprimidas e ansiosas têm muita dificuldade para retirar o foco atencional “de dentro” de si mesmos, favorecendo com que elas acabem se envolvendo involuntariamente em uma atividade denominada pelos psiquiatras de “ruminações depressivas”, um termo pouco elegante para descrever que, da mesma forma que animais ruminantes fazem com o alimento em seu processo digestivo, indivíduos deprimidos estão constantemente ocupados com ideias disfuncionais que “vão e voltam”, das quais, portanto, não conseguem se livrar. As ruminações depressivas comprometem a concentração dos indivíduos deprimidos, fazendo com que eles tenham uma enorme dificuldade para se concentrarem em tarefas muito simples, bem como de tomarem decisões fáceis de serem tomadas pela maioria das pessoas saudáveis. Lembro-me de que quando era residente de psiquiatria atendi uma paciente severamente deprimida que, durante os períodos depressivos, ficava extremamente angustiada quando ia ao supermercado e não conseguia decidir qual a marca de detergente em pó que deveria comprar. Nos instantes em que estava de fronte para a gôndola onde estes produtos estavam expostos, era invadida por pensamentos de que, caso escolhesse mal o produto utilizado para lavar as roupas de seu marido e de seus filhos, poderia colocar em risco a saúde deles, seja por escolher um produto com baixa capacidade de “matar todos os germes”, seja por involuntariamente escolher um que fosse potencialmente “venenoso”. Estas dúvidas a deixavam paralisada e absolutamente incapaz de decidir a respeito de algo banal para a maioria das pessoas. Pois bem, o que acontecia com esta desafortunada senhora é que os circuitos cerebrais relacionados à tomada de decisões, os quais, naquele caso, deveriam envolver apenas considerações a respeito de preço, qualidade, praticidade ou preferência pessoal, acabavam envolvendo ponderações irrealistas sobre riscos infrequentemente associados ao uso de detergentes em pó. Isso acontecia por excesso de atividade da rede 10

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default causando “ruído” no trabalho de circuitos de tomadas de decisão envolvendo o córtex pré-frontal dorsolateral. Em outras palavras, uma rede default hiperativa não era capaz de “dar licença” para outra rede neural, de função executiva, fazer seu trabalho (tecnicamente isso é chamado de diminuição da anticorrelação da rede default com outros circuitos de tomada de decisão

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). Neste caso, estavam em ação principalmente os “núcleos” da rede

default mais associados com perspectivas a respeito do futuro, contaminando os pensamentos daquela pobre senhora com preocupações relacionados a um infortúnio por ela infligido a seus queridos familiares, em decorrência de uma má escolha. Uma questão intrigante a respeito do papel da disfunção da rede default em transtornos psiquiátricos diz respeito ao fato de que, embora com sintomas tão diferentes, pacientes portadores de depressão e de esquizofrenia parecem apresentar problemas muito parecidos afetando o funcionamento cerebral espontâneo. Vários pesquisadores descrevem hiperatividade da rede default em seus achados, tanto na depressão quanto na esquizofrenia. Esta hiperatividade gera uma inabilidade para tirar o foco “de dentro”, ou de fazer a mente parar de vagar. No entanto, apesar desta semelhança nos achados relativos à disfunção do modo default na depressão e na esquizofrenia, os pensamentos doentios resultantes em ambas as condições são muito diferentes: na depressão, eles ocorrem predominantemente como ruminações de culpa, menos-valia ou desesperança e na esquizofrenia, como paranoia, delírios e experiências bizarras. Uma explicação possível para este fenômeno é que diferentes funções cognitivas são afetadas na depressão e na esquizofrenia. Na depressão, a hiperatividade da rede default causaria um estado mental de hiperintrospecção e de hiperemocionalidade, à semelhança daquilo que foi descrito no exemplo de minha paciente depressiva e suas dúvidas patológicas a respeito dos riscos de comprar um detergente errado, as quais, no fundo, encerram preocupações patológicas relativas à possibilidade de escolhas erradas causarem danos a pessoas queridas e simulações mentais invasivas das consequências emocionais de tamanha desgraça. Na esquizofrenia dificilmente vemos este tipo de sintoma, embora eventualmente eles possam ocorrer. Mais frequentes em portadores de esquizofrenia são ideias de perseguição e de se estar sendo controlado à distância e de que os pensamentos e sentimentos são inseridos na mente “de fora para dentro”. As terríveis vivências de que algo controla a mente de fora, inserindo ou retirando pensamentos da mente dos pacientes são estudadas em conjunto, pois elas parecem ser partes de um mesmo fenômeno, chamado pelos psiquiatras de experiência ou vivência de passividade. O que parece acontecer nestes casos é que uma experiência de perda de controle sobre o próprio self antecede o surgimento das 11

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ideias de controle e de inserção/subtração do pensamento. A sensação de perda de controle é também chamada de perda dos limites do eu, uma expressão que reforça o fato de que as estratégias cognitivas utilizadas pelo cérebro para gerar a sensação de individualidade e a percepção dos limites separando o indivíduo de tudo o que o cerca se dissipam. Quem já teve este tipo de experiência – que não é exclusiva da esquizofrenia, pois ela pode acontecer sob o efeito de determinadas drogas alucinógenas – descreve-a como uma sensação de que a mente perdeu os próprios limites, podendo receber e exercer influências em outras mentes, por exemplo, sob a forma de telepatia, já que sua essência hermética se foi. Estas pessoas podem, portanto, acreditar que recebem pensamentos e ideias dos outros, não reconhecer suas próprias ideias, pensamentos e sentimentos como seus e também podem crer que transmitem pensamentos para outras pessoas. Algumas pessoas também descrevem experiências de não se perceberem mais como indivíduos no mundo, mas de que formam, com ele, um conjunto, como se passassem a ser uma parte de um todo. Ou, alternativamente, passam a ter muita dificuldade para perceberem onde seus corpos – ou mentes – terminam e onde começam os de outras pessoas. Este tipo de experiência pode gerar sentimentos de passividade, na medida em que o sujeito perde a capacidade de perceber que é a origem de seus pensamentos, sentimentos e até mesmo de movimentos. A propósito, formas ainda mais complexas de vivências de passividade abrangem experiências de que os próprios movimentos não são por elas executados, mas que elas se tornaram fantoches manipulados pelos outros. Um paciente que atendi há muito tempo dizia, quando em surto psicótico, que não era ele quem se dirigia ao trabalho todo o dia, mas que seus movimentos e seus pensamentos eram coordenados à distância por uma “central” localizada em Marte. Nossa mente não tolera ficar sem respostas, ela é ávida por explicações. Diante de experiências tão bizarras, ela procura algum tipo de “racionalidade” para aquilo. Como explicar as sensações de que meus pensamentos não são mais gerados em minha cabeça, parecendo mais terem sido induzidos, emprestados ou até mesmo colocados ali sem meu consentimento? Como seres sociais que somos, com um cérebro altamente especializado em “decifrar pessoas”, atribuir estas ocorrências ao comportamento mal intencionado de alguém pode parecer um bom palpite inicial. A enorme quantidade de indivíduos que têm experiências de passividade e as atribuem ao comportamento de terceiros sugere que, mais do que suspeitar que algo está errado com a mente ou com o cérebro, que é o que de fato pensamos quando temos sintomas físicos, como uma dor de cabeça ou de barriga – momentos nos quais frequentemente temos palpites do tipo “será que estou com meningite?” ou “será 12

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que peguei uma intoxicação alimentar?” – existe uma propensão mental a explicar estes fenômenos de outro jeito, interpretando-os como decorrentes de ações de fora. Seria algo como acharmos que uma dor de cabeça ou uma dor de barriga nos fosse infligida intencionalmente por um desafeto (sim, há crenças deste tipo, principalmente em nossa cultura repleta de sincretismos religiosos, mas, convenhamos, elas não são predominantes). Não encaramos a mente como um órgão, passível de adoecer ou de disfunção, como fazemos com a “cabeça” ou o estômago. Vemo-la como nossa essência, como nós mesmos, dentro de nossos corpos, e, ironicamente, todo o trabalho que ela faz para gerar nossa percepção de individualidade e de que somos o ponto de partida de nossas ações mentais parece colaborar para gerar falsas crenças bizarras frente a vivências de passividade, como os delírios de controle. Esta é, de fato, uma interessante característica das psicoses e que as fazem um assunto muito estimulante de se estudar: os pacientes psicóticos nunca suspeitam de que estejam doentes, apesar de experimentarem mudanças drásticas e muitas vezes agudas na maneira como apreciam o mundo e a si mesmos. Suas explicações para estas vivências nunca são parecidas com aquelas que damos para as dores de cabeça e de barriga; ao contrário, são explicações repletas de ideias a respeito de más intenções de outras pessoas fazendo coisas como instalar dispositivos com as mais variadas funções malévolas, como monitorar, introduzir ou subtrair pensamentos ou emoções, bem como guiar os passos destes pobres pacientes e fazê-los ouvirem vozes. Muitos indivíduos sofrendo de esquizofrenia têm alucinações auditivas. As alucinações auditivas da esquizofrenia têm um aspecto peculiar: com muita frequência elas são alucinações auditivas verbais, o que significa que seu conteúdo se caracteriza basicamente por vozes, as quais geralmente comentam as ações dos pacientes, ou lhes insultam, ou lhes dizem coisas desagradáveis (embora seja muito raro, já observei pacientes com alucinações auditivas verbais dizendo coisas agradáveis a eles). Uma das explicações para este caráter das experiências alucinatórias de portadores de esquizofrenia provém do fato de que, como seres sociais que desenvolveram a linguagem, um poderoso instrumento levando ao máximo o potencial de comunicação em nossa espécie, o processamento daquilo que os outros nos dizem passou a ser uma importante função de nossas mentes. Este tipo de processamento envolve diversas etapas, incluindo não apenas a linguagem, mas também as variáveis sociais veiculadas pela voz de nossos interlocutores e as operações cognitivas envolvidas em nossa habilidade de diferenciar nosso self dos de outras pessoas. Em outras palavras, quando conversamos, não temos apenas que entender aquilo que as pessoas nos 13

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dizem, isto é, sermos capazes de decodificar os aspectos sintáticos e semânticos do discurso, representados, respectivamente pela organização gramatical da frase e pelos significados das palavras; mas também compreendermos uma ampla variedade de varáveis sociais veiculadas pela voz de quem conversa conosco. Estas variáveis são representadas pela identidade de nossos interlocutores e pelas emoções por eles veiculadas através da prosódia, que é a “musicalidade” da fala, a qual, da mesma forma que as expressões faciais e corporais, conduz múltiplas informações a respeito do estado mental e, portanto, dos desejos, afetos e intenções de quem fala. Nossa mente é altamente especializada em decodificar estas informações, de forma automática e espontânea, pois, como seres sociais, temos de ser muito rápidos em identificar as intenções dos outros a fim de prever seu comportamento. Existem muitos trabalhos científicos demonstrando que indivíduos sofrendo de esquizofrenia têm comprometimento da capacidade de decifrar os sinais sociais veiculados pela prosódia e pelas expressões faciais: estes pacientes não identificam ou identificam erroneamente estes sinais. Mas, em relação às alucinações auditivas, algo a mais parece estar comprometido, que é a capacidade de diferenciar o próprio self do de terceiros. É muito óbvio dizer que, quando conversamos com alguém, temos de perceber que somos indivíduos diferentes, completamente separados física e mentalmente daqueles com quem conversamos. Embora esta sensação de individualidade nos seja muito familiar, ela só acontece porque nosso cérebro executa uma série de operações que podem estar seriamente afetadas na esquizofrenia, resultando em sintomas de influência e de passividade. Uma brincadeira muito comum entre crianças ilustra bem como estas operações mentais associadas à geração de uma forte sensação de individualidade não funcionam em pessoas mentalmente saudáveis. Imagine que uma criança chamada Aninha, filha de Paulo e de Alice, moradora da cidade de Curitiba, comece a fazer uma série de perguntas a seu amiguinho Jonas. A primeira delas: “Jonas, você é menino ou menina?”, a que ele prontamente responde “menino”. Em seguida, Aninha pergunta: “você mora em Curitiba?” e Jonas responde “sim”. Aninha continua, perguntando “seu pai se chama Paulo?”, ao que Jonas responde “não, ele se chama João”. Em seguida, ela pergunta “e sua mãe, se chama Alice?”. Jonas novamente nega. Aninha, então, finge-se aliviada, dizendo: “puxa, então você não é eu!”. Aqui, Aninha brinca com esta faculdade humana, funcional desde muito cedo em mentes saudáveis, relacionada ao processamento automático de nossa individualidade, que nos permite identificar os outros como agentes cujas identidades são claramente distintas das nossas sem a necessidade de um interrogatório parecido. As alucinações auditivas da esquizofrenia parecem poder ser explicadas a partir de transtornos neste processo, que, evidentemente não está comprometido 14

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em Aninha, mas está em alguns portadores deste transtorno psiquiátrico. Existem múltiplas hipóteses acerca da origem das alucinações auditivas verbais da esquizofrenia. Estes sintomas intrigam os médicos e neurocientistas até hoje, pois, como seria possível ouvir vozes sem que alguém – ou alguma coisa, como um rádio ou uma televisão – esteja emitindo um estímulo verbal? Uma possibilidade é que estes indivíduos interpretem erroneamente os próprios pensamentos como vindos de fora de suas mentes, na forma de vozes. Mais precisamente, esta possibilidade implica que sua mente perca a capacidade de identificar seus próprios pensamentos como seus e, em decorrência disso, acabe por interpretá-los como discursos vindos de fora, sendo então experimentados sensorialmente como vozes. Alucinações auditivas verbais na esquizofrenia podem, portanto, ser explicadas como disfunções em circuitos neuronais que entram em ação quando o cérebro precisa decodificar uma conversa. Tal processo abrange diversas etapas, como a diferenciação do próprio self do de outras pessoas, algo que já pode estar acontecendo quando ouvimos a voz de um interlocutor e a nossa própria. A percepção da palavra falada e da palavra ouvida recruta diferentes circuitos neurais que fazem parte da rede default. Por exemplo, regiões situadas nos córtices temporoparietais inferiores, como o sulco temporal superior e regiões parietais inferiores – que são regiões da rede default altamente associadas ao processamento de estímulos sociais – ficam mais ativas quando ouvimos alguém falar e menos ativas quando falamos. Imagine que este processo esteja comprometido em razão de uma hiperatividade destas estruturas, que não conseguem “desligar” quando isso é preciso, ou seja, durante a produção da fala. Um possível resultado é a hiperatribuição da própria voz e até mesmo dos próprios pensamentos a outras pessoas, assim como o aumento da dificuldade em discriminar outros tipos de estímulos internos, como sentimentos e até mesmo intenções, de estímulos externos. Embora este seja um entre inúmeros modelos teóricos a respeito da formação de alucinações, ele me parece bastante abrangente, uma vez que possibilita explicar vários fenômenos psicóticos através de um mecanismo. Problemas afetando circuitos neuronais relacionados ao processamento da nossa experiência subjetiva de individualidade parecem poder produzir tanto alucinações auditivas verbais quanto experiências de passividade, na medida em que comprometem a capacidade de perceber os próprios processos psicológicos como tais. O modelo teórico de uma rede neural de funcionamento espontâneo, funcionando indesejavelmente de forma hiperativa de forma a interferir em múltiplos processos cognitivos parece, portanto, adequada para a compreensão destes fenômenos psicóticos. A rede default 15

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pode ser considerada um retrato da atividade neural por trás de diferentes tipos de representações mentais, pois reflete o recrutamento de áreas cerebrais que costumam trabalhar em conjunto. Como várias destas áreas foram também associadas ao processamento de imagens e mapas cognitivos sociais, tem sido sugerido que uma grande parte do pensamento estímulo-independente tenha a ver com preocupações acerca de outras pessoas. Alterações de conectividade da rede default com outras estruturas cerebrais, bem como prejuízos no intercâmbio dela com redes tarefa-positivas parecem explicar como estas preocupações deixam de ser ponderações adaptativas e podem se tornar pensamentos disfuncionais. Referências bibliográficas 1. McGilchrist I. The master and his emissary: the divided brain and the making of the Western world. Yale University Press. London, 2010. 2. Andreasen, Nancy e Ramchandran, Kancha. Creativity in art and science: are there two cultures? Dialogues in Clinical Neuroscience v. 14 n. 1 p. 49 – 54, 2012. 3. Wimmer H & Perner J. Beliefs about beliefs: Representation and constraining function of wrong beliefs in young children’s understanding of deception. Cognition 13, 103 – 128, 1983. 4. Broyd, Samantha J et. al. Default-mode brain dysfunction in mental disorders: A systematic review. Neuroscience and Biobehavioral Reviews v.33 n.3 p. 279 – 296, 2009. 5. Whitfield-Gabrieli, Susan e Ford, Judith M. Default mode network activity and connectivity in psychopathology. Annual Review of Clinical Psychology v. 8 p. 49 – 76, 2012. 6. Adolphs, Ralph. The neurobiology of social cognition. Current Opinion in Neurobiology v. 11 n. 2, p. 231 – 239, abr. 2001. 7. Tonelli, H. How semantic deficits in schizotypy help understand language and thought disorders in schizophrenia: a systematic and integrative review. Trends in Psychiatry and Psychotherapy v. 36 n. 2 p. 75 – 88, 2014. 8. Barkhof, Frederik et. al. Resting state functional MR imaging: a new window to the brain. Radiology v. 272 n. 1 p. 29 – 49, 2014. 16

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