Por que importa quem nos representa?

Share Embed


Descrição do Produto

Por que importa quem nos representa?1    Thiago Coacci    As  eleições  municipais   estão  se  aproximando  e  chegam  com  uma  série  de  novidades.  ​A  reforma  eleitoral  de  2015  promoveu  mudanças  que  já  impactam  o  pleito​,  como  a  redução  do  tempo  de  campanha,  que  agora  tem  apenas  45  dias,  e  a  proibição   do   financiamento  de  campanhas por pessoas jurídicas.    Outra  novidade  que  desponta  nas  redes  sociais  é  a  visibilidade  grande  de  pessoas  ​LGBT  e  mulheres​ feministas se candidatando.    A  partir  da  constatação  de  que  a  configuração  atual  do  Parlamento  não  reflete  a  realidade  da  população  brasileira,  essas  candidaturas  prometem  que  mudar  isso,  colocando   mais  representantes mulheres, LGBT, negros e negras, mudaria radicalmente a política.    Essas  campanhas  são  recheadas  de  frases  como  "LGBT  vota  em  LGBT", "representatividade  importa", "para a juventude ocupar a política".    Mas  por  que  importa  quem  seu/sua  representante  é?  Ou  seja,  por  que  é  importante  que  a  pessoa que recebe seu voto seja mulher, LGBT, negro ou negra?    A  resposta  mais  comum  é  dizer  que  não  importa.  A  política  seria um embate de ideias, então  importaria  o  que  a  pessoa   pensa  e  defende,  não  o  que  ela   é  e  os  partidos  seriam  meios  institucionais  de  agregar  pessoas  com  ideias  similares.  Assim,  deveríamos eleger alguém que  defenda  ideias  com   as  quais  concordamos,  independentemente  de  quem  ela  seja.  Isso  é,  em  parte,  verdadeiro.  Não  há  garantia  alguma  de  que  uma   pessoa,  por  pertencer  a  determinado  grupo,  defenda  os  direitos  desse  grupo  ou  determinada  ideia.  Clodovil  Hernandes  é  um  1

 Artigo de opinião originalmente publicado no BrasilPost em 25 de agosto de 2016:   

exemplo;  apesar  de   gay  assumido,  quando  deputado  federal,  não  foi  um  grande  defensor  dos  direitos LGBT.    As  pautas  que  alguém  diz  defender  são  importantes  e  não devem ser ignoradas, mas as ideias  não são completamente desvinculadas das pessoas e seus pertencimentos.  Para  além  da  pessoa,  os  partidos também têm um papel importante em nosso sistema político.  Os  partidos  possuem  pautas  consideradas  prioritárias  e  têm  um  certo  grau  de  controle   sobre  como  seus  parlamentares  votam  nessas  questões.  Se  o  partido  não  acolhe  as  demandas  dos   grupos  oprimidos,  pode  ser  que  o  parlamentar  que  representa  um  desses  grupos  tenha  pouca  liberdade para agir em favor desses interesses. Mesmo que tenha liberdade, pode não ter apoio  de seus companheiros de partido, dificultando a aprovação de suas propostas.    Além  disso,  o  voto  em  um  candidato  é  também  o  voto  em  um  partido,  podendo,  dessa  maneira,  acabar  por  eleger  uma  pessoa  com  interesses opostos  ao que você defende. Por isso,  é  muito  importante  prestar atenção ao partido de seu ou sua candidata e optar por partidos que  efetivamente apoiem as pautas dos grupos oprimidos.    Apesar  desses  argumentos,  a  simples  presença  de  pessoas  de  grupos  oprimidos  na  política  é   importante  e  existem,  pelo  menos,   quatro  boas  razões  para  você  votar  em  alguém  que  pertence a um grupo oprimido. As razões são:    1)  A  demanda  por  representação  de  grupos  oprimidos  é  uma  demanda  por  outra  forma  de  democracia;  2) A sub­representação de grupos oprimidos é injusta;  3) Os interesses dos grupos oprimidos ganham representantes;  4) A pessoa eleita se torna um modelo positivo.    #1  A  demanda  por  representação  de grupos oprimidos é uma demanda por outra forma  de democracia   

Grande  parte  da  população  não  se  sente  representada  pelos  nossos   políticos  e  pelos  partidos.  Sentem  que  já  não  existe  mais  uma  aproximação  entre  as pessoas, os partidos e  os políticos e  que estes defendem apenas seus interesses.    Votar em alguém que pertence a um grupo oprimido é uma aposta na mudança.    As  mulheres  eleitas  tendem a  dialogar mais entre si, independentemente do partido,  e também  possuem  mais  contatos  com  os  grupos  de  pessoas  que  as  elegeram,  promovendo  reuniões  e  assembleias  para  aproximar  sua  base.  ​O  lobby  do  batom​,  como  ficou conhecida a articulação  de  mulheres  durante  o  processo  de  constituinte,  é  um  desses  claros  exemplos  de  articulação  suprapartidária. A atual​ bancada feminina​ continua a atuar dessa maneira.    Muitas  das  candidaturas  de  mulheres,  LGBT  e  pessoas  negras  são  fruto  de  articulações  de  base  e  trazem  como  pauta,  além  das  defesas  dos  interesses  do  grupo,  uma maior participação  da população na política.    O  voto  de  quatro  em  quatro  anos  é  muito  pouco;  votar  num  candidato  ou  candidata  mais  próxima  de  você,  que  constrói  coletivamente  a  campanha  e  o  mandato,  te  dá  mais  condições  de  acompanhar  as  ações,  de  cobrar  e  questionar  as  posições  dessa  pessoa,  ampliando  as  chances  de  que  seus  interesses  sejam  efetivamente  representados.  É diferente de um "político  profissional", que não é próximo de você e que​ vê a política como um fim em si mesmo​.    A  política,  para  grande  parte  das  candidaturas  que  se  originam  de  grupos  minoritários,  é  um  meio para a conquista de direitos para o grupo ao qual pertencem.    #2 A sub­representação de grupos oprimidos é injusta    É  injusto  que  os  parlamentos  brasileiros   sejam  dominados  por  homens  brancos  heterossexuais.  Será  que  essas  pessoas  possuem  alguma  capacidade  fantástica  e  superior  que  faz  que  elas   sejam  representantes  melhores  do  que  mulheres  ou  pessoas  negras  e  as  tornem,  assim, as legítimas representantes da sociedade?   

Não!  Não  há  uma  diferença  de  natureza  que  faça  que  homens  brancos  heterossexuais  sejam  mais adequados para entender os problemas da sociedade e propor leis.    Se  não  existissem  obstáculos impedindo que determinados grupos se elejam, era de se esperar  que  a  configuração  dos  parlamentos  fosse  mais  próxima  daquela  da  população  geral.  Uma  pequena  variação  seria  aceitável,  mas  as  discrepâncias  atuais  são  muito grandes para ser uma  simples distribuição aleatória.    As  mulheres  são  50,62%  da  população  brasileira,  mas  ​apenas  31%  das  candidaturas  para  a  vereadores  são  femininas.  Não  possuímos  dados  estatísticos  sobre  a  população  LGBT  no  Brasil, mas é impressionante que haja apenas um deputado federal abertamente gay no Brasil.    Essa  discrepância  é  reflexo  de  um  sistema  complexo  de  injustiças  que  opera  estabelecendo  uma ampla gama de barreiras.    A  primeira  é  a  barreira  da  ambição  política.  Diversas  pessoas  de  grupos  oprimidos  não  ambicionam se eleger por acreditar que não seriam capazes.    A  segunda  é  a  barreira  do  financiamento;  pessoas  de  grupos  oprimidos  têm  dificuldades   de  conseguir  um  bom  financiamento  de  campanha  ou  até  mesmo  apoio  do partido, tornando sua   campanha precária.    Outra  é  a barreira da elegibilidade, ou seja, algumas pessoas efetivamente deixam de votar em  uma  candidata  por  ela  ser  lésbica,  ser  negra  ou  pertencer a outro grupo oprimido. Insinuar ou  revelar  que   o   candidato  rival  é  homossexual  é  uma  estratégia  muito  utilizada  para  reduzir  os  votos do inimigo.    Essas barreiras são injustas e não deveriam existir.    #3 Os interesses dos grupos oprimidos ganham representantes   

Vivemos  em  uma  sociedade  plural  em  que  as  pessoas  têm  opiniões  e  valores  distintos  e  muitas  vezes  opostos.  É  impossível  que  uma  única   pessoa  represente  todos  os  interesses  existentes e ainda dê conta de solucionar os embates entre posições opostas.    A  ideia  que  fundamenta  a  democracia  representativa  é  justamente  de  ser  um  mecanismo  que  permite  organizar  a  pluralidade  e  os  conflitos  de  interesses,  de  maneira  a  dar  condições  para  que  todos  sejam  representados  dentro  da  política.  Infelizmente,  isso  não  é  o  que  acontece  na  prática.    Os  interesses  dos  grupos  oprimidos  raramente  são  representados;  assim,  projetos  de  lei  que  visam garantir direitos a esses grupos são sistematicamente abandonados ou reprovados.    Os  direitos  LGBT  são  um  exemplo  claro.  Desde  1995,  existem  projetos  de  lei  para  regulamentar  as  uniões  entre pessoas de mesmo sexo, criminalizar a ​LGBTfobia​, entre  vários  outros.    No  entanto,  o  Congresso,  por  pressão   da  bancada  religiosa  conservadora,  se  recusa  a  aprová­los  e  ainda  retira  as  menções  a  gênero  e  orientação  sexual  de  projetos,  como  ocorreu  no​ ​Plano Nacional de Educação​ e na​ ​Lei do Feminicídio​.    Por  isso,  é  importante  que  pessoas  pertencentes  aos  grupos  oprimidos  sejam eleitas, para que  seus interesses sejam representados.    Existem  duas  boas  objeções  a  esse  argumento.  Primeiro,  que  não  é  preciso  pertencer  a  um  grupo  oprimido  para  representar  seus  interesses  e  segundo,  como  já  dito  anteriormente,  que  não  há  garantia  de  que  o  pertencimento  a  determinado   grupo  implique  defesa  dos  direitos  desse.    São  argumentos  verdadeiros,  mas  que  não  impedem  a demanda por maior representatividade.  Em  relação  à   primeira  objeção,  apesar  de  qualquer  pessoa  poder  representar  os  interesses  de  um  grupo  oprimido,  na  prática,  quem  o  faz  é  exceção,  como  a  deputada  Erika  Kokay  ­  que  mesmo sendo heterossexual, já se consolidou como uma defensora dos direitos LGBT. 

  Em  relação  à   segunda  objeção,  ela  na  verdade  deve  ser  interpretada  como  um  motivo  extra  para  maior  representatividade,  uma  vez  que  não existe uma opinião única dentro dos próprios  grupos oprimidos.    A  criminalização  da LGBTfobia é um exemplo; há pessoas LGBT que defendem  com unhas e  dentes  a criminalização, outras que acreditam que  essa não é uma via adequada de combate ao  preconceito. Essa pluralidade de opiniões interna aos grupos deve ser representada.    #4 A pessoa eleita se torna um modelo positivo    A visibilidade na mídia dos grupos oprimidos costumeiramente é baixa ou negativa.    A  maioria  dos  filmes  exibidos  anualmente  nos  cinemas  nem  sequer  passa  em  testes  simples,  como  o  de  Bechdel,  que verifica se (a) existem duas mulheres no filme, (b) se elas conversam  entre elas e (c) se a conversa é sobre algo que não um homem.  A  visibilidade  de  LGBT  e  de  pessoas  negras  também  é  bastante  precária   e  negativa;  quase  sempre  mulheres  negras  são  representadas  como  domésticas  e  travestis,  como  prostitutas  ­­  isso quando são representadas.    A  representação  baixa  ou  negativa  tem  efeitos  concretos  nas  pessoas,  podendo  causar,  por  exemplo, baixa autoestima nas pessoas que pertencem ao grupo sub­representado e servir para  legitimar as estruturas de poder e as hierarquias sociais.    A  existência  de  uma pessoa que pertence a um grupo oprimido em um cargo de poder permite  que  outras  pessoas  se  identifiquem  com  a  pessoa  eleita  e  desejem  algo  mais  em  sua  vida,  ampliando  a  autoestima  e  também  as  expectativas.  Serve  também  para  desconstruir  o  imaginário  social  negativo  de  determinado  grupo,  demonstrando  que  são  capazes,  como  qualquer outra pessoa, de assumir um cargo de poder ou fazer o que quiserem.    A  política  não  é  apenas  um  debate  de  ideias  entre  pessoas  desprovidas  de  qualquer  pertencimento e corporalidade. 

  Neste ano, quando for escolher em quem votar, pense bem. Pense no partido e nas pautas,  mas  leve  em  conta  também  quem  é  a  pessoa  e  considere  dar  preferência  a  votar  em  uma  mulher,  uma pessoa LGBT ou uma pessoa negra.    Existe  uma  série  de  páginas  na  internet  que  podem  te  ajudar  a  encontrar  candidatos  e  candidatas  feministas  e  LGBT:  ​Candidaturas  Trans  do  Brasil​,  ​Vote  LGBT  e  ​Vote  numa  feminista​ e​ ​Enegreça o seu voto    Obs.:  a  maioria  dos  argumentos  apresentados  aqui  foram  formulados  e  sistematizados  originalmente  pela   cientista  política  feminista ​Anne Phillips​. Para ver as posições originais da  autora  ­  muito  mais  detalhadas  e  aprofundadas  do  que  foi  possível  fazer  aqui   ­  consulte  o  texto  "​PHILLIPS,  A.  Democracy  and  Representation;  or,  Why  Should  it  Matter  Who  our  Representatives  Are?  In:  PHILLIPS,  A.  Feminism  and  politics.  Oxford;  New  York,  Oxford  University  Press,  1998​".  Anne   Phillips  possui  uma  vasta  e  respeitada  obra  abordando  o tema  da representação política de mulheres e outros grupos oprimidos.   

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.