Por que falar das pedras?

July 6, 2017 | Autor: Eduardo Simonini | Categoria: Gilles Deleuze and Felix Guattari, Italo Calvino, Cotidiano, Produção De Subjetividade
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SIMONINI, Eduardo. Por que falar das Pedras? In: OLIVEIRA, Inês Barbosa (Org.). Práticas cotidianas e emancipação social: do invisível ao possível. Rio de Janeiro: DP et Alii, 2010, p. 87-98.

POR QUE FALAR DAS PEDRAS? Eduardo Simonini Lopes E deixa-me dizer-te em segredo um dos grandes segredos do mundo: - Essas coisas que parece não terem beleza nenhuma - é simplesmente porque não houve nunca quem lhes desse ao menos um segundo olhar (QUINTANA, 2005, p.859).

O poeta Manoel de Barros (2007, p.19) escreveu, certa vez, que “poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)”. As palavras do poeta trazem à tona um elemento importante, mas muitas vezes esquecido: a necessidade de cultivarmos a arte de inventar o olhar a respeito das coisas aparentemente banais. Para conseguir oferecer valor aos elementos considerados ínfimos, torna-se necessário criar novas sensibilidades que permitam a produção de outros jeitos de sentir e de pensar. E é nessa prática criadora que, escrevendo a respeito do cisco, das formigas, dos caramujos, das pedras..., Manoel de Barros ofereceu um novo grau de luminosidade a esses elementos, inventando uma poética em torno da “insignificância”. Mas quando não possuímos tamanha inventividade poética, tendemos a ignorar essas outras possibilidades de existência, sendo que os fenômenos de menor vulto cruzam continuamente nossos cotidianos sem serem percebidos ou considerados como possuindo algum valor especial. Talvez pelo fato de vivermos em um momento histórico e social marcado pela velocidade e pela necessidade de experiências intensas e imediatas, o encantar pelas coisas pequenas possa vir a ser entendido como experiência supérflua, uma vez que o que é tomado como valor são as experiências grandiosas as mais diversas. Assim, queremos conhecer os grandes monumentos do mundo, mas somos ignorantes aos

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universos de sentido que se desdobram minúsculos e silenciosos dentro de nossos próprios jardins. Mas, para se inventar sentidos nas coisas pequenas, é necessário um movimento mais lentificado; um movimento que sustente uma pausa; um olhar potencializado por uma intensidade poética que venha a produzir condições para a criação de outras configurações naquilo que, por ser vivenciado como tão banal e rotineiro, passa a não ser mais visto: torna-se invisível aos olhos e ao pensamento. O escritor Ítalo Calvino possuía esse “olhar lentificado” capaz de inventar no banal outros espaços singulares, e se notabilizou por sua habilidade de produzir uma literatura que margeava tanto o universo do fantástico quanto também as rotinas cotidianas dos indivíduos. Em grande parte de sua obra, realidade e ficção não eram dimensões tomadas como pólos opostos, mas instâncias implicadas uma na outra, fazendo-nos questionar até que ponto a existência não se desdobraria como uma grande ficção coletiva que tomamos como a realidade acabada. Dedicando-se a problematizar as questões existenciais humanas a partir do relato de histórias fabulosas, Calvino (2003) compôs um livro no qual narrou uma série de diálogos estabelecidos entre o explorador Marco Polo e o imperador mongol Kublai Khan. O Grande Khan, ilhado em seu castelo de onde observava a vastidão incomensurável de seu reino, escutava diariamente as histórias contadas por Polo a respeito das cidades que este supostamente visitara. Eram relatos de cidades imaginárias que só podiam existir na mente inventiva do explorador. Mas cada cidade que Marco Polo narrava a Khan apresentava uma faceta diferente da condição humana, sendo que as cidades e as pessoas se misturavam e os limites entre elas ficavam cada vez mais tênues. Passeando em meio às histórias contadas por Calvino, torna-se impossível distinguir se foram as pessoas que construíram as cidades ou se foram as cidades que edificaram seus moradores. Essa linha tênue e contraditória, em que dançam as noções de cidade e habitante, de sociedade e indivíduo, é muito bem ilustrada no citado livro quando este nos apresenta a seguinte história: Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. - Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.

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- A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco - mas pela curva do arco que estas formam. Kublain Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe (CALVINO, 2003, p.81).

Assim, não se podendo descrever o arco sem conhecer a ação das pedras, também não se pode falar sobre o papel das pedras sem entender a curvatura dos arcos. Temos, então, que se o todo é mais que a soma de suas partes, não se deve, por sua vez, desvalorizar o papel singular dos envolvimentos “silenciosos” entre as partes no processo de construção coletiva. Fazendo uma analogia entre a história de Calvino e as relações socialmente erigidas no convívio humano, encontramos em Norbert Elias interessantes reflexões que sustentam a indissociabilidade da parte (o indivíduo) com o todo (a sociedade) e, principalmente, a necessidade de não criar uma hierarquia de valores entre essas entidades. Evitando posições dicotômicas, Elias argumenta que: Não há dúvida de que cada ser humano é criado por outros que existiam antes dele; sem dúvida ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um todo social – seja este qual for. Mas isso não significa nem que o indivíduo seja menos importante que a sociedade, nem que ele seja um “meio” e a sociedade um “fim”. A relação entre a parte e o todo é uma certa forma de relacionamento, nada mais, e como tal, sem dúvida, já é bastante problemática (ELIAS, 1994, p.19).

Merleau-Ponty (1990), de certa forma, também se congratula com as considerações de Elias quando sustenta que a dimensão do social é interior ao individual e o individual é interior ao social, uma vez que o passado individual é ele próprio inter-psicológico desde o nascimento. Por sua vez, toda atitude típica dada pela sociedade pode sempre ser modificada pelo impulso dos indivíduos, o que explicaria as transformações sociais. Para Merleau-Ponty, não há primazia do indivíduo sobre a sociedade, ou vice versa, uma vez que tudo é social e tudo é individual. O ser humano emerge, então, como uma entidade que inventa e se reinventa em um grupo, uma cultura, uma vida enquanto contínuo processo de conhecer, estabelecer relações e aprender. Dessa maneira, aprende-se um modo de ser humano dentro de um grupo social, sendo que a construção de tal grupo torna-se uma prática de abertura de universos (construção de novos sentidos, despertar de outras sensibilidades) e ou de fechamento de perspectivas (na reatualização do já conhecido, buscando manter uma estabilidade de um

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território cristalizado). Se nascemos imersos a determinantes sócio-históricos que nos modelam e limitam – determinantes estes a que se deu o nome de “sociedade” – os mesmos, por sua vez, não se constituem como entidades independentes dos sujeitos que os criaram em práticas marcadas pela rotina do dia-a-dia e também pela invenção de inusitadas maneiras de compor a própria vida. No momento, então, que nos decidimos aqui por abandonar as orientações que hierarquizam dicotomicamente a relação do indivíduo com uma sociedade, passamos a considerar que os processos de aprendizagem não se dão por mera transmissão de uma instância “superior” (determinações históricas, políticas, econômicas, institucionais) para uma “inferior” (indivíduos e grupos em seu viver cotidiano). Aprende-se a ser humano não pelo somatório de informações ou a mera acumulação de fatos, mas pelo mergulho em relacionamentos que promovem contágios entre as diferentes dimensões de existência. Aprende-se tomado em agenciamentos. O conceito de agenciamento foi proposto por Deleuze e Guattari (1976) e se refere à composição de potencialidades muitas vezes aparalelas e descontínuas que poderão vir a produzir novos enunciados – sejam cognitivos, políticos, estéticos –, novas territorialidades e repentinas desterritorializações. Guattari (1992, p.47) salienta que um agenciamento “não comporta nenhuma noção de ligação, de passagem, de anastomose entre seus elementos. É um agenciamento de campo de possíveis, de virtuais tanto quanto de elementos constituídos sem noção de relação genérica ou de espécie”. É diante a esta dinâmica significativa dos agenciamentos enquanto configurações inventivas que Deleuze e Parnet postularam que: A mínima unidade real não é a palavra, a ideia, um conceito ou um significante, mas o agenciamento. São sempre agenciamentos que produzem alteridades. (...) O escritor inventa agenciamentos a começar pelos agenciamentos que o inventaram; ele faz uma multiplicidade passar dentro de outra. A parte difícil é fazer convergir todos os elementos de um contexto não-homogêneo, fazendo-os funcionar em conjunto. Estruturas são ligadas por condições de homogeneidade, mas os agenciamentos não (DELEUZE; PARNET, 1987, p.51-52. Tradução nossa).

Dessa maneira, temos que indivíduos e grupos são também “escritores” de suas próprias trajetórias, montando e sendo montados pelas mais diversas conexões e encontros; produzindo agenciamentos e sendo produzidos continuamente por estes. A noção de agenciamento ratifica a dinâmica interconstituinte dentro da qual está imersa a relação do

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indivíduo com uma sociedade; e sendo que a existência do sujeito torna-se intrinsecamente ligada aos agenciamentos nos quais ele se engendra, temos que são nessas conexões e encontros que os processos de aprendizagem tomam corpo. Realizando essa ligação entre o aprender e o agenciar, Kastrup (1999, p. 150) irá dizer que: (...) fica evidenciado que o produto do aprendizado não é uma repetição mecânica, repetição do mesmo, mas uma atividade criadora, que elimina o suposto determinismo do objeto ou do ambiente, atividade sempre em devir. Aprende verdadeiramente aquele que cria permanentemente na relação com o instrumento, reinventando-se também como músico de maneira incessante.

Assim, o aprender, enquanto composição de agenciamentos, diz respeito ao engendramento inventivo de modos de se relacionar consigo mesmo e com toda uma produção sócio-cultura na qual se está imerso em interconstituinte relação. E é no estudo das trajetórias de aprendizagens de grupos e indivíduos – em suas aberturas a agenciamentos que mobilizam diferentes políticas de experiência1 – que acreditamos ser necessário continuamente problematizarmos as construções de sentido e de mundos que se desenvolvem nos diferentes espaços sociais. Tais construções se desenham tanto em elaborações macrossociais quanto também em dinâmicas inusitadas – e geralmente ignoradas em sua importância – que tomam vida nas micro-relações cotidianas. Estas últimas tendem a ser negligenciadas pelos saberes hegemônicos, já que muitas vezes não refletem as expectativas das verdades instituídas. O Grande Khan, na história de Calvino, torna-se, ele próprio, um exemplo desse tipo de “miopia” cognitiva a respeito do valor dessas micro-relações no momento em que priorizou a grandiosidade do arco, mas não valorizou a importância do engendramento das pedras. Considerar, portanto, a riqueza das relações incrustadas nas pedras pequeninas, ao se discutir a arquitetura dos arcos, é trazer à tona a relevância das conexões aparentemente insignificantes e dos envolvimentos imperceptíveis na construção não apenas de edificações, mas também de relações sociais.

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Para Larrosa (2004, p.163), “é experiência aquilo que nos passa, ou nos toca, ou nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação”.

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As dinâmicas invisíveis Porém, é importante aqui lembrarmos que os seres humanos não se organizam de maneira passiva como as pedras, e que os arcos, em sua imobilidade, não traduzem a dinâmica intensa e mutante das vivências sociais. Estas não necessariamente seguem de maneira rígida arquiteturas pré-configuradas, modificando suas formas e sentidos de orientação à medida que os sujeitos que as constituem vão desenvolvendo outros processos de aprendizagem que colocam em evidência diferentes maneiras de viver/habitar um mundo. A essas dinâmicas que fomentam modos de fazer e de pensar que modelam diferentes expressões no existir, Guattari (1992) chamou de produções de subjetividade. Porém, o conceito de subjetividade, em Guattari, não se restringe ao universo íntimo do indivíduo, mas a uma circulação de intensidades lingüísticas, estéticas, morais, políticas – onde participam os afetos, os corpos, o trabalho, o sexo, o inconsciente, etc – e que vão compondo, em sua multiplicidade, a experiência de um “eu”. Guattari e Rolnik (2005) ratificam tal posição quando salientam que produções de subjetividade, tanto as de caráter hegemônico quanto as de cunho marginal, estão em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos, sendo essencialmente fabricadas e modeladas no registro social. No entanto, mesmo sendo produzida, não podemos dizer que a subjetividade seja apenas o resultado de uma produção: ela é um processo de produção mesmo quando é produto. E esse processo está imerso na construção de diferentes verdades e racionalidades que vão, por sua vez, “definir” o que enxergar e como enxergar, instituindo saberes a serem considerados legítimos e invisibilizando ou desacreditando outros saberes e formas de pensar que não façam ressonância à produção de subjetividade hegemônica. Assim, conhecemos, sabemos e pensamos a partir dos processos de subjetivação que nos constituíram/constituem enquanto sujeitos. Podemos dizer, portanto, que tais processos foram produzidos e produzem diferentes modelos de racionalidade que limitam e ou expandem as possibilidades de como enxergar o próprio presente, significar o passado e sonhar o futuro. Fazendo

conversar

o

conceito

de

produção

de

subjetividade

com

as

problematizações que Boaventura de Sousa Santos levanta a respeito da construção do

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saber contemporâneo, temos que este último afirma que a modernidade produziu e igualmente foi produzida por um modo de ser/fazer/pensar sustentado por uma “racionalidade indolente”. Segundo Santos, tal indolência constrói uma produção de sentido de mundo que se sustenta sobre quatro tipos de racionalidade: A razão impotente, aquela que não se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria; a razão arrogante, que não sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua própria liberdade; a razão metonímica, que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade (...); e a razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente (SANTOS, 2006, p.95-96 – grifo nosso).

Dentre as características acima apresentadas da razão indolente, temos que, para os fins deste trabalho, é interessante nos acercarmos da problematização que Santos tece em torno da racionalidade metonímica. A metonímia é uma figura de linguagem na qual a parte é tomada pelo todo. Por exemplo, quando dizemos que “Luiza não tem um teto” queremos falar que ela não possui uma casa: toda uma representação da casa estaria contida na figura parcial da palavra “teto”. Dessa maneira, a razão metonímica seria aquela que busca abarcar a totalidade e a complexidade do mundo a partir do quinhão que conhece desse mesmo mundo. É tal racionalidade que está em cena quando uma religião se considera a Verdade, em detrimento de outras; quando uma cultura se considera o referencial de legitimidade, progresso e evolução moral-intelectual; quando um sistema políticoeconômico ou um sistema científico se coloca como única possibilidade viável de explicação dos sentidos do universo. Assim, para Santos, a razão metonímica produz uma compreensão parcial e seletiva da realidade, uma vez que se considera como a verdade a partir da qual todas as outras racionalidades são interpretadas, explicadas e desqualificadas em sua legitimidade. Ela “afirma-se como razão exaustiva, exclusiva e completa, muito embora seja apenas uma das lógicas de racionalidade que existem nesse mundo” (SANTOS, 2006, p.98). Porém, contra a razão metonímica, Santos defende de forma incisiva que o mundo não se restringe aos ditames ditatoriais de uma única racionalidade. No mundo pululam lógicas diversas, racionalidades diferentes, contraditórias, incertas em seu fluir e que, por sua vez, carregam uma legitimidade de existência não necessariamente atrelada aos

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caminhos das lógicas dominantes. Há, pois, outras racionalidades invisibilizadas e ou ignoradas pelos saberes hegemônicos, ainda que estes se arvorem como sendo a melhor (e única) explicação do real. Para desmontar essa produção de ignorâncias a respeito de outras racionalidades viáveis na teia social, Santos propôs uma diferente orientação nos estudos sociológicos; orientação esta que ele denominou de “sociologia das ausências”. Tal sociologia pretende abrir espaços de estudo e problematização a outros agenciamentos de sentido, outras produções de subjetividade que surgem, muitas vezes, como saberes moleculares (Guattari e Rolnik, 2005) e intersticiais em meio às produções hegemônicas de realidade. Trata-se, segundo Santos (2006, p.102) “de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe”. Estas alternativas consideradas muitas vezes “não-credíveis” se manifestam por meio de expressões moleculares, pequenos arranjos produtores de movimentos que instauram maneiras outras de viver. Contudo, essas dinâmicas moleculares, compostas nos agenciamentos no/do cotidiano e existindo em espaços de transitoriedade e experimentação – seja nas fábricas, nos bairros, nas famílias, nas escolas, na mídia... – tendem a se constituírem em nichos2 provisórios e não em casas fincadas no solo. Porém, em suas “insignificâncias”, informalidades e transitoriedades, colocam em movimento processos de subjetivação que dão consistência a inúmeras práticas invisíveis e ignoradas pelo saber hegemônico. São práticas que se formam e igualmente se desfazem no “calor” dos encontros no cotidiano, nutrindo arranjos sociais marcados por dispositivos de ação, modos de convivência, conspirações, boicotes silenciosos, outras liberdades que gestam tsunamis devastadoras e ou ondulações sutis que desaparecem no próximo instante como frágeis marolas a acariciar a praia. Mas, ainda que existam no tempo de um suspiro ou de uma

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Observando as definições do dicionário (FERREIRA, 1986), temos que a palavra nicho, entre outros significados, vem a indicar uma pequena habitação, um lugar afastado, um retiro. O nicho, então, não nos remete a um espaço molar, mas a uma dimensão molecular. Daí que tal conceito também pode ser apropriado, neste trabalho, para significar igualmente um ponto de reordenação de potências e de produção de outros agenciamentos e sentidos.

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breve onda, tais práticas moleculares invisibilizadas podem vir a carregar consigo a potência de agenciar outras possibilidades no viver. A sociologia das ausências ambiciona, portanto, ampliar o presente, multiplicando as possibilidades da realidade a fim de que a mesma não se restrinja a parâmetros e referências que, de tão específicos, acabem por ignorar toda uma ecologia de saberes que pululam por diferentes vias e meios de expressão. Chamando a atenção ao valor desses múltiplos agenciamentos sociais nos processos de transformação coletiva, o sociólogo Lúcio Kowarick salienta que as revoluções moleculares – essa exuberante polifonia de expressões tantas vezes invisibilizadas em suas articulações e diferentes graus de organização – devem ser estudadas: (...) nos seus micromovimentos, pesquisando situações concretas que aparecem no ‘calor da hora’ e que apontam para impasses e saídas para as quais as condições estruturais objetivas constituem, na melhor das hipóteses, apenas um grande pano de fundo. (...) Não foi por acaso que a grande maioria dos especialistas tomou-se de surpresa quando eclodiu a greve metalúrgica de 1978 em São Paulo. Só que – agora se sabe - antes disso pequenas lutas foram se desenvolvendo de maneira não visível para aqueles que esperavam e valorizavam uma situação restrita às instâncias organizacionais, em detrimento das fragmentadas manifestações que passaram a ocorrer nos bairros e fábricas (KOWARICK, 1994, p.45-46).

E tais subjetivações fugazes e invisíveis, no instante em que possuem outros regimes de luminosidade, outras constâncias, podem produzir experiências que trazem consigo a potência de interferir nos modos de aprender, de pensar e de criar verdades3 dentro dos múltiplos e conflitantes espaços coletivos. Se, então, acreditamos que tais nichos emergentes dos mais diversos e improváveis agenciamentos cotidianos possam vir a se constituírem em dispositivos de invenção de outros processos de subjetivação e de aprendizagem, também não podemos nos furtar à consciência de que são invenções frágeis e provavelmente com poucos recursos para resistirem às pressões das grandes tempestades e dos grandes sistemas de verdade a se 3

Quando nos referimos ao conceito de verdade, estamos nos apropriando da concepção defendida por Nietzsche (1966, p.291) quando este escreveu que “a ‘verdade’ não é, consequentemente, algo que exista e que devamos encontrar e descobrir – mas algo que é preciso criar, que dá seu nome a uma operação, melhor ainda, à vontade de alcançar uma vitória, vontade que, por si mesma, é sem finalidade: introduzir a verdade é um processus in infinitum, uma determinação ativa – e não a manifestação na consciência de algo que seja em si fixo e determinado”. Foucault (2003, p.229) completamenta os argumentos de Nietzsche quando esclarece que “há efeitos de verdade que uma sociedade (...) produz a cada instante. Produz-se verdade”.

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constituírem como produtores de sentidos hegemônicos. Mas também não podemos menosprezar a ação desses microdispositivos, assim como não ignorar a potência que possam vir a colocar em movimento no agenciar de um diferente conhecer. Acreditamos que tais nichos, exatamente por habitarem uma dinâmica de marginalidade, de táticas montadas em jogos de cintura inusitados por parte de indivíduos e grupos em movimento, possam ainda produzir resistências criativas em contraposição ao pensamento impotente – típico da racionalidade indolente – que postula que a realidade já está pronta e definida em seu destino, e que outros espaços liberdade não passam de vã quimera. E é exatamente imerso nessa experiência despotencializada de vida que encontramos Kublai Khan, ao final do livro de Calvino, em um último diálogo que ele estabeleceu com Marco Polo. Refutando a multiplicidade de mundos que Polo fez passar diante dos seus olhos enquanto narrava a dinâmica das diferentes cidades, o Grande Khan lamenta-se dizendo que: - É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito. E Polo: - O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço (CALVINO, 2003, p.158).

O que se faz necessário, então, é buscar produzir outras maneiras de habitar o “inferno”, a cidade, a escola, o mundo, a vida..., que não sejam um mero aceitar o comodismo do hábito. É aí que encontramos a importância de, confrontando a influência restritiva da razão indolente, pesquisar e oferecer visibilidade a dinâmicas sociais moleculares que passam imperceptíveis aos olhares hegemônicos, mas que podem agenciar outras maneiras de existir, produzir aprendizagem e estabelecer diferentes dimensões de sentido e contágio,“(...) esperando que o contato se torne fecundação” (BERGSON, 2006, p.47).

Referências

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BERGSON, Henry – O Pensamento e o Movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BARROS, Manoel de – Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2007. CALVINO, Ítalo – As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo, 2003. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix – O antiédipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire – Dialogues. New York: Columbia University Press, 1987. ELIAS, Norbert – A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda – Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2a. ed., 1986. FOUCAULT, Michel – Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. GUATTARI, Félix – Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely - Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 7a.ed., 2005. KASTRUP, Virgínia – A invenção de si e do mundo. Campinas: Papirus, 1999. KOWARICK, Lúcio (Org.) – As lutas sociais e a cidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. LARROSA, Jorge – Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MERLEAU-PONTY, Maurice – Merleau-Ponty na Sorbonne. Campinas: Papirus, 1990. NIETZSCHE, Friedrich. – Vontade de potência. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966. QUINTANA, Mário – Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa – A gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2006.

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