Por onde eu começo meu solo? O tema como manancial de informação e inspiração na elaboração do improviso idiomático.

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Por onde eu começo meu solo? O tema como manancial de informação e inspiração na elaboração do improviso idiomático. Walter Nery Filho [email protected]

Resumo: a despeito do tom informal do início do título, este artigo procura discutir e analisar a questão da incorporação dos elementos musicais contidos em um determinado tema como fonte de informação e inspiração para a elaboração de um improviso idiomático sobre sua base harmônica. Ao final concluímos ser esta uma possibilidade que outorga importante teor de coerência e unidade ao discurso musical. Palavras-chave: Improvisação Idiomática, Paráfrase Musical, Citação Musical.

Where do I start my solo? The theme as source of information and inspiration in elaborating the idiomatic improvisation. Abstract: despite the informal aspect of the beginning of the title, this article seeks to discuss and analyze the issue of incorporating musical elements from a particular melody as a source of information and inspiration for the development of an idiomatic improvisation over a harmonic background. At the end we concluded that this is a possibility that aggregates consistency and unity to the musical discourse. Keywords: Idiomatic Improvisation, Musical Paraphrase, Musical Quotation.

Introdução Uma questão que aflige boa parte dos músicos profissionais e alunos que estudam improvisação diz respeito ao seguinte: o solo deve estabelecer uma relação de continuidade com o tema sobre o qual se vai improvisar ou pode ser um discurso musical totalmente original, destituído das características e propriedades intrínsecas deste tema? De fato, estas alternativas não são excludentes e de modo algum desobrigam ao envolvimento com um tipo ou outro destes procedimentos. Para todos os efeitos, no entanto, ao longo deste texto lançaremos um olhar apenas sobre os improvisos que mantêm algum tipo de relação com elementos do tema, sejam eles intervalares, motívicos, essencialmente rítmicos ou de natureza harmônica.

2 Em todas as épocas e culturas, a questão da improvisação musical é muito bem estabelecida e propagada nos meios musicais. Compositores sempre foram admirados e agraciados por suas habilidades de improvisar. No jazz, em especial com o advento do Bebop na década de 40 nos Estados Unidos, a improvisação se tornou um ideal de aprimoramento musical que transpôs sobremaneira os limites de espaço e tempo impostos pelas Big Bands das décadas de 20 e 30. A partir daí grandes nomes da improvisação estabeleceram suas bases e alçaram voos cada vez mais longos e profundos sob a perspectiva do conteúdo musical. Técnicas modernas começaram a ser absorvidas, muitas advindas da própria música erudita: elaboração melódica, sobreposição harmônica, polirritmia, além da incorporação de elementos dissonantes e cada vez mais associados ao ruído. O free jazz de Ornette Coleman e Pharoah Sanders são exemplos deste último caso. Este panorama de complexidade e evolução não necessariamente serviu como garantia de um discurso musical coerente e unificado, mas certamente revolucionou e ampliou o âmbito das possibilidades a respeito da improvisação idiomática. Neste texto exemplificaremos algumas situações em que existe uma clara assimilação de elementos contidos no tema e sua consequente utilização na elaboração do improviso sobre a base harmônica do mesmo.

Paráfrases, Citações e afins

Um dos conceitos musicais mais conhecidos e que conduzem conteúdo temático ao improviso é o de Paráfrase. Neste caso uma parcela considerável do próprio tema é exposta em um determinado trecho do solo, às vezes com algumas alterações, outras de modo quase literal. O solo de Stan Getz em Desafinado (Tom Jobim) no disco Getz/Gilberto de 1963 gravado pela Verve é um clássico exemplo. Aqui o saxofonista, logo na abertura do solo, reprisa quase que literalmente a frase inicial do tema:

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Exemplo 1. Melodia de Desafinado e abertura do solo de Stan Getz com a frase inicial (cc. 1 – 8).

Perceba-se que as linhas A e A’ são mais próximas no quesito contorno, a primeira ritmicamente mais alongada que a segunda. As linhas B e B’ são mais distantes, porém possuem terminação idêntica que incide sobre o par Sib-Réb. É interessante observar que este procedimento inicial pode nortear toda a trajetória do solo, como é o caso deste improviso específico. Outra ocorrência de Paráfrase recai no solo sobre a canção How Deep is the Ocean (Irving Berlin) executado por Kurt Rosenwinkel no disco Intuit de 1998. O guitarrista encerra o improviso parafraseando a frase final do tema:

Exemplo 2. Paráfrase no final do solo de Kurt Rosenwinkel (cc. 125 – 129) sobre a canção How Deep is the Ocean (cc. 29 – 32).

4 Uma relação um pouco mais subjetiva no tocante a utilização de elementos temáticos ao longo da improvisação diz respeito à questão da respiração, também conhecida por pacing (CROOK, 1990, p. 17). Efetivamente esta é uma característica diretamente ligada ao espaçamento que o improvisador utiliza entre uma frase e outra. Ainda no início do solo de Rosenwinkel, encontramos a ocorrência desta possibilidade, utilizada como um fator contiguidade entre o tema e o improviso. O guitarrista enuncia frases com extensões compatíveis com aquelas existentes no tema.

Exemplo 3. Frases com extensões compatíveis entre a melodia de How Deep is the Ocean (cc. 1 – 12) e o início do improviso de Rosenwinkel (cc. 1 – 9).

Uma outra possibilidade interessante repousa na incorporação de pequenas células (intervalos, motivos, pequenos gestos característicos) que são extraídas do tema pelo solista. Grande mestre nesta arte, Miles Davis elabora seu famoso solo de So What do álbum Kind of Blue (1959) baseado em fragmentos existentes na melodia. So What é uma composição de natureza modal com apenas dois acordes, um ambiente harmônico apropriado para a aplicação do recurso. O quadro que segue exemplifica:

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Exemplo 4. Pequenos fragmentos incorporados por Miles Davis e utilizados na elaboração do solo de So What (cc. 1 – 7).

Alguns símbolos geométricos foram utilizados para facilitar a identificação e comparação: o quadrado tracejado identifica os pequenos gestos de Quinta Justa da melodia e reproduzidos no solo. Os pequenos círculos enfatizam as terminações rítmicas que fecham as frases tanto do solo quanto da melodia. Os triângulos delimitam uma espécie de “bordadura dupla” da melodia que surge de modo retrogradado no solo. Perceba-se também que, no começo do solo, Miles “respira” em conformidade com o espaçamento das frases do tema, tocando frases curtas por sobre os compassos iniciais. Voltando ao solo de Rosenwinkel sobre How Deep is the Ocean, percebemos que o guitarrista recicla algumas “bordaduras”, pequenos gestos componentes do próprio tema. Esta é uma forma bastante sutil de se manter conectado a elementos característicos da melodia original:

Exemplo 5. “Bordaduras” de How Deep is the Ocean usadas por Kurt Rosenwinkel (cc. 1-2 e 6-7).

6 Para finalizar, gostaríamos de comentar um exemplo muito particular deste tipo de procedimento em que tema e improviso são mesclados, unificados em um mesmo momento da música. É o caso da “exposição improvisada” de All the Things You Are (Jerome Kern) executada por Charlie Parker (The Complete Dial Sessions, 1947). Nesta versão o saxofonista consegue estabelecer magistralmente o limiar entre exposição e improviso, uma experiência musical inusitada. Vamos expor apenas um trecho do tema original e a correspondente versão de Parker a título de comparação.

Exemplo 6. Comparação entre a melodia de All the Things You Are e sua exposição improvisada por Charlie Parker (cc. 1 – 15).

Considerações Expusemos alguns exemplos dentre as inúmeras possibilidades de se trabalhar a prática do improviso musical sob o ponto de vista da análise, coleta e aplicação das informações contidas no tema. Este é um suporte efetivo para o treino do desenvolvimento das ideias musicais e sua elaboração ao longo do tempo. Acreditamos ser este um modo

7 efetivo de se estabelecer relações de coerência entre o que é proposto pelo tema e o que vai ser exposto ao longo do improviso.

Bibliografia

COKER, Jerry. Jerry Coker’s Complete Method for Improvisation. California: Alfred Music, 1997. CROOK, Hal. How to Improvise – An Approach to Practicing Improvisation. Rottenburg: Advance Music, 2002. LARSON, Steve. Composition versus Improvisation?. Journal of Music Theory, Vol. 49, No. 2 (Fall, 2005), pp. 241-275 LEVINE, Mark. The Jazz Theory Book. Pentaluna, CA: Sher Music CO., 1996. MURPHY, John P. Jazz Improvisation: the Joy of Influence. The Black Perspective in Music, Vol. 18, No. 1/2 (1990), pp. 7-19. NETTL, Bruno. Thoughts on Improvisation: a Comparative Approach. The Musical Quarterly, Vol. 60, No. 1 (Jan., 1974), pp. 1-19. TIRRO, Frank. Constructive Elements in Jazz Improvisation. Journal of the American Musicological Society, Vol. 27, No. 2 (Summer, 1974), pp. 285-305.

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